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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.2 Campinas Apr./June 2020  Epub June 27, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i2.8654547 

ARTIGO

DAS CONEXÕES ENTRE CULTURA DIGITAL E EDUCAÇÃO: PENSANDO A CONDIÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

CONNECTIONS BETWEEN DIGITAL CULTURE AND EDUCATION: THINKING THE DIGITAL CONDITION IN CONTEMPORARY SOCIETY

DE LAS CONEXIONES ENTRE CULTURA DIGITAL Y EDUCACIÓN: PENSANDO EN LA CONDICIÓN DIGITAL EN LA SOCIEDAD CONTEMPORÁNEA

Sandro Faccin Bortolazzo1 

1Doutor em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. Pesquisador Colaborador - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: sandrobortolazzo@hotmail.com


RESUMO

A Cultura Digital emerge das diversas práticas sociais que vão incorporando as tecnologias digitais ao cotidiano. Inscrita no campo dos Estudos Culturais de uma vertente pós-estruturalista, esta pesquisa exploratória e de natureza bibliográfica investiga as conexões entre Cultura Digital e Educação, tendo como argumento a presença de uma Condição Digital na sociedade contemporânea. Assim, dois movimentos de investigação se interligam, sendo o primeiro uma apresentação do conceito de Cultura e Condição Digital, e o segundo uma análise dos contornos e deslocamentos no conceito de Educação, não somente como elemento de instrução escolar e ensino, mas enquanto processo de formação que direciona as condutas dos sujeitos. O referencial teórico tem apoio nas discussões de Gere (2008), Lister at, al (2009), Stalder (2018), Bauman (2008, 2009, 2010), Foucault (1995, 1998, 2008), entre outros. Os resultados apontam uma Condição Digital e uma Educação ao estilo expresso, individualizada, operada na mobilidade e ubiquidade dos artefatos digitais.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura digital; Condição digital; Educação

ABSTRACT

The Digital Culture emerges from several social practices that incorporate digital technologies into everyday life. Inscribed in the field of Cultural Studies from a poststructuralist perspective, this exploratory and bibliographical research investigates the connections between Digital Culture and Education, taking as an argument the presence of a Digital Condition in contemporary society. Thus, two research movements are interconnected, being the first a presentation of the concept of Culture and Digital Condition, and the second an analysis of the contours and displacements in the concept of Education, not only as element of schooling instruction and learning, but as a formation process that directs the conducts of the subjects. The theoretical framework has hold in the discussions of Gere (2008), Lister at, al (2009), Stalder (2018), Bauman (2008, 2009, 2010), Foucault (1995, 1998, 2008), among others. Results point to a Digital Condition and an Education in express, individualized style, operated on the mobility and ubiquity of digital artifacts.

KEYWORDS: Digital culture; Digital Condition; Education

RESUMEN

La Cultura Digital emerge de las diversas prácticas sociales que van incorporando las tecnologías digitales a lo cotidiano. Inscrita en el campo de los Estudios Culturales de una vertiente post-estructuralista, esta investigación exploratoria y de naturaleza bibliográfica investiga las conexiones entre Cultura Digital y Educación, teniendo como argumento la presencia de una Condición Digital en la sociedad contemporánea. Así, dos movimientos de investigación se interconectan, siendo el primero una presentación del concepto de Cultura y Condición Digital, y el segundo un análisis de los contornos y desplazamientos en el concepto de Educación, no sólo como elemento de instrucción escolar y enseñanza, sino como proceso de la formación que dirige las conductas de los sujetos. El referencial teórico tiene apoyo en las discusiones de Gere (2008), Lister at, al (2009), Stalder (2018), Bauman (2008, 2009, 2010), Foucault (1995, 1998, 2008), entre otros. Los resultados apuntan a una Condición Digital y una Educación al estilo expreso, individualizada, operada en la movilidad y ubicuidad de los artefactos digitales.

PALAVRAS-CLAVE: Cultura Digital; Condición Digital; Educación

1 INTRODUÇÃO

O conceito de Cultura Digital engloba processos de comunicação, aparatos e dispositivos, espaços e práticas sociais que se encontram atrelados aos usos das tecnologias digitais. A Cultura Digital carrega a baliza de algo novo e uma perspectiva, na maioria das vezes, positiva do futuro, emergindo máximas sobre novas possibilidades e oportunidades educacionais. Trata-se ainda de um poderoso movimento sobre o progresso tecnológico, hoje corroborado no intenso consumo de produtos, a exemplo de smartphones e tablets.

Adotando o aporte dos Estudos Culturais de vertente pós-estruturalista, esta pesquisa de caráter exploratório e natureza bibliográfica investiga as conexões entre Cultura Digital e Educação, tendo como argumento a presença de uma Condição Digital na sociedade contemporânea. Para alcançar tal intento, dois movimentos de investigação se interligam, sendo o primeiro uma apresentação dos conceitos de Cultura e de Condição Digital, e, o segundo, uma análise dos contornos e deslocamentos no conceito de Educação, compreendido não apenas como elemento de instrução escolar e ensino, mas como processo e formação que direciona as condutas dos sujeitos.

O referencial teórico tem apoio nas discussões de Gere (2008), Lister at, al. (2009), Stalder (2018), Bauman (2008, 2009, 2010), Foucault (1995, 1998, 2008), entre outros. Os resultados da pesquisa apontam uma Condição Digital e uma Educação ao estilo expresso, individualizada, operacionalizada a partir das características de mobilidade e ubiquidade dos artefatos digitais.

2 UM ENCONTRO ENTRE OS ESTUDOS CULTURAIS E A CULTURA DIGITAL

Para analisar a Cultura Digital, é preciso levar em consideração um aspecto adjacente aos Estudos Culturais, a saber, o de que as tecnologias estão imbricadas nas práticas culturais de cada sociedade. O campo dos Estudos Culturais enxerga a cultura não como um espaço definido por tradições, costumes, hierarquias, erudições, mas enquanto um conceito que se expande a qualquer ritual da vida cotidiana. A cultura “tem de ser vista como algo fundamental, constitutivo” (HALL, 1997, p. 23) ou, como propõe Costa (2005, p. 109), “como expressão das formas pelas quais as sociedades dão sentido e organizam suas experiências comuns; cultura como o material de nossas vidas cotidianas”. Isso engloba tanto as instituições e relações de poder quanto toda uma vasta gama de produções e tecnologias.

O termo ‘tecnologia’ apresenta significados que se referem tanto ao conhecimento técnico e científico quanto às ferramentas cujo uso e desenvolvimento requerem tempo de aprendizagem, maturação, adaptação e acomodação por parte dos sujeitos, tais como a escrita, a imprensa, os automóveis, o rádio, o telefone, o computador. Tecnologia também como um meio para determinado fim ou como qualquer atividade humana em que se utilizam máquinas.

Estudar a tecnologia como um produto do trabalho, no sentido marxista, ou enquanto razão hegeliana, é assumir uma abordagem instrumental da tecnologia, reduzindo outros sentidos possíveis. Dessa forma, quando a própria tecnologia ameaça escapar do controle humano, as relações não podem mais ser definidas simplesmente em termos de instrumentalidade ou funcionalidade, mas precisam ser examinadas enquanto elementos de poder e de representação.

As premissas de Marshall McLuhan (1970) e Raymond Williams (1975) marcaram, durante muito tempo, o tom polarizado da discussão sobre o avanço das tecnologias, com McLuhan vislumbrando uma revolução e Williams com uma visão mais moderada, tomando as tecnologias como parte de processos culturais mais amplos. Para Lister et, al. (2009), McLuhan tinha interesse nas transformações culturais arroladas pelas tecnologias midiáticas, enquanto Williams se voltava às condições de surgimento das novas mídias. Seguindo Lister et al.(2009), o pensamento de McLuhan pode ser mapeado a partir de três ideias-chave:

Em primeiro lugar, "remediação", um conceito que atualmente está muito em voga e encontra suas raízes na visão de McLuhan de que "o conteúdo de qualquer meio é sempre outro meio". Em segundo lugar, a ideia de que a mídia e as tecnologias são extensões do corpo humano e dos seus sentidos. Em terceiro lugar, a sua famosa (ou notória) visão de que "o meio é a mensagem" [grifos do autor] (LISTER et al.,2009, p.80)2.

Para Lister et, al.(2009), McLuhan faz um alerta para a dimensão tecnológica das mídias, recusando qualquer distinção entre meio e tecnologia, uma vez que as enxerga enquanto extensões dos sentidos. Um dos exemplos citados por McLuhan (1970) é o da roda que, especialmente quando passou a funcionar com energia automotiva, transformou a experiência de viagens e de velocidade, modificando a relação do corpo com o ambiente físico, com o espaço e com o tempo.

Em contraponto, na visão de Williams (1975, p.129)3, "todas as tecnologias foram desenvolvidas e melhoradas para ajudar com as práticas humanas conhecidas ou com as práticas previstas e desejadas”. Quer dizer, as tecnologias não se encontram apartadas das questões práticas; elas emergem do próprio agenciamento e das intenções humanas, surgidas para atender desejos, interesses históricos e culturalmente específicos (WILLIAMS, 1975). Adiante no debate, Lister et, al. (2009) indica que, para Williams, é o poder de certos grupos sociais que determina o ritmo do desenvolvimento tecnológico, não se contentando em compreender as tecnologias como artefatos, uma vez que os conhecimentos e as competências para utilizar uma ferramenta também constituem parte integrante do processo que pretenda definir o que é e para que serve uma dada tecnologia.

O final do século XIX e o início do século XX assistiu a um crescente desenvolvimento de produtos tecnológicos, muitos deles auxiliando no gerenciamento de uma quantidade cada vez mais complexa de informações. Incluem-se calculadoras, caixas registradoras, sistemas de arquivamento, máquinas de escrever. Cada um desses equipamentos respondeu às necessidades do sistema capitalista da época. As tabulações, por exemplo, foram desenvolvidas em resposta a um dos efeitos da industrialização - o movimento da população das comunidades agrárias para os centros urbanos. E, para conduzir esses sujeitos, técnicas de controle se faziam necessárias. Foucault (1987) escreveu sobre o poder do exame e da documentação como parte dos mecanismos das tecnologias disciplinares, funcionando por meio de uma detalhada estruturação do espaço, do tempo e das relações entre os indivíduos. As tabulações permitiram que os indivíduos fossem classificados dentro das relações de poder e, para propósitos de controle social, vistos enquanto dados individuais e coletivos. Talvez o exemplo de maior escala desse tipo de esforço tenha sido o Censo, a enumeração de dez anos da população de um país. As máquinas de tabulação formaram, assim, uma das bases da indústria da computação, e podem ser consideradas um dos principais desenvolvimentos técnicos da sociedade disciplinar descrita por Foucault (1987).

No entanto, é somente no período entre as duas Grandes Guerras que se dá a expansão das tecnologias ditas digitais e o surgimento de uma das Teorias da Comunicação que mais se aproxima do conceito de Cultura Digital, a Cibernética. Do grego kybernetes e descrita por Wiener (1954), Cibernética faz referência ao piloto de uma embarcação que, enquanto condutor, precisa alcançar um destino final. Considerando que um navio no oceano sofre ações das marés, dos ventos e dos mais variados adventos da natureza, o timoneiro vai corrigindo o curso ao longo do trajeto. Portanto, a ideia original da Cibernética diz respeito a controle e direção.

A Cibernética carrega nas suas origens as experiências de guerra de Wiener que, junto a outros cientistas, desenvolveu o Previsor Antiaéreo. A função do aparelho consistia em receber dados de localização - como, por exemplo, um radar rastreando um avião - e retornar possíveis rotas desse mesmo avião. Os dados e as análises estatísticas encontravam padrões que eram, assim, utilizados para diversas finalidades, uma delas a de posicionar a artilharia de guerra. A teoria cibernética descreve como os sistemas técnicos funcionam a partir do feedback, ou seja, de um ciclo no qual os resultados gerados pelas máquinas emitem informações de entrada no próprio sistema, sendo necessário, para isso, detectores e monitores que, segundo Wiener (1948), executariam um papel similar ao dos órgãos sensórios humanos. É, portanto, dentro desse contexto, do homem interligado às máquinas e das necessidades surgidas na Segunda Guerra Mundial, que se propiciou um ambiente para o desenvolvimento desse tipo de conhecimento. A Cibernética, inclusive, precede algumas tecnologias recentes, como é o caso da Siri, do iPhone, um aplicativo emulador que atua como assistente pessoal, fazendo ligações, enviando mensagens, verificando agendas, entre outras funcionalidades acionadas via comando de voz.

Os computadores passaram de máquinas dispendiosas e pesadas, que exigiam conhecimento altamente especializado, a computadores pessoais e em rede. Ambos não foram apenas resultados de avanços tecnológicos, mas produto da união de elementos culturais e técnicos, das inúmeras possibilidades da tecnologia digital resultante da pesquisa financiada pelos militares, da computação gráfica, bem como da tendência ao desenvolvimento de computadores cada vez mais baratos, menores e fáceis de operar.

O período da Segunda Guerra Mundial foi, de fato, o catalisador dos sistemas binários precursores da tecnologia digital dos computadores, mas também do desenvolvimento de uma série de teorias, incluindo a Biologia Molecular e a Inteligência Artificial. De acordo com Gere (2008, p. 51)4, tais teorias “representavam, coletivamente, o paradigma do pensamento científico e tecnológico do período pós-guerra”.

Assim, o debate sobre Cultura Digital, para Gere (2008), tem o alicerce em duas assertivas. “Uma delas é a de que tal cultura representa uma decisiva ruptura com aquilo que a precedeu (no caso, a cultura analógica), e a outra é a de que a cultura digital deriva e é determinada pela existência da tecnologia digital” [grifos meus] (GERE, 2008, p.17)5. A Cultura Digital só pode ser reconhecida à luz dos progressos tecnológicos e das características que a distinguem do que veio anteriormente. Mesmo assim, analisar a Cultura Digital como um elemento genuíno, novo e unicamente balizado pelos avanços tecnológicos, seria remeter o pensamento ao determinismo. Talvez o mais adequado, então, seja propor que “a tecnologia digital é um produto da cultura digital, e não vice-versa” (GERE, 2008, p.17)6. Ou, como também sugeriu Gere (2008), ao citar Gilles Deleuze, que “a máquina é sempre social antes de ser técnica. Há sempre uma máquina social que seleciona ou atribui os elementos técnicos utilizados” (idem, p.17)7.

Cabe ainda avaliar que Cultura Digital não se refere apenas às possibilidades da tecnologia digital, mas abrange outras formas de pensar e de realizar certas atividades incorporadas por essa tecnologia e que, por isso, permitem a sua existência. Recorrer à Cultura Digital é evocar um conjunto de elementos que incluem a telefonia digital, as comunicações instantâneas, a tele presença. É também aludir a diversas formas midiáticas, entre elas a da realidade virtual, a do cinema e da televisão digital, a da música eletrônica, a dos jogos de computador, e assim por diante. Também compreende um universo dominado por empresas do ramo da tecnologia como Microsoft, Apple, Sony e, agora, também as do comércio online como Amazon, AliExpress, Alibaba e eBay, que parecem ser o novo modelo de negócio do século XXI.

As inúmeras relações econômicas e sociais operadas através das tecnologias digitais permitem propor a existência de uma Cultura Digital, representada na forma particular de vida de determinados sujeitos do presente. Quer dizer, invocando uma das definições de cultura proposta por Williams (1975), a Cultura Digital pode ser analisada enquanto um divisor, uma vez que englobaria tanto os artefatos quanto os sistemas de significação e comunicação que acabam por distinguir e demarcar o modo de vida contemporâneo dos outros. Trata-se de um fenômeno historicamente contingente, que envolve a existência de interatividade, conectividade e relações entre homens, informações e máquinas. Essa comunicação e interação dominada pelos aparatos digitais é um dos elementos que tornou possível pensar a Cultura Digital, já que se refere a algo de que os sujeitos participam como produtores, consumidores, e que, por isso, tem integrado a vida cotidiana e interferido nas relações materiais e simbólicas. Importante recorrer novamente à ideia de Williams (1975) de que a cultura é material, e de que não é simplesmente a maneira como vivemos, senão a própria vida. Isso significa que as tecnologias digitais não só incitam as formas pelas quais o mundo é experimentado, habitado e vivenciado, mas produzem e são os próprios produtos da sociedade.

É possível incluir no complexo de elementos que dão visibilidade à Cultura Digital empresas como Google e Yahoo que, de alguma maneira, têm alterado modelos de negócios como o do acesso aos livros, informações e compras. Dentre outros fenômenos estão as redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram ou mesmo YouTube e Wikipédia. Além disso, artefatos como iPads, tablets e smartphones têm permitido a personalização de conteúdos, o que acarreta transformações nas relações com os meios de comunicação. Um exemplo são os softwares e aplicativos de vídeos e músicas digitais como Netflix e Spotify. Essas plataformas acrescentaram outras formas de consumir músicas e filmes para além dos subordinados modos tradicionais, dando mais autonomia e controle aos consumidores.

Cultura Digital é um conceito que descreve certo modo de vida permeado pelas tecnologias digitais e que vem moldando, significativamente, a maneira dos sujeitos conduzirem suas vidas, seja via comportamento, seja via consumo ou comunicação. Contextualmente, elementos materiais da Cultura Digital também podem ser expressos na multiplicação de redes, mídias sociais e aplicativos para smartphones que modulam e orientam certas formas de interação - compartilhamento de textos, vídeos, áudio ou fotografias; uso de emojis ou memes para ilustrar comunicação; o fenômeno das selfies enquanto prática de exposição; a obsessão pelas transmissões ao vivo; a computação em nuvem; a internet das coisas - e revelam facetas do contemporâneo, possibilidades projetadas em direção a um painel de imperativos associados à imersão tecnológica, exposição, mobilidade, entre outras características que regem os sujeitos e animam valores e novas sensibilidades.

3 CONDIÇÃO DIGITAL

A Condição Digital examinada por Stalder (2018) se refere ao momento da história em que a digitalização - a transformação de dados e processos informacionais do analógico para o digital - chegou ao ápice, ou seja, uma era em que atividades individuais e coletivas, privadas e públicas, assim como espaços e práticas cotidianas (laborais, esportivas, recreativas) têm se apoiado em infraestruturas digitais para operação, comunicação e coordenação. Uma das especificidades deste tipo de infraestrutura é a capacidade de lidar com grandes volumes de informações, extremamente superior às de infraestruturas anteriores, como a imprensa e as bibliotecas físicas. A digitalização é um fato técnico, cultural, econômico e, ao mesmo tempo, organizacional, visto que a quantidade de dados produzidas pelos humanos e pelas máquinas cresce exponencialmente ao passo que os custos relacionados ao armazenamento e processamento de energia diminuem.

Segundo Stalder (2018), há três formas culturais características da Condição Digital: a referencialidade, a comunalidade e a algoritmicidade. A referencialidade, designação que caracteriza um conjunto de elementos que formam um sistema de referência, é analisada pelo autor enquanto um método no qual as infraestruturas digitais conferem aos sujeitos o papel de protagonistas e produtores dos processos culturais. A referencialidade aponta uma racionalidade em que os sujeitos acreditam ser merecedores de atenção, e criam seus próprios sistemas de referência, sejam atrelados aos cuidados de si - com a saúde, com o corpo, com a alimentação - sejam focados na atenção requerida por outras pessoas a quem esses sujeitos estão conectados. Nesse sistema, é através de likes, tweets, retweets, visualizações, compartilhamentos, comentários e reações via emojis que expressem tristeza, alegria, raiva, surpresa, que a referencialidade (conjunto de referências) ganha significado na Condição Digital.

Trata-se de uma arena cultural não limitada ao próprio sujeito, mas em referência a outros indivíduos. Esse tipo de forma cultural vivida na contemporaneidade remete à segunda característica, a da comunalidade, que diz respeito ao que é comum, a um sentimento ou espírito de cooperação e pertença a determinados grupos estimulado pelas infraestruturas de base digital. Para Stalder (2018), a comunalidade ocorre dentro de um quadro de referências cuja existência depende de certas formações comunais via redes digitais. Na comunalidade, os significados são gerados pela validação das contribuições de cada um, seja curtindo a foto ou o comentário de um semelhante, nas redes sociais, seja criando um horizonte de elementos relevantes para um grupo a partir de fotos, stories, opiniões políticas, análises sociais e econômicas feitas por especialistas, vídeos motivacionais ou mesmo teorias conspiratórias.

Uma terceira e última característica da Condição Digital, seguindo a análise de Stalder (2018), é a algoritmicidade, que denota aspectos inscritos nos processos culturais, mas arquitetado e organizado pelas máquinas. Os algoritmos podem ser definidos como uma sequência lógica e quase sempre finita de instruções a serem seguidas para resolver um problema ou executar algum tipo de atividade. Transpondo isso ao mundo digital, os algoritmos convertem vastas quantidades de dados em informações. Dão visibilidade às facetas digitais, transformando-as em escalas e formatos que podem ser registrados pela percepção humana. É impossível ler os bilhões de sites disponibilizados via internet, por isso, recorre-se a serviços de algoritmos de pesquisa, como os do Google, que reduzem a quantidade de dados a algo gerenciável, traduzido a formatos compreensíveis.

No entanto, os algoritmos são ambivalentes. Ao mesmo tempo em que criam dependências, ordenando e tornando o mundo informacional disponível e inteligível, também dirigem as condutas, agenciando as formas de pesquisar e induzindo certas formas de se movimentar no universo digital. É possível afirmar que a algoritmicidade, tomando os algoritmos como produtos da Cultura Digital, incorpora valores, condutas e suposições sobre o que é ou deveria ser importante ou irrelevante para resolver um problema, ou mesmo o que deve ou não interessar e satisfazer as necessidades de um usuário. Os algoritmos criam práticas culturais na medida em que instigam formas de pesquisar, estimulam certos tipos de comportamentos, produzindo, inclusive, determinados estilos de vida. Além disso, a algoritmicidade forma uma nova hierarquia de poder, uma vez que condiciona fluxos de informação em grande escala. Um exemplo emblemático são os filtros, elementos que se tornaram onipresentes e capilares aos processos comunicativos via redes digitais. Facebook, Instagram e Twitter, por exemplo, acabam filtrando postagens, fotos, vídeos, notícias que, de alguma forma, se inscrevem dentro de um quadro de referências (com relação à importância de determinados fatos ou notícias em relação a outros) e de comunalidade, ou seja, do que os amigos, familiares e colegas de trabalho compartilham e assistem. Como filtro, talvez o Google seja a plataforma dominante. Ao realizar pesquisas, os algoritmos - baseados no histórico de pesquisas, correlação de interesses, palavras ou ideias correlatas - acabam filtrando informações, atuando não somente como mecanismo de pesquisa, mas de poder. Os filtros auxiliam na construção que se faz de mundo, com certas opiniões ou notícias sendo empurradas para o foco de atenção e outras sendo simplesmente ignoradas. A filtragem, é claro, não é isenta. Ela segue critérios que definem o que pode ou não ser importante e, no caso das redes sociais, as estratégias de alcance se ampliam, sendo comerciais, políticas, econômicas, profissionais, comportamentais, e assim por diante.

A emergência de uma sociedade amparada pelos aparatos digitais tem sido associada também ao consumo de produtos como tablets, smartphones, videogames, câmeras digitais, computadores portáteis, que fornecem aos sujeitos novas maneiras de acessar o fluxo infinito de informações. Vale lembrar que estar em rede é estar amparado pela algoritmicidade, ou seja, é bem provável que algoritmos atuem estimulando continuamente o consumo sempre renovado de produtos, cabendo, assim, com relação a essa particularidade da vida em rede, a análise de Bauman (2008) de que mesmo aqueles objetos mais desejados e cobiçados tendem a envelhecer depressa, e deixam de ser os objetos de desejo para, em pouco tempo, virarem estigmas de vergonha.

Os objetos de desejo são mais bem aproveitados imediatamente, depois são abandonados; os mercados fazem com que tanto a satisfação como a obsolência sejam instantâneas. O conteúdo dos armários deve ser trocado a cada estação. Os carros precisam ser substituídos porque seu design ficou fora de moda e fere os olhos. Bons computadores são jogados no lixo porque novas engenhocas os tornaram obsoletos (idem, p.197-198).

Empresas como Microsoft, Apple ou Google já não podem ser consideradas ativos fixos, mas ideias reconfiguradas na economia global do tipo tecnológica. Rifkin (2000) em Era do Acesso, caracteriza esse capitalismo em rede levando em consideração a constante desmaterialização de bens, a diminuição da relevância do capital físico, a ascensão dos ativos intangíveis e a mercantilização dos relacionamentos e das experiências. Poster (2006) reitera o mesmo argumento, declarando que a rede global de produção e comunicação sacode os fundamentos econômicos da sociedade, que, de um sistema baseado na produção e exploração, passa a ser um firmado no consumo e no acesso. O autor conjectura o digital enquanto uma "virada linguística" no capitalismo, em que a iniciativa de questionar já não gravita em direção à produção, mas concentra-se na expansão do acesso ao consumo, desmaterializando os meios de produção.

O capitalismo emergente após 1945 sinaliza a introdução das tecnologias digitais, de microchips a smartphones. O foco do capitalismo, dado a crescente importância dos aparatos digitais em rede, tem sido a produção de bens de conhecimento e o investimento em produtos individualizados, ou seja, o consumidor não está apenas “apertando o botão do processo produtivo”, mas é parte deste processo. Ipads, iPods, iPhones corroboram a assertiva e conectam a ideia do consumo enquanto uma variável personalizada e global. A mudança para uma economia digital significa que os bens de consumo, que não se limitam aos produtos físicos, operam para além dos antigos controles econômicos do capitalismo industrial.

De fato, é difícil apreender, em toda a sua extensão, a Condição Digital nas sociedades contemporâneas. Os ambientes de trabalho se encontram cercados e, de certa forma, vigiados pelo digital. Computadores, câmeras de monitoramento, entre outros dispositivos com acesso à internet, se transformaram em ferramentas indispensáveis a várias atividades - pagamento de contas, transferências bancárias, comunicações instantâneas, compras, entretenimento e lazer, informação, estudo. Nos bares, lojas, supermercados, bancos, shoppings, elevadores, ruas, escolas, universidades e, muitas vezes, dentro das próprias casas e condomínios, há monitoramento digital. Grande parte dos meios e das formas pelos quais os governos e outras instituições atuam, controlam, fiscalizam e punem, se apoiam nas tecnologias digitais. A digitalização dos sistemas bancários, os câmbios de moedas, a globalização financeira e todas as possibilidades de convergência e integração têm sido possibilitadas não só, mas também pelas tecnologias digitais.

A Condição Digital também produziu uma espécie de efeito expresso, em que tudo parece ter um ritmo acelerado. É o que Bauman (2001) denomina de “mundo do capitalismo leve”, sempre associado a uma ideia de liquidez em que os elementos de uma ordem organizada em torno do “capitalismo pesado e sólido” começam a se liquefazer na possibilidade de acomodar pessoas e objetos aos mais diversos encaixes. Em função da velocidade com que as informações circulam, em grande parte fruto dos desenvolvimentos tecnológicos e dos processos de globalização, os sujeitos têm sido tomados por diversas instâncias - amparadas nas tecnologias digitais - no sentido de produzir e reproduzir discursos sobre como se comportar, o que vestir, comer, ler, assistir e, por isso, também tem estimulado um outro tipo de formação, nem pior nem melhor, apenas diferente, uma outra educação.

4 EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL: UMA ANÁLISE PÓS-ESTRUTURALISTA

É preciso marcar epistemologicamente - mesmo que pareça ambivalente sinalizar certa episteme a uma análise pós-estruturalista - a não definição de um método a priori, mas a percepção de um caminho construído no percurso da investigação e que implica, inicialmente, em um afastamento da Modernidade e da forma unitarista de compreender o mundo. O que se pretende são tentativas de análise, explorar algumas potencialidades pós- estruturalistas partindo da ideia de Educação como um processo de formação em que os sujeitos de uma determinada sociedade, circunstanciados pelo caráter histórico e contingente, são conduzidos a agir sobre si mesmos e sobre o mundo ao seu redor, ou seja, a educação pensada a partir das formas de conduzir as condutas.

Historicamente, Modernidade é um termo que tem sido empregado para explicitar os modos como as sociedades responderam às transformações decorrentes da Revolução Industrial. Com raízes no período iluminista do século XVIII, a sociedade moderna se movimentou na esteira da racionalidade, desafiou a visão de mundo teocêntrica e lançou as bases para a teoria da evolução na biologia, da relatividade na física e da psicanálise na psicologia. Essas conjecturas formaram um conjunto de conhecimentos com os quais se tentou conceber o universo e a própria mente humana em termos científicos. Também na Modernidade o pensamento científico racional se configurava enquanto metodologia estrutural - o estruturalismo - para analisar textos culturais, do cinema à publicidade, das fotografias às histórias em quadrinhos, tendo a semiótica norte-americana e a semiologia francesa um papel central nesse empreendimento. Com base nos trabalhos de Ferdinand de Saussure (1990) e Charles Sanders Peirce (2000), a semiótica e a semiologia, respectivamente, definiram uma metodologia através da qual o significado de qualquer texto pode ser lido a partir de um sistema de "sinais". Ao "decodificar" esses "sinais", seria possível “desvendar” os meios pelos quais os públicos estavam sendo manipulados ou influenciados por determinados textos.

Enquanto o estruturalismo refletia a necessidade de descobrir o significado ideológico dos textos midiáticos, o pós-estruturalismo apresentaria uma visão menos determinista. Influenciadas pelo trabalho de teóricos como Louis Althusser (1971) e Antonio Gramsci (1999), as análises, gradativamente, passaram a reconhecer que ideologia era algo mais complexo do que se imaginava, que os sujeitos resistiam aos significados impostos, e que os textos são, por natureza polissêmicos. Os significados nunca são completamente estabelecidos, e a realidade só pode ser apreendida a partir da linguagem, do discurso e das condições pelas quais os regimes de verdade vêm sendo construídos (FOUCAULT, 1998).

O pós-estruturalismo pode ser compreendido, mas não se limita a isso, como um movimento intelectual que se desenvolveu a partir do pensamento estruturalista e agiu em resposta ao domínio do próprio estruturalismo, que mantinha a promessa de tratar as áreas das ciências sociais e das ciências humanas com o mesmo rigor normalmente encontrado na das ciências exatas. No entanto, esse compromisso foi minado pelas inconsistências lógicas do próprio programa estruturalista, que, por exemplo, se recusou a considerar os aspectos históricos nas análises sociais. A jovem búlgara Julia Kristeva, chegando a Paris, em 1965, introduziu a semiótica estrutural do russo Mikhail Bakhtin (1997), que possibilitou uma reintrodução do contexto histórico nas análises estruturalistas. Kristeva (1969) desenvolveu a ideia de intertextualidade, através da qual buscou compreender como uma obra literária mantém diálogo com outros textos, contemporâneos ou anteriores a ela.

Ao mesmo tempo, embora partindo de estratégias diferentes, o filósofo Jacques Derrida (1995) usando metodologias desenvolvidas a partir do trabalho de Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, se dedicou a revelar as contradições internas de textos filosóficos e literários, procedimento que chamou de desconstrução, uma reinvenção do termo heideggeriano destruktion. O que Derrida (1995) pretendia demonstrar, entre outras coisas, era a impossibilidade de assegurar significados em um texto. Para ele, a significação é um interminável jogo, sem qualquer centro que ponha fim às possibilidades sempre proliferantes e renovadas.

Neste contexto, novas teorias ganhavam terreno, incluindo-se aqui, dentro da corrente feminista, o desenvolvimento da teoria do ciborgue (HARAWAY, 2000) e, posteriormente, do ciberfeminismo. Na música, as possibilidades da tecnologia digital combinadas aos legados do rock, da disco e do punk produziram o techno e suas variações. O punk, inclusive, foi uma das inspirações, junto à ficção pós-moderna, do gênero que ficou conhecido como Cyberpunk. Embora cruzados por circunstâncias distintas, todos esses movimentos compartilham um fascínio pelas tecnologias e suas possibilidades.

Então, desenvolver uma análise pós-estruturalista pensando Cultura Digital e Educação implica na desconstrução de certas narrativas. Desconstruir, na perspectiva de Derrida e Roudinesco (2004), não é negar a racionalidade da filosofia ocidental, mas agitar seus alicerces, desorganizar os discursos e mostrar seus distintos funcionamentos.

Os escritos de Bauman (2010) sinalizam um primeiro movimento de investigação sobre a Cultura Digital e os deslocamentos na ideia de Educação. Para o autor, um projeto de educação produzido na Modernidade Sólida tornava a “formação do ser humano uma responsabilidade plena e exclusiva da sociedade como um todo, em especial de seus legisladores” (BAUMAN, 2010, p.103). Era dever do Estado guiar as condutas dos sujeitos, formar (Bildung) cidadãos, o que representava “o conceito e a prática de uma sociedade administrada” (idem, p.103).

O Iluminismo tinha a pretensão de “levar o conhecimento às pessoas, dar saber ao ignorante, restaurar a visão clara daqueles cegos pela superstição, pavimentar o caminho para o progresso” (idem, p.107), definindo uma trajetória em que as luzes abririam portas ao conhecimento. Dessa forma, o mundo da educação e das narrativas da educação preparados para a Modernidade Sólida eram finitos e sequenciais, com início, meio e fim. Uma educação ordeira, regular, previsível, hierárquica. Em contrapartida, a educação pensada sob a égide da Cultura Digital encontra na rubrica do capitalismo informacional (CASTELLS, 1999) um sistema com métodos "just in time", ajustados, e que atendem à escolha individual. A educação pensada para a Modernidade Líquida (BAUMAN, 2009) talvez possa ser vista enquanto uma educação fluída, móvel, cambiante, ou seja, com características que conferem a ela o tom das estratégias de vida nas sociedades contemporâneas.

Afinada ao projeto moderno, a própria escola tinha e, muitas vezes ainda tem, certa ojeriza à ambivalência, à desordem e ao caos. Agora, constantes e renovadas, essas mesmas práticas de formação dos sujeitos escolares da Modernidade são questionadas. Quer dizer, vale lembrar a tese de Bauman (2009) de que o mundo fora do universo escolar se desenvolveu de maneira diferente do mundo interno escolar e que, portanto, a preparação para a vida, tarefa da educação escolar na Modernidade Sólida, ganha outra roupagem diante das atuais contingências. Isso vai na direção do que Bauman (2009) explicita ao comentar sobre a chamada “bagagem de conhecimentos”, que não é mais o grande mobilizador da sociedade, hoje pautada pelo descarte e pela fruição constante, visando à utilização máxima e imediata, como aquele tipo de educação “oferecido pelos programas de software (atualizados cada vez mais rapidamente e, portanto, substituídos), que se mostra muito mais atraente do que aquele proposto por uma educação sólida e estruturada” (BAUMAN, 2009, p.663).

Uma formação profissional de curto prazo, orientada à demanda do mercado, muitas vezes obtida em cursos flexíveis e que apostam na capacidade autodidata dos estudantes, têm sido mais sedutora e ganha mais visibilidade do que uma formação à moda antiga. Tal deslocamento tem produzido não mais uma educação ordeira, com sujeitos centrados e unos, mas uma educação flexível, fragmentada, múltipla, e que tem produzido sujeitos aptos a lidar com a velocidade, com as incertezas e com as constantes adaptações e atualizações.

Nas possibilidades de acesso a milhões de informações a um simples toque na tela, os sujeitos são conduzidos a incorporar a tecnologia de smartphones e tablets como algo que movimenta as relações sociais, transitando entre conteúdos que vão desde entretenimento, política, esporte até saúde e economia. Os artefatos digitais, por se encontrarem integrados aos vários setores da vida, também estão implicados nos processos de formação dos sujeitos. Uma educação que está mais distante daquela fabricada na Modernidade e mais afinada ao estilo expresso e móvel, sintoma de uma sociedade que tem investido fortemente em material tecnológico.

Um segundo elemento de investigação para pensar as relações entre Cultura Digital e Educação está no tipo de sujeito que a sociedade quer formar, ou seja, nas práticas, estratégias e saberes utilizados para conduzir os sujeitos. Foucault (1995) compôs sua analítica afirmando que, em cada época, o discurso produz formas de conhecimento, objetos e sujeitos que se distinguem de período para período. O autor mostrou ainda que cada sociedade opera com seus regimes de verdade, construídos em um determinado contexto histórico e em conformidade com certas regras e domínios.

Desse modo, a Cultura Digital e os sujeitos nela inscritos são produzidos e operados na intersecção de vários discursos - do mercado de consumo de artefatos tecnológicos; das produções midiáticas; das possibilidades do digital enquanto recurso pedagógico; da psicologia comportamental; das formas de entretenimento e lazer, entre outros - que fazem parte de uma formação discursiva do nosso tempo8. Foucault (1998) reitera não ser possível vislumbrar a existência de um sujeito preexistente ao discurso, que pudesse unificar e organizar o conhecimento, mas um sujeito instituído a partir de distintas formas de subjetividade, processos que fazem com que o sujeito se torne aquilo que ele é. O termo subjetividade carrega conotações de interioridade, pessoalidade e, segundo Rose (2001), é o nome dado a todo o movimento de compor e recompor forças, relações e práticas na medida em que tenta transformar (ou opera para isso) o ser humano em sujeito.

Artefatos digitais como aparelhos celulares e computadores pessoais têm sido elementos materiais que atuam na produção de subjetividades, já que vão compondo novas formas de habitar e de se relacionar no mundo. Além disso, a integração e a habilidade em operar produtos digitais são características esperadas dos sujeitos do presente, uma espécie de imperativo, uma condição da vida nas sociedades contemporâneas. E mais, seguindo o pensamento de Foucault (2008), essas competências “digitais” podem ser vistas também como um tipo de capital, um investimento que permite aos sujeitos atuarem como empresários de si mesmos. Tal estratégia, inclusive, tem delegado aos sujeitos a responsabilidade pela própria formação e educação. Quer dizer, é dentro de uma racionalidade neoliberal, refinada nos investimentos em material tecnológico, que uma educação individualizada, ininterrupta, móvel, transitória, fugaz, e que se dá ao longo da vida, emerge junto à Cultura Digital.

Um terceiro e último elemento de análise considera as infraestruturas tecnológicas digitais como elemento significativo à produção de saberes. Esse tipo de abordagem tem sido expressivo em ao menos dois âmbitos: um primeiro seria o da descentralização na transmissão de conhecimentos, isto é, os conteúdos podem ser acessados de qualquer lugar e a qualquer momento. Ademais, as informações se encontram disponíveis em diversos formatos, fazendo com que os próprios aparatos tecnológicos sejam capazes de produzir novos conhecimentos. Um exemplo está no projeto “genoma humano” que, sem o auxílio tecnológico, jamais poderia ser concluído. Do mesmo modo, é através de uma Condição Digital que se apoia constantemente na referencialidade e na algoritmicidade que os saberes sobre o corpo humano puderam ser materializados.

Um segundo aspecto está relacionado à miniaturização e mobilidade características dos artefatos digitais. Aparelhos cada vez mais leves e menores são produzidos, modificando as formas de aquisição, consumo e acesso aos conhecimentos, que não estão mais fixos, mas inscritos na mobilidade contemporânea. Quer dizer, assim como os meios de transporte afetaram a percepção dos sujeitos em relação à velocidade, os artefatos digitais atuam nas distintas formas de circulação e aquisição de conhecimento. Lyotard (2000) inclusive sinaliza que o avanço das tecnologias impõe reflexões sobre a ciência. Hoje, os próprios recursos necessários à produção de conhecimento - livros, sites, salas de aula, eletricidade, computadores, até os meios de disseminação, ou seja, papel, linhas telefônicas, fibra ótica, cabos, e assim por diante - mantém uma relação de dependência com as tecnologias digitais. Por isso mesmo é que as próprias delimitações científicas vão se desordenando, algumas disciplinas desaparecem, outras surgem, fusionando-se com as antigas, e, “se a revolução industrial nos mostrou que sem riqueza não se tem tecnologia ou mesmo ciência, a condição pós-moderna nos vem mostrando que sem saber científico e técnico não se tem riqueza” (LYOTARD, 2000, p. 11).

O cenário pós-moderno é essencialmente cibernético, informático e informacional. Nele, expandem-se cada vez mais os estudos e as pesquisas sobre a linguagem, com o objetivo de conhecer a mecânica da sua produção e de estabelecer compatibilidades entre linguagens e máquina informática. Incrementam-se também os estudos sobre a “inteligência artificial” e o esforço sistemático no sentido de conhecer a estrutura e o funcionamento do cérebro bem como o mecanismo da vida. Neste cenário, predominam os esforços (científicos, tecnológicos e políticos) no sentido de informatizar a sociedade. (LYOTARD, 2000, p. 8)

Os bancos de dados sobre todos os saberes da humanidade e a competição entre as nações, para Lyotard (2000), não se dá mais em função de produzir uma quantidade de matéria-prima ou bens manufaturados, mas deriva do volume de informação que institutos de pesquisa e universidades forem capazes de produzir, estocar e, mais do isso, de utilizar enquanto mercadoria de circulação.

A distribuição de conteúdo em formato digital, seja via banda larga ou redes sem fio, aumentou significativamente o alcance das tecnologias digitais à vida cotidiana, sendo que nenhum aspecto dela tem permanecido intocado pelas forças tecnológicas. Informações podem ser compactadas e descompactadas usando algoritmos, permitindo maior eficiência em termos de armazenamento e distribuição. Dados podem ser facilmente manipulados, copiados e transferidos a diferentes fontes, objetos e meios de entrega.

Em viagens de carro, por exemplo, tem sido uma prática comum consultar computadores de bordo ou aplicativos para dimensionar e indicar rotas ou planejar destinos. Após sinalizar o ponto de partida e o destino, o usuário recebe um mapa com uma lista detalhada de direções, distâncias, pontos de referência, tempo estimado de chegada e até a localização das câmeras de controle de velocidade. Trata-se de um serviço que fornece uma riqueza de informações úteis a partir de uma base de dados digitalmente transformada em informações. Os bancos de dados digitais abastecem um conjunto quase infinito de possibilidades para recuperação, filtragem, organização e relação entre os dados. Há uma tendência a associar bancos de dados a sistemas informatizados de registros ou planilhas, mas, na verdade, a disseminação de bancos de dados no cotidiano é difundida amplamente. Mapas e roteiros de viagens são apenas um exemplo.

Na mesma linha de pensamento, Manovich (2001) sugere que os bancos de dados estão se tornando a dominante cultural do tempo presente. Google, Yahoo, Amazon, eBay, Apple e Microsoft já contabilizam bilhões ao fornecer serviços que usam essencialmente bancos de dados. As formas de organizar as informações digitais criam uma espécie de arquitetura, uma forma particular de poder, já que o acesso a determinada informação e a maneira como ela se encontra organizada, implicitamente, cria uma hierarquia em torno de informações. A emergência de banco de dados digitais como resposta a um conjunto de condições tecnológicas impactou não apenas as formas como organizamos e categorizamos o mundo ao nosso redor, também trouxe a possibilidade de cada um personalizar sua organização. Igualmente, os bancos de dados permitem pensar uma educação ao estilo ad hoc, baseada em um usuário específico e imersa em um conjunto infinito, veloz e particular de parâmetros selecionados.

Os sujeitos da era digital vêm sendo instigados a operar com as tecnologias, cada dia com mais velocidade, como parte dos elementos de sua formação, hoje metaforicamente representada como uma espécie de corrida, um programa que acumula pontos, tais como os de companhias aéreas, medindo, assim, os índices de produtividade de cada um.

5 CONSIDERAÇÕES

As conexões entre Cultura Digital e Educação, encadeadas na ideia de uma Condição Digital presente na sociedade contemporânea, envolvem uma combinação de processos, artefatos, interesses, sensibilidades e estilos de vida formados em contato com as possibilidades do digital em operar nas diversas atividades e setores. A Cultura e a Condição Digital se baseiam na expectativa de que as tecnologias digitais são meios que fundamentam os modos pelos quais as sociedades contemporâneas tendem a se desenvolver. No entanto, essa visão pode claramente ser questionada já que, mesmo diante dos significativos avanços tecnológicos, a apropriação e os usos das tecnologias ainda são elementos subjetivos. Isso significa que habitar um mundo capitaneado pelas tecnologias digitais não enquadra muitos dos sujeitos como imersos na Condição Digital. Nem todos têm a oportunidade de consumir e usufruir das benesses tecnológicas e, mesmo aqueles que tenham acesso podem, por sua vez, não se interessar. O impacto das tecnologias digitais é variável e não universal.

A Cultura Digital diz respeito às novas experiências, aos novos modos de representar o mundo, às distintas relações entre sujeitos e máquinas. Engloba também os meios de comunicação e os desenvolvimentos permitidos a partir do digital, da multimídia, dos computadores em rede e das formas com que o digital vem alterando outros meios: dos livros aos filmes, dos telefones aos televisores. Denomina também uma série de novas práticas de sociabilidade, inclusive aquelas dos processos de formação e conduta dos sujeitos que ocorrem pela via das redes digitais. Uma educação ao estilo móvel, expresso, em que conhecimentos são transmitidos sob medida.

As tecnologias digitais fazem mais do que apenas conduzir as condutas, trabalham no sentido de capacitar os sujeitos a viver e a se comportar de determinadas formas. Tal investimento tem se dado através de um conjunto de técnicas, muitas delas inscritas na algoritmicidade, que produzem e conferem visibilidade a certas informações e não a outras, ou das distintas formas com que anúncios pululam nas telas, instigando modos de agir sobre corpos, pensamentos, comportamentos. Essas possibilidades são percebidas porque, de fato, há certa Condição Digital (STALDER,2018) operando nas sociedades.

Observa-se, portanto, uma marca imperativa associando o digital e suas infinitas possibilidades a uma educação personalizada, em que os processos de formação podem ser realizados através de inúmeros dispositivos e aplicativos, acessados a qualquer espaço- tempo. Práticas individualizadas e ditadas à responsabilidade de cada um. Reconhecer a Condição Digital é cada vez mais necessário, uma vez que, quanto menos conscientes são as forças sociais e culturais das tecnologias, poucas são as possibilidades de resistir e questionar as relações de poder que vão sendo a ela incorporadas.

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2 Todas as notas em língua estrangeira foram traduzidas pelo autor no corpo do texto. O autor possui domínio na língua inglesa, mas não é um falante nativo, portanto, as traduções estão sujeitas à interpretação e são passíveis de contestação. No original: First, ‘remediation’, a concept that is currently much in vogue and finds its roots in McLuhan’s view that ‘the content of any medium is always another medium’ (1968: 15-16). Second, his idea that media and technologies are extensions of the human body and its senses. Third, his famous (or notorious) view that ‘the medium is the message’ (LISTER et al., 2009, p.80).

3 No original: All technologies have been developed and improved to help with known human practices or with foreseen and desired practices (WILLIAMS,1975, p.129)

4 No original: they represent, collectively, the paradigm of post-war technological and scientific thinking. (GERE, 2008, p.51).

55 No original: One is that such a culture represents a decisive rupture with what has preceded it, and the other is that digital culture derives from and is determined by the existence of digital technology. (GERE, 2008, p.17).

6 No original: digital technology is a product of digital culture, rather than vice versa. (GERE, 2008, p.17).

7 No original: the machine is always social before it is technical. There is always a social machine which selects or assigns the technical elements used (DELEUZE apud GERE, 2008, p.17).

8 Para Foucault (1995, p.82), formação discursiva é um “feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática”.

Recebido: 31 de Janeiro de 2019; Aceito: 22 de Abril de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Fábio Bortolazzo Pinto E-mail: fabiobpinto74@gmail.com

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