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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.2 Campinas abr./jun 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i2.8654099 

ARTIGO

FUNÇÃO SOCIAL DO TEXTO COMO MOTIVAÇÃO PARA A PRODUÇÃO ESCRITA

SOCIAL FUNCTION OF THE TEXT AS A MOTIVATION FOR WRITTEN PRODUCTION

FUNCIÓN SOCIAL DEL TEXTO COMO MOTIVACIÓN PARA LA PRODUCCIÓN ESCRITA

Érika Christina Kohle1 

Stela Miller2 

Cleber Barbosa da Silva Clarindo3 

1Mestre em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. Doutoranda em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP) - Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Marília, SP - Brasil. E-mail: erika.kohle@gmail.com

2Doutora em Ensino na Educação Brasileira - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Marília, SP - Brasil. Professora Assistente Doutora Aposentada - Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp - Marília, SP - Brasil. Professora voluntária - Programa de Pós-Graduação em Educação na mesma Instituição. E-mail: stelamillercel@gmail.com

3Doutorando em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP) - Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, SP. Marília, SP - Brasil. Mestre em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Faculdade de Filosofia e Ciências (UNESP). Marília, SP - Brasil. E-mail: cleber_clarindo@hotmail.com


RESUMO

Este artigo pretende demonstrar que o ensino da produção de enunciados por meio de atos de escrita com função social possibilita o surgimento da necessidade dessa produção valorizadora dos sujeitos e motivadora à realização de tais atos. Essa temática foi objeto de pesquisa realizada com o objetivo de compreender os processos de apropriação e de objetivação de gêneros discursivos por crianças do Ensino Fundamental - Anos Iniciais de um projeto de recuperação e reforço, desenvolvidos com base em abordagem dialógica acerca do ensino da linguagem, a partir de três estratégias: (1) promover o ensino da linguagem por meio dos gêneros do discurso, (2) criar condições motivadoras para os alunos se apropriarem de atos de escrita, (3) trabalhar a produção textual com função social. O artigo traz para a discussão propostas de trabalho desenvolvidas com os sujeitos da pesquisa, lançando mão de referencial teórico que considera os estudos de Bakhtin, de Volóchinov e de alguns autores da Teoria Histórico-Cultural, admitindo que o diálogo entre esses estudos proporciona uma visão dinâmica da linguagem e oferece elementos que dão sustentação ao trabalho com gêneros discursivos em situação de uso social. Os dados revelam que, a partir da produção de enunciados inseridos numa situação extra verbal, os escolares sentem-se mais motivados a envolverem-se em atos de escrita que possibilitam o desenvolvimento das capacidades linguísticas que lhes permitem realizá-los sempre que for necessário tanto em sua vida escolar como em sua vida extraescolar.

PALAVRAS-CHAVE: Atos de escrita; Gêneros do discurso; Função social da linguagem; Ensino Fundamental - Anos iniciais

ABSTRACT

This article intends to demonstrate that the teaching of the production of enunciates by means of acts of writing with social function makes possible the appearance of the necessity of this production that brings value to the subjects and motivates them to accomplish such acts. This theme was the object of research carried out with the objective of understanding the processes of appropriation and objectification of discursive genres by children of Elementary Education - Early Years of a recovery and reinforcement project, based on a dialogic approach to teaching mother language, by means of three strategies: (1) promote the teaching of language through the genres of discourse, (2) create motivating conditions for students to appropriate writing, (3) work textual production with a social function. The article brings to the discussion proposals of work developed with the subjects of the research, using theoretical reference that considers the studies of Bakhtin, Volóchinov and some authors of the Cultural-Historical Theory, admitting that the dialogue between these studies provides a dynamic vision of language and offers elements that support work with discursive genres in a situation of social use. The data show that, from the production of statements inserted in an extra verbal situation, schoolchildren are more motivated to engage in writing acts that conduct them to the development of language skills that allow the students to perform them whenever necessary both in their school life and out-of-school life.

KEYWORDS: Acts of writing; Discourse genres; Social function of language; Elementary Education - Early Years

RESUMEN

Este artículo pretende demostrar que la enseñanza de la producción de enunciados por medio de actos de escritura con función social posibilita el surgimiento de la necesidad de esa producción valoradora de los sujetos y motivadora a la realización de tales actos. Esta temática fue objeto de investigación realizada con el objetivo de comprender los procesos de apropiación y de objetivación de géneros discursivos por niños de la Enseñanza Fundamental - Años Iniciales de un proyecto de recuperación y refuerzo, desarrollados con base en abordaje dialógico acerca de la enseñanza de lenguaje a partir de tres estrategias: (1) promover la enseñanza del idioma a través de géneros de habla, (2) crear condiciones motivadoras para que los alumnos se apropien de actos de escritura, (3) trabajar la producción textual con función social. El artículo trae para la discusión propuestas de trabajo desarrolladas con los sujetos de la investigación, lanzando mano de referencial teórico que considera los estudios de Bakhtin, de Volóchinov y de algunos autores de la Teoría Histórico-Cultural, admitiendo que el diálogo entre esos estudios proporciona una visión dinámica del lenguaje y ofrece elementos que dan sustentación al trabajo con géneros discursivos en situación de uso social. Los datos revelan que, a partir de la producción de enunciados insertados en una situación extra verbal, los escolares se sienten más motivados a involucrarse en actos de escritura que posibilitan el desarrollo de las capacidades lingüísticas que les permiten realizarlos siempre que sea necesario tanto en su vida escolar como en su vida extraescolar.

PALABRAS-CLAVE: Actos de escritura; Géneros del discurso; Función social del lenguaje; Enseñanza Fundamental - Años Iniciales

1 INTRODUÇÃO

De acordo com Leontiev (1978), cada geração começa a sua vida no mundo criado pelas gerações precedentes. No convívio com a geração mais velha, participa das diferentes formas de atividade social, apropriando-se das riquezas desse mundo e, consequentemente, desenvolvendo condutas especificamente humanas. Ao apropriar-se dos instrumentos culturais, desenvolve capacidades que lhe permitem participar do processo de sua produção não como simples reprodutora, mas como criadora de produções culturais que, por sua vez, serão disponibilizadas para novas gerações.

No processo histórico de humanização, o contato com a produção dos conhecimentos nos diversos campos da criação humana, como a ciência, a filosofia, o direito, a moral, é, então, crucial para que as crianças se apropriem de conteúdos científicos, literários, de valores, etc. que constituirão a base sobre a qual elas desenvolverão, em interação com sujeitos mais experientes, suas aptidões, habilidades, atitudes e capacidades essencialmente humanas, ou seja, terão oportunidade de desenvolver as funções psicológicas superiores, tais como o raciocínio lógico, a memória voluntária, a imaginação e a linguagem, em níveis cada vez mais complexos à medida que ampliam seu processo de aprendizagem.

Entretanto, essas possibilidades nem sempre são oportunizadas a todas as crianças em nossas escolas; o ensino público, em especial, não tem conseguido ofertar ao seu alunado uma educação de boa qualidade, que de fato propicie níveis mais complexos de apropriação de conhecimento e de desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, isto é, que dê condições para os sujeitos desenvolverem capacidades superiores como a análise e a reflexão, capazes de situá-los criticamente em sua realidade e nela agir conscientemente.

Em tal contexto, a educação escolar não somente deveria transformar a realidade de suas crianças por meio dos objetos por ela apropriados, mas também deveria conduzi-las a um processo triplo de socialização, de humanização, e de singularização que lhes possibilitassem ter melhores condições de vida por meio da participação nas diversas situações das várias instâncias sociais e desenvolver suas qualidades psíquicas superiores, possibilitando a cada sujeito o desenvolvimento de suas capacidades, sua individualidade e personalidade. No entanto, percebe-se que há uma carência de ações concretas que conduzam a esses fins. Somente um ensino organizado com a finalidade de conduzir o aluno ao desenvolvimento máximo de suas capacidades humanas poderá superar essa condição.

Para tal problema, faz-se necessário um ensino que transgrida o paradigma de trabalho educativo com objetos estáveis e universais, porque ele não considera a realidade socialmente construída e nem as possibilidades advindas dos intercâmbios verbais entre os participantes desse processo.

Contrapondo-se a isso e diante da necessidade de possibilitar o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças para que elas pudessem vivenciar ações educativas mais emancipatórias, o trabalho investigativo aqui relatado almejou dar ênfase a um processo de ensino e de aprendizagem da língua materna realizado em contexto próprio da vida dos sujeitos, para que elas se sentissem participantes de seu processo de aprendizagem por meio de estratégias de ensino que contemplaram o estudo, a reflexão e a análise das informações, permitindo-lhes aliar o conhecimento adquirido por meio dos estudos às capacidades que lhes possibilitassem ser cidadãos participativos na sociedade contemporânea.

A escola não pode esquecer seu papel fundamental, de levar as crianças a se apropriarem dos conhecimentos já produzidos e ao mesmo tempo levá-las a alcançar valores cada vez mais humanos. Nesse contexto, e considerando-se especificamente o ensino de língua materna, encontra-se a necessidade de propiciar a aprendizagem de atos de escrever por serem poderosos meios de socialização e de desenvolvimento do pensamento, além de serem instrumentos que permitem a participação delas na cultura letrada, proporcionando- lhes o acesso ao conjunto do conhecimento formado ao longo da história e ajudando-as a desenvolver “[...] um conjunto de funções intelectuais que são necessárias à articulação da função simbólica da consciência, do pensamento, da memória, da atenção, das percepções”. (MILLER & MELLO, 2008, p. 6).

Por essa razão, ao desapropriar as crianças da aprendizagem dos atos de escrita, elas também são desapropriadas dos outros conhecimentos que são desenvolvidos por meio desses atos e ficam destituídas de grande parte dos conhecimentos escolares, além de ficarem sem a autonomia para se tornarem os autores de seus textos escritos, para se objetivarem como autores que sabem constituir o seu próprio dizer.

Configura-se, assim, o ensino de atos de escrever como de vital importância para o desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que a escrita, por ser um mediador simbólico de ordem superior, proporciona o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem que “[…] de acordo com Vygotsky, dependem essencialmente do domínio que a criança tem dos mediadores simbólicos, da sua apropriação e internalização na forma de ferramentas psicológicas internas.” (KOZULIN, 2003, p. 24). E essa capacidade simbólica não se dá nos sujeitos de forma espontânea, mas necessita ser, consciente e consistentemente, objeto de trabalho no processo de ensino e de aprendizagem.

O domínio da linguagem é, pois, um ponto fundamental no processo de humanização das crianças, ou seja,

A apropriação da linguagem constitui a condição mais importante do seu desenvolvimento mental, pois o conteúdo da experiência histórica dos homens, da sua prática sócio-histórica não se fixa apenas, é evidente, sob a forma de coisas materiais: está presente como conceito e reflexo na palavra, na linguagem. É sob esta forma que surge à criança a riqueza do saber acumulado pela humanidade: os conceitos sobre o mundo que a rodeia. (LEONTIEV, 2004, p. 348).

Pela importância de que se reveste a apropriação da linguagem pelos sujeitos em seu processo de desenvolvimento, torna-se central, no trabalho escolar relativo ao ensino de língua materna, a aprendizagem dos atos de escrita pelos escolares, pois é esse aprendizado que os faz entenderem como são organizados os discursos produzidos socialmente, quais são as suas peculiaridades e como se faz a abordagem a cada um deles conforme sua situação de uso social. Para tanto, é necessário que todo esse conhecimento seja disponibilizado para os estudantes de modo a proporcionar-lhes autonomia para fazer suas escolhas discursivas e produzir seus textos.

Pelas razões expostas acima, a pesquisa realizada com a temática acerca do ensino de atos de escrita, objeto deste artigo, tem como desafio dar uma modesta contribuição para a geração de mudanças na prática docente do próprio campo estudado, uma vez que as pesquisas sobre determinado objeto ajudam a consolidar o seu corpus de investigações científicas e, consequentemente, a mudar e a superar o conhecimento historicamente acumulado sobre ele, isto é, o ato de pesquisar um objeto gera efeitos sobre ele. Então, no momento em que as investigações teórico-práticas são colocadas no papel, realidades são construídas, representações são criadas e passam a interferir no modo de vida da escola, já que ao entrar em contato com elas, os professores se identificam, reconhecem os problemas que enfrentam diariamente e, podem encontrar nelas alternativas, possibilidades de estratégias e novas proposições para serem colocadas em prática. Assim, o professor é não só o destinatário das propostas didáticas, mas também o sujeito que levará essas propostas adiante e o leitor das devolutivas proporcionadas pelos experimentos investigativos na área educacional.

2 METODOLOGIA DE PESQUISA

A metodologia utilizada na pesquisa e na análise dos dados visou a estabelecer uma articulação entre teoria e prática, buscando compreender os dados da realidade pesquisada em seu movimento, em suas relações dinâmico-causais (VYGOTSKI, 2000). Para a geração de dados, foi utilizado o experimento didático-formativo, cuja formulação se faz com base nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural (VYGOTSKI, 2000; VIGOTSKI, 2001) e da Teoria da Atividade (LEONTIEV, 1978; 2004). Para a organização do experimento, que teve como foco o trabalho com gêneros discursivos, serviram de base os referenciais teóricos dialógicos de Bakhtin (2016) e Volochínov (2017).

O experimento didático-formativo “[...] permite investigar o surgimento das novas estruturas psíquicas mediante a formação orientada” (DAVIDOV, 1988, p. 195, tradução nossa), ao mesmo tempo em que impulsiona o desenvolvimento do sujeito com base na organização e na reorganização de propostas pedagógicas de ensino para a formação de capacidades indispensáveis à apropriação do pensamento teórico. Em outros termos, o experimento didático-formativo caracteriza um tipo de pesquisa que se faz no movimento mesmo do processo pedagógico, objetivando tanto a geração de dados a serem interpretados segundo um referencial teórico de apoio, como um instrumento pedagógico didático- formativo, isto é, que prevê ações e operações a serem realizadas pelos sujeitos em processo de interação com outros sujeitos com a finalidade de promover neles as mudanças desejadas em seu desenvolvimento psíquico.

Desse modo, longe de metodologias que buscam a verdade que a tudo quer criar abstrações, o que interessou aqui foi o movimento que constituiu o objeto, observado em uma determinada situação e em um determinado tempo histórico-cultural, porque fazer pesquisa é ir ao encontro do outro, uma vez que por meio do diálogo estabelecido com todos os envolvidos na pesquisa, pode-se compreender, analisar e construir conhecimentos acerca de uma determinada temática (AMORIM, 2004).

Nesse diálogo, tendo a pesquisa aqui relatada o desafio de contribuir com a transformação do campo analisado, foi impreterível que se incorporasse a ela o papel do docente de propor as estratégias para o ensino de atos de escrita eleitas a partir dos estudos de aportes teóricos e metodológicos, e elencadas como favorecedoras da qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem desses atos. Não seria possível agir de modo diferente, uma vez que as pesquisas descritivas de casos pontuais, ou observações empíricas que fixam verdades universais não colaborariam com a análise e as problematizações acerca de determinados caminhos metodológicos para alguma mudança nas práticas de ensino do campo em questão.

No que tange à análise dos dados nesse tipo de pesquisa, é preciso considerar a relação que o pesquisador estabelece com os outros nela presentes: os sujeitos participantes, os leitores e aqueles que sobredeterminam o processo de pesquisa (seus pares do mundo da pesquisa). É preciso não silenciar nenhuma dessas vozes, uma vez que a pesquisa em ciências humanas implica o encontro de visões, ideologias e orientações múltiplas, situando-se numa dimensão de pluralidade. Nesse contexto, a partir do cotejamento de uma consciência com outra, de um texto com outros, é desenvolvida a compreensão e o alargamento da própria consciência (Mello & Miotello, 2013).

Tendo isso em vista, a análise dos dados da pesquisa aqui relatada partiu de uma perspectiva que concebe tanto o pesquisador quanto o pesquisado como socialmente participativos, que interagem com o mundo e lhes é permitido concordar, valorar, discordar e criticar aquilo com que se deparam, já que todo o discurso se encontra inserido numa produção de sentidos que se relaciona com os discursos já produzidos numa sociedade e num determinado momento histórico.

2.1 Contexto da turma: necessidades e motivos

A pesquisa referida foi desenvolvida com alunos do segundo ao quinto ano do Ensino Fundamental - Anos Iniciais de uma escola de um município de porte mediano do interior do estado de São Paulo. Apesar de já terem passado, em sua maioria, pelos anos iniciais desse nível de ensino, anos que são destinados ao processo de alfabetização, essas crianças ainda se encontravam na fase inicial da apropriação dos atos de leitura e de escrita, ou já conseguiam ler, mas não separavam a temática central dos elementos acessórios da narrativa ou, ainda, escreviam sem se atentarem para a organização de suas ideias na sequência estrutural do gênero narrativo. A tabela a seguir mostra como os alunos se encontravam em relação à apropriação de atos de leitura e escrita.

Tabela 1 Crianças do projeto de recuperação e reforço 

Faixa etária Início da apropriação de atos de leitura Início da apropriação de atos de escrita Lê com dificuldades para compreender a temática do texto Escreve com dificuldades de organizar as ideias
8 anos 2 X X
8 anos 2 X X
9 anos 2 X X
10 anos 2 X X
11 anos 1 X X
Total 9 4 4 5 5

Fonte dos dados: diário de campo e relatório dos pesquisadores.

Por esses dados, fica evidente a constituição de, basicamente, dois grupos de crianças: um pouco mais da metade delas (5 de 9) já conseguiam produzir seus atos de ler e de escrever ainda muito embrionários, mas que com ajuda conseguiam compreender partes de um texto ou elaborar suas produções com alguns elementos da narrativa; também com ajuda, um pouco menos da metade das crianças (4 de 9), que se encontravam ainda no início do processo de apropriação dos atos de ler e de escrever, conseguiam elaborar enunciados mais simples.

Ciente de que a necessidade leva à busca do objeto que a supre e que o encontro do objeto pode motivar a atividade do sujeito, a pesquisa realizada foi concebida após o levantamento dessas questões anteriormente apontadas, isto é, considerou que a investigação científica começa pelo problema, que segundo Kopnin (1978, p. 230) “é a expressão das necessidades práticas que impulsionam o pensamento no sentido da procura de novos resultados.” Teve como objetivo compreender os processos de apropriação e de objetivação de gêneros discursivos por crianças do Ensino Fundamental - Anos Iniciais de um projeto de recuperação e reforço.

O presente artigo, para o qual foram trazidos os dados gerados no início da pesquisa, que dizem respeito à realização, pelos sujeitos, de atos de escrita de enunciados autorais, pretende demonstrar que o ensino da produção de enunciados por meio de atos de escrita com função social possibilita o surgimento da necessidade dessa produção valorizadora dos sujeitos e motivadora à realização de tais atos.

3. ENSINO DE ATOS DE ESCREVER COM FUNÇÃO SOCIAL

A linguagem só tem vida na completude de seu fluxo, ou seja, nas trocas verbais entre os sujeitos, por meio de enunciados, organizados em diferentes gêneros discursivos, em um processo dialógico, pelo qual a palavra de um sujeito entra em contato com a palavra do outro e são geradas contrapalavras, caracterizando uma interatividade complexa e dinâmica. É impreterível, então, que os atos de escrever durante o desenvolvimento do processo de ensino e de aprendizagem conservem suas funções sociais e, para que isso dse concretize, há certas condições, tais como: (1) a escrita deve ser necessária para a criança (a criança tem de ter um motivo para escrever); (2) ela deve fazer sentido para quem a aprende (os atos de escrever devem estar inseridos em uma situação extraverbal, como ocorrem na vida) e (3) seu ensino deve ser calcado na realidade (não apenas o ensino de sons e letras ou palavras isoladas). (VIGOTSKI, 2000).

Tendo isso em conta, e em contraposição ao ensino mecânico de cópias de textos alheios, as atividades da pesquisa realizada conduziram à realização de atos de escrever de autoria própria do aluno, sob a forma de gêneros do discurso, considerando que para determinadas situações discursivas, são produzidos determinados tipo enunciados que são conhecidos e reconhecidos por todos em uma dada sociedade e, por isso mesmo, possibilitam que as trocas verbais se materializem. Ou seja, as atividades realizadas partiram do princípio de que “[...] cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2016, p. 12, grifos do autor).

Quando aprendida a partir do estudo dos gêneros do discurso, a linguagem escrita tem a possibilidade de tornar-se um instrumento de reflexão e de organização do pensamento, e não uma habilidade manual adquirida pela repetição mecânica de palavras sílabas e letras copiadas pela criança, porque a escrita de enunciados discursivos, ao ser apropriada nas atividades da criança, devem ir além do estudo apenas dos aspectos linguísticos, para adquirir significados históricos, sociológicos, psicológicos e culturais que lhe são próprios, por apresentada em sua integridade, em sua função social. Só assim as crianças aprendem, de fato, os modos de materialização discursiva e os mecanismos de sua transformação por influência das circunstâncias das trocas verbais, vivenciadas em situações reais, concretas e únicas, inseridas na atividade humana, que provocam reestruturações que modificam, ampliam e renovam os próprios gêneros discursivos. Nessa relação dialética, não apenas os gêneros discursivos se transformam, mas também os interlocutores modificam seus processos cognitivos.

Considerando que a linguagem é viva e que, assim como a fala, os atos de escrever devem ser elementos da vida da criança, que as crianças aprendem com os outros por meio do seu uso, não pode haver interlocutor abstrato quando se quer trabalhar com a língua viva (VOLÓCHINOV, 2017), uma vez que a apropriação dos seus atos se dá no processo social e, por isso, a produção escrita não pode se apresentar como um amontoado de fragmentos desconexos e não endereçáveis.

Seguir esse pressuposto para o encaminhamento das atividades da pesquisa foi um desafio, pois, quando os atos de escrita realizados na escola habitualmente se distanciam da relação entre a criança e sua experiência, nela não se desperta a necessidade de realizar esses atos como veículos de interação entre as pessoas. Levando-se em conta que essa necessidade não nasce com a criança, mas precisa ser formada nelas, a partir das experiências vividas com a escrita, foi discutida a possibilidade de elaboração de um blog para a divulgação dos textos produzidos na turma para os colegas da escola. Ao assumirem a manutenção de um blog, as crianças mudaram sua relação com a produção escrita: ela poderia ser um meio de interação com o outro. Isso fez com que elas se motivassem para a produção de textos escritos. Nesse sentido, não basta apenas que a criança observe um fenômeno ou que ela ouça as explicações do professor para que um conteúdo se torne consciente para ela; é preciso que essas ações façam parte de sua atividade e que os objetivos correspondentes a cada uma delas estejam ligados ao motivo que gerou a atividade da qual tais ações fazem parte.

É, então, por meio da interação com o outro, que a criança, inserida em atividade, apropria-se dos conhecimentos e das habilidades, das aptidões e das capacidades essencialmente humanas e leva adiante os seus processos de aprendizagem e de desenvolvimento. Por isso, é crucial que o ensino dos atos de escrita, como um ato da cultura, tenha como seu objeto os gêneros discursivos. Caso contrário, a língua materna passa a ser concebida por ela como um mosaico de micropartículas artificiais da língua, que fazem parte apenas da cultura escolar, desvinculada da existência real.

3.1 Proposta de trabalho com alguns gêneros discursivos

A criança, no contato com os objetos culturais mediados pela linguagem, no movimento dinâmico e contraditório da realidade, de acordo com suas condições e necessidades, aos poucos, torna-se sujeito ativo no processo de desenvolvimento de sua aprendizagem, porque ao aprender em atividade, são proporcionadas a ela tanto as possibilidades de apropriação dos conhecimentos científicos e socioculturais quanto as possibilidades de avanços no processo criativo de novas formas de conteúdos científicos e socioculturais. E, assim, é possibilitada a sua participação na sociedade em que se insere.

As atividades realizadas durante a pesquisa aqui relatada tiveram início, como anunciamos anteriormente, com proposta de elaboração de um blog para a divulgação dos textos produzidos na turma para a escola, para a comunidade e para os que têm acesso à Internet e, conforme era esperado, essa proposta causou entusiasmo nas crianças que se mostravam motivadas a realizar atos de escrita.

No diálogo que se estabeleceu inicialmente entre os alunos e os pesquisadores, ficou decidido que eles fariam um texto de apresentação para postar no blog, que conteria as informações pessoais de cada autor integrante do grupo. Eles se sentiram especialmente motivados, porque teriam que escrever sobre si e sobre suas preferências para publicar para quem quisesse ou tivesse chance de acessar o blog.

Essa possibilidade de se identificarem como membros participantes de um blog fez com que eles superassem o medo de lançarem-se no mundo dos atos autorais de escrita deixando em segundo plano suas dificuldades de escrita, uma vez que ao fixarem-se no plano da vida dos conteúdos que tinham para publicar, aventuraram-se nas produções para ter os seus perfis publicados junto aos dos colegas de projeto.

Porém, como primeira produção, antes mesmo de elaborarem o enunciado para a sua apresentação pessoal, as crianças, na continuidade do diálogo, perceberam que seria necessário criar um enunciado para a apresentação do coletivo responsável pelo blog. Assim, foi criada coletivamente a apresentação do blog com o seu nome, o nome da escola e o horário semanal de encontro dos integrantes do grupo para produzirem seus textos.

O processo dialógico mantido com o grupo durante a pesquisa pôs em evidência outra forma de condução do processo de ensino e de aprendizagem da língua materna, ou seja, revelou a possibilidade de incluir os alunos no processo de tomada de decisão sobre como encaminhar as ações de estudo em sala de aula, valorizando suas opiniões e formas ativas de participação nas aulas.

Além disso, o modo pelo qual são realizados os atos de escrita nessa abordagem contrapõe-se àquele que normalmente é adotado nos enfoques ditos tradicionais de condução do processo de ensino e de aprendizagem da língua materna, pois dirige tais atos para além de uma capacidade muscular, de controle de mãos e dedos, aspectos que estão também incorporados a esse processo, porém são secundários em relação à capacidade de produzir enunciados adequados na interação com o outro em processos comunicacionais, isto é, constitui-se como um fator subordinado ao ato de produzir um enunciado que tenha sentido para aquele que escreve e aquele que lê esse escrito (VIGOTSKI, 2000).

Entretanto, na educação escolar, o ensino da escrita ocupa um lugar muito restrito em comparação com o enorme papel que desempenha no processo de desenvolvimento cultural da criança, porque, em sua maioria, as escolas ensinam a criança a traçar as letras e a formar palavras com elas, mas não lhe ensinam a linguagem escrita viva, direcionada para alguém. (VIGOTSKI, 2000). Em outros termos, as escolas trabalham com conteúdos próprios do sistema da língua, sem relacionar a produção escrita à situação extraverbal, sem que os atos de escrita sejam, de fato, necessários dentro da atividade que a criança realiza, sem que as finalidades sociais desses atos sejam compreendidas por ela. Porém, letras, palavras e frases só fazem sentido quando compõem um enunciado em uma situação extraverbal, uma vez que

[...] cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (a sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história. Em relação a esse elemento, tudo o que é suscetível de repetição vem a ser material e meio. Em certa medida, isso ultrapassa os limites da linguística e da filologia. (BAKHTIN, 2016, p. 74-75).

Além disso, o domínio de atos de escrita, realizados como parte do uso da linguagem como veículo da comunicação humana e da formação do pensamento, é uma apropriação do tipo superior, que se efetiva primeiramente na atividade externa (interpessoal) que, em seguida, é internalizada pela atividade individual, regulada pela consciência (VIGOTSKI, 2001), e implica, ainda, reflexões e compreensões cognitivas do mundo, como resultado da construção subjetiva socialmente mediada pelos signos em contexto no qual a criança se relaciona com a linguagem por meio de enunciados, dialogando com a situação extraverbal, com intenções discursivas suas e dos outros. O aprendizado da produção escrita não pode, portanto, restringir-se aos conteúdos que conformam o sistema de sua representação.

Na continuidade do processo de realização de atos de escrita destinados à alimentação do blog, as crianças fizeram, como segunda produção, o enunciado de apresentação pessoal para ser nele postado, conforme anunciamos anteriormente. Como primeira etapa para a concretização dessa tarefa, foi feito um diálogo sobre as características do gênero “apresentação pessoal”, bem como sobre a função desse gênero discursivo. Com esse movimento reflexivo em torno do enunciado a ser produzido, elas decidiram que este deveria informar: nome, idade, local de moradia e estudo, bem como os interesses de cada um.

Na sequência, as crianças deram início à segunda etapa da tarefa: a produção de seus textos por meio de tentativas de escrita de suas informações pessoais. Nessa etapa foi gasto muito tempo, visto que o grupo ainda demonstrava dificuldades de escrita em diversos níveis: desde organização dos dados no texto até a materialização do escrito por meio de palavras. Duas crianças tiveram dificuldades com a organização das ideias no texto; outras cinco tiveram muitas dificuldades para escrever essas informações não só no aspecto semântico da escrita, mas também, e principalmente, por estarem muito condicionadas ao método fônico, na forma de representação do código escrito: algumas conseguiam escrever apenas as sílabas compostas pela ordem consoante-vogal e outras nem isso conseguiam fazer; precisaram ser muito ajudadas pelos pesquisadores que lançaram mão do alfabeto móvel para que elas conseguissem refletir sobre a composição das palavras que queriam escrever para produzir seus textos. As outras duas crianças conseguiram escrever sem a ajuda do alfabeto móvel, entretanto com alguns problemas no aspecto formal da linguagem, pois esqueciam algumas letras e precisavam de ajuda na escrita de grande parte dos dígrafos.

Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, as crianças permaneceram motivadas até o final dessa etapa de elaboração textual. Um elemento motivador, nesse trabalho, pode ter sido a possibilidade de as crianças expressarem seus próprios interesses, gostos, preferências, isto é, os aspectos da subjetividade de cada uma delas, fatores valorizadores de suas singularidades e possibilitadores do desenvolvimento de sua autonomia para escolher as informações que quisessem expor ao público: elas falaram sobre preferência por alguns jogos, brinquedos e brincadeiras, sobre a comida predileta, sobre o time favorito, sobre o lugar preferido, sobre ídolos, hobbies e suas relações com familiares.

A última etapa da produção dos textos foi a escrita dos enunciados no computador para alimentar o blog. Ao digitarem, alguns problemas com os elementos ortográficos dos enunciados surgiam, e, com a ajuda do corretor ortográfico e dos pesquisadores, a adequação ao padrão ortográfico foi feita pelas crianças. Essa etapa implicou, além dos atos de escrita dos próprios textos, também o aprendizado do manejo das ferramentas próprias do suporte digital utilizado.

O quadro a seguir mostra a transcrição de alguns desses processos de escrita, lembrando que, para salvaguardar a identidade dos alunos, eles tiveram seus nomes substituídos por outros.

Fonte: Dados da pesquisa de campo

Quadro 1 Exemplos de processos de escrita de apresentação pessoal 

Apesar de essa perspectiva de trabalho com a língua partir do conceito de gêneros discursivos, não significa que ela não aborde o estudo dos elementos gramaticais que subjazem à elaboração dos enunciados. Eles são considerados, entretanto, como secundários em relação ao trabalho de produção escrita do enunciado, no sentido de que dão suporte a essa produção durante os atos de escrita ou na revisão do texto, subvertendo sua imposição hegemônica historicamente construída que os oferece antes do início do processo de escrita, ou seja, sendo propostos nos processos de trocas verbais em que o respeito às necessidades discursivas dos autores sejam elementos presentes.

De acordo com Faraco (2009), para seguir a lógica da vida, o estudo dos elementos gramaticais deve situar-se como ponto de chegada dos estudos linguísticos, em vez de serem situados como ponto de partida, seguindo na seguinte direção: (1) o estudo das formas de interação verbal em conexão com as suas condições concretas - dos gêneros discursivos, (2) o estudo dos tipos de interação verbal relacionados às situações particulares dos enunciados - dos elementos semânticos, (3) estudo das formas da língua para envio para o outro - estudo dos elementos gramaticais. Dito de outro modo, o que fica evidente sobre o ensino dos elementos gramaticais, em que não há a sobreposição da forma sobre o conteúdo, é que ele recupera as manifestações discursivas da vida, das quais ele faz parte, ou seja, os elementos gramaticais passam a ser vistos como colaboradores de um todo maior: o enunciado.

No processo de digitação dos enunciados feitos com o objetivo de fazer a apresentação pessoal, algumas crianças puderam ajudar seus colegas a digitar as produções deles e, também, após a sua postagem no blog, elas puderam ler os vários enunciados desse gênero discursivo, percebendo que apesar de haver inúmeras possibilidades de escolha de conteúdo, que dependem da realidade de quem os escreve, as características do gênero se mantêm.

Durante esse processo de produção da versão final das apresentações, em diálogo com os pesquisadores, as crianças puderam refletir sobre o conteúdo de sua escrita, verificando se não faltava nenhum elemento a acrescentar, bem como avaliar o resultado final de suas produções para ver se seus textos estavam bons. Observa-se a seguir um exemplo de reflexão sobre a forma e sobre o conteúdo da escrita da apresentação pessoal.

F: - Aqui cada um coloca o que gosta, né?

Pesquisadora: - Sim. Como percebeu isso?

F: - Eu vi o texto do L e do M.

Pesquisadora: - Estavam diferentes entre si?

F: - Sim.

Pesquisadora: - E do seu?

F: - Também.

Pesquisadora: - Nesse trecho você deve escrever o que gosta, e cada um gosta de uma coisa.

F: - Tá bom. Você sabe como escreve Manicraft?

Pesquisadora: - Eu não tenho certeza. É um jogo?

F: - Sim, de computador.

Pesquisadora: - Vamos procurar na Internet? Como você faz para entrar nele?

F: - Assim, olha! (digitando o nome do jogo no Google).

Pesquisadora: - Achou a escrita correta?

F: - Sim, é a primeira.

(Dados da gravação de áudio)

Esse é um exemplo de como a criança pode refletir sobre os elementos principais do gênero discursivo em estudo: o conteúdo - único de cada ato discursivo; a plasticidade - capacidade de se adaptar às situações de troca verbal; estilo - modo pessoal de dizer de cada um; e forma - padrão linguístico das microestruturas textuais que possibilitam a compreensão do interlocutor.

A realização de atos de escrita tendo como suporte o computador teve um significado especial para as crianças da pesquisa realizada, pois além de elas aprenderem a elaborar enunciados inseridos na corrente discursiva foi possível proporcionar a elas um novo ambiente de aprendizagem - o ambiente digital, que possibilitou, como vimos, fazer buscas na Internet e utilizar recursos do computador que ajudaram as crianças em sua trajetória de produção das versões finais de seus enunciados, não apenas por causa do corretor ortográfico ou do banco de palavras que ele possui e que as ajudam a grafar as palavras de forma mais adequada, mas também por disponibilizar em seu teclado todas as letras e sinais gráficos como possibilidades para a reflexão sobre a escrita de cada palavra e, com isso, a materialização dos enunciados.

Na sequência dos atos de escrita motivados pela criação do blog, mais um texto foi objeto de elaboração pelas crianças. Para divulgá-lo, surgiu a ideia de convidar as pessoas a acessá-lo, dando origem à escrita de outro gênero discursivo: o convite. Dois enunciados foram escritos com a participação coletiva e endereçados a vários integrantes da comunidade escolar, tais como: à diretora, ao vice-diretor, à coordenadora, às professoras, aos pais e aos colegas de classe das crianças participantes da pesquisa. Os bilhetes foram escritos coletivamente em duas versões - a primeira com o nome da escola e, em seguida, a seguinte mensagem “convida você para participar de nosso blog” com o nome e o endereço do blog, e a segunda contendo a seguinte mensagem “Participe do blog de nossa escola” com o nome da escola, do blog e seu endereço.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo educativo, o sujeito aprende objetivações sócio-histórico-culturais deixadas por outros sujeitos que o antecederam e na interação com pessoas mais experientes do que ela, por meio de atividades intencionalmente dirigidas e das relações de trocas verbais estabelecidas com seus outros; assim, a criança é capaz de se objetivar em novos produtos de sua atividade ao se apropriar dos objetos de sua cultura, porque por meio da atividade em “condições reais de vida” ocorre a apropriação das práticas sociais.

Para o encaminhamento do processo de apropriação e objetivação dos conteúdos escolares, o ponto crucial do trabalho educativo é a inserção dos alunos na atividade de estudo. Para que isso se torne possível, é preciso fazer surgir neles a necessidade de estudo, que no caso aqui relatado foi gerada pela vontade discursiva de postagem de suas produções no blog da escola. A partir daí as crianças encontraram um motivo eficiente (LEONTIEV, 2004) e meios adequados para a realização da atividade destinada a se apropriarem de gêneros discursivos como a apresentação (coletiva e individual) e o convite, corroborando a ideia de que quando há uma finalidade real de escrita para o outro, a autoria é motivada e isso colabora para que a versão final do texto se apresente de modo mais bem elaborado. Tendo em vista que os processos intelectuais se relacionam diretamente à motivação da criança para com a atividade, para que a aprendizagem realmente se efetive é impreterível, como ponto de partida, criar necessidades de escrita, porque “só sob a condição de que apareçam motivos estritamente cognoscitivos é possível chegar ao domínio verdadeiro, e não só formal das operações do pensamento teórico.” (LEONTIEV, 1978, p. 225). Caso contrário, se essas operações forem assimiladas de modo formal permanecerão apenas na superfície da memória por algum tempo, por não terem sido assimiladas pelos motivos concretos que impulsionam as crianças a estudar.

A inserção das crianças em projeto de elaboração de produções escritas para alimentar o blog da escola mostrou-se um caminho adequado para que elas aderissem à atividade de estudo e, com isso, ampliassem sua capacidade de produzir enunciados de diferentes gêneros dentro de situações discursivas distintas. Nesse contexto, ao projetar um enunciado com a visão final do que se deseja elaborar, são buscadas maneiras de concretizar essa produção por meio de etapas de elaboração discursiva. Nesse processo, o enunciado vai- se constituindo na direção da finalidade estabelecida até que adquira o acabamento linguístico necessário para que ele se torne passível de endereçamento a um outro.

Outro ponto a ser destacado é que, nos momentos em que ocorrem situações autênticas de escrita, em contextos interativos, por meio dos signos, com esses operadores de ações culturais, as crianças aprendem o valor social dos atos de escrita e apropriam-se deles com a necessária compreensão que o domínio da escrita, como um instrumento cultural complexo, exige. Isso é possível mesmo para aqueles que apresentam dificuldades em se alfabetizar; ou seja, mesmo as crianças consideradas em processo de exclusão, por ainda não terem aprendido a escrever com fluência, conseguem se apropriar de seus atos em processo de uso.

E, finalmente, um aspecto a ser destacado no desenvolvimento do experimento didático-formativo relatado refere-se à utilização do computador como um recurso que auxilia na forma de registrar os atos de escrita, promovendo o estudo reflexivo dos aspectos da linguagem incluídos nesses atos e provocando interferências qualitativas nos atos de escrita das crianças que se encontram no processo de apropriação dessa linguagem.

Dessa forma, fica evidente que incluir no trabalho pedagógico uma variedade tanto de suportes de escrita como de gêneros que circulam socialmente traz efeitos benéficos, tanto para a vivência de práticas sócio-discursivas, como para a aprendizagem de conhecimentos formais da linguagem.

Diante do que foi dito, é possível concluir que, a partir da produção de enunciados inseridos em uma situação extraverbal, com função social, que implica a existência de um leitor para esses enunciados, os escolares sentem-se mais motivados a envolverem-se em atos de escrita que possibilitam o desenvolvimento das capacidades linguísticas que lhes permitam lidar adequadamente com os diversos gêneros discursivos sempre que for necessário tanto em sua vida escolar como em sua vida extraescolar.

REFERÊNCIAS

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FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. [ Links ]

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KOZULIN, Alex. Ferramentas psicológicas e aprendizagem mediada. In: KOZULIN, Alex; GINDIS, Boris; AGEYEV, Vladimir S.; MILLER, Suzanne M. (Org.) Vygotsky’s educational theory in cultural context. New York: Cambridge University Press, 2003. [ Links ]

LEONTIEV, Alexei Nikolaevich. Actividad, conciencia y personalidad. Buenos Aires: Ediciones Ciencias del Hombre, 1978. [ Links ]

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MELLO, Marisol; MIOTELLO, Valdemir. Questões bakhtinianas para uma heterociência humana. Revistas Teias, Rio de Janeiro, v. 14, n.31. p. 218-226 mai/ago de 2013. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24340/17318 Acesso em: 14 de abr. de 2018. [ Links ]

MILLER, Stela; MELLO, Suely Amaral. O desenvolvimento da linguagem oral e escrita em criança de 0 a 5 anos. Curitiba: Pro-Infanti, 2008. [ Links ]

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VOLÓCHINOV, Valentin Nikolaievitch. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

Recebido: 29 de Novembro de 2018; Aceito: 25 de Abril de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Silvane Maria Pereira Brandão. E-mail: silvane.pereira@ifro.edu.br

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