SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número2A GESTÃO DA EVASÃO NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS: DA GRADUAÇÃO À PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSUA PÓS-VERDADE É VERDADEIRA OU FALSA? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.2 Campinas abr./jun 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i2.8654517 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

COMO APRENDER FILOSOFIA A PARTIR DO FILOSOFAR? UMA VERSÃO FENOMENOLÓGICA, DIALÉTICA E FREIRIANA.

HOW TO LEARN PHILOSOPHY FROM PHILOSOPHIZING? A PHENOMENOLOGICAL, DIALECTICAL AND FREIRIAN VERSION.

¿CÓMO APRENDER FILOSOFÍA A PARTIR DEL FILOSOFAR? UNA VERSIÓN FENOMENOLÓGICA, DIALÉCTICA Y FREIRIANA

Marco Aurélio Corrêa Martins1 

1Doutor em Educação - Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora, MG - Brasil. Professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Escola de Educação/Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: marcoaureliocorreamartins@gmail.com


RESUMO

Este relato de experiência está calcado numa compreensão existencial da passagem do estudante nos primeiros períodos do curso de pedagogia e licenciaturas, dotando o estudante não de arsenal conteudístico, mas de habilidade para a reflexão crítica pautada pela filosofia, desenvolvendo no mesmo um sentido de autonomia e protagonismo. É o estudante quem pensa suas questões, não o filósofo, tampouco o professor. Desse modo, propõem-se atividades presencias com algumas em “ambiente virtual”. Iniciando por “perguntas cretinas” e orientações de como estudar pela leitura, o estudante é conduzido por uma metodologia fenomenológica a expressar sua reflexão balizada pela observação cuidadosa, perspectiva dialética e abertura ao outro. Tem em Paulo Freire um guia nativo e na filosofia da existência alguns fundamentos. Estimula a expressão autoral, seja escrita ou de outra linguagem e, sobretudo, a individuação dos temas abordados na questão do educar, embora com alternância entre tarefas individuais e coletivas.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de filosofia; Educação e filosofia; Método filosófico; Investigação em filosofia; Expressão e reflexão filosófica

ABSTRACT

This reported experience is based on a existential comprehension of the student passing through the first periods of pedagogy course and degrees, giving the student not an arsenal of content, but the ability to critical reflection guided by philosophy, developing in it the same sense of autonomy and protagonism. It is the student who thinks his questions, neither the philosopher, nor the professor. Thus, presence activities are propose, with some in a “virtual environment”. Starting with “cretins questions” and guidance towards how to study by reading, the student is conducted through a phenomenological methodology to express his refletions based on careful observation, dialectical perspective and opening to the other. In Paulo Freire there is a native guide and in philosophy of existance there are some fundamentals. It estimulates the author expressions, be it by writing or some other language and mostly by the individualization of the topics covered in the questions of teaching, though with alternation between individual and collective tasks.

KEYWORDS: Philosophy teaching; Education and philosophy; Philosophical method; Investigation in philosophy; Philosophical expression and reflection

RESUMEN

Este relato de experiencia se basa en una comprensión existencial del paso del estudiante en el primero año del curso de pedagogía y formación de professor,. Desarolando nel estudiante no un arsenal de contenidos escolares, pero de habilidad para la reflexión crítica pautada por la filosofia, da a el mismo un sentido de autonomía y protagonismo. Es el estudiante quien piensa sus cuestiones, no el filósofo, ni el profesor. De este modo, se proponen actividades presencias con algunas en ambiente de la web. Iniciando por "preguntas cretinas" y orientaciones de cómo estudiar por la lectura, el estudiante es conducido por una metodología fenomenológica a expresar su reflexión balizada por la observación cuidadosa, perspectiva dialéctica y apertura al otro. Hay en Paulo Freire un guía nativo y en la filosofía de la existencia algunos fundamentos. Estimula la expresión autoral, sea escrita o de otro lenguaje y, sobre todo, la individuación de los temas abordados en la cuestión del educar, aunque con alternancia entre tareas individuales y colectivas.

PALAVRAS-CLAVE: Enseñanza de filosofía; Educación y filosofía; Método filosófico; Investigación en filosofía; Expresión y reflexión filosófica

1. INTRODUÇÃO

Assim que formado, já procurava uma saída para o ensino de filosofia nas escolas de ensino médio. Falar dos filósofos parecia indispensável, mas acabava por criar a sensação de que filosofia é o estudo do pensamento dos filósofos. À época, parecia interessante adotar uma postura temática. Porém, isso também voltava ao mesmo ponto, uma vez que eram os temas da filosofia os abordados. Muitos estudantes chegados à universidade, quando respondem à pergunta sobre ter estudado filosofia no ensino médio, repetem frases epigrafais de filósofos.

Se a filosofia, como é comum professar, tem a função de fundamentar um pensamento crítico, de certo esse pensar criticamente não vem simplesmente ou automaticamente do conhecimento sobre os filósofos.

É preciso uma filosofia que faça sentido e proponha o desenvolvimento de um perfil crítico e, ao mesmo tempo, investigativo. No ensino tradicional, a filosofia torna-se, como todo o resto, repetição de informações apreendidas pela memória e repetidas, às vezes, sem um sentido importante.

A referência ao pensamento crítico nesse texto não se faz sobre um estudo de lógica ou da argumentação, tampouco se refere ao criticismo de Kant. Mas numa busca de uma didática capaz de ajudar os alunos a colocar suas próprias experiências em curso, num modo de pensar iniciado e provocado por questionamentos, em cuja intencionalidade procura-se conhecer mais e melhor, a fim de posicionar-se frente às questões propostas. A filosofia e os filósofos enriquecem tanto a percepção dos problemas, quanto sua formulação e ensaio de solução desses problemas. Também pode colocar em cheque crenças, pré-conceitos e mesmo conceitos trazidos por cada pessoa, especialmente o formulador das questões. Na outra ponta, a que mais nos interessa, trazer conceitos capazes de ajudar a solucionar as questões suscitadas por cada estudante, no contexto do ser ou tornar-se professor.

Outrossim, o modelo escolar no qual estamos inseridos, regula a vida do estudante usando uma métrica excessivamente conteudista, na muitas vezes com fins a avaliações a serem traduzidas por nota, seja num ranking ou numa escala.

Como elaborar um curso de filosofia voltado para a educação que seja, em primeiro lugar, uma forma de questionamento sobre algo que faça sentido para o estudante? Como desenvolver no estudante um sentido crítico-investigativo, dotando-o de elementos metodológicos da filosofia? Conhecer os filósofos não apenas pela perspectiva de sua descrição ou papel na história da filosofia ocidental, mas a partir de questionamentos do próprio estudante? Como tornar livre, ativo e prazeroso o filosofar? Essas questões são pertinentes à experiência a qual esse texto pretende relatar.

Ainda é importante frisar que a escola do século XXI precisa ser uma instituição que permita ao estudante desenvolver seu próprio conhecimento e crítica de modo ativo, criativo e expressá-lo das mais diversas formas possíveis e disponíveis para tanto. Cabe ao professor e à escola um novo papel nesse contexto já que a escola tradicional, do modelo institucional dos Estados Modernos do século XIX, não mais responde ao atual momento da humanidade.

2. EDUCAÇÃO E FILOSOFIA

2.1 Como aprender a perguntar?

Os alunos ingressantes no curso de pedagogia presencial de minha Universidade vêm, em grande parte, com duas posições: querem ser professores ou entraram na vaga disponível para um curso superior. De um lado e de outro há conversões. Não importa! A filosofia no sentido de “filosofar” tem um papel acima das divisões e interesses particulares, ela “serve” e “interessa” a todos de forma indistinta. Além dos estudantes de pedagogia, várias licenciaturas escolheram a disciplina “educação e filosofia” para a formação de docentes.

Tendo em vista a adequação dos estudantes ingressantes, sobretudo a realizada pela escola média no discurso do ENEM e da entrada para o ensino superior, do “ser alguém na vida”, parecem cabeças quadradas na exata métrica do universo da “fábrica de aprovação” para a Universidade. Não nos referimos aqui, ao projeto nacional de ensino médio, mas na busca pelo resultado nos exames de seleção, de modo que não se pode aceitar, ingenuamente, a proposta do ensino médio como formação do homem médio brasileiro, sempre tão tenuamente realizada na história da educação, desde a reforma de 1931 até a última mudança ocorrida, à revelia dos atores educacionais, em 2017. Pela prática demonstrada por muitos ingressantes na universidade, via SISU, sobretudo os mais jovens, seu foco no secundário estava na aprovação para o ensino superior e não numa formação de habilidades e competências. Assim, no primeiro ou segundo semestre do curso superior procuramos desmontar esses “esquemas” escolares bastante inócuos e incapacitantes ao qual são submetidos.

Em torno disso, no lugar de oferecer um cardápio de filósofos a serem “degustados”, procuramos alguma forma para deixar a liberdade de pensar aflorar nos estudantes, induzindo-os a refletir sobre perguntas um tanto estranhas, aparentemente desconexas, canhestras. Dessa maneira, chegamos às “Perguntas Cretinas”.

As “Perguntas Cretinas” pretendem lançar questionamentos de forma menos diretiva possível, porém baseadas em algum texto/contexto específico. O modelo que funcionou logo de início foi elaborar essas perguntas sobre uma série de vídeos, documentários, de Alain de Botton com o título de “Filosofia, um guia para a felicidade” (2000). Assim, sem apresentar os vídeos ou fazer qualquer referência a temas, cada grupo de estudantes recebe uma coleção de “Perguntas Cretinas” e tentam respondê-las para apresentar, num segundo momento da aula, em uma plenária na qual todos os outros poderão interagir questionando ou discutindo as respostas de cada grupo. O texto abaixo é oferecido aos estudantes para uma compreensão dos afazeres:

O que são perguntas cretinas?

Há algumas gerações chamávamos o dicionário, aquele velho livro grosso e cheio de palavras em ordem alfabética, de “pai dos burros”. Uma pessoa educada, de espírito mais elevado, cunhou um termo mais elegante e menos pejorativo ou arrogante: “catedral das luzes”!

Bem, com o advento da internet e essa rede de informação (também de desinformação) o velho e bom dicionário ficou mofando e juntando poeira na estante. Agora basta escrever a palavra num local específico e “than!” aparece a definição.

Um dicionário “on line” (nem tem palavra em português para dizer o que é “on line”) logo avisou: cretino é retardado, é estúpido, burro no dizer mais popular! Mas também pode ser trapaceiro, cínico ou manipulador. Essa segunda versão é uma espécie de pejorativo do significado original, tipo o ditado popular: “se faz de morto para comer o coveiro”.

Aqui, as perguntas cretinas são uma espécie de “perdido” que dou nos estudantes. Ficam com raiva e xingam as perguntas estúpidas formuladas e são obrigados a respondê-las, quando se dão conta, estão filosofando ou tentando dar acabamento a alguma ideia.

Durante as discussões, em meio a muitas questões relativas à insegurança dos estudantes quanto à tarefa, por lhes parecer um pouco informal demais, o professor as responde sempre estimulando a autonomia do grupo. Uma questão bastante comum é a dificuldade ou necessidade de consenso do grupo: procuramos mostrar que onde não há consenso, deve-se narrar o dissenso. E isso soa como libertador para o grupo de estudantes acostumados a respostas únicas do modelo catequético escolar.

Nas apresentações plenárias, o professor revela a conexão das “Perguntas Cretinas” com os vídeos e solicita a assistência dos mesmos para retorno na próxima aula. São advertidos, durante todo o curso, de que, ali, o filósofo não entra, senão por ser convidado. Faz-se uma inversão no sentido de que se buscará nos pensadores informação e subsídios para o pensar: quem pensa é o estudante, o filósofo ajuda. Dessa maneira o retorno na aula seguinte é bastante motivado, pois ao assistir à exposição sobre um filósofo, o estudante confronta o seu pensar ou seu objeto (ou ambos) como o exposto pelo pensador.

Parte-se, assim, para uma segunda rodada de “perguntas cretinas”, dessa vez, o professor é mais ausente um pouco, apenas serve um cardápio de pequenos textos (acadêmicos e literários), para que os grupos “fustiguem” os outros grupos com “perguntas cretinas”. A sessão plenária se dá exatamente na turma, tentando responder às novas perguntas cretinas. Essa segunda rodada já trata da questão educacional, enquanto na primeira tratou-se de questões existenciais.

Os textos utilizados são: “Quando a escola é de vidro” de Ruth Rocha (2002), “A Escola perfeita” de Carlos Drummond de Andrade (1999); “Deficientes cívicos” de Milton Santos (2018), “Ensinar exige estética e ética” de Paulo Freire (1996) e “Educação voltada para o futuro e a perspectiva de um sistema social à escala humana” de Suchodolsk (2003).

Por fim, numa terceira rodada, os estudantes elaboram para si mesmos suas próprias “perguntas cretinas” sobre as quais pretendem pensar durante o semestre letivo. São estimulados a manter essas perguntas dentro da questão educacional, mote da disciplina. Essa formulação não deixa inseguro o estudante, pois lhe dá uma diretriz de estudos, ao menos sobre a temática, com o qual ele vai desenvolver o seu próprio “filosofar”.

As perguntas cretinas permitem confrontar o pensamento comum, cotidiano, ainda que não necessariamente somente o senso comum, com o pensamento filosófico, trazendo o estudante para o mundo da filosofia sem abandonar suas perguntas ou adotar, simplesmente, a (s) pergunta (s) dos filósofos.

2.2. Estudar é trabalho!

Posto essa “liberação” para o pensar e para o aprender o que quiser, mesmo dentro de certos limites impostos por várias circunstâncias da vida escolar, passamos à instrumentalização acadêmica dos estudantes, oferecendo três outras possibilidades: a primeira é de natureza técnica e é lançada no primeiro dia de aula do semestre letivo como atividade doméstica, com prazo mais largo de realização. Consiste em fazer um resumo ou esquema de um texto a ser escolhido numa listagem, com a possibilidade de incluir outros pelos próprios estudantes. Para tanto, é oferecido um texto de Ruiz (1982) intitulado “Estudo pela leitura trabalhada”. Nesse texto, Ruiz ensina a identificar os elementos importantes da leitura, tendo em vista o trabalho do estudante em seu processo de aprendizagem, a partir da leitura. No último semestre, foi oferecida uma lista bastante extensa sobre “filosofia africana” (FILOSOFIA, 2018). Essa temática vem sendo sistematicamente solicitada pelos estudantes e, assim, chegamos ao portal no qual se reuniu diversos textos. O pensar carece de conteúdo, método e técnica. O conteúdo está, nos textos, vídeos etc. e a técnica de estudar foi dada por Ruiz.

Uma questão bastante complexa está na individuação das temáticas abordadas pelos estudantes. Uma vez estimulados a isso, o céu se torna o limite. Conduzir essa diversidade é muito estafante e gratificante na mesma proporção. Ao mesmo tempo, traz o questionamento sobre processos coletivos, tão caros às tarefas escolares/educativas. Dessa forma, as atividades são intercaladas entre a solidão e a coletivização. Contudo, os trabalhos de sala de aula são coletivizados, mesmo quando já se tem o máximo de individuação na temática escolhida por cada estudante. Para isso, usa-se um jogo parecido com o da “berlinda”, quando o professor e os colegas arrostam as questões do colega.

2.3 A bala ou a praia: brindando os sentidos!

O método da filosofia apresentado é a fenomenologia. Duas maneiras podem ser utilizadas para provocar a pré-compreensão dos conceitos de Husserl trazidos a partir da leitura do livro “O que é existencialismo” (PENHA, 1986): um passeio à praça e/ou praia onde solicita-se ao estudante escolher algo para observar e anotar o máximo de detalhes que for possível dessa observação; ou, distribui-se uma bala na chegada dos estudantes à sala de aula, solicitando-lhes descrição daquele objeto. Os conceitos explorados são “fenômeno”, “epoquê ou redução fenomenológica” e “intencionalidade da razão”.

Durante a plenária, vai-se relacionando as experiências narradas pelos estudantes com os conceitos propostos e o professor explica como funciona o método fenomenológico, a partir da constatação da necessidade de “fazer a experiência” para conhecer, ao contrário de uma filosofia que privilegia o pensar antes do experimentar. Por isso, o professor tenta explorar, nas experiências, o uso de cada um dos cinco sentidos humanos. Para finalizar o tema “fenomenologia” como metodologia do filosofar, o professor reclama a assistência ao filme “Poder além da vida” (2006) sugerida no primeiro dia de aula como recreação motivadora. Os alunos são instigados a compreender que uma obra de arte e/ou de entretenimento, não tem o objetivo de ensinar filosofia como na escola, porém seus autores, não raro, estão imbuídos de concepções filosóficas. Portanto, é preciso assistir ao filme como peça de arte e entretenimento que é despreocupado das questões filosóficas que o docente possa suscitar. Neste caso, a assistência prévia ao trabalho de sala de aula é indispensável. O filme apresenta uma sequência de cenas nas quais se podem identificar os conceitos apontados. Isso culmina com a leitura de um pequeno texto sobre Husserl (PENHA, 1986).

2.4 Uma parte de mim, outra parte de mim; uma parte do mundo, outra parte do mundo...

O terceiro momento é trazer a dialética como forma de compreensão do mundo e também como método de pensar. Tudo está em movimento e, por isso, as coisas estão sujeitas a confrontos, conflitos e mudanças. Essa atividade é feita de maneira não presencial, ou seja, sem a sala de aula. Foi através da plataforma “sala de aula” do Google que se tornou possível tal situação. Na sala virtual, apresenta-se ao estudante o texto de Konder (1994) sobre a “Razão dialética”. Os estudantes, de suas casas ou locais de conexão, acessam o texto para a leitura sugerindo-se o método de Ruiz (1982). Na proposta, são colocados três vídeos, dois com a canção e declamação respectivamente dos poemas “Traduzir-se” de Ferreira Goulart e “O operário em construção” de Vinícius de Moraes. No terceiro vídeo, muito curto, Ferreira Goulart fala sobre o dia em que escreveu o poema. Pede-se para pesquisarem os textos integrais dos respectivos poemas na internet e a proceder a uma escrita de uma lauda na qual relacione os textos de Konder, Ferreira Goulart e Vinícius de Moraes.

Os resultados são muito diversificados. Estudantes, talvez mais inseguros, pesquisam a internet, outros, mais atirados, lançam-se na tentativa de satisfazer o solicitado. Em qualquer caso, tem-se em conta o fato da aprendizagem de acordo com o perfil de cada pessoa, aceitando-se a produção como forma de expressão e processo de aprendizagem. No entanto, a limitação de tamanho do texto obriga ao estudante ser mais exato naquilo que tem a dizer para explicitar sua compreensão da ideia da dialética. Se o texto de Konder é mais longo, sua linguagem é simples em relação aos filósofos clássicos e se torna mais compreensível ao estudante. As expressões poéticas de Vinícius de Moraes e de Ferreira Goulart levam os conceitos para um plano de uma similitude mais próxima da existencial.

A dialética, embora seja também uma metodologia, é apropriada na experiência a partir da compreensão da realidade como contradição e em constante transformação. Também numa relação de idas e vindas, na reflexão, entre dois ou mais polos e para além do diálogo socrático, uma vez que se afeta e é afetado. Tal é necessário para se colocar na linha de atuação preconizada por Paulo Freire. Nesse sentido, o texto de Konder permite colocar a busca dialética no “novo”, o qual é sempre superado, encaminhando a reflexão para uma teoria da ação na busca desse “novo”, sempre na confrontação dialética, ou seja, na percepção da realidade como diversificada e sobre a qual se faz escolhas éticas, políticas e/ou metodológicas. A fenomenologia nos traz a perspectiva do conhecimento como sempre provisório, levando-nos sempre mais adiante na busca de compreender melhor aquilo que já se conhece ou conheceu.

2.5. O diálogo e o respeito à cultura e à pessoa do outro

O quarto momento é para trazer novamente o tema “educação”, dessa vez com um texto de Paulo Freire (1983) no livro “Extensão ou comunicação”, no capítulo sobre “Extensão e invasão cultural”. Esse momento também se tornou mais intenso quando não presencial, possível pelo uso da “sala virtual” do Google.

Como tarefa, é solicitada ao estudante que leia o texto de Paulo Freire e expresse sua compreensão de maneira livre, criativa, artística, de preferência sem textos dissertativos (embora não excluindo essa possibilidade). Para esse caso, e para tornar mais objetiva a tarefa do professor, solicita-se um memorial sobre o apresentado. As respostas são sempre surpreendentes e passam de textos dissertativos, comuns nas redações escolares, para contos, poemas, desenhos, pinturas, etc.

Veja abaixo a reprodução parcial do trabalho de Ítalo Cabral Weyll - 8º período de música, no 1º semestre 2018 e criada a partir das leituras de Paulo Freire e de Leandro Konder:

Figura 1 Educação não dialógica 

Figura 2 Educação dialógica 

O estudante procurou expandir sua compreensão para uma representação não verbal. O original possui oito quadros para cada figura.

A perspectiva do professor é explicitar a forma da escola de modelo dos Estados Modernos do século XIX que contribuiu para internalizar sobre a população a ideia de nação. É um modelo de escola na qual um professor oferece conteúdos de aprendizagem socialmente validados pelo Estado para a formação de um “cidadão” típico, sempre associado a esse mesmo Estado. Nesse modelo estabelece-se o controle escolar de diversas formas sendo os exames de avaliação bastante comuns atualmente. Ainda que não me posicione contrário a esses exames, as práticas narradas pelos estudantes é a de uma escolarização voltada para a realização da avaliação e não comprometida com a formação ou habilidades preconizadas nos documentos oficiais. Questionar se esses exames são feitos para avaliar ou não a formação/habilidades não contém a fórmula da maior diversidade dessa formação a qual pode requerer voltar-se para o próprio estudante e seu mundo e não para o exame. Nessa escola, valores tidos como gerais, mais importantes e acima daqueles professados, cultivados na esfera das comunidades, famílias ou regiões, culturas etc., são impostos sobre aqueles que, inferiorizados, recebem dos “acadêmicos”, “professores”, “doutores” as instruções de como fazer e/ou ser. Assim, vejamos uma parte de um cordel escrito como trabalho de curso por Juliana Costa de Souza, 2º período de pedagogia, 1º semestre de 2018 a partir do conceito de “invasão cultural” apresentado no texto de Paulo Freire (1983):

É que os Doutô podem fazer uma roda de coco

e colocar todo mundo pra dançar

Só não esqueçam os motivos

do coco ter vindo pra cá

O pedreiro que canta a ciranda

tem é muita história pra contar!

O que não pode é a academia

não ligar pro saber popular

e achar que o sertanejo

apenas não quis estudar,

mas continuar dançando

uma dança que surgiu mesmo foi lá.

Muitos estudantes expressam suas experiências “mal aprendidas” no espaço forçado, imposto, criado na escola e revelam sentimentos, muitas vezes retesados, porém de maneira catártica em forma de arte e reflexão.

2.6 Trabalho de curso: bricolagem de ideias

Por fim, como ápice do projetado, os estudantes são estimulados a responder a sua “pergunta cretina” formulada no início, com as possibilidades de alteração que a vivência do dia-a-dia e do próprio curso possa incluir. Para cumprir essa tarefa, deverão utilizar dos ensinamentos da disciplina incluindo, principalmente, novos elementos com a pesquisa. Nesse processo, o filósofo é um convidado que vem ao centro apenas para responder ao que lhe é dado dizer pelas perguntas a fim de dar total protagonismo da reflexão a seu autor, o estudante.

Essa experiência está mais bem estruturada no curso embora cada turma a tome de maneira particular, não só pelos indivíduos e grupos, mas pela atuação do professor e a mobilização que se dá no decorrer do semestre em torno das discussões e reflexões.

Com a experiência da “sala virtual”, muitos estudantes podem expandir seus contatos com o professor, monitores e colegas através de publicações que ensejam comentários dos outros. Também nesse espaço, o professor assume um papel de provocador, postando vídeos, textos, anedotas e outras como provocação de algum tema ou debate ocorrido em sala de aula presencial.

Assistimos, por exemplo, a estudantes apresentando coisas ligadas a outros cursos, pois a disciplina recebe alunos das diversas licenciaturas de forma aleatória e optativa. Assistimos a um pequeno “show” do estudante de música, percursionista de um grupo de pagode, tocando violão e narrando sua reflexão através de letras de músicas. Ou ao estudante de teatro lendo a peça escrita por ele a partir das diversas interações que manteve naquele período com seus mais diversos professores. Ainda um livro ilustrado por um estudante de biologia imaginando alguns temas discutidos em diferentes estações do metrô. Conto da estudante de biblioteconomia narrando as proposições de mudança de vida a partir da filosofia para um adolescente infrator. Minicontos de muita intensidade dramática escritos por um estudante de Ciências da Natureza. Diversas expressões gráficas, plásticas, letras etc. Material riquíssimo não só de reflexão, mas de pesquisa e expressão autoral.

Veja no exemplo abaixo, trechos do trabalho de curso de Tainyt Barbosa Viégas de Carvalho, 2º período de pedagogia, 1º semestre 2018:

POR QUE EU NÃO VOU FAZER O TRABALHO?

Este Não-Trabalho foi desenvolvido como atribuição de conclusão do semestre letivo, segundo período da graduação de licenciatura em pedagogia, disciplina Fenomenologia e Educação do departamento de Fundamentos da Educação, ministrada pelo mineiro Professor... [...]

Uma das formas quais pensei em apresentar meu trabalho foi a de um “QUIZ”, do tipo: “o que é, o que é?!” - descrevê-lo-ia como uma ágora pública, necessário, democrático, onde tudo ocorre, é arma de protesto, é transparente mesmo sem palavras, é um lugar onde também se percebe o que pretendo chamar de “pasteurização do conhecimento”. A pasteurização do conhecimento é percebida ali pelo frequente uso dos aparelhos celulares com diversas finalidades: escuta de pregação religiosa, acompanhamento de seriados fictícios, entretenimento pelos jogos eletrônicos em versões atualizadas - estas e outras formas de acesso ao conhecimento de forma rápida e processada - que podem ser utilizados e consumidos em tempo menor que uma viagem de ônibus intra-municipal, chamo também de “fast knowledge”. [...]

Esse não-trabalho se transformou em algumas pesquisas e algumas reflexões, sociológicas e filosóficas, um pouco desconexas, contudo interessantes. [...]

Uma nota de rodapé da autora:

RELEMBRANDO AQUELA EXPERIÊNCIA DA AULA SOBRE FENOMENOLOGIA NA

PRAIA: Naquela aula, falei sobre o medo, sobre a luz, sobre a locomoção do ser humano. O ser humano está em constante movimento e muitos seguem as luzes, cada um por seus motivos próprios; outros possuem a coragem ou a loucura, ou outros motivos próprios em encarar os caminhos mais escuros; contudo o movimento é notório.

A estudante chamou de “não trabalho” por não ter conferido um conhecimento definitivo ou academicamente acabado e para expressar sua aprendizagem livre, inacabada, mas significativa.

3. A CONCLUIR...

A dimensão do inacabamento humano, traduzido no conceito de angústia de Kierkegaard, aquela que leva à mudança, pois, na relação com o mundo nos tornamos sempre cônscios de nossa limitação, mas, sobretudo, do possível é relevante nessa experiência, tanto para o docente e monitores, quanto para os estudantes. Expandir nosso conhecimento sobre esse possível é, ao mesmo tempo, gratificante e estafante. Nunca se está pronto, sempre se pode fazer melhor dentro das limitações às quais somos submetidos.

Não pretendo dizer que o conhecimento da filosofia dos filósofos é secundário ou sem sentido, apenas que esse conhecimento não faz sentido para a maioria dos estudantes dentro do contexto escolar, centrado no saber-conteúdo. Porém, essa experiência permite perceber o interesse suscitado entre os estudantes por conhecer esses filósofos no momento em que eles podem lhes dizer algo de útil para melhor entenderem a si mesmos e ao mundo no qual estão inseridos. Sobretudo, como o professor lhes estimula, buscar soluções para os problemas que eles viveram, vivem e com os quais não se conformam.

Essa experiência é mutante, nessa fórmula narrada é a sua última forma. Para, a seguir, receber novos contornos. A inclusão da tecnologia facilita o processo, além de dinamiza-lo mais. O uso de uma sala virtual não significa que a disciplina seja ofertada à distância, tampouco semipresencial. Apenas se utiliza como meio de se coordenar melhor o trabalho cotidiano.

Uma limitação complexa está na diversidade de situações socioeconômicas dos estudantes como acesso a internet etc. aspecto ao qual o professor de filosofia fica limitado a políticas para fora da esfera da relação ensino-aprendizagem.

Por fim, pretendi reafirmar o papel da filosofia na formação como instrumento e habilidade mais do que como conteúdo.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. A escola perfeita. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Histórias para o rei. 4a ed. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.22-23. [ Links ]

FILOSOFIA africana. Disponível em https://filosofia-africana.weebly.com. Acesso em: 04 ago. 2018. [ Links ]

FILOSOFIA: um guia para felicidade. Direção Celia Lowenstein. Produção BBC, 2000, DVD. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Ensinar exige estética e ética. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Extensão e invasão cultural. In: FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. pp. 25-37. [ Links ]

KONDER, Leandro. Razão dialética. In: HÜHNE, Leda Miranda (Org.). Razões. Rio de Janeiro: Uape/SEAF, 1994. p. 45-66. [ Links ]

PENHA, João da. O que é existencialismo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. [ Links ]

PODER além da vida (Peaceful Warrior). Direção Victor Salva. Produção Sobini Filmes, 2006. [ Links ]

ROCHA, Ruth. Quando a escola é de vidro. In: ROCHA, Ruth. Este admirável mundo louco. São Paulo: Salamandra, 2002. [ Links ]

RUIZ, João Álvaro. Estudo pela leitura trabalhada. In: RUIZ, João Álvaro. Metodologia Científica: guia para eficiência nos estudos. São Paulo: Atlas, 1982. p. 34-47. [ Links ]

SANTOS, Milton. Deficientes cívicos. In: Brasil 500, Folha on line. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_3_9.htm Acesso em: 04 ago. 2018. [ Links ]

SUCHODOLSK, Bogdan. Educação voltada para o futuro e a perspectiva de um sistema social à escala humana. In: GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2003. [ Links ]

Recebido: 10 de Fevereiro de 2019; Aceito: 20 de Dezembro de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Olivia Maria M Horta. E-mail: oliviahorta@yahoo.com.br.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons