SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue3INTERACTIVE VIRTUAL CONVERSATIONS IN A HYBRID MENTORING PROGRAM: THEMES TREATED AND APPROACHES ADOPTED OF EXPERIENCED MENTOR TEACHERSAFRICA AND AFRICANS IN TEXTS AND IMAGES OF THE MAGAZINE EU SEI TUDO (I KNOW EVERYTHING) (1917-1958) author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.3 Campinas July/Sept 2020  Epub June 27, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i3.8655293 

ARTIGO

TELETANDEM COMO “TERCEIRO ESPAÇO” NO DESENVOLVIMENTO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

TELETANDEM AS “THIRD SPACE” IN FOREIGN LANGUAGE TEACHER DEVELOPMENT

TELETANDEM COMO "TERCER ESPACIO" EN EL DESARROLLO DE PROFESORES DE LENGUAS EXTRANJERAS

Rozana Aparecida Lopes Messias1 

João Antonio Telles2 

1Doutora em Educação - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Assis, SP - Brasil. Professora assistente - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Assis, SP - Brasil. E-mail: romessias@assis.unesp.br

2Doutor em Lingüística Educacional - Ontario Institute for Studies in Education (OISE) - University of Toronto, Canadá. Pós-Doutor - Université Charles-de-Gaulle, Lille III, França. Professor Adjunto, Livre-Docente - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Assis, SP - Brasil. E-mail: joaotelles@icloud.com


RESUMO

O teletandem possibilita ao licenciando em Letras o contato intercultural com um estrangeiro. Nesse espaço virtual e síncrono, via webcam, o sujeito ora ensina sua própria língua, ora aprende a língua materna ou de competência de seu parceiro de teletandem. Neste artigo, argumentamos (a) que o teletandem pode ser considerado como um terceiro espaço ou um contexto tecnológico híbrido e (b) que esse contexto, além de desenvolver a competência oral na língua-alvo, pode suscitar reflexões em alunos de Letras acerca da pedagogia de línguas estrangeiras. Acreditamos que tais características sejam facilitadoras do desenvolvimento profissional de futuros professores de línguas. Objetivamos investigar: (a) como esse contato intercultural online mobiliza o comprometimento do futuro professor de língua estrangeira com sua própria formação e (b) como as atividades de mediação (realizadas após as interações em teletandem) funcionam como deflagradoras de processos de reflexão em alunos de Letras sobre o ato de ensinar e aprender línguas estrangeiras. O estudo se desenvolveu tendo como cenário uma parceria entre uma universidade brasileira e outra mexicana. Uma metodologia qualitativa crítica foi usada para a análise das gravações de sessões de mediação em grupo, das quais participaram estudantes de Letras, futuros professores de português/espanhol. Os resultados da análise apontam para as características do contato intercultural online via teletandem. Se bem articuladas pelo educador de professores, elas trazem o potencial de teorização e de observação crítica das próprias ações dos alunos como professores de línguas estrangeiras, em processo de formação inicial.

PALAVRAS-CHAVE: de professores de línguas; Teletandem; Reflexão sobre a prática; Terceiro espaço

ABSTRACT

Teletandem enables future teachers of foreign languages the intercultural contact with a foreigner. In this virtual synchronous space via webcam, a person teaches his/her own language, or learns the mother tongue or language of competence of his/her teletandem partner. In this article, we argue (a) that the teletandem can be considered as a third space or a hybrid technological context; and (b) that, in addition to developing oral competence in the target language, this context can provoke future teachers' reflections on the pedagogy of foreign languages. We argue that both characteristics facilitate the professional development of future language teachers. We aim to investigate: (a) how this online intercultural contact mobilizes the commitment of the future foreign language teacher with his/her own professional training, and (b) how mediation activities (that follow the teletandem interactions) function as triggers of reflective processes on teaching and on learning foreign languages. The study was based on a teletandem partnership between a Brazilian and a Mexican university. We adopted a critical qualitative approach to the analyses of audio-recordings of group mediation sessions in which future Portuguese/Spanish teachers participated. The results of the analyses describe the characteristics of the online intercultural contact via teletandem. Although well articulated by the teacher educator, they bring the potential of theorizing and of critical observation of the students' own actions as teachers of foreign languages who are engaged in the process of their professional development.

KEYWORDS: Language teacher training; Teletandem; Reflection on practice; Third space

RESUMEN

El teletandem posibilita al licenciando en Letras el contacto intercultural con un extranjero. En este espacio virtual y sincrónico, vía webcam, el sujeto enseña su propia lengua, y aprende la lengua materna o de competencia de su compañero de teletandem. En este artículo, argumentamos (a) que el teletandem puede ser considerado como un tercer espacio o un contexto tecnológico híbrido, y (b) que este contexto, además de desarrollar la competencia oral en la lengua objetivo, puede suscitar reflexiones en alumnos de Letras acerca de la cuestión pedagógica de lenguas extranjeras. Creemos que tales características son facilitadoras del desarrollo profesional de futuros profesores de idiomas. Es nuestro objetivo investigar: (a) cómo este contacto intercultural en línea moviliza el compromiso del futuro profesor de lengua extranjera con su propia formación y (b) cómo las actividades de mediación (realizadas después de las interacciones en teletandem) funcionan como deflagradoras de procesos de reflexión en alumnos de Letras sobre el acto de enseñar y aprender lenguas extranjeras. El estudio se desarrolló teniendo como escenario una asociación de teletandem entre una universidad brasileña y otra mexicana. Una metodología crítica cualitativa se utilizó para el análisis de las grabaciones de las sesiones de mediación hechas en grupo y que tuvieron la participación de los estudiantes de Letras, futuros profesores de portugués / español. Los resultados del análisis señalan para las características del contacto intercultural en línea vía teletandem. Si bien articuladas por el educador de profesores, ellas traen el potencial de teorización y de observación crítica de las propias acciones de los alumnos como profesores de lenguas extranjeras, en proceso de formación inicial.

PALABRAS CLAVE: Formación de profesores de idiomas; TELETANDEM; Reflexión sobre la práctica; Tercer espacio

1 INTRODUÇÃO

No âmbito dos cursos de licenciatura, muitas vezes, em meio a desencontros a respeito do papel da teoria e da prática, problemas na interpretação de diretrizes curriculares e crenças na superioridade desta ou daquela área do conhecimento, perde-se o foco central da licenciatura - a formação de professores. Cria-se, assim, um distanciamento entre aquilo que se aprende na universidade e os enfrentamentos que esse futuro professor vivenciará, no dia a dia de sua ação docente. Sobre tais aspectos já nos advertia Saviani (2009), ao retratar a formação de professores no Brasil. Essas e outras questões têm suscitado diversas discussões nas instâncias acadêmicas e algumas transformações, com vistas à valorização da licenciatura.

Nesse sentido, os cursos de Licenciatura em Letras da UNESP têm passado por readequações, conforme documentam, por exemplo, as Diretrizes para os Cursos de Graduação da UNESP3, um estudo sobre a estrutura curricular das três Licenciaturas em Letras dessa universidade. Um dos objetivos de tal análise é buscar uma proposta direcionada à articulação entre essas licenciaturas. Nossa experiência como docentes e membros de colegiados universitários nos mostra que, depois de 2012, a discussão sobre a estrutura do curso de Letras, ao qual nos filiamos, vai muito além de uma proposta de readequação. No momento, de alguma maneira, todos concordam que é necessário repensar o currículo dos cursos, de forma a atender às demandas que afloraram com a pós-modernidade.

Neste artigo, tomamos esse quadro contextual de formação profissional do aluno de Letras, mais especificamente o desenvolvimento do professor de língua estrangeira. Nele, focamos o teletandem como uma atividade da graduação que mobiliza a inserção do graduando de Letras em ações efetivamente pedagógicas. Entendemos que essas esferas, externas à sala de aula, são deflagradoras de reflexões por parte dos futuros professores de línguas estrangeiras e essenciais para sua formação docente. Tais experiências podem, frequentemente, levar ao enfrentamento de situações concretas da prática que, muitas vezes, acaba restrito aos momentos nos quais o discente cumpre suas horas de estágio obrigatório, nem sempre com adequada supervisão.

Diferentemente dos projetos nos quais os estudantes de Letras adentram às salas de aula, ministrando classes de línguas ou auxiliando professores no dia a dia da escola da Educação Básica, no Projeto Teletandem Brasil: Línguas estrangeiras para todos (TELLES, 2006), os estudantes ingressam em um espaço propiciado pela tecnologia computacional e pela internet. Embora tais interações não possibilitem ao aluno de Letras o contato com uma sala de aula, conforme expusemos, elas são espaços de contatos interculturais online (TELLES, 2015), um “terceiro espaço” (BHABHA, 1998), no qual os discentes brasileiros se conectam com estudantes estrangeiros que desejam aprender português e, em troca, propõem-se ensinar sua língua de proficiência ou materna, via aplicativo online de webconferência, como o Skype ou Zoom4, por exemplo. Encerrada a interação de teletandem, normalmente, o professor responsável pelo grupo realiza atividades de mediação: conversas reflexivas e/ou escrita de diários reflexivos em plataforma digital, nas quais os alunos escolhem e discutem pontos que lhes foram relevantes, durante suas interações com seus parceiros, para o ensino de sua língua e a aprendizagem da língua-alvo.

Nesse sentido, acreditamos que o contexto interacional e virtual estabelecido entre os interagentes, ora atuando como aprendizes, ora como professores, propicia ao estudante do curso de Letras diferentes oportunidades de reflexão acerca (a) do conteúdo que se ensina e que se aprende (português e uma língua estrangeira), assim como (b) do conteúdo da metodologia de se ensinar essas línguas. Nosso ponto de partida, para o presente estudo, foi uma parceria estabelecida entre a nossa universidade brasileira e uma universidade mexicana. Nesse contexto, constatamos momentos nos quais as práticas de teletandem desencadeiam reflexões dos estudantes de Letras sobre a prática do professor de línguas estrangeiras.

Assim, desenvolvemos nossa investigação a partir da consideração do potencial das práticas de teletandem para a formação de futuros professores de idiomas. O foco deste artigo será, portanto, sobre os processos de reflexão sobre ensinar e aprender línguas em teletandem que são vivenciados por graduandos em formação inicial para a docência. Procuramos, por conseguinte, responder às seguintes perguntas de pesquisa: a) como esse contato intercultural online mobiliza o envolvimento do futuro professor de língua estrangeira com sua própria formação? e b) como as atividades de mediação das sessões de teletandem funcionam como deflagradoras de processos de reflexão sobre o ato de ensinar e aprender línguas estrangeiras em alunos de Letras?

Para responder às duas perguntas acima, iniciamos o artigo com um breve panorama sobre os princípios da prática de teletandem. Em seguida, como fundamentação teórica, descrevemos as características da sessão de mediação de teletandem e o papel que nela tem o professor-mediador. Concluímos nossa fundamentação teórica inspirados nas proposições de Bhabha (1990), autor indo-americano, pesquisador dos estudos pós-coloniais e pós-estruturalistas, apresentando a noção de “terceiro espaço” no desenvolvimento profissional do professor de línguas estrangeiras. A metodologia qualitativa do estudo é então apresentada, seguida dos instrumentos geradores dos dados do estudo - narrativas sobre as interações, escritas em diários produzidos durante os processos de mediação das sessões de teletandem. Na análise dessas narrativas, produzidas por estudantes de Letras (português/espanhol), observamos marcas de suas reflexões sobre a prática docente.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Aprendizagem em tandem, teletandem e formação docente

O projeto Teletandem teve início em 2006, instituindo parcerias entre estudantes universitários brasileiros e de universidades estrangeiras. O teletandem configura-se como um contexto de aprendizagem autônoma no qual cada um ensina sua língua de proficiência e aprende a língua do outro (TELLES, 2009; TELLES; VASSALO, 2009). De acordo com esses autores, tal prática surge a partir dos pressupostos da Aprendizagem em Tandem (BRAMMERTS, 2002) e de seus princípios fundamentais: autonomia, reciprocidade, separação entre as línguas.

As características intrínsecas ao teletandem, herdadas de seu precursor tandem, estão voltadas para a reciprocidade nas relações e para autonomia do aprendiz. Consideramos que essas atitudes representam traços relevantes a serem desenvolvidos em um futuro professor. O cenário cria desafios para o professor em processo de formação inicial. Ele sai da zona de conforto do papel de estudante, como aquele que recebe os direcionamentos do professor, para o papel de um aprendiz que deve decidir o que é mais relevante em seu processo de aprendizagem. Da mesma forma, é compelido a sensibilizar-se para as necessidades de aprendizagem de seu parceiro e a buscar estratégias para auxiliá-lo.

2.2 A sessão de mediação de teletandem e o papel do professor-mediador

A sessão de mediação de teletandem, de maneira geral, acontece logo em seguida às interações e aos diários de interação; no caso do presente estudo, são escritos e postados em portfólios (Google Sala de Aula), em data indicada pelo mediador ou mediadores. Frequentemente, a sessão de mediação tem duração que varia entre quinze a trinta minutos e é conduzida por um professor-mediador, especificamente preparado para tal fim. A mediação objetiva dar assistência linguística, cultural e interacional ao aprendiz de teletandem. Ela não possui caráter prescritivo, mas reflexivo. Com base em conceitos socioconstrutivistas de zona de desenvolvimento proximal e andaimes (“scaffolding”), o papel do professor-mediador (o parceiro mais experiente e informado) é conduzir a sessão de teletandem, suscitando questionamentos e reflexões em três esferas - a linguística (O que vocês aprenderam da língua-alvo, hoje?), a cultural (O que vocês aprenderam sobre os modos de vida, as práticas sociais e as informações sobre o país de seu parceiro, hoje?) e interacional (Como foi a relação e a colaboração entre você e seu parceiro, hoje?).

Apesar de presentes no decorrer das interações, os mediadores não fazem interferências enquanto elas ocorrem. Observações e intervenções são feitas, de preferência, no momento subsequente das mediações por eles ministradas. Elas objetivam deflagrar reflexões acerca das ações individuais de cada interagente de teletandem, os quais, no caso deste estudo, eram professores de língua espanhola em formação, vinculados à universidade brasileira. No caso específico dos processos de formação inicial de professores, o mediador deve estar atento à postura do estudante frente ao “outro", tanto nos aspectos linguísticos quanto culturais e pedagógicos.

Nesse sentido, Salomão (2012) ressalta que o mediador, no contexto teletandem, é visto “como uma pessoa que se insere na relação de ensino e aprendizagem colaborativos da parceria de interagentes para auxiliá-los a refletir sobre sua própria prática enquanto aprendizes da língua do outro e professores de sua própria língua.” Enfatiza a autora:

O termo mediador é usado, desse modo, por estar intimamente ligado às ideias de Vygotsky (1994) em sua teoria social do conhecimento, que expõe a possibilidade de o homem, através de suas relações sociais, por intermédio da linguagem, constituir-se e desenvolver-se como sujeito. (FREITAS, 2000, apudSALOMÃO, 2012, p. 20).

Assim, almejamos ampliar a compreensão do potencial das interações e mediações como espaço desencadeador de reflexões sobre a prática de ensinar e aprender línguas, sobretudo para graduandos de licenciatura em Letras. No bojo dessas ideias, as questões expressas a respeito do processo de reflexão, necessárias para a resolução de problemas, vão ao encontro de nosso intuito, neste texto. Nele, procuramos pensar o contexto das interações de teletandem como mote deflagrador da reflexão crítica do discente em formação inicial a propósito de sua própria formação profissional. Essa conjuntura agrega diversos personagens: estudantes com diferentes nacionalidades, histórias de vida e objetivos para aprender, mediadores (professores ou alunos) também movidos por interesses diversos, mas com foco no sucesso da aprendizagem das parcerias, todos manejando instrumentos tecnológicos em um espaço que não é a sala de aula (nem da universidade e nem da educação básica). A junção de todos esses atores que se organizam para ensinar e aprender, no nosso entender, configura um processo de “hibridização” e pode qualificar o teletandem como “um terceiro espaço” no âmbito da formação do docente de línguas.

2.3 A noção de “terceiro espaço” na formação do docente de línguas

A ideia de “terceiro espaço” é baseada nas proposições de Bhabha (1990), autor indo-americano, pesquisador dos estudos pós-coloniais e pós-estruturalistas. Bhabha, em sua obra “O Local da Cultura”, faz uma intrincada análise de textos literários e documentos do governo britânico, da época colonial na Índia. Nesse trabalho, o autor, na busca da definição das identidades, ultrapassa a ideia do lugar e reforça o pressuposto dos “lugares”. Para além dos lugares, no diálogo das diferenças, os “entre-lugares”:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originarias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 1990, p. 16).

No que tange à ideia de hibridismo nos embates identitários pós-coloniais, Bhabha (1990, p. 17) reforça que, da perspectiva das minorias, articular socialmente as diferenças é altamente complexo. Por meio dessa articulação é que se tenta conferir autoridade aos “hibridismos culturais que emergem” - para ele, nos processos de transformação social, para nós, nas relações consigo e com o outro, no espaço do teletandem. Os estudos de Bhabha têm sido retomados, nesse sentido, por estudiosos da educação, e seus conceitos de “entre-lugares”, “hibridismos”, “entre-tempos” são ressignificados, quando confrontados com a realidade educacional.

Zeichner (2010), por exemplo, ao rejeitar a binaridade teoria x prática, desloca o conceito de entre-lugar para a concepção de “terceiro espaço”, lembrando que “a ideia de um terceiro espaço se origina da teoria do hibridismo e reconhecendo que indivíduos extraem, de múltiplos discursos, elementos para fazer um sentido de mundo.” (ZEICHNER, 2010, p. 487). Esse hibridismo vem à tona quando as diferenças se manifestam em um mesmo espaço e pode eclodir em contextos em que o indivíduo (aluno) procura, consciente ou inconscientemente, construir a sua identidade docente.

Ao retratar a criação de um terceiro espaço na formação docente, materializada na inserção dos graduandos de cursos de licenciatura no espaço escolar, Zeichner ressalta a relevância de se oportunizar aos estudantes contextos nos quais eles possam vivenciar demandas da profissão, de forma sistemática e concreta. Tais ações são como eventos que transcendem o (muitas vezes, superficial) estágio supervisionado.

Para o autor, elas representam um terceiro espaço, no qual o binômio teoria e prática se desmaterializa. De acordo com ele, “os terceiros espaços reúnem o conhecimento prático ao acadêmico de modos menos hierárquicos, tendo em vista a criação de novas oportunidades de aprendizagem para professores em formação.” (ZEICHNER, 2010, p. 487).

Para melhor compreender a configuração do terceiro espaço no desenvolvimento do professor, proposto por Zeichner, reportamo-nos a Saviani (2009), que faz alusão aos modelos dicotômicos de formação docente nos quais ou se valorizam os conteúdos teóricos que devem ser dominados pelo futuro professor (“modelo dos conteúdos culturais-cognitivos”) ou os conteúdos didático-pedagógicos da prática docente (“modelo pedagógico-didático”). Felício (2014), ao tratar do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), projeto de formação inicial de professores financiado pela CAPES que coloca o estudante na realidade da Educação Básica de modo diferenciado, define cada uma dessas possibilidades como primeiro espaço (teoria) e segundo espaço (prática). Para o autor, o PIBID é um terceiro espaço, configurado como um contexto no qual não há esse olhar dicotômico sobre a formação do docente. No caso específico do presente estudo, concebemos o cenário criado pelo projeto Teletandem como um espaço no qual a separação entre teoria e prática desaparece e dá lugar a uma ação de ensino/aprendizagem contextualizada. Nessa ação, o que e como ensinar - o que e como aprender manifestam-se espontaneamente e, com o auxílio de um formador (professor-mediador de teletandem), podem tornar-se pauta para reflexão e contribuir com a formação efetiva do professor de línguas. Cremos, assim como Zeichner (2010), que, nessas ocasiões, teoria e prática imbricam-se de maneira significativa, desvelando conhecimentos que se materializam e se tornam significativos, por se constituírem como produto da experiência vivenciada pelos envolvidos.

Nossa crença sustenta-se no fato de que, apesar de o teletandem envolver um cenário tecnológico totalmente dependente do uso do computador, da internet e de aplicativos online, essa prática recria de forma diferenciada a relação professor x aluno, em uma associação em que ambos são aprendizes. O universo criado no teletandem considera o ato de ensinar/aprender e a relação com o outro, de maneira concreta e síncrona. Acreditamos que essa relação, desde que acompanhada por um mediador experiente em formação de professores, tem o potencial de gerar, nos estudantes, reflexões sobre a atuação do professor de línguas.

Em termos de processo ensino/aprendizagem/formação de professor, as práticas de teletandem podem representar, para os cursos de formação de professores de línguas, uma esfera na qual o discente dialoga com seus próprios conhecimentos. Assim, conforme já expusemos, o presente artigo busca compreender: (a) como o teletandem se constitui como um cenário deflagrador de reflexões e (b) em que medida pode potencializar e auxiliar na construção de saberes empíricos, teóricos e metodológicos importantes para a sua atuação futura.

3. METODOLOGIA

A metodologia utilizada para o desenvolvimento desse trabalho pautou-se nos pressupostos da pesquisa qualitativa crítica (CARSPECKEN, 2011, p. 398-399). Esse autor defende que, numa perspectiva crítica, a metodologia “deve ser compreendida como falível e continuamente sujeita a revisões por meio do que é aprendido a partir de seu uso em pesquisa real.”

Essa forma de conceber a metodologia coaduna com a maneira como entendemos que deva ser conduzida a pesquisa em educação de línguas e formação de professores. Para estudar tal prática, a metodologia deve configurar-se como um caminho que permita repensar o objeto e repensar a própria trajetória. As ações realizadas junto aos professores em formação (e, também, aprendizes de língua espanhola), durante o presente estudo, visaram à criação de um espaço facilitador da autocompreensão da prática de ensinar. O estudo que ora apresentamos pode, então, ser revisto e repensado à luz de outras experiências. Estamos interessados, como formadores de professores e mediadores de teletandem, no impacto desse contato intercultural online sobre o desenvolvimento profissional do docente de línguas (português e espanhol).

3 .1 Contexto do estudo

As sessões de teletandem que originaram as reflexões postas no presente trabalho foram implementadas na universidade estrangeira parceira, em uma Mediateca (Centro de autoacesso) instalada em um Centro de Línguas dessa universidade. Essa Mediateca configura-se como um espaço de aprendizagem autônoma, direcionado a alunos de graduação, pós-graduação e funcionários da universidade interessados em aprender línguas estrangeiras. Os inscritos são orientados por assessores de línguas a desenvolver seu aprendizado autonomamente, respeitando-se sua forma de aprender e objetivos de aprendizagem. Do lado brasileiro, os interagentes da universidade brasileira eram alunos do curso de Letras (português/espanhol) e cumpriam as interações como horas de Laboratório de língua espanhola e AACC (Atividade Acadêmica Científica e Cultural). As interações ocorriam no período da tarde, fora dos horários de aula (manhã e noite).

Com acordo instituído desde 2011, essa parceria entre as duas universidades, a qual possui o intuito de propiciar experiências de aprendizagem autênticas a estudantes brasileiros e mexicanos, tem gerado outros estudos advindos de uma produtiva parceria investigativa5, entre os mediadores brasileiros e mexicanos, sempre com o objetivo de compreender o impacto da prática de teletandem na aprendizagem de português e de espanhol e potencializar esse aprendizado. O acompanhamento dos processos de mediação abriu possibilidades de relatar pontos de vista e embatê-los com outros diferentes, promovendo um diálogo que enriqueceu o debate sobre os temas observados pelos pesquisadores.

Para este trabalho, especificamente, adotamos o método de Estudos de Caso, pois o foco de observação e análise direciona-se, exclusivamente, para um caso específico, as sessões de mediação de teletandem entre a universidade brasileira e a estrangeira. Tendo em vista o potencial dessa modalidade investigativa para a área da educação, André (2013) esclarece que, no âmbito educacional,

os estudos de caso podem ser instrumentos valiosos, pois o contato direto e prolongado do pesquisador com os eventos e situações investigadas possibilita descrever ações e comportamentos, captar significados, analisar interações, compreender e interpretar linguagens, estudar representações, sem desvinculá-los do contexto e das circunstâncias especiais em que se manifestam. (ANDRÉ, 2013, p. 97).

O primeiro enfoque do estudo é sobre as ações desses futuros professores enquanto interagiam em sessões de teletandem. O segundo enfoque é dado às reflexões deflagradas sobre as práticas de ensinar e aprender línguas. Tais reflexões foram realizadas ou nas sessões de mediação que ocorriam logo após as sessões de teletandem ou nos diários de interação, nos quais os estudantes relatavam como fora sua interação.

3.2 Procedimentos de coleta e análise dos dados

As interações de teletandem, objeto deste estudo, aconteceram sistematicamente no ano de 2012 e 2018, entre os meses de setembro a novembro de 2012 e março a junho de 2018. Em ambas as ocasiões, foram feitas gravações em áudio das sessões de mediação, as quais, posteriormente, foram transcritas e se constituem nos dados focais do estudo aqui apresentado. A diferença entre as coletas é que, em 2018, além das transcrições das mediações, utilizamos dados retirados de diários produzidos pelos estudantes, após as interações, e postados na plataforma Google sala de aula.6

Em ambos os períodos, as parcerias foram reunidas uma vez por semana, totalizando dez semanas. Após cada sessão de interação, foram organizados momentos de mediação, espaço em que os professores envolvidos, entre os quais um dos autores do presente artigo, acompanhavam o andamento das sessões e buscavam formas de intervenção, por meio de perguntas, de comentários efetuados sobre as narrativas dos estudantes, orientações sobre como proceder para melhorar o desempenho como ensinador ou aprendiz. Tudo isso visava à potencialização do processo de ensino-aprendizagem no contexto síncrono on-line via Skype.

No presente estudo, serão analisadas transcrições de quatro sessões de mediação, selecionadas por comporem um banco de transcrições de um dos professores mediadores. Além dessas transcrições, servirão como base para a análise os diários produzidos por estudantes de um grupo que cumpriu suas atividades, durante o primeiro semestre de 2018.

Para a análise das mediações e dos diários de interação, foram efetuadas leituras sistemáticas e interpretativas, com o intuito de observar temas recorrentes referentes à reflexão, do discente, sobre sua própria ação como professor e como aluno. Foram observadas, também, as inserções do mediador direcionadas para a orientação e a reflexão sobre a prática de ensinar e aprender línguas. Procuramos cotejar esses dados com os aspectos teóricos a respeito da reflexão sobre a prática e a constituição do teletandem como um “terceiro espaço”.

4 OBSERVAÇÕES SOBRE OS DADOS

4.1 Ponderando sobre questões teóricas e aspectos de metodologia de ensino

O excerto de mediação a seguir retrata um processo no qual o discente de Letras pondera sobre questões teóricas da língua portuguesa e, também, sobre aspectos de metodologia de seu ensino.

PP - Então hoje eu falei com o .... e o bacana é que os alunos são bem interessados em aprender, só que hoje eu fiquei meio confusa, porque ele perguntou alguma coisa a... é nasal, é assim, daí vem aquela coisa da fonética, eu falei então eu não sei te explicar muito sobre isso. Mas assim na interação passada, por exemplo, eu acho que parecia uma tonta, porque a dúvida deles é em relação ao “r” que é completamente diferente, e ao som do “v” que não sai, eles não conseguem muito assim... Aí como eu vou explicar, aí eu falei assim pra minha parceira até esqueci de falar pra ele assim, mas olha, pensa que é uma abelhinha fazendo vuuuuuuuuu... assim e fica falando, aí tipo eles ficam reparando bem na boca, o que toca, como que é, porque eles querem aprender, mas assim foi meio que difícil assim.

PP - Mas é bacana de trabalhar, de trabalhar por causa do interesse, aí hoje eu até orientei, falei um pouco do Jorge Amado, que é um autor que eu gosto muito...

Esse trecho revela o aluno expondo questões que o intrigam, do ponto de vista da estrutura da língua, mais especificamente da fonética. Ao mesmo tempo, procura estratégias para auxiliar o interagente mexicano a superar uma dificuldade comum aos hispanofalantes, a pronúncia do som /v/ (fricativo labiodental sonoro) e posiciona-se positivamente frente à ação de ensinar o parceiro, na interação de teletandem. Nos excertos destacados, ressaltamos os momentos nos quais consideramos que o estudante de Letras reflete, primariamente, sobre a necessidade de "saber para poder ensinar". A interação online leva-o a enfrentar um problema de ensino/aprendizagem concreto, ele reconhece suas dificuldades - “eu não sei te explicar muito sobre isso”. Em outro momento, o mesmo aluno experimenta a sensação de auxiliar alguém a aprender - “é bacana de trabalhar”, “hoje eu até orientei”.

4.2 Para aprender, tem que querer e ter envolvimento

Outra questão que concerne à prática de ensinar algo a alguém pode ser notada no trecho “por causa do interesse”. Nessa afirmação, o estudante enfatiza o desejo de seu parceiro estrangeiro em aprender. Esse é, pensamos, um aspecto instigante no âmbito do processo de formação docente, pois a ideia de que os alunos da Educação Básica, na maioria das vezes, não têm interesse em aprender assombra os professores em formação inicial. Dessa forma, o ato de ensinar alguém que deseja aprender o conteúdo é um fato que estimula os licenciandos.

Zeichner (2010), ao discutir a questão da formação docente na universidade e a inserção dos estudantes no espaço das escolas, expressa que as universidades ainda permanecem como construtoras e disseminadoras do conhecimento. Trazendo para esse pensamento uma conotação positiva, podemos considerar que, quando os alunos são postos a refletir sobre seus processos de ensinar e aprender, eles mesmos podem tornar-se os construtores de suas teorias sobre ensinar e aprender. O espaço do teletandem oportuniza e instiga essas reflexões de construção de uma identidade docente e, apesar de sediado na universidade, é um espaço à parte.

Observando o próximo excerto, temos ratificada, novamente, a ideia de ter que saber para ensinar e o estímulo em aprender para tal:

EE - Falando com a... ela disse que um lugar do Brasil que ela quer conhecer é Minas. E coincidentemente eu vou pra lá semana que vem, e pra próxima semana ela disse que quer saber da minha viagem. Então, eu vou ter que falar com ela sobre Minas, então, eu vou ter que saber sobre Minas e explicar.

No diário de interação produzido por uma estudante, novamente, observamos reflexões sobre questões pedagógicas que remetem ao desejo de querer aprender e ensinar. A estudante espera que seu parceiro tenha referências sobre músicas e livros em espanhol e se sente frustrada pela “ignorância” dele, totalmente adepto da cultura norte-americana.

Basicamente falamos sobre músicas, mas ele não soube me passar nenhuma referência, porque só ouvia música internacional (estadunidense); também conversamos sobre livros, mas ele também não me indicou nenhum hispânico/espanhol; conversamos sobre memes também, mas, como em todas as outras tentativas, as referências dele não eram nacionais, e isso me causou um certo tédio. Não deixei que ele percebesse a minha frustração, afinal, para ele estava rendendo, mas, para mim... Tenho esperança que a próxima interação seja mais produtiva para ambos. (Diário de interação, J.)

Excetuando-se as questões ideológicas presentes nas observações da interagente brasileira, frisamos seu desejo de aprender e sua resiliência, ao avaliar que, apesar de sua atuação satisfatória no espaço destinado à língua portuguesa, seu parceiro não correspondeu a sua expectativa. Essa avaliação sublinha seu sentimento de cumprir o papel de ensinar: “Não deixei que ele percebesse a minha frustração, afinal, para ele estava rendendo, mas, para mim...” Esse espaço marcado pelas diferenças provoca a reflexão sobre o ensinar e o aprender. Nesse caso, a estudante de Letras avalia que não atingiu seus objetivos de aprendizagem, todavia, cumpriu o seu papel de professora, já que o parceiro estava aprendendo, de acordo com sua avaliação.

Conversamos muito sobre literatura de modo geral, e demos tarefas um ao outro para a próxima interação; ele me indicou um livro, cujo terminarei de ler essa noite, e eu indiquei o meu livro favorito: Navio Negreiro, e também Marcelino Freire e seu livro de contos: Contos Negreiros... espero que o XX tenha lido pelo menos um, afinal, combinamos assim o fazer. Estou ansiosa para a próxima interação, que acredito que será muito produtiva por conta das tarefas que combinamos de fazer. (Diário de interação, J.)

Mais uma vez a ação de organização pedagógica da interação motiva o planejamento, ponto essencial no processo de ensino/aprendizagem. Castro et al. (2008), ao tratar da relevância do planejamento na atividade docente, ressaltam que

o planejamento não deve ser usado como um regulador das ações humanas e sim um norteador na busca da autonomia, na tomada de decisões, nas resoluções de problemas e nas escolhas dos caminhos a serem percorridos partindo do senso comum até atingir as bases científicas. (p. 60).

O contexto criado no teletandem propulsiona, para o licenciando, a necessidade do planejar para o alcance de objetivos, no caso, o sucesso da interação. Os trechos abaixo vão ao encontro desse pensamento:

Para a próxima interação, trocamos vários nomes de cantores que gostaríamos que o outro escutasse e deixamos algumas "tarefinhas", como, por exemplo, descobrir a origem de algumas palavras que apenas falamos, mas não sabemos o porquê. (Diário de interação, S.)

Por fim, para a próxima semana, combinamos de falar sobre política, visto que é ano de eleição em ambos os países. (Diário de interação, A.)

No final da conversação a gente elegeu um tema pra gente falar na interação de hoje... daí a gente tinha falado sobre algumas expressões informais... daí eu trouxe algumas gírias e ele me falava o que correspondia no espanhol... falamos sobre alguns falsos amigos... (...) assim, eu tinha preparado bastante (...) (Diário de interação, S.)

4.3 A emersão de questões políticas e linguísticas

Outro elemento que observamos é como o teletandem propicia, para o estudante de licenciatura em Letras, o envolvimento no universo necessário de conscientização sobre a língua e a realidade social e cultural do país. Nos trechos de diários de interação abaixo, verificamos o compromisso em tratar de questões linguísticas:

Conversamos sobre nossas maiores dificuldades na pronúncia da língua espanhola/brasileira, quais palavras e letras que nos fazem "travar”. (Diário de interação, A.)

Além disso, falei sobre a variação linguística que existe no Brasil (...) (Diário de interação, G.)

Comentamos sobre alguns falsos amigos, como "molestar" e "tirar", também sobre algumas gírias como "chingón. (Diário de interação, F.)

O bacana é que XX costuma me corrigir sempre e eu também corrijo ele, então estamos a todo momento falando sobre gramática e sobre pronúncia. (Diário de interação, S.)

É importante o fato de que um professor de língua deve ter habilidade para refletir sobre a língua como sistema, uma atividade até certo ponto técnica. Importante, também, é a necessidade de compreensão de questões políticas e culturais que impactam na organização social, na qual a prática docente se encontra inserida. Essa é, nos dias atuais, uma qualidade que torna o professor de línguas um agente de formação mais consciente de seu papel e da organização institucional que o rodeia, tanto na escola quanto na sociedade, de maneira geral.

Para além de observar essas questões, necessárias a um professor de línguas, retomamos Nosella (2005), que, ao fazer um retrospecto do significado de engajamento político visto pelo viés da dicotomia “educador-político” e “educador-técnico”, sobretudo na década de 80, no contexto educacional brasileiro, relembra as opiniões de diversos pesquisadores (Saviani, Melo e, inclusive, ele mesmo). Nesse ínterim, enfatiza o pensamento de Gramsci como influenciador da opinião acerca do posicionamento político necessário aos educadores e ressalta a importância de revisão da leitura dos escritos desse autor. Para Nosella, o educador do século XXI “precisa ainda defender a escola como um sistema permanente, orgânico, cujos efeitos positivos são de longo alcance, superando a necessidade dos projetos especiais de caráter político-eleitoral.” (NOSELLA, 2005, p. 234).

Seguindo esse raciocínio, consideramos o teletandem como um espaço que abre a oportunidade de pensar em questões incomuns nas salas de aula de línguas estrangeiras. Temas necessários de serem pensados, em um momento difícil no contexto brasileiro, por um lado, quando uma censura8 explícita assola o ambiente escolar e, por outro, uma ditadura disfarçada de democracia paira sobre as instituições e a realidade brasileira, em pleno século XXI. Retratamos, abaixo, temas diferentes daqueles tradicionais dos manuais de línguas, os quais surgem naturalmente no diálogo entre estudantes, em busca da compreensão da cultura e dos modos de viver uns dos outros.

Por fim, para a próxima semana combinamos de falar sobre política, visto que é ano de eleição em ambos os países. (Diário de interação, J.)

Falamos sobre o desastre de Mariana, poluição, feminismo e assédio, perguntei a ela o que os homens faziam, o que falavam ou gestos que usavam, quando assediavam uma mulher, e ela me disse que eles falavam entre os dentes ou assoviavam, como no Brasil. (Diário de interação, F.)

Conversamos muito sobre religião, pois XX está no mestrado e sua tese está pautada numa análise de como as obras religiosas, mais especificamente as produzidas pela igreja evangélica Universal do Reino de Deus, têm influenciado positiva e/ou negativamente a nação brasileira, o que me pareceu muito interessante, pois sou evangélica e trocamos muitas informações sobre dada religião. Para minha surpresa, XX não é evangélico, mas sim budista, o que rendeu mais assunto ainda, pois ambas as religiões creem em uma força maior, entretanto, a maneira como essa força maior é caracterizada e seus respectivos rituais as diferem, e as tornam únicas. (Diário de interação, J.)

Depois disso, XX me disse que tinha um trabalho sobre o período da ditadura militar brasileira para fazer e se eu poderia ajudar, explicando como vemos esse período hoje em dia; durante nossa conversa, chegamos até os dias de hoje e expliquei para XX como eu entendia o que estava acontecendo no Brasil, atualmente. Combinamos de falar sobre a revolução dos estudantes do México em 1968, na próxima interação. (Diário de interação, E.)

O que expusemos são exemplos de temas que tocam em questões, às vezes, controversas, tais como o papel das mulheres na sociedade, as diferenças entre gêneros, o respeito à diversidade de crenças religiosas, a exploração desmedida da natureza e das pessoas, a necessidade de conscientização sobre a política do próprio país etc. Nesse sentido, mais uma vez, ao pensar no professor como um agente que pode instigar a transformação social, mesmo que em pequenos atos, o teletandem pode ser tomado como esse terceiro espaço que congrega elementos educacionais (pessoas, lugares, conhecimentos teóricos) e morais (posicionamentos políticos sobre a vida, de forma geral), os quais vão desde o senso comum até as formas mais elaboradas e fundamentadas de pensamento. Esse fato faz com que o ato de ensinar línguas possa ser ressignificado como uma ação política de formação capaz de conscientizar: “Se a mecânica se encarrega cada vez mais dos trabalhos fadigosos, a escola precisa encarregar-se de ensinar ao homem como comandar as máquinas e como usufruir solidariamente os bens da vida.” (NOSELLA, 2005, p. 236).

4.4 Autoavaliação do próprio desempenho

Outra questão que fica latente no processo de mediação é a autoavaliação que os estudantes, se estimulados, fazem de seu desempenho. O evento de serem colocados em um espaço de uso da língua que aprendem na graduação é o mote dessa reflexão.

SS - Na semana passada eu estava fazendo muita confusão... eu fiquei nervosa e comecei a misturar português e espanhol (...)

EE - Eu percebi assim, vícios de linguagem. Quando eu vou falar o espanhol, é assim (...) tem coisas muito do português ainda, mas mesmo assim tem coisas muito grudado, as palavras eu troco mais (...)

EE - E o meu parceiro do ano passado ele ajudou bastante. Ele falava português muito bem, né, eu tinha mais dificuldade que ele, então, eu sempre trazia o que eu ia passar no PELT, algum conteúdo pra ele me ajudar a montar.

No caso específico do último excerto, além da consciência das próprias dificuldades, o graduando relata o fato de buscar, no parceiro de teletandem, auxílio para suas aulas em um projeto no qual estudantes de Letras podem ministrar classes de línguas estrangeiras para a comunidade de uma pequena cidade do oeste do estado de São Paulo (PELT- Projeto de Ensino de Línguas de Tarumã). Nesse caso, além das dificuldades que sente como falante de língua estrangeira, o estudante pode procurar auxílio para aquilo que deseja ensinar da língua estrangeira.

De acordo com Zeichner, a questão de se repensar a formação inicial de professores tem ganhado enfoque no contexto educacional americano. O autor reforça que usa “o conceito de ‘terceiro espaço’ como uma lente para discutir vários tipos de cruzamentos de fronteira entre universidade e escola atualmente em desenvolvimento em programas de formação de professores nos Estados Unidos.” (ZEICHNER, 2010, p. 486). Para nós, o teletandem, quando praticado por estudantes de Letras, que aprendem/ensinam línguas, é um “cruzamento” entre o currículo da universidade e a prática do professor que atuará na Educação Básica.

3.5 Mediador articula o contexto para reflexão por meio de perguntas e orientações deflagradoras

Conforme ressaltamos em diversos momentos, para que se construa no âmbito da mediação um cenário favorável à reflexão sobre a própria formação, o mediador deve focalizar e instigar o estudante a pensar sobre isso. Observamos, nos excertos seguintes, o mediador empenhado em criar contextos que favoreçam a reflexão dos alunos sobre o aprendizado, de modo geral.

EE - A gente começou conversando assim, eu falava em espanhol e ele respondia em espanhol, daqui a pouco eu falava português e ele respondia em espanhol, entendeu, né... a gente não conseguiu dar um direcionamento focado no português só ou só pro espanhol. A gente falava e de repente eu tava falando em espanhol e ele português.

Mediador - E como você avalia isso?

Mediador- (...) mas o que você tem tirado do teletandem? Tem servido para alguma coisa?

NN - O que eu mais tô mais percebendo é que eu preciso aprender a falar direito, porque eu tô com a impressão de que eu não tô, até no dia que você deu a prova eu ainda brinquei: espanhol, volte quatro anos, porque eu vou ter que começar tudo de novo.

Mediador- Quais são os impactos da prática de teletandem nas suas práticas docentes? (mediador questionando uma aluna que já exerce a função de professora).

Mediador - Você pode conversar com ele e depois combinar como se corrigir, como um ajudar o outro, você pode escrever no chat e depois salva, ou vocês podem conversar e a gente gravar, escrever, anotar no caderno, tem gente que prefere anotar, outros escrever no chat. Eu acho que vocês... o mais fácil é o chat, você escreve ali e depois você copia e cola no word. Assim já fica salvo o que você escreveu, o que ele escreveu... (mediador orientando o estudante a potencializar o processo de ensino e aprendizagem)

Mediador: Como vocês sentiram é, a... o lado de lá, o espanhol de vocês em relação... Como vocês conseguiram se comunicar bem? Tiveram dificuldades no espanhol?

Mediador: Aprenderam alguma coisa diferente? Sim ou não?

Mediador: Assim... isso é muito difícil, porque nem sempre existe uma equivalência... é muito complicado nesse campo das gírias... das expressões idiomáticas....tem muita coisa que não dá pra traduzir (...)

Ao refletir sobre suas dificuldades, expectativas e prática, o discente traz para si, também, a responsabilidade e o direcionamento de sua formação. Nesse sentido, somos partidários de Moita Lopes (1996), pois esse autor defendia, há mais de 20 anos, que uma formação de professores dogmática, a qual valoriza o treinamento do professor para a utilização de técnicas de ensino, não possibilita ao educador a reflexão sobre o contexto de ensino no qual se encontra inserido. Mais ainda, não instrumentaliza o professor a buscar as formas de intervenção nessa realidade. O teletandem, como um terceiro espaço, fora da sala de aula e das práticas convencionais de ensino de língua, em toda sua complexidade, pode levar o estudante de Letras a pensar, por si, em contato com o outro, em sua própria formação e atuação profissional. Essa reflexão pode acontecer facilitada por um mediador atento e interessado na formação de futuros professores de línguas, pois as reflexões devem ser problematizadas e reformuladas pelo próprio estudante.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossas inquietações acerca do potencial das práticas de teletandem para o processo de formação de professores de línguas, expressas no presente estudo, nos levam a finalizar esta breve discussão, retomando a ideia de espaços híbridos defendida por Zeichner (2010). Como vimos, para esse autor, o terceiro espaço compõe-se como um contexto híbrido, no qual a hierarquia entre teoria e prática inexiste. Esses espaços são importantes e necessários para a formação plena de professores.

No caso do teletandem, o hibridismo é constituído pelo fato de os licenciandos poderem conviver e dialogar com diversos segmentos importantes para sua formação como professores de língua estrangeira. De acordo com nossa análise dos dados, podemos elencar os seguintes: (a) o falante proficiente da língua objeto de seu aprendizado, (b) os aparatos tecnológicos que viabilizam e potencializam o ensino/aprendizagem de línguas, (c) um grupo de estudantes que, também, passa pela mesma experiência e (d) um professor mediador que, se focado no processo de formação de professores, pode fomentar esse desenvolvimento.

Da mesma maneira, a análise mostra que o espaço construído no contexto das práticas de teletandem viabiliza o diálogo entre essas diversas realidades que se entrecruzam, convivem e dialogam. Pela análise, podemos notar que, de um lado, há a emersão da reflexão sobre o outro, e todo o seu universo cultural e linguístico, possibilitada pela interação com o estrangeiro; alguém que traz suas expectativas, experiências, conhecimentos culturais e linguísticos para o diálogo. Por outro lado, o ato de ensinar a própria língua viabiliza o olhar para si mesmo, para sua língua, sua cultura, em um processo de autoconstrução de sua formação.

A respeito desse processo de elaboração das experiências, Larrosa (2004, p. 29) observa que, “se as experiências não se elaboram, se não adquirem um sentido, seja qual for, em relação à própria vida, não podem chamar-se, estritamente, experiências. E, por isso, não se podem transmitir.” A análise dos dados também sugere que, se acompanhado por mediadores atentos e abertos ao diálogo e com foco nos processos de formação docente, o teletandem institucional (integrado, semi-integrado ou não-integrado) pode constituir-se nesse espaço híbrido, viabilizado pela tecnologia e pela vontade de docentes formadores de professores.

O processo de pensar sobre sua relação com as línguas que aprende e ensina é parte do complexo contexto criado na sessão de teletandem e na seção de mediação, que se configura como um momento posterior à ação. A mediação, se tratada como uma ação com vistas à formação do docente de línguas, pode ser, também, o espaço da reflexão sobre a ação de ensinar e aprender. Um refletir compartilhado, o qual não se dá no vazio, “não é algo que acontece apenas em alguém; dá-se no encontro com outros, mediado pelos desafios que o encontro apresenta, que a vivência e a experiência consentem.” (SIQUEIRA; MESSIAS, 2008, p. 383).

O que apresentamos neste trabalho, embora seja ainda um estudo em estágio inicial, é o início de uma reflexão que fazemos como professores formadores os quais almejam transformações na área de ensino de línguas. A investigação aqui focalizada merece aprofundamentos, e novos grupos necessitam ser estudados, tendo em vista a configuração do teletandem como um “terceiro espaço” na formação de futuros professores de línguas. Esse é um dos nossos enfoques para futuras investigações, no âmbito do teletandem. Finalmente, acreditamos na importância de recriar e ampliar as possibilidades de campo, extrapolando a sala de aula e a escola, nos processos de formação inicial do docente de línguas.

REFERÊNCIAS

ANDRÉ, M. O que é um estudo de caso qualitativo em educação? Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 40, p. 95-103, jul./dez. 2013. [ Links ]

ARANHA, S.; CAVALARI, S. M. A. A trajetória do projeto Teletandem Brasil: da modalidade institucional não-integrada a institucional integrada. the ESPecialist, v. 35, n. 2, p. 183-201, 2014. [ Links ]

BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. [ Links ]

CARSPECKEN, P. F. Pesquisa qualitativa crítica: conceitos básicos. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 395-424, maio-ago., 2011. [ Links ]

CASTRO, P. A. P. P.; TUCUNDUVA, C. C.; ARNS, E. M. A importância do planejamento das aulas para organização do trabalho do professor em sua prática docente. ATHENA: Revista Científica de Educação, v. 10, n. 10, jan./jun. 2008. [ Links ]

FELÍCIO, H. M. dos. O PIBID como “terceiro espaço” de formação inicial de professores. Revista Diálogo Educacional (PUCPR. Impresso), v. 14, p. 415-434, 2014. [ Links ]

GHEDIN, E. L. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002. [ Links ]

GONÇALVES, S. C. L. Diretrizes para os Cursos de Graduação da UNESP: Letras: estudos resultantes do processo de articulação e integração dos cursos de Letras da Unesp. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Graduação, 2012. Disponível em: http://www.unesp.br/prograd . Acesso em: 19 set. 2019. [ Links ]

LARROSA, J. Algunas notas sobre la experiencia y sus lenguajes. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. São Paulo: Ed. Unesp, 2004. p. 19-34. [ Links ]

NOSELLA, P. Compromisso político e competência técnica: 20 anos depois. Educação e Sociedade. Campinas, v. 26, n. 90, p. 223-238, jan./abr. 2005. [ Links ]

SALOMÃO, A. C. B. A cultura e o ensino de língua estrangeira: Perspectivas para a formação continuada no projeto teletandem. 2012. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2012. [ Links ]

SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação. v. 14, n. 40, jan./abr. 2009. [ Links ]

SIQUEIRA, R. A. R.; MESSIAS, R. A. L. Reflexão e ações na formação e atuação do professor de língua portuguesa: o diálogo como condição de autoria na prática educativa. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 11, n. 2, p. 377-392, jul./dez. 2008. [ Links ]

TELLES, J. A. Teletandem: uma proposta alternativa no ensino-aprendizagem assistidos por computadores. In: TELLES, J. A. (Org.). Teletandem: um contexto virtual, autônomo e colaborativo para aprendizagem de línguas estrangeiras no século XXI. Campinas: Pontes, 2009. [ Links ]

ZEICHNER, K. Repensando as conexões entre a formação na universidade e as experiências de campo na formação de professores em faculdades e universidades. Educação, Santa Maria, v. 35, n.3, p. 479-504, set./dez. 2010. [ Links ]

3Diretrizes para os Cursos de Graduação da Unesp: Letras: estudos resultantes do processo de articulação e integração dos cursos de Letras da Unesp/Sebastião Carlos Leite Gonçalves. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Graduação, 2012.

4Aplicativo de webconferência similar ao Skype. Tem sido utilizado em diversas parcerias de teletandem, sobretudo na UNESP/Assis, por sua potencialidade no compartilhamento de tela e na possibilidade de gravação das interações.

5CARVALHO, K. C. H. P.; MESSIAS, R. A. L.; MENDOZA, A. Teletandem within the context of closely-related languages: a Portuguese-Spanish interinstitutional experience. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada (Online), v. 31, p. 711-728, 2015.

6Os dados foram obtidos mediante anuência expressa dos informantes, os quais leram e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, contendo pormenores do projeto que resultou neste texto.

8Projeto Escola sem partido

Recebido: 24 de Abril de 2019; Aceito: 18 de Dezembro de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Rony Farto Pereira. E-mail: ronyfarto@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons