SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue4ANALYTICAL METHOD IN HIGHER STUDIES: JOSÉ DE CALDAS AND RENÉ JUST HAÜY IN TEACHING PHYSICS (1790-1826)HAPPINESS IN GIF: MINIVIDEOS PEDAGOGIES IN INSTAGRAM STORIES LOOP author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.4 Campinas Oct./Dic 2020  Epub June 27, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i4.8655333 

ARTIGO

“MODOS DE EXISTÊNCIA” COMO DISPOSITIVO TEÓRICO-CONCEITUAL: CONTRIBUIÇÕES DE MICHEL FOUCAULT E ÉTIENNE SOURIAU À PESQUISA EDUCACIONAL

“MODES OF EXISTENCE" AS A THEORETICAL-CONCEPTUAL DEVICE: CONTRIBUTIONS OF MICHEL FOUCAULT AND ÉTIENNE SOURIAU TO EDUCATIONAL RESEARCH

"MODOS DE EXISTENCIA" COMO DISPOSITIVO TEÓRICO-CONCEPTUAL: CONTRIBUCIONES DE MICHEL FOUCAULT Y ÉTIENNE SOURIAU A LA INVESTIGACIÓN EDUCATIVA

Cintya Regina Ribeiro1 

1Pós doutora em Ciências Humanas e Sociais - Faculdad de Filosofía y Letras - Universidad de Buenos Aires FFyL/UBA). Buenos Aires, Argentina. Doutora e Mestre em Educação - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. Docente pesquisadora - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. E-mail: cintyaribeiro@usp.br


RESUMO

O estudo focaliza o campo da pesquisa educacional, discutindo a natureza do trabalho de pensamento mediante os problemas de investigação. A partir do pensamento de Michel Foucault e Étienne Souriau, aborda-se o dispositivo teórico-conceitual “modos de existência”, destacando como ambos os pensadores produzem a implicação entre um pensamento das artes e um pensamento filosófico no enfrentamento da questão em tela. O trabalho busca demonstrar como tal procedimento confere aos modos de existência uma condição estratégica de dispositivo teórico-conceitual, ultrapassando os territórios de problematização nos quais foram forjados. Foucault discute modos de existência a partir de uma problematização do sujeito e da experiência, sugerindo, no horizonte de uma dessubjetivação radical, uma experiência da impossibilidade. Souriau, por sua vez, discute modos de existência a partir de uma problematização da obra estética, evocando, no próprio trabalho dessa obra, os movimentos singulares de instauração e de inacabamento. Dado o tratamento de ambos os pensadores à questão dos modos de existência, torna-se possível empreender uma abordagem de natureza indissociavelmente política, ética e estética, aspectos que ativam implicações estratégicas no campo da educação e, particularmente no âmbito da pesquisa em educação, uma vez que uma problematização dos modos de existência opera em favor de uma problematização do próprio modo de existência de um problema de investigação.

PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa e educação; Pensamento; Existência; Filosofia

ABSTRACT

The study focuses on the field of educational research, discussing the nature of the work of thought through research problems. From Michel Foucault and Étienne Souriau, it approaches the theoretical-conceptual device "modes of existence", highlighting how both authors produce the implication between a thought of the arts and a philosophical thought for the treatment of the issue. The article aims to demonstrate how this procedure confers to the modes of existence a strategic condition of a theoretical-conceptual device, thus overcoming the areas of problematization in which they were forged. Foucault discusses modes of existence from a problematization of subject and experience, suggesting, within the horizon of a radical dis-subjectivation, an experience of impossibility. Souriau discusses modes of existence from a problematization of the aesthetic work, evoking, in this work itself, the singular movements of instauration and unfinished. Because of the treatment of both thinkers on the question of modes of existence, it becomes possible to construct an indissociably political, ethical and aesthetic approach, aspects that activate strategic implications in the field of education and, particularly in the context of research in education, once that a problematization of the modes of existence operates in favor of a problematization of the mode of existence of a problem of investigation.

KEYWORDS: Research and education; Thought; Existence; Philosophy

RESUMEN

El estudio se centra en el campo de la investigación educativa, discutiendo la naturaleza del trabajo de pensamiento a través de problemas de investigación. A partir del pensamiento de Michel Foucault y Étienne Souriau, aborda el dispositivo teórico-conceptual "modos de existencia", destacando cómo ambos pensadores producen la implicación entre un pensamiento de las artes y un pensamiento filosófico en el enfrentamiento de la cuestión. El trabajo busca demostrar cómo tal procedimiento confiere a los modos de existencia una condición estratégica de dispositivo teórico-conceptual, superando así los territorios de problematización en los cuales fueron forjados. Foucault discute modos de existencia a partir de una problematización del sujeto y de la experiencia, apuntando, en el horizonte de una des-subjetivación radical, una experiencia de la imposibilidad. Souriau discute modos de existencia a partir de una problematización de la obra estética, evocando, en el trabajo mismo de esa obra, los movimientos singulares de instauración e inacabamiento. Dado el trato de ambos pensadores a la cuestión de los modos de existencia, es posible emprender un enfoque de naturaleza indisolublemente política, ética y estética, aspectos que activan implicaciones estratégicas en el campo de la educación y, particularmente en el ámbito de la investigación en educación, ya que una problematización de los modos de existencia opera en favor de una problematización del propio modo de existencia de un problema de investigación.

PALAVRAS-CLAVE: Investigación y educación; Pensamiento; Existencia; Filosofía

***

1 INTRODUÇÃO

A obra é uma esfinge, mas uma esfinge à qual devemos responder sem mesmo saber qual é a pergunta.

(DavidLapoujade, 2017, p.78).

Tendo como alvo o campo da pesquisa educacional, o presente estudo busca colocar em discussão a natureza do trabalho de pensamento mobilizado mediante os problemas de investigação ali suscitados. Para tanto, aciona as investidas de Michel Foucault e de Étienne Souriau, explorando o dispositivo teórico-conceitual “modos de existência”, presente nas incursões filosóficas de ambos os autores. Cada qual a seu modo, em razão de suas problematizações erigidas na contemporaneidade de suas trajetórias singulares, produz a implicação entre um pensamento das artes e um pensamento filosófico visando ao enfrentamento da questão dos modos de existência aí implicados.

O percurso argumentativo organiza-se segundo três movimentos. No primeiro, destacamos a maneira como Foucault empreende a discussão sobre modos de existência a partir de uma problematização do sujeito e da experiência, suscitando, no horizonte de uma dessubjetivação radical, uma experiência da impossibilidade. No segundo, destacamos, no conjunto do pensamento de Souriau, a maneira como este autor conduz a discussão sobre modos de existência a partir de uma problematização da obra estética, evocando, no próprio trabalho dessa obra, os movimentos singulares de instauração e de inacabamento. No terceiro, buscamos estabelecer correlações entre ambos os pensadores, acionando tais implicações filosóficas no campo da pesquisa educacional. Por fim, apontamos que o enfrentamento de um problema de pesquisa exigiria, antes, tomá-lo a partir de uma interpelação radical em relação a seu modo de existência.

2 FOUCAULT: A VIDA COMO MATÉRIA DE ESTILIZAÇÃO

Ao problematizar as políticas identitárias, Michel Foucault (2004, 2010, 2011, 2014), estrategicamente, desloca a discussão do horizonte do sujeito para o campo dos modos de existência ou dos modos de vida. O giro é crucial para que, a partir de uma antropofagia nietzschiana peculiar, o pensador francês mobilize em sua obra uma problematização mais radical das filosofias da consciência. Essa tarefa filosófica de pensamento, na medida em que expõe o esgotamento da prerrogativa da consciência como fundamento da vida, coloca sub judice, no mesmo ato, os modos de balizamento políticos, éticos e estéticos que produzem e prescrevem essa mesma vida. Tal modalidade de interrogação foucaultiana, por fazer a questão do sujeito dobrar-se em direção a uma problematização dos modos de existência, exige uma abordagem outra da própria condição da experiência.

Contrapondo-se à abordagem fenomenológica acerca da experiência e alinhando-se a pensadores como Friedrich Nietzsche, Maurice Blanchot e Georges Bataille, Foucault (2010, p. 291) afirma, em uma entrevista publicada em 1980 em seus Ditos e Escritos, que

[...] a experiência é tentar chegar a um certo ponto da vida que seja o mais perto possível do não passível de ser vivido. O que é requerido é o máximo de intensidade, e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. [...] A experiência [...] tem por função arrancar o sujeito de si próprio, de fazer com que não seja mais ele próprio ou que seja levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução. É uma empreitada de dessubjetivação.

Eis a ideia de uma experiência-limite. Nessa perspectiva filosófica de radicalidade, a dissociação conceitual entre experiência e sujeito impõe-se de modo irreversível. Tal cisão não demandaria ao intelecto do homem contemporâneo uma mera ressignificação pacífica de cada um desses conceitos; exige, ao contrário, outro tratamento filosófico daquilo mesmo que se perspectiva como vida. Deflagra-se, assim, uma crítica em relação aos modos de condução da vida fundamentados em entidades ontológicas, apriorísticas, transcendentais, dentre as quais a concepção de sujeito ocupa lugar privilegiado como marcador da existência humana.

Não é fortuito afirmarmos, portanto, que o enunciado foucaultiano disposto acima traz consigo ao menos duas radicalidades: em primeiro lugar, ao sugerir uma condição de experiência forjada num diapasão distinto da vivência; em seguida, por tomar essa experiência precisamente no registro da impossibilidade. Assim, Foucault suscita um trabalho em favor da potência de uma disrupção subjetiva, nocauteando o sujeito como fundamento filosófico, histórico, sociológico, antropológico, psicológico, linguístico, político etc.

A implosão conceitual das categorias sujeito e experiência conclama, necessariamente, a presença de um pensamento não transcendental. Esse tipo de abordagem, ao colocar em xeque uma perspectiva de transcendência, emerge, sobretudo, como expressão de esgotamento de certo modo de pensar. Assim, sustentar esse movimento disruptivo em relação a um modo de pensar orientado pela prerrogativa da transcendência constitui-se como uma problematização de ordem política; e, na companhia foucaultiana, todo problema político passa a ser indissociável de uma interpelação ética e estética. Por isso, o esforço de Foucault, ao deslocar a discussão do sujeito para a dos modos de existência, reivindica um modo de pensar que afirma a condição de imanência. Vejamos.

Em uma entrevista de 1981, opondo-se a um pensamento que busca identificá-lo em termos de suas atividades políticas, Foucault (2014) dispara: “Encontro-me, contudo, confrontado com um problema muito importante, a saber, o do modo de vida” (FOUCAULT, 2014, p. 245, grifos do autor). Recusando o imperativo da identidade como fundamento, o pensador francês pontua que são os modos de vida que lhe interessam como alvos de problematização - de crítica, poderíamos dizer - e de criação.

Formado academicamente numa atmosfera de ressonância das filosofias do sujeito - pela via seja da fenomenologia, seja do existencialismo -, Foucault busca, em direção distinta, indagar o impensável da experiência, isto é, seu fora, experimentando um pensamento da dessubjetivação e fazendo desse ato uma experiência-limite. Para ele, o próprio pensamento constitui-se como experimentação, pois implica necessariamente um trabalho de transformação de si, o qual ultrapassa a condição de um mero voltar-se sobre si mesmo. Provocando-nos, Foucault (2010, p. 298) indaga:

[...] a questão era: pode-se dizer que o sujeito seja a única forma de existência possível? Não pode haver experiências, no curso das quais o sujeito não seja mais dado, em suas relações constitutivas, no que há de idêntico a ele mesmo? Não haveria, então, experiências nas quais o sujeito pudesse dissociar-se, quebrar a relação consigo mesmo, perder sua identidade?

Essa perspectivação outra é estratégica, pois permite mover toda a discussão do âmbito do sujeito e da identidade, para o horizonte dos modos de vida. Vale lembrar que, na obra foucaultiana, tais questões vão se entrelaçando temporalmente, anunciando outros arranjos, produzindo outras composições e possibilitando, desse modo, outras problematizações. Aqui, nosso objetivo é enfatizarmos tão somente uma dessas articulações fecundas: o jogo entre subjetividade, verdade, estilização e existência, evocando as implicações políticas, éticas e estéticas aí mobilizadas. A nosso ver, o acionamento teórico-conceitual dos modos de vida, empreendido numa chave de imanência, é aquilo que permite, num só golpe, refratar a soberania do sujeito e avançar no jogo acima enunciado.

De largada é preciso destacar a presença inexorável de uma força de singularização nesse agenciamento foucaultiano: o pensador francês invoca um pensamento das artes para realizar essas discussões. Isso implica convocar as experiências das artes como experiências de natureza estética, focalizando suas linguagens, seus procedimentos, seus modos de pensamento, enfim.

Vemos, portanto, como a configuração traçada por Foucault, ao buscar abordar a problemática da subjetividade na perspectiva de imanência e, ao mesmo tempo acionar um pensamento das artes para empreender tal tarefa, ata o trabalho de transformação de si a um trabalho de cunho estético.

A indissociabilidade entre trabalho em relação a si e trabalho estético consiste no amálgama necessário para forjar a noção foucaultiana peculiar de modo de existência, modo este que se busca constituir obrigatoriamente no fluxo de uma estilização ou de uma arte da existência, ou ainda de invenção de uma existência ético-estética.

A nosso ver, a discussão sobre cinismo filosófico conduzida por Foucault (2011) em seu último curso de 1984, A coragem da verdade, funciona estrategicamente para descrever tal imbricação, expondo o jogo necessário de conjugação entre a estilização da obra e a estilização de si mesmo como obra. O pensador situa o tópico do cinismo segundo três marcações históricas: nos movimentos religiosos do período medieval e posteriores, nas práticas políticas do século XIX com seus movimentos revolucionários e, por fim, nas artes, com destaque para a arte moderna. De acordo com o autor, construindo uma perspectiva trans-histórica da experiência cínica, fez-se possível flagrar a injunção entre o trabalho de experimentação e a estilização de si. Interessa-nos, aqui, focalizar o terceiro vetor, o qual aciona o campo das artes.

Nesse estudo referido acima, Foucault (2011, p. 141) busca construir “uma história da estilística da existência, uma história da vida como beleza possível”. Para tanto, explora a distinção entre uma metafísica da alma e uma estética da vida, demonstrando como o trabalho de estilização de si não se confunde com a projeção ou a aplicação de um princípio filosófico transcendente sobre um ser fundamental. Ao contrário: certa estética da existência pressupõe um trabalho contínuo de experimentação de si, de colocar-se à prova, tendo em vista produzir determinada forma de vida, estilizando-a num modo - um modo de existir, pois.

Assim, Foucault, (2011, p. 164) destaca que, na modernidade, teria havido a emergência de um elemento singular, qual seja, a íntima conexão entre arte e vida: “É a ideia, moderna creio, de que a vida do artista deve, na forma mesma que ela assume, constituir um testemunho do que é a arte em sua verdade”. Isso expressa a prerrogativa de que a vida do artista deveria ser, ela mesma, uma obra estética, devendo constituir-se como o próprio trabalho de estilização; indissociável, portanto, da prática do artista em relação aos materiais que conformam sua pintura, sua escrita, sua música, sua dança, seu verbo, enfim. Por esse motivo, na perspectiva foucaultiana, considerando o âmbito particular da modernidade marcado pela experiência da arte, haveria uma espécie de experiência cínica, por meio da qual vida e obra se confundiriam como manifestação da verdade. Vida, aqui, se afirma como a matéria mesma da transformação - vida como escândalo da verdade -, perfazendo-se esteticamente como testemunho dessa verdade.

Vemos, portanto, como nessa experiência, o jogo consigo faz-se mais agudo em razão da presença de um novo elemento, inescapável, implicando a relação entre subjetividade, verdade e vida: tal jogo, agora, demanda um ato de coragem, ou seja, exige a parresia, a coragem da verdade, a despeito do risco do próprio existir. Tratar-se-ia, assim, de uma imanência radical: uma “articulação do dizer-a-verdade no modo de vida” (FOUCAULT, 2011, p. 144). A forma da existência passa a ser a condição mesma do gesto do dizer-a-verdade, bem como a manifestação imanente dessa verdade. Modo de vida e ato da verdade confundem-se, erigindo uma obra existencial. Eis aqui o modo de existência como efeito de uma estilização.

Afirmar a indissociabilidade estética entre vida e verdade remete inevitavelmente a um horizonte simultaneamente político e ético da existência. Deflagra-se, assim, a voragem de um só movimento: estética, política e ética implicam-se de modo performativo quando tratamos de modo de existência, segundo a perspectiva foucaultiana. Torna-se, pois, impossível abordar um aspecto sem remissão aos outros - eis a força ímpar desse arranjo teórico-conceitual movente. Tal perspectiva de imanência é expressa de modo contundente por Foucault (2014, p. 204) quando este, em uma entrevista, se refere a seu próprio trabalho como pensador:

É por isso, você entende, que trabalho como um doente, e que trabalhei como um doente toda a minha vida. Não me preocupo de maneira nenhuma com o status universitário do que faço, porque meu problema é minha própria transformação. [...]. Essa transformação de si por seu próprio saber é, penso, algo bastante próximo da experiência estética. Por que um pintor trabalharia, se ele não é transformado por sua pintura?

Vemos, portanto, toda a implicação de um trabalho político e ético de experimentação e estilização de si - ou melhor, da vida, do modo de vida - sendo conduzido por meio de práticas de pensamento, de escrita filosófica, em suma, via procedimentos inventivos endereçados ao próprio viver.

Podemos dizer que certa estilística trataria, no limite, de produzir modos de existência capazes de se afirmar, sustentando politicamente os enfrentamentos daí decorrentes e ao mesmo tempo, problematizando eticamente os efeitos de todos esses movimentos. Ato infinitamente contínuo, pois. Esse jogo de afirmação, enfrentamento e problematização ininterrupta dos atos do viver constituir-se-ia na invenção mesma, estilizada, de um modo de existir.

A perspectiva imanente de estilização seria, assim, a condição fulcral que permitiria o tratamento filosófico do modo de existência a partir de seu vigor performativo. Não por acaso, operar esse giro, lançando mão de um pensamento das artes para além da territorialidade específica das artes, como nos convida Foucault, se apresenta como um recurso de pensamento extremamente fecundo e estratégico para viabilizar essa articulação entre modo de existência e estilização.

Partilhando de um pensamento das artes, como nos propõe o pensador francês, podemos dizer que é na luta com o material do mundo que se produz uma obra, e que, enquanto isso acontece, produz-se a si mesmo, inventa-se uma vida, um modo de existência, então forjado na contingência da luta. Tocamos, assim, o grau radical de imanência no qual é a própria vida que se faz como a matéria mesma de uma tarefa incansável de estilização: um modo de existência, em suma.

3 SOURIAU: A OBRA EM DEVIR COMO INSTAURAÇÃO DE MUNDOS

A evocação de um pensamento das artes para pensar modos de existência, para além do próprio domínio das artes, também se apresenta na obra do filósofo francês Étienne Souriau (2017). Uma marca em sua filosofia remete à distinção entre pluralidade de existências e pluralidade de existentes, ou seja, de seres. O autor propõe avançar numa hipótese instigante: a de que “a existência pode encontrar-se não somente nos seres, mas entre os seres” (SOURIAU, 2017, p. 105, tradução nossa). Para ele, essa distinção é medular, pois possibilita outra abordagem da existência: esta não se confundiria com os seres, mas remeteria à situação de gradiente entre eles. A prerrogativa do “entre” e, por conseguinte, a obrigatória convocação filosófica a uma dimensão relacional constituem aquilo que permite nos deslocar da pregnância do ser e apreender os modos, ou mais precisamente: “buscar, mediante quais deslizamentos, mediante quais conexões (que representam novos modos de existência) se pode passar do mesmo ao outro” (SOURIAU, 2017, p.105, tradução nossa). Afinal, como bem sintetiza David Lapoujade (2017, p. 13), “não existe ser sem maneira de ser”.

Souriau toma como ocasião auspiciosa o pensamento das artes, voltando-se à problemática da obra estética. Tal mirada abre vários afluentes, dos quais nos interessa destacar dois: a condição de inacabamento constante da obra por fazer; e a instauração dos modos de existência e suas implicações.

O primeiro aspecto remete à defesa da ideia de “inacabamento existencial de toda coisa” (SOURIAU, 2017, p. 228, tradução nossa), presumida na seguinte argumentação: “[...] para a pergunta ‘Isso existe?’, é prudente admitir que dificilmente possa ser respondida de acordo com o par Sim ou Não, mas sim com o par Mais ou Menos” (SOURIAU, 2017, p. 228, tradução nossa).

O pensador defende a tese de que a condição de inacabamento é a marca da obra, não sua suposta situação evolutiva referenciada ao estado de um produto final. Isso recoloca a questão da existência, pois, se o inacabamento é condição constitutiva da obra, não convém tratarmos de coisas, de seres, de produtos finais, mas focalizarmos os múltiplos modos de existência que se ativam na experiência de uma obra por fazer. Disso deriva uma potente discussão sobre fragilidade e debilidade da obra. Se, como já dito, a existência não remete a um sim ou não em relação ao ser, mas a uma condição modal de mais ou menos existência, frustra-se a perspectiva ontológica que supõe o fundamento ou essência do ser como condição de existência; aqui, de modo distinto, entra em cena uma dimensão movente, valorativa, a qual interroga sobre a potência de existir daquilo que ali contingencialmente se manifesta.

Tal perspectiva demanda abordar uma obra não a partir de uma expectativa de evolução, mas do processo de suas formas, em seus movimentos de realização - eis aquilo que podemos chamar multiplicidade dos modos de existência. Afirma-se, assim, a prerrogativa de variação de graus de existência em razão da potência daquele ato de existir. A sutileza dessa problemática é assim apresentada pelo autor, nessa extraordinária indagação: “Lá, no horizonte, se faz uma atmosfera tênue, apenas rosada sobre o céu azul da tarde. Há que se ver ali a existência frágil de uma nuvem rosa, ou a existência de uma nuvem fragilmente rosada? ” (SOURIAU, 2017, p. 126, tradução nossa).

A pergunta revolve nossos modos de pensamento e sensibilidade, trazendo-lhes frescor: não mais a condição intrínseca do ser, disposta gramaticalmente na adjetivação - “uma nuvem rosa” - mas uma percepção de modos de existir implicados no conjunto extensivo e intensivo de tudo aquilo que compõe a cena perceptiva e que se traduz gramaticalmente pelo advérbio - “uma nuvem fragilmente rosada”. Trata-se de pensar modos intensivos de existência: eis a radicalidade de tal investida. Esse transtorno de mirada arrasta-nos para uma dimensão de imanência, pois aquilo que ativa o pensamento diz respeito não mais a uma condição de essência do ser, mas a uma situação de existência, manifesta e afirmada contingencialmente.

A própria condição de inacabamento da obra é aquilo que nos permite afirmar a pluralidade existencial, ou seja, a multiplicidade dos modos de existência. Fragilidade ou debilidade existenciais não seriam marcas intrínsecas ao ser, portanto. Declina-se, assim, de uma vontade de ontologia, uma vez que tal pluralidade existencial exige levar em consideração uma perspectiva do valor, em atenção à movência dos vetores éticos, políticos e estéticos que estão em jogo quando nos indagamos sobre a potência de existir.

O devir, a passagem, o ato de metamorfose são os elementos que se impõem como condição incessante de inacabamento (SOURIAU, 2017). Em seu fluxo contínuo, tal inacabamento faz da obra um constante vir a ser, pois a experiência do fazer está sempre em conexão com outros possíveis e, em virtude mesmo desse elemento imponderável, encontra-se sempre em devir. Portanto, com Souriau, obra se faz como devir, como vir a ser. Como afirma Lapoujade (2017, p.61), a propósito dessa fluidez:

[...] se tudo se torna esboço, é preciso depreender a consequência que se impõe: não há mais seres, só há processos; ou melhor, as únicas entidades a partir de agora serão atos, mudanças, transformações, metamorfoses que afetam esses seres e os fazem existir de outra maneira.

Em Souriau (2017) o inacabamento da obra é sua própria condição de existência, uma vez que “a obra ainda não realizada se impõe, no entanto, como uma urgência existencial” (p. 231, tradução nossa). Assim, é a própria obra que impõe seu movimento de criação, o qual responde a uma premência vital que não se localiza nem no artista nem no seu produto. Antes, refere-se aos fluxos imanentes de uma vida bem como aos efeitos impensáveis das conexões que ali se engendram.

Isso descentra o sujeito da razão/criação e enfatiza a potência dos procedimentos artísticos, os quais respondem in loco a uma urgência de forma - situação singular que instaura um modo existência. Portanto, a condição de inacabamento da obra é algo imanente que ata homem e obra em uma empreitada vitalista, em um contínuo vir a ser.

Souriau (2017) mira além do campo estético, excedendo um pensamento das artes; busca pensar a própria experiência do pensamento filosófico, reconhecendo, na filosofia, uma arte, uma arte de pensamento.

É como se à obra coubesse acessar seu próprio limite, agudizando as interpelações que vão emergindo como efeito de seus próprios processos de vir a ser. A propósito desse movimento extremo, Souriau (2017) provoca-nos com um caso tão fatal quanto perturbador: o Cogito cartesiano. De acordo com ele, este não teria realizado efetivamente uma ascese do pensamento, uma vez que não chegou ao limite da dúvida existencial. Para isso ocorrer, seria preciso tomar as oscilações entre o ser ou não ser de modo extremo,

[…] em uma dúvida existencial do homem voltada à sua própria existência, uma dúvida fundada sobre o exame direto dela; sobre uma interrogação tão instável, tão verdadeiramente imbuída de perplexidade, que, ao fazer a pergunta “eu sou?”, aceite a possibilidade de responder que não. (SOURIAU, 2017 p. 120-121, tradução nossa)

Tal provocação arremessa-nos à necessária assunção de radicalidade em face do empreendimento de estilização da existência. Uma experiência-limite supõe que o próprio pensamento de uma filosofia do sujeito banque seguir uma interpelação até as bordas de suas consequências, perseguindo uma urgência vital inegociável. Esta coloca em primeiro plano o vitalismo da existência, e, ao fazê-lo, põe em risco a soberania do sujeito, afirmando a dessubjetivação como experiência política, ética e estética possível.

Essa discussão conduz-nos a nosso segundo aspecto do horizonte de pensamento de Souriau: a instauração dos modos de existência e suas implicações. É preciso, antes, transtornar esse suposto paradoxo que parece contrapor o inacabamento constante à instauração de uma forma. Para apreender esse engenho teórico-conceitual, é preciso que tomemos a instauração como atos em modulação, uma vez que, assim configurados, abririam passagem à condição de movimento contínuo, de vir a ser. “Instaurar é seguir uma via”, lembra-nos oportunamente Souriau (2017, p. 241, tradução nossa). Assim, inacabamento não contradiz a condição de instauração quando abordamos a existência a partir de modos, movências, modulações, movimentos etc.

Lapoujade (2017, p. 89) repercute com perspicácia tais ideias:

[...] a instauração é imanente àquilo que instaura. A instauração só se sustenta com seu próprio gesto, nada preexiste a ela - daí a filosofia dos gestos de Souriau. Ou seja, fundamentar é fazer preexistir, enquanto que instaurar é fazer existir, mas fazer existir de certa maneira - a cada vez (re)inventada. Existir é sempre existir de alguma maneira.

Notemos como essa distinção entre instaurar e fundar diz respeito diretamente às diferentes ambiências entre um pensamento da imanência e outro, da transcendência. Com Souriau, a imanência dos processos instaurativos lhes confere mundanidade, remetendo-lhes às contingências e urgências desse mundo da vida, requerendo certa aposta.

Para esse pensador, os processos instaurativos encontram-se em todos os domínios - artísticos, filosóficos etc. - e deflagram uma instigante condição: “nesse diálogo entre homem e obra, uma das presenças mais notáveis da obra por fazer é o fato de que ela postula e mantém uma situação interrogante” (SOURIAU, 2017, p. 241, tradução nossa).

Formulação lapidar. A condição interrogante seria como um clamor vindo da própria experiência da obra por fazer, chamado este que responde duplamente à urgência da forma e à aposta na vida. A situação interrogante, ademais, não tem sua origem fundacional no sujeito nem na obra; emerge dessa experiência imanente de instauração de algo por fazer, de uma obra em contínuo inacabamento. Instauração de um modo de existência, pois.

A discussão altera radicalmente nossos modos de pensar por supor um movimento da própria obra que, em suas demandas de cunho procedimental, nos convoca como criadores: artistas, filósofos etc. O trabalho, então mobilizado por uma voz interrogante assubjetiva, se faz como obra sem fim - obra por vir. O mote do inacabamento seguido da disposição contínua à interpelação é o motor do movimento, tanto da experiência de fazer a obra quanto de fazer-se como obra. Daí que uma situação interrogante, em sua radical imanência, implica, num só golpe performativo, tanto o artista, que é sempre um artista do pensamento, quanto a obra. De maneira inusitada, o pensador francês sustenta que a obra conclama o artista, explorando-o, em favor da afirmação de um modo de existir.

Essa territorialidade imanente é expressa com maestria por Souriau (2017, p. 244, tradução nossa) em uma escrita memorável:

Dever-se-ia dizer que Dante utilizou as experiências de seu exílio na Divina Comédia, ou que a Divina Comédia necessitava do exílio de Dante? Quando Wagner se apaixona por Mathilde, não seria Tristão que necessitaria de Wagner apaixonado? Pois é assim que pertencemos e somos empregados pela obra, e que lançamos em seu caldeirão tudo o que encontramos em nós mesmos que possa responder à sua demanda, ao seu chamado.

No pensamento do autor, a discussão estética sobre a criação e a afirmação dos modos de existência é indissociável de uma problemática política e ética. Isso porque a condição de inacabamento da obra, alinhada aos movimentos dos processos instaurativos, lança-nos a uma contingência inescapável: há “uma responsabilidade que nos cabe frente a todo inacabamento do mundo”, alerta Souriau (2017, p. 249, tradução nossa). Em outras palavras, a condição de inacabamento da obra exige de nós, em radical imanência, um ato de valoração, de responsabilidade diante dessa incompletude constitutiva bem como de seus devires.

Assim, se considerarmos a tarefa filosófica com um dos trabalhos possíveis de estilização, podemos afirmar que a instauração de modos de pensamento constitui-se como uma instauração, sempre inacabável, de modos de existência. Trata-se da instauração ou criação de mundos, em suma. Há, portanto, um chamado de responsabilização aí anunciado quando se instauram modos de existir.

Em resumo, o inacabamento exige um ato de responsabilização pelo mundo, ou, valendo-nos de um jogo de palavras, exige uma responsabilização pelo fazer a obra por fazer, isto é, pelo ato mesmo de instaurar. Por esse motivo, para esse autor, a discussão estética sobre criação e afirmação de modos de existência, por remeter à responsabilidade diante da instauração de mundos, é indissociável de uma problematização simultaneamente política e ética.

4 OS MODOS DE EXISTÊNCIA DOS PROBLEMAS DE INVESTIGAÇÃO

Mobilizando questões específicas e traçando percursos distintos, Foucault e Souriau investem teórico-conceitualmente nos modos - de vida, de existência -, apostando em uma perspectiva de imanência para enfrentar o imperativo do pensamento identitário, em suas múltiplas expressões. Aqui, o pensamento identitário pode ser qualificado como uma operação que toma a categoria da identidade como um marcador para privilegiar o ser em detrimento de seus modos.

Ambos os pensadores franceses problematizam essa sacralização identitária e sobretudo, seus efeitos, valendo-se de uma abordagem da experiência em uma tonalidade distinta daquela fundada pela cisão entre sujeito e objeto. É a prerrogativa de uma experiência-limite de dessubjetivação que ora se anuncia como condição de deslocamento de determinado modo de pensamento, permitindo acessar uma modalidade de experiência, doravante de natureza assubjetiva que, de maneira radicalmente imanente, se faz como um modo de existência. Assim, o dispositivo teórico-conceitual dos modos de existência, tal como erigido em suas especificidades a partir desses autores, encontra nessa abordagem particular da experiência seu eixo movente.

Poderíamos dizer que há duas linhas de maior vulto que igualmente demarcam as discussões dos autores: a primeira diz respeito a uma intensa demanda por um pensamento da imanência, tendo em vista desfocar os seres e colocar em jogo as relações, as conectividades, os próprios movimentos que engendram os modos de existência. A segunda refere-se à necessidade de formular um pensamento da imanência em articulação com um pensamento das artes, tendo em vista a discussão de modos de existência no registro da estilização política e ética. Nosso intuito, porém, é menos o de arrolar convergências e divergências entre esses autores e mais o de explorar as oportunas zonas de passagem que se abrem quando dispomos suas linhas de força em vizinhança.

Assim, o encontro Foucault-Souriau faz saltar, para além de suas discussões particulares, os próprios bastidores de seus modos de pensamento, as configurações de forças que culminaram em suas provocativas problematizações. Em uma atmosfera genealógica, poderíamos especular sobre as contingências de seus horizontes que os impulsionam a pensar a partir de uma atenção aos modos e não aos seres. Poderíamos indagar também sobre a natureza desse fluxo de pensamento que faz a prerrogativa da imanência forçar a passagem em um mundo já tão consagrado pelo fundamento da transcendência. E, ainda, poderíamos explorar as condições que acionaram o pensamento das artes como uma das estratégias necessárias e promissoras de enfrentamento do problema maior da vida, da existência, em sua complexidade ético-estético-política, em sua urgência de intensificação.

Ora, a própria formulação de tais questões já manifesta aquilo que ensejamos ressaltar: as virulências do pensamento dos dois autores instauram-se como resposta à situação de esgotamento de determinados modos de pensamento, de certos modos de existência. Assim, a atenção aos movimentos intempestivos de Foucault e Souriau diante das especificidades do tempo presente habitado por cada um deles lança-nos, no rebote, à interpelação dos movimentos de nossa própria contemporaneidade: Quais linhas de força emergem das obras desses pensadores e persistem virtualmente na duração de nosso presente, viabilizando uma investida crítica e instigando-nos a acioná-los diferencialmente em nossos jogos de problematizações educacionais?

A enunciação da presente pergunta em nossa atualidade exige que coloquemos em suspensão o motocontínuo das modalidades de pensamento que têm produzido nossos modos de existência. A intensidade dos ecos Foucault-Souriau, seja nos séculos XX ou XXI, é a expressão de que nos encontramos quase em condição de catatonia frente a modos de existência colapsados, modos de pensamento que nada mais podem, em termos da ativação de uma potência de existir.

Assim, na pulsação desses pensadores e a partir do núcleo das discussões aqui mobilizadas, interessa-nos dar relevo a uma linha de força de maior vibração que, a nosso ver, ativaria desdobramentos produtivos no campo da educação, particularmente quanto à pesquisa educacional. Tal linha diz respeito aos modos como os autores constroem seus próprios problemas de investigação. Sigamos essa pista.

A investida crítica de Foucault e Souriau a um pensamento identitário em favor de um horizonte assubjetivo pautado nos modos faz implodir quaisquer ordenações sistêmicas a partir de uma taxonomia dos seres. Vimos que discutir modos de existência implica, fundamentalmente, problematizar modos de pensamento. Ora, disso deriva uma interpelação inescapável, qual seja, a de problematizar os próprios modos como construímos nossos problemas de pensamento, isto é, como conferimos existência aos problemas de investigação. Em suma, toda a discussão filosófica sobre modos de existência interessa fortemente à educação, pois permite-nos focalizar criticamente os modos de pensamento que conduzem à construção de problemas de investigação em nossos variados territórios de pesquisa educacional.

A partir da companhia de Foucault e Souriau, poderíamos indagar, mais especificamente, se, reverberando certas prerrogativas da cultura, não tenderíamos, como pesquisadores, a atribuir aos problemas investigativos uma condição de ser identitário. Em outras palavras, pressuporíamos uma espécie de ser do problema, ou seja, algo como um ser identitário problemático animando aquilo que qualificamos como problemas educacionais e conferindo-lhes legitimidade existencial. Nessa chave, os problemas educacionais tenderiam a ser tomados como entidades identitárias, espécies de naturezas autônomas circulando com naturalidade nos múltiplos territórios investigativos constitutivos dessa área de conhecimento.

Defrontarmo-nos com essa interpelação, qual seja, tomar criticamente a condição identitária dos problemas de investigação em educação, exige coragem. O ato requer abdicar de certa prerrogativa de que os problemas educacionais, uma vez deflagrados, ganhariam uma existência autônoma, passíveis de serem objetivados e identificados ad infinitum em nossos arranjos investigativos.

Foucault e Souriau convocam-nos a outras paisagens de pensamento, quando nos convidam a colocar em suspensão o circuito invariável de nossas abordagens. Vale enfatizar que ambos, debruçando-se sobre arquivos díspares e lançando mão de seus próprios problemas de pesquisa, interpelam a orquestração do pensar em curso na ambiência de suas respectivas temporalidades; e, fundamentalmente, ambos, cada qual à sua maneira, confrontam os imperativos de suas disciplinas acadêmicas bem como as valências desses territórios de conhecimento nos processos históricos de configuração dos modos de pensar.

Torna-se profícuo, portanto, mergulharmos nos modos de problematização dos autores e sorver deles certo espírito ou modalidade de pensamento investigativo que possa nos perpassar, afetando, por searas não lineares, nossos modos de pensamento em educação. Posto que nosso alvo de problematização remete ao próprio campo da pesquisa em educação, interessa-nos colocar em pauta uma cadeia de atos: modos de pesquisar, de investigar, de construir e propor problemas, de interpelar, de questionar, de problematizar, ou seja, modos de pensar científica, filosófica e artisticamente.

A nosso ver, o dispositivo teórico-conceitual “modos de existência”, por problematizar o fundamento do ser identitário e evocar outra economia de forças nos jogos relacionais, possibilita-nos defender uma perspectiva de imanência na investigação educacional. Isso deve-se à circunstância de que aquilo que está em questão é exatamente a prerrogativa de um suposto ser identitário relativo ao próprio problema, operando como o ser do problema, substancializando-o, ou seja, conferindo existência a uma entidade dada a priori e, portanto, reconhecida por certa comunidade de pesquisadores como problema.

Tal mirada dispõe-nos em uma trilha radicalmente crítica na medida em que se explicitam as maneiras como a prerrogativa do ser identitário implica não apenas a categorização dos chamados objetos de conhecimento, mas também o próprio processo de construção dos problemas de pesquisa. Em outras palavras, a perspectivação crítica aqui delineada evidencia a adesão inercial a certos modos de perguntar, de interpelar, de questionar, de criticar, de investigar etc. que parecem naturalizados e que valeriam por si sós.

As incursões dos autores fazem do modo de existência um dispositivo teórico-conceitual capaz de viabilizar o deslocamento de todo o debate para um campo outro no qual o que se focaliza é o próprio modo de existir de um problema, e não sua suposta condição identitária como ser ontológico. Objetivamente, faz-se necessário, nesse giro, considerar um problema de investigação em sua situação contingenciada como modo de existência, como modo de ser, e não como um ser identitário dado de véspera, desde sempre aí, fundado como verdade e fundador de verdades, então versadas sob a forma de um jogo linear de perguntas e respostas. Trata-se, em suma, de focalizar nossos problemas como modos de existência e não como seres, em termos de entidades identitárias.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar os problemas em termos de seus modos de existência, e não em sua condição de ser identitário, aciona um provocativo chamado ao campo da pesquisa educacional. Inclusive, tal movimento suscita um debate crucial que pede passagem no horizonte investigativo em educação na contemporaneidade.

Uma disposição radicalmente crítica exige suportar a tragicidade de nossos modos de pensamento e seus efeitos imponderáveis. Ainda que possamos reconhecer a multiplicidade dos modos de perspectivar os problemas educacionais, faz-se necessário agudizar a pergunta, enfrentando-a com altivez: a cadência autorizada de nossos modos de pensamento em pesquisa educacional, no limite, arriscaria colocar em xeque a possível condição de ser identitário que dado problema assumiu no jogo do pensamento? Nossos modos de pesquisar levariam ao extremo um trabalho de interpelação investigativa, desestabilizando a própria centralidade da pergunta de investigação que lhe deu origem?

Sabemos que o legado pós-nietzschiano permitiu colocar em causa a premissa ontológica dos objetos de conhecimento. Cabe-nos seguir esse movimento e avançar na dobra seguinte, qual seja, a colocação em causa da ontologia dos próprios problemas ou, mais especificamente, as identidades das perguntas, as formas únicas dos modos de perguntar. É preciso considerar que, uma vez que as perguntas, as questões, os problemas adquirem a consistência de uma identidade transcendental, eles se insinuam como legítimos de largada. É assim que o decalque de uma espécie de identidade à pergunta torna-a reconhecida e reatualizada na ordem do discurso do mundo da pesquisa em educação.

As discussões sobre modos de existência bem como sobre a condição de experiência aí subsumida permitem que pensemos em processos instaurativos relativos a outros modos de interpelar, de colocar problemas e de operar a crítica. E vale lembrar, com Souriau (2017), que instauração não remete a uma finalização, mas, ao contrário, pressupõe o movimento constante do inconclusivo, do inacabamento. Assim, instauração e inacabamento são duas forças que jogam concomitantes em favor da criação de pensamento. Por isso, quando especulamos sobre outros modos de instauração de problemas, pretendemos que estes não se pautem pela prerrogativa da identidade da pergunta - esse elemento balizador, reconhecível no jogo investigativo, que retroalimenta a sedimentação de um campo de conhecimento e de pesquisa -, mas que se orientem pela possibilidade de uma experiência disruptiva de des-identificação da pergunta, ou seja, de uma disponibilidade à recusa em instituir de antemão o ser do problema como condição de reconhecimento para que o sujeito da razão possa pensar.

Uma vez permeáveis a essas provocações contundentes ao pensamento, seria necessário ensaiarmos modos de pesquisa em educação que levassem ao limite uma abordagem da vida considerada em suas múltiplas modulações e intensidades, refutando assim uma perspectiva restritiva de existência que a concebe como sinônimo de uma ontologia do mundo. Isso exige recusar as adesões ao ser das coisas - seja dos sujeitos, das perguntas, dos problemas, das disciplinas acadêmicas, das experiências, das próprias formas de conduzir a crítica, enfim.

Trata-se de pressupor uma reorganização do modo de produção de conhecimento no campo da educação. Atualmente, a tradição dos saberes educacionais dispõe, com muita objetividade, um conjunto de territórios disciplinares bem como seus respectivos focos de investigação, os quais podem ser assim enunciados: questões de currículo, de ensino, de aprendizagem, de avaliação, de subjetividade, de metodologias de ensino, de didática, de relação professor-aluno, de políticas públicas, de gestão institucional, de formação de professores, de formação de pesquisadores, de formação de gestores educacionais etc. Evidentemente, tais questões são pautadas por urgências contemporâneas as quais, por sua vez, são enfrentadas não só pelo domínio pedagógico stricto sensu, mas também pelos saberes em aliança, tais como sociológicos, históricos, filosóficos, antropológicos, políticos, psicológicos, psicanalíticos etc. Esse modo de organização do conhecimento em educação também informa um modo de pensamento da pesquisa na área, conformando e legitimando um conjunto de procedimentos investigativos.

A provocação Foucault-Souriau, ao incitar outra perspectiva de experiência cuja expressão se faz no domínio dos modos de existência e não mais nas localidades identitárias, expõe o caráter restritivo e, em certa medida, intransitivo desses clássicos continentes territoriais de saberes.

Des-identificar, des-fundar os problemas de seus territórios canônicos exige, inevitavelmente, redimensionar a própria ideia de problema de pesquisa vigente nessas várias frentes. Assim, um problema investigativo não se reduziria a uma unidade identitária reconhecível no interior de um campo disciplinar. Por essa razão, dizemos que não se trata de tomar o problema como um ser em existência; trata-se, de forma radicalmente distinta, de tomar o problema em seu modo de existir, vibrátil em sua radical contingência, único em sua pulsante manifestação, insubordinado em relação aos enquadres disciplinares prévios.

Por esse motivo, a potência de um problema de pesquisa encontra-se nessa sua condição absolutamente imanente, em sua disposição eminentemente relacional que o converte em usina de conectividades, exigindo de um pesquisador, de uma parte, o desprendimento radical de um gesto e, de outra, um ato de criação. Instaurar um problema de pesquisa é um trabalho de estilização, de criação de mundos, o que requer de seus instauradores uma atitude de responsabilização diante dessa obra por fazer. São esses movimentos vitais que se fazem reinvestir sobre o problema, metamorfoseando-o, modificando seu modo de existência, mantendo acesa a chama da situação interrogante que ata, inarredavelmente, um pesquisador-artista à sua pesquisa-obra.

O encontro Foucault-Souriau incita-nos à expansão e à variação de perspectivas filosóficas quando nos movemos no interior do campo da pesquisa em educação. Tais movimentos de pensamento são necessários, uma vez que os desafios educacionais contemporâneos, presentes em certo âmbito da vida ocidental constituída pela cultura letrada, demandam modos de endereçamento outros, capazes de transmutar as políticas identitárias que sustentam as próprias identidades dos saberes pedagógicos e dos múltiplos métodos que lhes são afins.

Assim, no território específico da pesquisa em educação, tais incursões filosóficas nos conduzem a uma plataforma imprescindível que possibilita tomar a própria experiência do problematizar como um modo de existência, de tal maneira que a instauração de um problema de investigação seja, antes, a instauração de um modo de pensamento - uma espécie de criação estética, isto é, um trabalho capaz de fazer viver a própria matéria de estilização, a qual se faz pulsante no encontro do artista do pensamento com sua pesquisa-obra, para sempre, inacabável.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos VI: repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IX: Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. [ Links ]

LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017. [ Links ]

SOURIAU, Étienne. Los diferentes modos de existencia. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Cactus, 2017. [ Links ]

Recebido: 01 de Maio de 2019; Aceito: 25 de Abril de 2020

Revisão gramatical realizada por:

Anna Carolina Ferreira Lima. E-mail: anna.lima@usp.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons