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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.4 Campinas oct./dic 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i4.8655348 

ARTIGO

A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO SOCIAL DE GREVE: UM ESTUDO EVOLUTIVO PIAGETIANO

THE CONSTRUCTION OF STRIKE´S SOCIAL CONCEPTA PIAGETIAN EVOLUTIONARY STUDY

LA CONSTRUCCIÓN DE LA NOCIÓN SOCIAL DE LA HUELGA UN ESTUDIO EVOLUTIVO PIAGETIANO

Eliane Giachetto Saravali1 

Amanda de Mattos Pereira Mano2 

Taislene Guimarães3 

Angélica Pall Oriani4 

Liliane Ubeda Morandi Rotoli5 

1Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Docente do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. E-mail: eliane.g.saravali@unesp.br

2Doutora em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. Professora adjunta - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Corumbá, MS - Brasil. E-mail: amanda.mano@ufms.br

3Doutora em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. E-mail: taislene_ped@yahoo.com.br

4Pós-Doutora em Educação - Universidade de São Paulo (FEUSP). Doutora em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. Professora - Universidade do Sagrado Coração (USC). Bauru, SP - Brasil. E-mail: angelicaoriani@hotmail.com

5Mestra em Economia aplicada - Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto, SP - Brasil. Doutoranda em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Marília, SP - Brasil. Email: lilianemorandi@gmail.com


RESUMO

A partir dos estudos piagetianos sobre a construção do conhecimento social, o artigo apresenta os dados de uma pesquisa de caráter qualitativo e quantitativo, cujo objetivo consistiu em investigar a compreensão da noção de greve em estudantes da rede pública e particular, de idades entre 06 e 21 anos. A pesquisa, com delineamento evolutivo transversal, contou com 80 participantes, distribuídos da seguinte forma: 20 sujeitos de 06 anos, 20 de 11 anos, 20 de 16 anos e 20, de 21 anos. Ainda, para cada grupo etário, houve divisão quanto à origem da instituição escolar; assim, 10 participantes eram de instituições públicas e 10, de instituições privadas. O instrumento utilizado foi uma entrevista clínico-crítica que versava sobre a noção de greve. As entrevistas foram analisadas em consonância com os níveis de compreensão da realidade social, mediante a construção de subníveis, acrescida de estatística analítica de correlação entre variáveis. De modo geral, verificou-se que as ideias dos estudantes se concentraram no subnível IIa, revelando um entendimento da noção de greve pouco elaborado, pautado em juízos mais pessoais e aspectos aparentes. A análise estatística comprovou não haver diferença nas respostas, conforme as escolas em que os participantes estavam matriculados. Discutem-se aspectos relevantes sobre a construção do conhecimento social.

PALAVRAS-CHAVE: Greve; Conhecimento social; Teoria piagetiana

ABSTRACT

From the Piagetian studies on social knowledge construction, this article presents the data of a qualitative and quantitative research, whose objective was to investigate the understanding of the strike notion in public and private students, aged between 6 and 21 years. The research with transversal trajectory design consisted of 80 participants, distributed as follows: 20 subjects aged 6 years, 20 subjects aged 11 years, 20 subjects aged 16 years and 20 subjects aged 21 years. Still, for each age group, there was division as to the origin of the school institution, thus, 10 participants were from public institutions and 10, from private institutions. The instrument used was a clinical-critical interview that dealt with the notion of strike. The interviews were analyzed according to the levels of social reality understanding, through the construction of sub-levels, plus analytical statistics of correlation between variables. In general, it was found that students' ideas focused on the sub-level IIa, revealing an understanding of a little elaborate strike notion, based on more personal judgments and apparent aspects. Statistical analysis showed no difference in the answers according to the schools in which the participants were enrolled. Relevant aspects about the construction of social knowledge are discussed.

KEYWORDS: Strike; Social knowledge; Piagetian theory

RESUMEN

A partir de los estudios piagetianos sobre la construcción del conocimiento social, el artículo presenta los datos de una investigación de carácter cualitativo y cuantitativo, cuyo objetivo consistió en investigar la comprensión de la noción de una huelga en estudiantes de la red pública y privada, de edades entre 6 y 21 años. La investigación, con delineamiento evolutivo transversal, contó con 80 participantes, 20 en cada una de las categorías de edades: 6, 11, 16 y 21 años. Para cada grupo etario, hubo una división cuanto al origen de la institución escolar, así, 10 participantes eran de instituciones públicas y 10, de instituciones privadas. El instrumento utilizado fue una entrevista clínico-crítica que versaba sobre la noción de huelga. Las entrevistas fueron analizadas en consonancia con los niveles de comprensión de la realidad social, mediante la construcción de subniveles, más la estadística analítica de correlación entre variables. En general, se verificó que las ideas de los estudiantes se concentraron en el subnivel IIa, revelando un entendimiento de la noción de huelga poco elaborado, pautado en juicios más personales y aspectos aparentes. El análisis estadístico comprobó que no había diferencia en las respuestas según las escuelas en que los participantes estaban matriculados. Se discute aspectos relevantes sobre la construcción del conocimiento social.

PALAVRAS-CLAVE: Huelga; Conocimiento social; Teoría piagetiana

***

1 INTRODUÇÃO

De origem francesa, a palavra greve significa terreno plano, à margem de mar ou de rio, onde se acumulam gravetos. No sentido que a entendemos, todavia, ela deriva de um local, a Place de Grève situada em Paris, às margens do rio Sena. Nesse espaço, relata-se que desempregados se reuniam para procurar emprego e, com o tempo, operários insatisfeitos com as condições de trabalho se encontravam para tratar de assuntos de interesse comum ou para promover paralisações (CASSAR, 2018).

Por essa razão, o sentido do vocábulo greve passou a ser empregado fazendo alusão ao movimento de trabalhadores requisitando melhores condições de trabalho, especialmente, quando estes paravam as suas atividades para protestar. Com esse sentido, greve passou a significar, a partir do século XVIII, a cessação coletiva e voluntária das atividades laborais, por parte dos trabalhadores, com a finalidade de obter direitos, benefícios e/ou de protestar por melhores condições de trabalho.

Em nosso país, a primeira legislação própria a respeito da greve é de 1932 - Decreto nº 21.396, de 12 de maio (BRASIL, 1932) - e pode ser entendida de modo correlacionado à tentativa governamental de controlar o movimento operário. Desse modo, estabelecer e penalizar legalmente aquilo que se enquadrava como greve fazia sentido no cenário em que se combinava a criação de um Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a promulgação de leis e decretos que regulavam o trabalho e sindicalizavam as classes patronais e operárias.

Apesar de sua regulamentação em termos legislativos, a greve não foi reconhecida como direito do trabalhador na Constituição de 1934. Na de 1937, por sua vez, foi tratada como ato antissocial e sua realização foi proibida, tendo sido, inclusive, impostas penalidades aos indivíduos que suspendessem o trabalho (BRASIL, 1937).

Em 1946, por meio do Decreto-Lei nº 9.070, de 15 de março (BRASIL, 1946), ficou a cargo governamental declarar quais situações poderiam ser consideradas legais ou não. Ficaram proibidas, também, as paralisações em empresas definidas como “fundamentais” (de energia, transportes, bancos e muitas outras ao arbítrio do Ministério do Trabalho). Ainda, em 1946, em setembro, foi promulgada nova Constituição garantindo aos trabalhadores o direito de greve. Anos mais tarde, em 1º de julho de 1964, com a Lei nº 4.330 (BRASIL, 1964), cerceou-se o direito de greve e todas as suas formas passaram a ser consideradas ilegais.

Após a publicação dessa lei, houve nova menção à greve apenas em 1978, com o Decreto-Lei nº 1.632, de 4 de agosto (BRASIL, 1978), que proibiu a sua prática em serviços públicos e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional, com o que se redefiniu as atividades consideradas essenciais para efeito de uma greve.

Apenas com a Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989 (BRASIL, 1989), é sancionado o exercício da greve como um direito do trabalhador. Nessa mesma regulamentação, ficaram estabelecidos os requisitos que devem ser atendidos para que uma greve seja deflagrada, dentro de parâmetros e limites impostos pela lei, como por exemplo, deve-se comunicar o seu início e garantir a liberdade de trabalho daqueles que optarem pela não adesão, entre outros. Isso significa que apesar de o direito à greve ser elevado à categoria de direito fundamental, alguns critérios fizeram com que o seu exercício não fosse de cunho aleatório, tampouco abusivo.

Assim como todos os direitos fundamentais - direitos básicos individuais, sociais políticos e jurídicos, previstos na Constituição Federal de uma nação, o direito à greve correlaciona-se aos direitos de outrem (BRASIL, 1989).

No que se refere especificamente às greves no setor educacional, é válido mencionar que reivindicações por melhorias salariais e nas condições de trabalho estiveram presentes em diversos momentos na história da profissão docente no Brasil. O surgimento de associações ou entidades representativas de docentes, ainda no período imperial brasileiro6 pode indicar que certas convergências entre os profissionais da educação, acerca da necessidade de melhorias para a atuação profissional, estiveram presentes em vários momentos da nossa história.

Em 1963, professores do estado de São Paulo, dos então ensinos primário e secundário, tanto das escolas oficiais, quanto das particulares, se uniram pela reivindicação de reajuste salarial e deflagraram greve com suspensão das atividades, a partir de 16 de outubro (GOUVEIA; FERRAZ, 2013). Com as reivindicações atendidas, esta greve encerrou-se em 20 de outubro. Todavia, vale ressalvar que ela antecedeu outras diversas que tivemos neste mesmo ano, no país.

Após a primeira experiência de greve, nas décadas subsequentes ocorreram "[...] transformações qualitativas na prática de mobilização coletiva e de representação de interesses dos professores brasileiros [...]." (GOUVEIA; FERRAZ, 2013, p. 116). Desse modo, ao longo das últimas décadas, temos observado certa diversidade em termos de organização dos movimentos de greve na educação e de atuação das entidades e associações representativas dos professores. Há que se considerar, também, que em se tratando de greve docente, há diferenças até mesmo na mobilização e nas ações praticadas por professores do ensino básico e superior e professores dos estados e dos municípios.

Como se observa, apesar dos elementos que diversificam as características dos movimentos de greve em cada um desses segmentos, mantém-se a luta por melhores condições de trabalho e salários e, mais do que isso, defende-se a valorização dos profissionais que atuam com a educação e a escolarização de uma forma geral.

Dito isso, atenta-se que compreender uma greve, seus dispositivos legais e sua organização, não é tarefa fácil. No senso comum, muitas vezes, deparamo-nos apenas com o lado negativo das paralisações. Vejamos que muitos de nós, ao longo de nossa vida social, participamos de uma greve, ainda que de forma indireta, pois certamente fomos acometidos pela suspensão de algum serviço em decorrência de movimentos grevistas. Questionamos, diante dessa situação, como a população analisa a greve, considerando-a, igualmente, como um direito, compreendendo sua função social ou construindo juízos mais negativos e unilaterais.

Uma greve envolve múltiplas questões que não são aparentes, mas processuais, históricas, multifacetadas que requerem análises mais profundas para sua compreensão. É nesse sentido que queremos abordar esse fenômeno social, considerando sua complexidade. Tratamos a greve como um conteúdo de ordem social, na perspectiva piagetiana da construção do conhecimento social, de tal forma a conhecer que concepções e crenças podem existir a respeito do tema, se são diferentes ao longo do desenvolvimento, que elementos as compõem etc.

Para tanto, vamos nos apoiar na teoria piagetiana que explica os processos cognitivos necessários à construção de diferentes tipos de conhecimento, entre eles o social. Em especial, temos nos seguidores da obra de Jean Piaget (1896-1980), estudos específicos que caracterizam a forma como nos apropriamos de conteúdos inerentes ao mundo social, no exterior (DELVAL, 2018; DELVAL, 2007; DENEGRI, 1998; AMAR et al., 2007) e no Brasil (ALMEIDA; SARAVALI, 2017; PERALTA; OLIVEIRA, 2017; MONTEIRO; SARAVALI, 2015).

O conhecimento social se origina e se sustenta no momento da inserção do indivíduo no meio social e, dessa forma, seu desenvolvimento ocorre em contato com o outro, todavia, o sujeito não tem um papel passivo; muito ao contrário, nesse processo, é preciso valorizar o trabalho de construção pessoal que cada um realiza, a partir de suas próprias construções intelectuais e afetivas (DENEGRI, 1998). Essa ideia é bastante coerente com os pressupostos da teoria da equilibração (PIAGET, 1975) e indicam uma posição clara sobre como o mundo social se torna um objeto de conhecimento na perspectiva construtivista piagetiana. Isto significa que aquilo que é socialmente partilhado e vivenciado é transformado e reorganizado por um sistema individual que lhe atribui sentidos próprios.

Por isso, observamos nos estudos desenvolvidos na área, o fato de que não basta estarmos imersos em distintas realidades sociais, ou mesmo termos acesso a certas informações por meio de transmissões ou ensinamentos, ainda que não fracionários. Para que tenhamos condições de compreender os aspectos globais, históricos, processuais e até mesmo subjetivos dos fenômenos sociais, a capacidade de organização destes elementos é essencial . Para exemplificar, no estudo de Saravali e Guimarães (2010), estudantes, imersos em diferentes ambientes escolares, não compreendiam o funcionamento da escola, bem como o papel do professor; em Mano e Saravali (2014) observou-se que mesmo os estudantes tendo contato com o conteúdo da perspectiva científica sobre a origem da Terra e da vida, em suas aulas de Ciências, não conseguiam trabalhar com explicações mais complexas para o problema das origens; na pesquisa de Cooper e Stoltz (2018), participantes já adultos e que utilizavam o cartão de crédito mostraram um conhecimento elementar quanto ao seu uso, especialmente, em relação ao pagamento mínimo da fatura. Esses estudos e tantos outros, realizados no exterior e no Brasil, evidenciaram os processos percorridos por nós ao objetivarmos a compreensão das questões sociais.

Ao retratar os processos percorridos para a construção do conhecimento social, Delval (2002, 2007, 2018) identifica uma evolução que percorre três níveis, denominados por ele de níveis de compreensão da realidade social. Tais níveis indicam a maneira como são compreendidas as questões sociais, os elementos que as compõem, as resoluções possíveis, os papéis implicados, entre outros aspectos. Em cada nível, percebem-se possibilidades de interpretação que auxiliam o indivíduo em seus processos interacionais cotidianos e, como nos aponta Delval (2007), conhecer estas possibilidades é muito importante, pois elas dirigem a maneira pela qual os indivíduos se relacionam com o mundo social. De igual modo, acreditamos que “A construção de representações precisas da realidade, incluindo-lhe a si mesmo e os outros, é sem dúvida, o maior ganho da espécie humana, sua arma mais poderosa para controlar a natureza.” (DELVAL, 2007, p. 48).

Dessa forma, apreender como são compreendidas as questões envolvendo uma ou várias greves, são informações significativas para que possamos analisar as interpretações dos sujeitos diante de um acontecimento importante de nossa sociedade, caracterizando-se, também, como uma investigação inédita, uma vez que não encontramos estudos que tenham se debruçado sobre essa temática, no contexto brasileiro e no internacional. Ainda, a greve é, também, uma forma de expressão que envolve muitas pessoas e diversos interesses. Os juízos, as interpretações e as reações que uma greve provoca possuem vínculo com a forma como o mundo social é pensado e, por isso, conhecê-los nos parece algo importante e que traria contribuições aos estudos sobre a construção do conhecimento social no Brasil.

A esse respeito, destacamos que alguns autores brasileiros (SOUZA; SARAVALI, 2016; MANO; SARAVALI, 2014) vêm diagnosticando e apontando uma diferença na construção do conhecimento social em nossos participantes, sugerindo a existência de um atraso na evolução dos níveis indicados por Delval e sua equipe, assim como pelos estudos internacionais. Nas investigações realizadas aqui, os sujeitos demoram mais para construir noções mais processuais, complexas, de cunho mais relacional e menos aparente; em alguns estudos essa evolução nem mesmo é identificada e há prevalência de crenças bastante limitantes a respeito de diferentes fenômenos sociais.

Por essas razões, objetivamos investigar as interpretações sobre a greve: seriam evolutivas? Elas se modificariam conforme a idade? De quais elementos se formariam? Ainda, pretendemos avaliar, também, a construção do conhecimento social em participantes mais velhos do que aqueles usualmente entrevistados nas pesquisas da área, com a intenção de observar se o atraso apontado em outros estudos se mostraria significativo.

Finalmente, buscamos a comparação de sujeitos provenientes de contextos sociais diferentes - alunos de escolas públicas e particulares - com o objetivo de observar se suas crenças são diferentes ou não.

2 MÉTODO

A pesquisa tem natureza qualitativa e quantitativa, realizada na modalidade de estudo evolutivo transversal, pautado no método clínico-crítico piagetiano (DELVAL, 2002), do qual participaram 80 sujeitos, entre 06 e 21 anos, regularmente matriculados em escolas públicas e privadas e em universidades públicas e privadas de uma cidade do interior do estado de São Paulo. O critério de inclusão na amostra foi a concordância em participar da pesquisa, isto é, tivemos uma amostragem por conveniência, após esclarecimentos sobre os procedimentos e aspectos éticos.7

Atendendo aos critérios do estudo evolutivo transversal (DELVAL, 2002), os participantes foram organizados da seguinte forma: 20 sujeitos de 06 anos, 20 de 11 anos, 20 de 16 anos e 20 de 21 anos. Ainda, para cada grupo etário, houve divisão quanto à origem da instituição escolar, assim, 10 sujeitos eram de instituições públicas e 10, de instituições privadas.

O instrumento empregado para a coleta de dados foi uma entrevista clínica semiestruturada, pautada no método clínico-crítico piagetiano (PIAGET, 1979) que tem por característica os desdobramentos de uma questão em outras não programadas. Para desencadear a entrevista, utilizamos uma tirinha (Figura 1) da personagem Mafalda (QUINO, 2003), apresentada a seguir:

Fonte: QUINO (2003, p. 23, tira 1).

Figura 1 Tirinha utilizada na coleta de dados. 

Para os participantes menores, procedíamos à leitura da história e uma conversa sobre o que haviam entendido. Aos maiores, era solicitado que lessem e, posteriormente, explicassem o que haviam interpretado. Em seguida, para todos os participantes, eram feitas as seguintes perguntas: Você leu? Gostou? Por quê? O que aconteceu na história? Do que elas estão falando? Por que no fim a Mafalda diz que a boneca gritaria “greve”? O que é greve? Você já ouviu falar sobre isso? Onde? O que acontece numa greve? Por que existem greves? Quem são as pessoas que fazem parte da greve? Como a greve começa? Ela acaba? Como? E depois de uma greve, o que acontece com as pessoas que estavam envolvidas? Você acha que as greves poderiam ser evitadas? Como? Vamos imaginar uma situação: você chegou à escola e ficou sabendo que não terá aula, pois os professores entraram em greve. O que você acha dessa situação? Você acha que a greve é algo bom ou ruim? Há outras coisas que as pessoas podem fazer além de greves? Quais?

Todas as entrevistas aconteceram nas instituições escolares dos participantes, em salas destinadas à realização da pesquisa, somente na presença do entrevistador e entrevistado. As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas para análise.

A análise baseou-se na construção dos níveis de compreensão da realidade social, propostos por Delval (2002). Especificamente para a noção pesquisada, foi possível, ainda, a divisão dos níveis em subníveis, conforme o autor explica: “O problema dos subníveis ou subestágios não é fácil de resolver. Nos trabalhos que realizamos, nem sempre é fácil distinguir subestágios com precisão, e estes dependem do assunto tratado.” (DELVAL, 2002, p. 234). Além disso, foram comparadas as respostas dos estudantes provenientes das escolas públicas e particulares.

Após análise inicial, os dados obtidos também passaram pela avaliação de juízes (FAGUNDES, 1981). Dessa forma, 25% dos protocolos foram analisados pelo crivo de outros dois avaliadores da área, tendo alcançado 75% de concordância com o avaliador 1 e 88% com o avaliador 2, garantindo a fidedignidade e objetividade dos resultados.

3 RESULTADOS

A análise de todos os protocolos permitiu, num primeiro momento, observar mudanças mais ou menos constantes, com características mais simples e aparentes que, aos poucos, se transformavam, mediante o acréscimo de elementos diferenciados, embora calcadas em explicações ainda muito rudimentares. Observamos a existência de três níveis I, II e III, conforme Delval (2002) emprega na maioria de suas análises, subdivididos em seus respectivos subníveis: a e b.

3.1 Nível I

O primeiro nível é o das aparências e das interpretações quase românticas sobre as questões sociais (DELVAL, 2018). Nas crenças apresentadas não há conflitos, não se percebem questões ocultas e qualquer problema é sempre solucionado pela boa vontade e boa intenção das pessoas envolvidas.

3.1.1 Subnível Ia

O primeiro subnível, que observamos em nossos protocolos, possui características quase anedóticas, pois a palavra greve é confundida com grave, breve, entre outras. A tirinha apresentada é de difícil compreensão e as respostas giram em torno da ideia que os participantes apresentam para a palavra greve, numa construção “ao pé da letra”. Outros citam a greve de fome, mas no sentido de se fazer um regime ou querer emagrecer. Alguns exemplos:

IZA (6;2): O que será que é greve, você sabe o que é greve? Ficar sem comer? Ficar sem comer é greve? Eu acho [...]. E por que então as pessoas fazem isso; por que existem as greves? Porque eles querem ficar mais magros.

NIC (6;1): E aí porque será que a Mafalda disse que o boneco ia gritar greve se ele fosse aqui do nosso país? Você sabe o que é greve? Tchau. Será que greve é a mesma coisa que tchau? Você já ouviu falar disso de greve? Até breve. Até breve é quando a gente fala tchau? Isso. É, mas não é breve, é greve. Greve, então, essa palavra ficou difícil.

ISA (6;1): [...] Porque eu acho que pode ser uma doença muito greve de gripe.

3.1.2 Subnível Ib

Nas respostas agrupadas como deste nível, percebe-se um início de definição embora a greve sempre seja algo distante da realidade dos entrevistados. Para eles, a greve tem um movimento visível, associado a uma reclamação na forma de gritos e cartazes, conforme o excerto a seguir:

GUI (6;4): [...] greve é um negócio que as pessoas querem aumentar o salário pra ganhar mais dinheiro, abrir mais fábricas para deixar tudo mais seguro. Mas não está tendo greve no nosso país, só em outros. Onde está acontecendo greve? Na Alemanha, no Japão e França. E o que acontece numa greve? O que acontece... fazem protestos. O que é isso? É quem carrega uma placa assim dizendo que quer mais coisas, aumentar salário.

Tem-se a presença constante de relações pessoais e não institucionalizadas - a greve inicia-se sempre pela vontade própria de alguém e, dessa mesma forma, tem um fim determinado. É interessante notar que as crenças desse subnível não relacionam a greve a um trabalho não executado ou a um serviço não prestado, mas unicamente a uma forma de protesto, sem a consideração de processos:

MAE (11;2): E a greve acaba? Acaba. Como que ela acaba? Quando o prefeito faz as coisas que as pessoas pediram. Só desse jeito que acaba a greve? Eu acho que sim. E depois de uma greve o que acontece com as pessoas que estavam envolvidas? Se o prefeito fazer o que eles estavam pedindo elas param de ficar brava, mas se ele não fizer elas vão continuar brava do mesmo jeito e pode sair na rua de novo.

As características deste subnível culminam em dificuldades para compreensão da noção social, que persistem mesmo entre os participantes mais velhos:

AYS (21;8): [participante exemplificava uma greve de professores universitários] Olha, como eu não estou dentro da instituição eu não sei te falar o que foi para melhoria, mas pode ser, né, eu acredito que sim, né. Eles não iam parar por uma coisa que não seria tão incerto [...]. Foi por conta do salário, né, mas eu acho que cada professor tem os seus motivos, mas eu não sei te falar o porquê, né, às vezes alguma coisa que está insatisfeito, né. E por que existem as greves? [...] é justamente porque tem alguma coisa que tá insatisfeito que eles querem lutar, né, agora ao certo, assim, o que é greve eu fico pensando, como eu nunca presenciei, eu fico meio desejar.

3.2 Nível II

O segundo nível refere-se ao desprendimento das aparências, embora a consideração do que seja oculto não ocorra de forma plena; há, portanto, um equilíbrio buscado por este desencontro a todo o momento. Dessa forma, as soluções para as divergências são bastante difíceis já que implicam muitos aspectos e perspectivas, ainda complexas, para as coordenações dos sujeitos em questão.

3.2.1 Subnível IIa

Nas respostas reunidas aqui, a tirinha passa a ser mais facilmente compreendida embora observemos a permanência dos elementos visuais, em específico, aqueles inerentes a um protesto. Os processos não visíveis, que começam a ser inferidos, podem ser observados em diversos elementos ainda com forte característica figurativa; dentre eles temos a ideia de que a greve começa com uma pessoa que “se junta aos demais”.

Nota-se, também, uma polaridade - ou a greve é avaliada de maneira positiva ou negativa, e as considerações de diferentes perspectivas e aspectos é um processo bem mais árduo, que os sujeitos ainda terão de percorrer.

BAB (16;1): E como que a greve começa? Você reúne o pessoal, você conversa com pessoal, você fala tem que melhorar isso, isso e isso, a gente quer lutar por isso e aí todo mundo se reúne, todo mundo entrando no mesmo acordo e vai.

JUL (11;0): É uma coisa que os funcionários fazem porque não aceitam o que está tendo na empresa. Eles param de trabalhar e ficam protestando. E o que acontece numa greve? As pessoas ficam levantando placas e falando as coisas que não concordam na empresa ou na escola [...]. E você acha que as greves podem ser evitadas? Acho que sim. Quando as pessoas que estão insatisfeitas forem falar com a coordenadora o que está acontecendo. E elas iam falar antes de acontecer a greve? Sim. E além das greves as pessoas podem fazer alguma outra coisa? Antes de tudo falar que estão insatisfeitos, antes de fazer uma manifestação. [...] eu acho errado de certa maneira. Por que errado? Porque os professores estão sendo pagos e as pessoas estão pagando e têm o direito de ter aula, as pessoas estão pagando por direitos.

As soluções para que a greve não aconteça, ou para seu fim, dependem, ainda, mais de questões pessoais do que institucionais (aspecto que veremos com mais frequência no subnível seguinte). Alguns exemplos:

AEX (16;10): E você acha que as greves podem ser evitadas? Sim, podem. Exercendo a melhor função desde o tesoureiro até dos professores daqui mesmo, se houver harmonia entre tudo isso fica perfeito. Como seria isso? Como eu poderia exemplificar isso, seria a conjunção de ministros, diretores, professores, alunos, representantes de todo o poderio como se fosse um só. Pra entrar num consenso de um pensamento só.

AND (16;6): Você acha que as greves poderiam ser evitadas de alguma forma? Como que você acha que poderiam ser evitadas? Sim, se elas poderiam ser evitadas se tipo tivesse um modo mais eficiente de comunicar aos governadores o que os governados pensam, o que eles querem, aí eles poderiam ouvir e poderiam tomar algumas medidas que fossem melhor.

3.2.2 Subnível IIb

A relação da ideia de greve com trabalho se consolida e percebe-se uma diferenciação entre fazer greve e protestar, no sentido único anteriormente retratado (cartazes, passeatas etc.). Neste subnível, greve deixa de ser somente aquilo que podem ver.

A análise sobre a ocorrência de um movimento grevista considera as diferentes perspectivas e a greve pode ser interpretada de forma mais positiva ou negativa, dependendo da posição dos envolvidos. Há mais elementos nas respostas aqui caracterizadas, em que os sujeitos não apenas mencionam uma ou outra greve vista na mídia ou na própria cidade, por exemplo, as greves de professores, de bancários, entre outros (o que ocorria no nível anterior). Aumenta-se a possibilidade de quem pode fazer uma greve, bem como de seus envolvidos.

No que diz respeito ao fim da greve, os sujeitos distanciam-se das soluções imediatistas e conseguem, inclusive, apontar formas não pacíficas para seu término. São exemplos:

FER (11;2): E depois de uma greve, o que você acha que acontece com as pessoas que fizeram parte disso? Bom, eu acho que talvez elas possam ser detidas ou expulsas do local onde elas trabalham. Por que isso acontece? Porque os donos, eles ficam bravos com essas pessoas estarem meio que falando pra todo mundo o problema que está acontecendo lá.

JAQ (16;11): Por exemplo, uma greve de trabalhadores, é imposto algo no trabalho deles, por exemplo, uma diminuição de salário, como todos estão indignados eles se reúnem e param de trabalhar até que seja ouvido o que eles desejam, que seria manter o salário como estava [...]. E depois que a greve acaba o que acontece com as pessoas que estavam envolvidas? Isso varia, porque geralmente eles colocam até nas reivindicações da greve que eles não sejam punidos, ou seja, removido o salário coisa do tipo dos dias de greve, mas às vezes acontece isso. Você fala eles, os trabalhadores? Sim.

MAN (21;6): E o que acontece numa greve? A paralisação, por exemplo, de funcionários, que param de trabalhar porque eles querem o direito deles e para conquistar este direito eles paralisam para chamar atenção, para ver se consegue.

3.3 Nível III

O terceiro nível é o da análise das possibilidades e da coordenação de perspectivas. Processos não visíveis e papéis institucionais ocupam lugar de destaque nas crenças desses sujeitos.

3.3.1 Subnível IIIa

No primeiro subnível, claramente faz-se alusão a um serviço que é interrompido e é isso que caracteriza uma greve. Nesse sentido, os significados são analisados sob um ou outro ângulo e aparecem o patrão, o empregado, assim como a diferenciação da greve numa instituição pública e numa instituição particular, entre outros aspectos.

Como os resquícios pessoais vão sendo substituídos por uma abordagem mais processual e crítica, falar de greve é algo mais geral e menos baseado em eventos específicos vivenciados ou conhecidos pela mídia. Entretanto, os sujeitos reconhecem que os elementos que compõem uma greve, sejam as relações de trabalho e seus envolvidos, não são facilmente coordenados, uma vez que se tratam, muitas vezes, de processos históricos. Dessa forma, ainda que elas aconteçam de forma pontual, em uma ou outra instituição, sempre irão existir como mecanismo de luta e reivindicação. A percepção daquilo que pode ser feito pelos envolvidos durante uma greve se torna maior. Alguns excertos:

MAO (16;6): Ao analisar a história reflete: Do que será que elas estão falando? A primeira, amiga dela está falando como se fosse um bebezinho que chama a mãe e a outra está falando como se fosse um trabalhador que tipo está sentindo dor. Você achou isso? Sim. Por que você achou que ela poderia estar falando de um trabalhador que está sentindo dor? Porque pra fazer greve o trabalhador, acho que tipo tem que sentir alguma coisa, alguma coisa que está faltando, alguma coisa que está ruim. [...] E por que existem as greves? Para reivindicar esses direitos, porque eu acho que, assim, o patrão não vai se colocar muito no lugar do trabalhador, então os trabalhadores têm que mostrar que eles estão passando por alguma dificuldade ou alguma coisa assim.

MIL (16;8): [...] E como que a greve começa? Eu acredito que a greve começa quando o trabalhador enxerga, por exemplo, ou ele percebe que ele está sendo explorado demais, que ele precisa ganhar mais dinheiro naquilo que ele exerce. Possivelmente quando ele enxerga, ele vê em outra empresa ou de outros lugares, de outros estados, outro país, os trabalhadores na mesma condição dele têm condições melhores, salários melhores, alguma coisa assim e eles ficam indignados com isso e querem os mesmos direitos que eles têm.

DOM (21;0): [...] ah, ela começa como uma insatisfação ou uma coisa que vem vindo há um tempo já e vem, às vezes, até solicitado de outras maneiras ofício, informes, solicitação, mas não muda, aí entra num consenso entre as pessoas que estão ali insatisfeitas, daí é discutido o que a gente pode fazer e uma das formas é a greve, e daí tem votação a favor ou contra, quem se abstém e, a partir daí, a gente pode começar uma greve ou não [...]. Como você acha que uma greve termina? Geralmente acaba, depende ou até ser atendido e tipo negociando ali, levando propostas. Daí o empregador, ele dá uma resposta positiva ou negativa que não muda muito, geralmente acaba quando consegue entrar nesse acordo [...] ou então pode acabar por um desgaste mesmo. E como seria esse desgaste? Ah, eu acho que tanto de pessoas porque a greve tipo tem que estar lá todo tempo né, pode levar dias, meses, não sei se pode chegar a anos também, então, às vezes, o desgaste pode levar ao fim da greve [...].

3.3.2 Subnível IIIb

Percebe-se uma análise mais complexa e a greve passa a ser vista como um processo histórico e gradual. Chega-se a falar em direitos e deveres, ainda que eles possam ser confundidos.

Ao contrário dos subníveis anteriores, não há, necessariamente, uma questão específica que deflagre a greve, tampouco se acredita que ela dependa da vontade de uma pessoa. Nesse sentido, os participantes mencionam leis e organizações, tais como os sindicatos que respaldam os movimentos grevistas. Alguns sujeitos vislumbram diferentes formas de participação, inclusive dos que não querem a greve, mas trabalham em prol do coletivo (permanecendo em greve, por exemplo). Embora essas características tenham aparecido em alguns momentos de poucas entrevistas, somente 1 participante pode ser caracterizado como de nível IIIb em todo seu protocolo, como podemos ver a seguir:

ANC (21;9): [...]acho que deve ter alguma lei que abrange isso na questão de que se houver a greve, eu não tenho conhecimento disso, mas eu imagino, pra mim, que deve ter alguma... uma lei [...] eu acho também querendo ou não acaba prejudicando outras pessoas mesmo sem, não é a intenção das pessoas que aderem à greve, mas prejudica, assim como numa universidade acaba prejudicando, porque são pessoas que ficam sem aula, são professores que depois que vão acabar sobrecarregando talvez com matéria pra tentar voltar da onde parou num tempo menor. Eu acredito que, assim, que deve ser uma reivindicação de direito sim, mas querendo ou não sempre alguém acaba prejudicado, eu vejo esses dois lados, o do lado de quem recorre a isso e também de quem precisa na verdade desse auxílio [...] Você acha que uma greve poderia ser evitada? Eu acho que seria isso, meios das pessoas se expressarem mais, de opinarem mais, sei lá, ouvidorias, reuniões, treinamentos [...] agora é que depende muito da situação é bem diferente uma que acontece dentro de uma empresa e o que acontece numa universidade, são coisas totalmente opostas.

A Tabela 1, a seguir, apresenta a distribuição dos participantes conforme os níveis de compreensão da realidade social e o tipo de instituição que frequentavam.

Tabela 1 Frequência absoluta dos participantes nos subníveis e suas instituições 

Subníveis Ia Ib IIa IIb IIIa IIIb
Instituição Idades Pub. Part. Pub. Part. Pub. Part. Pub. Part. Pub. Part. Pub. Part.
06 anos 10 9 - 1 - - - - - - - -
11 anos 1 - 4 1 5 8 - 1 - - - -
16 anos - - - 5 4 3 3 2 3 - -
21 anos - - - 1 4 7 4 1 2 - - 1
Total 11 9 4 3 14 19 7 5 4 3 0 1

Fonte: pesquisa de campo.

Os resultados mostram que há uma modificação na forma como a greve é vista ao longo do desenvolvimento, assim, o avanço na idade vem acompanhado de novos elementos e interpretações que geram modificações nas crenças iniciais. Todavia, corroborando os estudos sobre a construção do conhecimento social realizados no Brasil (SOUZA; SARAVALI, 2016; MANO; SARAVALI, 2014), há um significativo atraso em nossos participantes cujas respostas se concentraram no nível II, mesmo em se tratando de participantes mais velhos do que aqueles usualmente pesquisados.

O que de fato chama a atenção, quando se analisa a dificuldade de uma interpretação mais processual, como são aquelas inerentes ao nível III, é a consolidação de aspectos aparentes, muitas vezes calcados em preconceitos e estereótipos. As ideias que percebemos em nossos entrevistados revelam, muitas vezes, o acesso a uma informação isolada, superficial, não avaliada ou ponderada, e incorporada a um sistema frágil que não consegue lhe atribuir novos significados. Disso decorre a dificuldade em análises, na consideração de perspectivas e na de possibilidades.

Ao longo das entrevistas, tivemos a oportunidade de ouvir muitas ideias assim; os participantes sabiam falar somente da greve concreta que viram numa escola (ou vivenciaram na própria escola), ou aquelas provenientes da mídia. Dentre estas, há confusões gerais de greve com alguma manifestação a que assistiram, como o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e até mesmo com o movimento das Diretas Já, ocorrido na década de 80.

Observamos, também, uma grande dificuldade em se avaliar a greve sob vários ângulos, dessa forma, portanto, somente um lado dos envolvidos era considerado, por exemplo, uma greve de professores sempre parecia injusta com aquilo que poderia ocorrer com os discentes - perder conteúdo, reposições de aulas - e o sujeito só conseguia analisar os efeitos daquilo sobre a sua própria vida enquanto aluno.

As experiências pessoais não acarretam conhecimento mais avançado; muitos estereótipos aparecem como, por exemplo, ANA (11;4) que afirma que os professores, quando fazem greve, ficam de folga e YAS (16;3) para quem os docentes, nestas circunstâncias, estão em férias.

Ainda, certa despolitização de nossos jovens se evidencia em algumas respostas, por exemplo, JUA (21;5) e FRA (21;5) afirmam nunca terem ouvido falar em greve ou pensarem sobre o assunto, antes de começarem a frequentar a universidade.

A permanência numa crença mais simplista sobre uma questão social nos faz pensar como os sujeitos poderão vivenciar processos mais complexos, realizar enfretamentos e posicionamentos de maneira menos unilateral.

Para análise comparativa, conforme as instituições dos participantes, escola pública e particular, utilizou-se o teste de Mann-Whitney. A hipótese nula deste teste supõe que não existe diferença entre a mediana dos alunos das escolas particulares em relação aos alunos das escolas públicas. Se o valor dos dados apresentar valor maior que o nível de significância de 5%, aceita-se esta hipótese nula; caso contrário, podemos rejeitá-la e assumirmos que existe a diferença entre os grupos. O Gráfico 1 representa os dados analisados para verificar se a compreensão da noção social de greve era diferente quanto ao tipo de escola. Vale ressaltar que o Gráfico 1 é um boxplot, sendo ele composto por caixas cujos comprimentos apresentam a variação dos dados em quartis; a linha horizontal em negrito exprime a mediana, abaixo dela o primeiro quartil e acima o terceiro quartil. O valor de máximo e de mínimo do banco de dados são representados pelas linhas horizontais extremas.

Fonte: elaborado pelos autores.

Gráfico 1 Boxplot do instrumento de compreensão da greve segundo o tipo de escola. 

Os dados sobre a compreensão da greve apresentaram maior variação (caixa mais comprida) para os estudantes de escola pública, e o maior nível classificatório deste instrumento foi obtido por um estudante da escola particular (outlier da nota 5). A mediana (representada pela linha horizontal em negrito) para as duas escolas apresentou valor 2.0. O teste de Mann-Whitney, realizado pelo software RStudio, apresentou p valor de 0.8, o que indica que não existe diferença entre as medianas das escolas públicas e particulares para esse conteúdo social analisado.

Esse resultado confirmou estudos realizados anteriormente que comparavam noções sociais em meios socioeconômicos diferentes (CANTELLI, 2000; BARROSO, 2000). Dessa forma, inferimos que não é o meio que pode favorecer a evolução de uma noção social, ou, ainda, que sua influência não seja suficiente para a efetivação das construções. Coerentemente com os pressupostos piagetianos, compreendemos que a qualidade das trocas que são estabelecidas e as possibilidades de reorganizações constantes vivenciadas e atualizadas pelos indivíduos, é que são aspectos essenciais para a construção de um conhecimento social, que considere e relacione perspectivas para além de aspectos aparentes.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tempos de grandes discussões envolvendo representações construídas a respeito de diferentes questões sociais, tais como direitos, política, economia, entre outros, acreditamos que manter estudos sobre o mundo social, e a compreensão que se constrói sobre ele, é de grande relevância, com implicações diretas aos campos pedagógico e psicológico. Diante de um tema historicamente relevante, como o tratado aqui, a partir da perspectiva dos direitos dos trabalhadores, assim como pela própria compreensão da realidade social, questionamos o que, pontualmente, permitiria a construção mais elaborada da noção de greve. Nossos resultados indicaram que a solução para esta questão não está na simples imersão na sociedade, tampouco no avanço da idade, uma vez que esses elementos estavam presentes nos grupos pesquisados.

As questões sociais demandam raciocínios amplos fundamentados em coordenações que os sujeitos fazem para além daquilo que visualizam, leem, assistem etc. Embora as informações externas componham o leque interacional do sujeito e sejam importantes para o desenvolvimento, é a construção de novas formas que o auxiliará a elaborar explicações mais complexas, menos rígidas e menos estereotipadas.

As dificuldades que nossos participantes apresentaram nessa direção indicam que precisamos rever de que forma o conhecimento social vem sendo tratado nos diversos conteúdos escolares, incluindo a maneira como é explorado, vivenciado, questionado, refletido. Do contrário, continuaremos a observar, passivamente, a proliferação de crenças preconceituosas, bastante excludentes e desvinculadas de processos históricos.

Acreditamos que a pesquisa apresentada traga importantes contribuições aos estudos desenvolvidos na área ao promover, também, a necessidade de novas investigações a partir do observado aqui. Dessa forma, uma das limitações de nosso trabalho consiste na possibilidade de generalização dos subníveis para outros conteúdos sociais, tornando suas caracterizações mais comuns e universais. Isso é algo que merece ser pesquisado em diferentes contextos.

A ênfase e o detalhamento desses subníveis trarão melhores condições para se compreender os atrasos encontrados nos participantes brasileiros, assim como permitirão a construção de propostas interventivas, sobretudo no campo pedagógico, coerentes com as possibilidades e necessidades existentes na evolução das interpretações sociais.

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq.

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6A esse respeito, temos registros de associações, conforme identificam Vicentini e Lugli (2009) com a Sociedade Literária Beneficente Instituto dos Professores Públicos da Corte (1874-1875), a Caixa Beneficente da Corporação Docente do Rio de Janeiro (1875), a Associação dos Professores Públicos da Corte (1877), o Grêmio dos Professores Primários de Pernambuco (1879) e o Grêmio dos Professores Públicos Primários da Corte (1881).

7A pesquisa foi submetida e aprovada junto ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (Parecer CEP, Plataforma Brasil, n.1.089.954/15).

Recebido: 05 de Maio de 2019; Aceito: 30 de Setembro de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Suely Marassi de Aguiar. E-mail: suelymarassi@uol.com.br.

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