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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.4 Campinas oct./dic 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i4.8655544 

ARTIGO

ENCONTROS COM-FABULATÓRIOS: CRIAÇÕES IMAGÉTICAS EM VENTOS INDÍGENAS E AFRO-BRASILEIROS

ENCOUNTERS CON-FABULATORIES: CREATIONS IN INDIGENOUS AND AFROBRASILIANS WINDS

ENCUENTROS COM-FABULATORIOS: CREACIONES CON IMAGENES EN VIENTOS INDÍGENAS Y AFROBRASILENOS

Ana Carolina Brambilla Costa1 

Alik Wunder2 

1Mestre em Educação - Universidade Estadual de Campinas. Professora de arte (PEB III) - Prefeitura Municipal de São Carlos - E-mail: carolbramb@gmail.com

2Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas. Professor efetivo. Universidade Estadual de Campinas. E-mail: alik.wunder@gmail.com


RESUMO

A partir das demandas da lei nº 10.639/03, alterada pela lei 11.465/08, este texto articula experiências de encontros entre educação (básica e superior), artes e culturas indígenas e afro-brasileiras, proliferando pensamentos sobre as relações étnico-raciais na convivência escolar e universitária, sobre as dobras epistemológicas e estéticas que esses encontros possibilitam. Essas experiências ocorreram em oficinas realizadas em uma escola de educação do interior de São Paulo e em encontros de criação imagética com estudantes do Ensino Superior da Universidade Estadual de Campinas (SP). Parte-se do conceito de coisa do antropólogo Tim Ingold (2012), e se aposta na criação imagética e na potência do encontro com imagens artísticas que reverberam as culturas indígenas e afro-brasileiras para mobilização de pensamentos sobre educação e relações étnico-raciais. Interessa-nos desdobrar a legislação que baliza as questões étnica e raciais na educação e fabular com essas imagens de artes-áfricas, artes-indígenas, seguindo com elas em fluxos criativos, para nos deixar afetar, pensar, cantar, perambular e rir nos currículos-cotidianos da educação básica e superior.

PALAVRAS-CHAVE: Educação; Imagem; Povos indígenas; Culturas afro-brasileiras

ABSTRACT

Based on the demands of Law 10.639/03, as amended by Law 11.465/08, this text articulates experiences of meetings between education (basic and higher) and indigenous and Afro-Brazilian cultures, proliferating thoughts about ethnic-racial relations in school coexistence and in epistemological construction. These experiments took place in workshops held at the school in the interior of São Paulo and in imagery meetings with students from the State University of Campinas (SP). It starts with the concept of something, by the anthropologist Tim Ingold (2012), and focuses on the imagery and power of the encounter with artistic images that reverberate the indigenous and Afro-Brazilian cultures to mobilize thoughts about education and ethnic-racial relations. It is in this way, to deploy the legislation that targets racial issues in education and the arts with these images of Indian arts, Indian arts, following with them new creative flows, to let us affect, think, sing, wander and laugh in the curricula- basic education and higher education.

KEYWORDS: Education; Image; Indigenous; Afro-brazilian cultures

RESUMEN

A partir de las demandas de la ley nº 10.639/03, modificada por la ley 11.465/08, este texto articula experiencias de encuentros entre educación (básica y superior) y culturas indígenas y afrobrasileñas, proliferando pensamientos sobre las relaciones étnico-raciales en la convivencia escolar y en la construcción epistemológica. Estas experiencias ocurrieron en talleres realizados en el contraturno escolar de una escuela de educación del interior de São Paulo y en encuentros de creación imagética con estudiantes de la Enseñanza Superior de la Universidad Estadual de Campinas (SP). Se parte del concepto de cosa, del antropólogo Tim Ingold (2012), y se apuesta en la creación imagética y en la potencia del encuentro con imágenes artísticas que reverberan las culturas indígenas y afrobrasileñas para movilización de pensamientos sobre educación y relaciones étnico-raciales. Interesa así, desdoblar la legislación que baliza las cuestiones raciales en la educación y fabular con las imágenes de artes-áfricas, artes-indígenas, siguiendo con ellas nuevos flujos creativos, para dejarnos afectar, pensar, cantar, deambular y reír en los currículos- cotidianos de la educación básica y superior.

PALAVRAS-CLAVE: Educación; Imagen; Pueblos indígenas; Culturas afrobrasileñas

***

1 AS POTÊNCIAS DE ENCONTROS

A partir do ano de 2003, dispositivos legais alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e propõem a inclusão das temáticas História e Cultura africanas e afro-brasileiras e História e Cultura Indígena brasileira no currículo oficial da educação básica do país. São elas: lei nº 10.639/03, alterada pela lei 11.465/08 e o Parecer 003/2004 (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana); pequenos textos redigidos no jargão legal e construídos a partir de infindáveis lutas, debates e demandas (ainda em curso, e cada vez mais necessários) dos movimentos negros e indígenas brasileiros. Estes documentos não são, entretanto, frutos meramente teóricos e legais, mas conquistas de lutas sociais pela diminuição da desigualdade e valorização das identidades indígenas, africanas e afro-brasileiras (GONÇALVES; SILVA, 1998) na formação da nacionalidade brasileira. A partir daí, escolas e currículos - historicamente eurocêntricos - obrigatoriamente precisaram encontrar-se com vozes originárias - povos indígenas - e negras-áfricas e suas diásporas. Os textos legais, mais que estabelecer a obrigatoriedade, regulamentam e balizam as possibilidades de inserção dessas vozes culturais na educação.

Podemos acrescentar ainda, a esse cenário de recortes e colagens da legislação que trata de educação e questões étnico-raciais, a sanção da Lei nº 12.711/2012, que garante a reserva de vagas para cotas sociais e raciais no Ensino Superior. Necessidade de encontro com o arcabouço de culturas e histórias africanas, afrodiaspóricas e dos povos originários... E, na raiz, necessidade de encontro com esses corpos que carregam as marcas identitárias negras e indígenas e que povoam, circulam e (re)constroem as perspectivas epistemológicas e estruturais do Ensino Superior. Encontros...

Em seu texto sobre cartografia, Luciano Bedin da Costa afirma que o encontro “é da ordem do inusitado e nunca se faz sem um grau de violência [...] porque nos desacomoda e nos faz sair do mesmo lugar” (2014, p. 72). Em outras palavras, um encontro nos dá a pensar. Deleuze, na série de entrevistas que compõe o Abecedário de Deleuze (1988), alerta que os encontros não se dão apenas com pessoas, mas também com coisas, com obras: livros, filmes, quadros, fotografias... O filósofo refere-se aos encontros que dão a pensar, que mobilizam o pensamento. A partir da perspectiva da filosofia da diferença, movimentamo-nos no sentido de encontrar com obras de artistas afro-brasileiros e indígenas e, com elas, mobilizar criações em escolas e universidades. Que imagens outras estas obras nos oferecem? Como proliferar pensamentos e criações a partir destes encontros?

Tratamos aqui de encontros entre sujeitos - corpos indígenas e afro-brasileiros, e das forças das imagens artísticas que arrastam as marcas existenciais e identitárias desses sujeitos entre as coisas escolares. São os encontros que forçam o pensamento a pensar (DELEUZE, 1998), que deslocam os lugares seguros das imagens. Os encontros entre educação (em suas múltiplas dimensões: espaços, alunos, livros, currículos, professores) e imagens de arte-áfricas e arte-indígenas podem engendrar aprendizagens surpreendentes, quando são encontros repletos de atravessamentos e inquietações. Inquietações que nos atravessam e transformam, quando resistimos a tentação de “traduzir toda alteridade radical até transformá-la em próxima, fazer do outro uma elipse e eclipsá-lo, obrigando-o a se aproximar de nós”, como considera Carlos Skliar (2004, p. 74), discorrendo sobre inclusão. Nem fazer do outro uma elipse, substituindo-o por uma vírgula e subentendendo sua presença; nem fazer com o outro um eclipse, projetando-nos sobre ele até obscurecê-lo total ou parcialmente. Que fazer então? Como tornar outros os intercessores do pensamento, contrair com outros núpcias, até que outros atravessem, ofusquem, desorganizem qualquer pretensão de certeza prévia? Como cavar brechas para que essas imagens-outras, esses corpos-outros no cotidiano das universidades e das escolas, movam as imagens e desejos de educação? Enveredamo-nos pelas imagens-entre, em sobreposições e movimentos constantes que desassossegam o já visto, não para substituí-lo por outras imagens, mais “verdadeiras”. Isso seria apenas deslocar a fronteira mais para lá, adensando novos clichês. Chacoalhar a fronteira é o que interessa a esse texto-movimento do pensar- colocando em risco as certezas, para instigar a invenção de imagens ainda por se fazerem.

As experiências de criação com imagens e palavras que serão descritas adiante consideram o movimento inventivo das imagens - na sua produção e na sua observação - como um exercício também de criação de pensamentos. Como ressalta Amanda Leite, não se trata aqui de pensar em oposições entre o real e o irreal, mas de assumir o potencial de produção de saberes - e realidades - que se movimenta nas perambulações do ficcional. Isso implica “um movimento marginal” (LEITE, 2012, p. 300), de deslizamentos e fissuras, para compreender imagens não como objetos, mas como coisas. Coisas vivas e porosas, em constante movimento e transformações.

Levando adiante a tese de Heidegger, o antropólogo britânico, Tim Ingold, diferencia objeto e coisa: enquanto o primeiro traz uma noção de fato consumado, de superfície externa e congelada, de dado já terminado, a coisa seria “um certo agregado de fios vitais” (2012, p. 29), em comunicação aberta com o exterior, já que os fios que a constituem não estão contidos apenas nela, mas no exterior e em outras coisas... os fios “deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas” (idem, ibidem). A aposta de Ingold nas coisas se faz potente para pensarmos também a educação visual: uma educação que se dá no encontro com imagens, com subjetividades, com instituições que vazam. Imagens em porosidade com as coisas que as cercam e não imagens que se fecham, oferecendo um dado representado; imagens que vazam para além da presença de um observador humano. O autor afasta-se da concepção de conexão ou de agência: não é o caso de dois pontos que se ligam, ou de uma polarização objeto-sujeito em que um tem agência sobre o outro; mas de um fluxo, um movimento no qual os pontos se perdem, pois, o que importa é o trajeto: é no trajeto-processo que a vida acontece, incontida apesar das tentativas de delimitá-la em superfícies organizadas. Esses fluxos de vida estão pulsando nos materiais do mundo, ao contrário da ideia de matéria (ou materialidade) que precisa da força humana para a tornar forma. Assim, “onde quer que olhemos, os materiais ativos da vida estão vencendo a mão morta da materialidade que tenta tolhê-los” (p. 37), seja a erva-daninha rompendo o asfalto, sejam os corpos indígenas pintados com grafismos nos corredores universitários. A percepção para as coisas e os fluxos de vida nos leva a perguntar: onde termina a imagem e começa a educação? Se pensarmos nas superfícies das imagens e em seus materiais como feixes de fios, porosas, quais as relações potentes que estabelecem na educação escolar e universitária? Onde termina a imagem e começa o professor? Que pequenos seres habitam nesses vazamentos? Perguntas sobrevoam e povoam os encontros, no desejo de coexistir e estremecer o trânsito parcamente organizado das identidades na escola-universidade. Esse texto ressoa experiências de encontros e criações com imagens, realizadas durante os anos de 2017 e 2018 em uma universidade e em uma escola pública regular do interior paulista.

Compreendemos que as palavras e imagens aqui dispostas não são capazes de narrar o acontecido nas experiências de criação; assim, esse texto busca deixar-se afetar, experimentar e ser atravessado pelas forças das imagens, criações e corpos permeados por identidades afro-brasileiras e indígenas, para que então proliferem novos pensamentos, novas práticas, novas imagens e até mesmo novas linguagens no encontro entre educação, áfricas e povos originários brasileiros. E este é o convite feito a quem lê: proliferemos.

2 ENCONTROS ENTRE ARTES-ÁFRICAS E ESCOLA

Deslizam imagens de Áfricas. A imagem de África que passava pelo livro didático - manifestações a serem representadas. A imagem de África faminta, seca, desolada. A imagem de África do futebol, da vuvuzela, de Nelson Mandela. A imagem de África da savana, no drama animal-familiar de Simba, o Rei Leão. A imagem de África que reverbera na matriz brasileira. Tantas imagens deslizam, imagens capturadas, stills, que produzem discursos sobre a realidade, evidenciando um determinado momento estético, político ou social e construindo e reconstruindo a memória deste momento (ALMEIDA, 1999, p. 10). O que pode acontecer na sala de aula, quando efervescem essas imagens? O que pode acontecer quando essas imagens se desdobram, multiplicam-se no encontro com imagens-outras, imagens insuspeitadas? Esta experiência reverbera os encontros que deram corpo a uma pesquisa de mestrado em Educação; de agosto de 2017 a maio de 2018 realizaram-se oficinas inventivas encontros entre pesquisadora, imagens de artes-áfricas e estudantes de 8º e 9º anos de uma escola municipal do interior de São Paulo. No contraturno escolar, o grupo voluntário de estudantes e pesquisadora vivenciaram propostas de criações imagéticas e rodas de conversa mobilizadas pelos artistas3; essas criações tinham como materiais as próprias imagens, que se desdobram em outras áfricas possíveis e imaginadas pelos estudantes. Propomos pensar uma educação visual disparada pela legislação que trata das relações étnico-raciais e afetada por outros corpos-imagens, que desviam do desejo de representação predominante na maior parte do sistema escolar básico.

1.2 Selfies, costuras, rituais

Moisés Patrício, Rosana Paulino e Ayrson Heráclito foram os artistas que mobilizaram as ações realizadas nas intervenções nas escolas. Os trabalhos escolhidos são aqueles que reverberam as experiências, memórias, estórias e lutas afro-brasileiras que permeiam os corpos dos próprios artistas. Em seus trabalhos, a fotografia por vezes é material mesmo da arte (como em Moisés), mas também é captura de outros materiais - como os bastidores de Rosana e as performances-rituais de Ayrson: fotografias-fantasmas de outras sensações propostas, e que cambiam entre o registro de uma obra e uma criação afetada pelas forças dos trabalhos fotografados.

Figura 1: Colagem dos trabalhos Aceita? (Moisés Patrício, seleção de série fotográfica digital, 2013-2017. Disponível em: <http://instagram.com/moisespatricio>. Acesso em 28 abr. 2019.), Bastidores (Rosana Paulino, 1997, Catálogo Panorama 97-MAM) e Bori (Ayrson Heráclito, Catálogo do Festival Internacional de Artes da Europa Europalia-Brasil, 2011-2). 

São imagens que dizem das (im)possibilidades de existências desses corpos negros - identidades marcadas - nos fluxos de relações com o urbano, os objetos, os símbolos, as memórias, os racismos cotidianos, as forças in-visíveis dos orixás... Nas escolhas estéticas dos artistas, os corpos-imagens movimentam as próprias marcações identitárias, abrindo terrenos para atravessamentos singulares da imagem como superfície. Mais que representação das experiências desses sujeitos na realidade brasileira e mais que ilustração da matriz africana presente no país, essas imagens atuam como captura de forças (DELEUZE, 2002, p. 62) invisíveis tornadas visíveis nos enquadramentos, cores, materiais.

Na série Aceita?, de Moisés Patrício, a palma da mão direita, aberta, ocupa o centro das fotografias e é emoldurada, acima e nas laterais, pelos objetos e texturas do fundo, que com ela dialogam. A mão-braço, também, carrega uma marca identitária na cor da pele, na pulseira de búzios. Não estamos nos conectando aqui com qualquer tipo de ativação: a mão contextualiza as percepções e afetos do artista paulistano negro, em atitude de oferenda que remete aos rituais das religiões de matriz africana. É uma mão oferecendo, mas em tal ponto de vista que poderia ser a mão de quem observa. O braço vaza.

A força da tática de Moisés Patrício: o título que inquere o observador e a mão que pergunta em silêncio tensionam as relações entre os universos e experiências pessoais do artista - que oferece - e do público - que decide se aceita ou não. Oferecem-se sensações e situações que preferimos não ver, nem falar. E, embora carreguem violências, ao mesmo tempo são visualmente prazerosas. Estão ali, estendidas ao olhar do observador que se vê entre a aceitação do trabalho do artista e de todo um repertório simbólico afrodescendente - o que é palatável- e a aceitação das situações de opressão que se insinuam nas imagens. Assim, o título da série, na relação com as escolhas compositivas e com a forma de circulação das imagens - que se dá pela rede e não apenas em galerias e museus - potencializa uma ação estética indissociada da política. É uma ação política justamente por ser artística, por tensionar no universo da linguagem outros modos de existir que não estejam identificados, classificados, domesticados. A poética gestada na série, inclusive, escapa aos limites das próprias fotografias, desdobrando pensamentos-outros em movimento constante na relação com o público - internauta ou espectador. As imagens gritam em silêncio, mas não dizem de uma representação de identidade negra que poderia ser emoldurada em passpartour e belamente pendurada nos murais escolares na semana de 20 de novembro. Apenas gritam, e os ecos desses silêncios poderiam produzir encontros-fissuras de identidades em trânsito, identidades-culturas que se afetam mutuamente, em tensão?

Os Bastidores de Rosana Paulino também gritam mudos. Imagens espelhadas, trans-feridas, restos fotográficos que ainda exalam solvente. Mas é a costura que tensiona, que força a pensar e a encontrar. Linhas de força, linhas duras, linhas desviantes, linhas emaranhadas...que dão nós. Nós na garganta. Sensação que percorre o corpo no encontro com Bastidores. Nó na garganta porque - o que dizer? Diante dor da existência dessas imagens, recortadas por outras tantas dores e experiências de ser mulher negra brasileira paulistana artista - o que dizer? Assim como nas ofertas de Moisés, a memória aqui não é a da história oficial: é a memória inventada no presente, por um corpo-artista-negra que busca suas raízes familiares e encontra encruzilhadas borradas. A materialidade escolhida pela artista para abordar as marcas - visíveis e invisíveis - de todo o processo histórico nos corpos e memórias ganha força, pois evidencia a manipulação sobre a imagem que representa o corpo. Tendo o corpo negro como eixo condutor da poética visual, as questões de Rosana Paulino e as de Moisés Patrício convergem na invenção de um passado que é presente, de memórias que são fluxos de forças históricas e cotidianas que atravessam esses corpos. De acordo com Stuart Hall, os corpos foram “os únicos espaços performáticos que nos restaram”, marcados pelas heranças culturais e pelas condições - sobremaneira violentas - das diásporas (2003, p. 342). Assim, os corpos afrodiaspóricos talvez sejam o material mesmo do testemunho dos traumas (ou sua impossibilidade) nos processos de escravização e marginalização social. As invenções com imagens destes corpos, na poética dos artistas, é também uma maneira de os tornar polifônicos, em movimentos dinâmicos entre experiências singulares e memórias coletivas.

O testemunho estético do corpo é radicalizado pelo trabalho do baiano Ayrson Heráclito, que propõe em suas performances (registradas pela fotografia) um mergulho na experiência ritual embebida nos referenciais do candomblé. Nas palavras do artista, a performance-ritual busca curas. Curar os espaços, curar os corpos em sua relação com os objetos e alimentos. Aqui o pensamento místico de raiz africana se radicaliza de forma a não ser representado nas obras, mas ser a base mesma de compreensão do fazer artístico por parte de Ayrson Heráclito. Entender a performance artística como um ritual é adentrar o campo da arte com referências radicais das cosmogonias africanas e afrodiaspóricas. É, assim, também um ativismo político, místico, quase xamânico, no qual o corpo não é o suporte da arte, mas segue os fluxos de seu material; o corpo é uma coisa, como a entende Ingold. Na performance Bori (2009), a coisa-corpo está em fluxo constante com coisas-alimentos, na oferenda que faz aos orixás de cabeça. Para cada umas das doze cabeças (12 performers convidados) são oferecidos os alimentos rituais de cada orixá. E as energias envolvidas no ritual - o que é invisível e presente - registradas em fotografias, que circulam por diversas exposições. As fotografias4 de Bori carregam em si uma ambiência ritualizada, um fluxo de energia que remete ao sagrado. No enquadramento próximo aos rostos, na luz que doura os alimentos e corpos, os performers parecem mais espírito que corpo, vibram em energia concentrada.

Os referenciais identitários das culturas afro-brasileiras emergem nas obras de Heráclito, Rosana Paulino e Moisés Patrício, interlocutoras deste texto, e também nas de inúmeros artistas que partilham destas questões. Emergem, mas não se deixam capturar, não se deixam domesticar, em fluxo de forças que desafiam o documento fotográfico como registro de cultura. A coisa-corpo é recorrente: é no corpo que se evidencia a marcação identitária da cor da pele; é o corpo que transita no espaço urbano; é o corpo que guarda memórias muito antigas - seja de torturas e impossibilidades, seja de ritos, mitos e transgressões. Corpos singulares e coletivos, atravessados por multidões de outros. Como analisa o crítico Roberto Conduru “...os artistas acabam por instaurar uma África irrestrita a continentes e nações, uma África complexa, plural, porosa e atual, uma África brasileira. [...]” (apud FERES, 2011, p. 81). Se Roberto Conduru fala de uma África aberta, complexa e plural, é o caso de riscar o uma. As forças-sensações das imagens artísticas instauram áfricas porosas, que vazam, que existem e subsistem nos gritos silenciosos, que (des)inventam identidades, memórias e modos de existência. E que novos movimentos do pensar e do sentir podem ser inaugurados no encontro com essas imagens? É o que apresentamos a seguir, nas experimentações com imagens e palavras realizadas por estudantes nas oficinas de criação a partir das potências dos artistas.

2.3. Experimentando in-ventos Áfricas

Figura 2: Fotografia realizada por estudantes nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

Figura 3: Fotografia realizada por estudantes nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

Figura 4: Fotografia realizada por estudantes nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

Figura 5: Fotografia realizada por estudantes nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

3 PENSAMENTOS E CRIAÇÕES COM PALAVRAS E IMAGENS AMERÍNDIAS

3.1. Universidade “Terra Indígena” 5

Figura 6: Intervenção urbana “Iawaretê” de Denilson Baniwa (álbum do artista (/www.facebook.com/dbaniwa) 

“Vocês pisam em terra indígena”, lembra-nos Denilson Baniwa, artista visual do Alto Rio Negro, Amazonas, que vive atualmente na cidade do Rio de Janeiro. Suas intervenções urbanas, denominadas “Yawaretê”, inscrevem as palavras “Terra Indígena” junto à imagem de uma onça em espaços estratégicos da cidade. A obra-onça vagueia por universidades, shoppings, ruas da cidade, livrarias, galerias e abre na cidade uma fenda, faz ver o que as diversas camadas e facetas do colonialismo invisibilizam. Não temos a dimensão da riqueza humana que aqui já existia antes da colonização, poucos lembram-se que suas cidades, suas casas, escolas, ruas, estradas, universidades, estão localizadas em antigas aldeias ou rotas de passagem de povos originários. Rodovia “Bandeirantes”, Rodovia “Fernão Dias” e a Rodovia “Anhanguera”... No interior de São Paulo trafegamos por antigas rotas indígenas e, muitas destas estradas, foram nomeadas justamente em homenagem àqueles que exterminaram povos inteiros ou boa parte deles: guaranis, puris, tupiniquins, tupinambás... Não temos a dimensão da riqueza humana que existe no Brasil contemporâneo. Atualmente vivem no Brasil mais de 305 etnias indígenas e são faladas por volta de 274 línguas. Vivemos em um país multi-étnico e multilinguístico. Desconhecer o nome dos povos que um dia viveram nos espaços que habitamos ou não conseguir nomear ao menos cinco povos indígenas contemporâneos é uma experiência desconfortante e, infelizmente, bastante comum nos espaços educativos - escolas e universidades brasileiras. Estamos, de alguma maneira, envolvidos/as nas histórias de genocídio e invisibilidade dos povos originários. Buscamos, em nossas pesquisas e criações coletivas, encontrar com os povos indígenas a partir de suas expressões estéticas, especialmente na aproximação com a vasta produção contemporânea de artistas indígenas na literatura, no cinema, nas artes visuais, e, com estes movimentos, transformar o desconforto da ignorância em uma potência que nos leve a inventar outros recomeços nas esferas individuais, coletivas e institucionais; nas escolas, nas universidades, nas aldeias, nas cidades e nos nossos diversos movimentos teóricos, artísticos e políticos.

A onça e a demarcação performática “Terra Indígena” de Denilson Baniwa foi instaurada na moradia estudantil da Universidade Estadual de Campinas meses antes dos primeiros 63 estudantes cotistas indígenas chegarem a universidade via Sistema de Cotas. A obra anunciou que seríamos chamados na universidade a uma outra relação com esta terra - Campinas - e com esta nação - Brasil. No ano de 2019, recebemos jovens estudantes de mais de 25 diferentes etnias: Baré, Kokama, Desana, Kotiria, Tukano, Baniwa, Guarani, Terena, Pankaruru, Kubeo, Borari, Xukuru, Tuyuka, Ticuna, Guarani, Guajajara, Tariana, Pankará, Pira-Tapuya, Tupiniquim, Wauja, Atikum, Kuikuru, Pankará, Krenak... Com eles e elas nos chegam suas experiências de sobrevivência e resistência ao contato com a sociedade não-indígena, nos chegam diferentes línguas, conhecimentos, artes, formas de organização social e política, cosmovisões, conceitos, narrativas... chegam-nos modos de existência de um outro Brasil que a maioria de nós, não-indígenas, pouco conhecemos. E vale perguntarmo-nos: por que pouco conhecemos? Para Kaká Werá, escritor e ativista indígena, o que chamamos de descoberta do Brasil foi um grande desencontro:

Desencontro que gerou genocídios e continua [...]. O desenvolvimento da ciência e sabedoria indígena se deu através de uma percepção interior, do desenvolvimento celebrativo através das danças, dos cantos, das pinturas corporais, da relação harmônica com a natureza. Nós tínhamos o nosso progresso. Esse é o ponto que precisa ser muito bem colocado para se perceber o tamanho do abismo que provocou esse desencontro. (WERÁ, 2017, p. 44-45)

Com as palavras de Werá somos forçados a pensar que será necessário, no encontro com os “mundos indígenas”, colocar em rasura uma ideia única de desenvolvimento nas diversas áreas de conhecimento, levando em conta outros conceitos ameríndios que quase nunca ouvimos, pouco consideramos como válidos e muito raramente colocamos em movimento, seja nas escolas, nas universidades, nas políticas públicas... Como seria pensar a saúde pública em diálogo com os conceitos ameríndios de saúde e cura? Como seria repensar alguns conceitos e metodologias educacionais a partir de uma escuta atenta aos seus modos de educar? Como seria pensar a escrita e a literatura na relação com a força da oralidade indígena? Como seria pensar a arquitetura, a antropologia, a economia, a biologia, a geografia, as artes visuais, as artes do corpo e da cena neste fértil diálogo com os múltiplos regimes conceituais e estéticos dos diversos povos indígenas contemporâneos? Como seria pensar em outros índices de desenvolvimento, levando em conta a ideia de progresso destes povos, como, por exemplo, o conceito de “desenvolvimento celebrativo” e “bem viver” dos povos ameríndios? Kaká Werá, ao ser perguntado sobre como poderia ter sido este encontro, responde: Um encontro baseado no respeito, na verdadeira integração, no intercâmbio (WERÁ, 2017, p. 47). A compreensão de que receberemos na universidade outros povos, outros modos legítimos de estar no mundo, é o que abre para a possibilidade de que uma outra via de encontro aconteça. Atentarmo-nos às malhas de saber e poder que nos impossibilitou o encontro é um caminho desafiante para seguir inventando outras vias. Abre-se no encontro com as poéticas indígenas a possibilidade de outras trajetórias subjetivas: deixar-nos atravessar por esta potência ancestral ameríndia, pelos encontros com histórias familiares e com as riquezas existenciais, linguísticas, artísticas e cosmológicas que nos perfaz. Rotas de encontro estão sempre por vir. Como nas palavras de Ailton Krenak, jornalista, pensador indígena e ativista ambiental: “há sempre um roteiro de encontro em aberto”:

Os nossos encontros ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além do horizonte. Nós estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que existe o roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a oportunidade de reconhecer o outro, de reconhecer na diversidade e na riqueza de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que nós temos. (KRENAK, 2015, p. 164)

3.2 Roteiros inventivos com a literatura de Daniel Munduruku

Recebemos, em 2018, Daniel Munduruku6 como Professor Visitante na Faculdade de Educação da Unicamp. Com sua rica e diversa trajetória como escritor, ativista e intelectual indígena, Daniel trouxe à universidade um pensamento singular mergulhado nas cosmovisões e nas lutas dos povos indígenas em constante diálogo com as diversas vertentes teóricas da filosofia, da educação e dos estudos literários. Experiência que nos possibilitou uma entrada sempre nova e inusitada nas discussões sobre as questões indígenas e suas relações com a educação.

Xipat oboré!7. Daniel Munduruku presenteava-nos com saudações e cantos de seu povo todas as manhãs. A ideia de um “desenvolvimento celebrativo”, como nos diz Kaká Werá, esteve presente em cada uma de suas aulas. Cada encontro era celebrado. Nas histórias narradas pelo escritor/contador de histórias a cada aula, as questões que envolvem a temática indígena, a educação, a cultura, a política e a linguagem chegavam-nos juntas e de forma indissociável, como um grande e caudaloso rio, no qual as águas de diversos ambientes e profundidades se encontram e geram movimentos. A oralidade, a literatura, as corporeidades, as imagens e as musicalidades possibilitaram o encontro com uma grande amplitude de conhecimentos e de novos e desestabilizadores regimes conceituais. As aulas ampliaram nosso conhecimento sobre a diversidade étnica brasileira; sobre os modos que se construiu a invisibilidade e os estereótipos sobre os povos indígenas na linguagem, no conhecimento, na escola e na política e sobre os percursos da luta indígena pelos direitos constitucionais. Suas narrativas indígenas encharcadas de cosmovisões nos enriqueceram com outras formas de conceber a educação, a natureza e a própria humanidade. Como nas suas palavras, os povos indígenas nos oferecem outras temporalidades e também outras imagens de humanidade.

Para além de suas narrativas, experiências de vida e conhecimentos entorno da questão indígena, possibilitou-nos o encontro com livros de diversos escritores e escritoras indígenas contemporâneos8. Um chibé9 de sabores e de aprendizagens. Os livros atuavam como coisas vivas, afetando-nos em sua força proliferadora de imaginações e criações entre a literatura e as artes visuais. A cada dia Daniel nos oferecia um conjunto de obras diversas de escritores e escritoras indígenas, semeadas, colhidas e disseminadas por ele. Um dia aconteceu um banquete, nos deliciamos com narrativas indígenas de diversos escritores e escritoras. Por horas nos dedicamos a leitura compartilhada de várias obras, imersos/as nas atmosferas cosmológicas de diversos povos oferecidas pelos escritores/as Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Roni Wasiry Guará, Auritha Tabajara, Jaguaká Mirim, Olivio Jekupe, Kaká Werá Jecupé, Márcia Kambeba, Vãngri Kaingang, Denízia Cruz, Ailton Krenak, Edson Krenak, Jaider Esbell, Yaguarê Yamã, Marcelo Manhuari Munduruku, Luciano Ariabo Kezu... Também estivemos imersos nas criações de ilustradores não-indígenas como Maurício Negro, Rosinha Campos e nas obras fotográficas de Cláudia Andujar....Os livros-coisas repletos de palavras e imagens de outros mundos, ofereceram-se misturados a diversas coisas indígenas - maracas, colares, cocares, cestarias, tecelagens... - E lançamo-nos a criar imagens a partir deste relicário que nos foi oferecido.

Deste mergulho escolhemos a obra “Parece que foi ontem” de Daniel Munduruku e partimos para as oficinas de experimentações com as imagens movidos/as pelo desafio de colher uma frase e dela desdobrar uma criação fotográfica expandida por desenhos, colagens, raspagens... Convite a deixar a palavra proliferar-se em fluxo com as coisas do mundo, deixar a literatura e a fotografia acontecer como coisa porosa. “Trazer de volta a vida às coisas” é uma expressão cunhada por Tim Ingold a partir das ideias de seguir as forças dos materiais elaborada por Paul Klee e de itinerar nos fluxos, como compõem Deleuze e Guattari (2007). Trazer de volta a vida - a criatividade - é um movimento de “ler as coisas ‘para a frente’” (INGOLD, 2012, p. 38), ou seja, de não percorrer novamente os pontos já traçados, tentando conectá-los, mas de seguir no processo do trajeto; seguir para a frente, seguir as forças dos materiais, seguir os fluxos dos emaranhados de linhas, em movimentos de “descarga e vazamento”, no contrário da captura e contenção. Neste movimento de fabulação imagética com a literatura, nos deixamos guiar pelas ressonâncias daquilo que atravessou os corpos, a pele, no contato, na superfície, de tudo que os encontros entre coisas e gentes embrenhou as mentes, os corações e as imagens.10

Figura 7: Imagem criada por Mariana Fogaça nas oficinas. Acervo pessoal, 2018. 

Figura 8: Imagem criada por Victor Hugo da Silva Iwakami nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

Figura 9: Imagem criada por Ana Carolina Brambilla nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

O sábio vai para o centro da roda e conversa com o fogo, com o vento, com a terra, com a água, enquanto todos nos mantemos firmes em nosso cântico, única certeza que temos de manter o céu suspenso. Voltamos a falar uns com os outros. O velho fala: “Nosso canto e nossa dança são formas milenares de nos mantermos unidos e de mantermos a harmonia do Universo. Sem nosso canto seríamos inúteis. Sem nossa dança nada teríamos”.

Figura 10: Imagem criada por Rode Simonele Alves nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

Precisamos da memória de nossos parentes-seres. Eles nos lembram que somos parte da teia. Nossos cantos nos lembram que é preciso celebrar. Nossa dança nos mostra que somos iguais. Velhos, homens e mulheres maduros, jovens e crianças, somos todos importantes como o são a Terra, a Água, o Vento e o Fogo, nossos irmãos primeiros.

Figura 11: Imagem criada por Kaê Spessotto Okano nas oficinas. Acervo pessoal. 2018. 

4 FECHAMENTOS SEMPRE ABERTOS A OUTRAS ROTAS DE ENCONTROS

Os pensamentos e experiências inventivas aqui apresentados desejam descobrir a vida que pulsa nas imagens-coisas, em geral, contida em superfícies bem organizadas e legendadas no cotidiano escolar e universitário. Os encontros com as imagens da arte, aqui propostos, entendem-nas como coisas. Coisificar as imagens que perambulam e constituem os espaços é também percebê-las intercessoras do pensamento, nas vibrações da força de vida de seus materiais: os materiais do mundo e os materiais das imagens em contaminação incessante nos fios soltos que vazam. Propomos, então, assumir imagens-coisas para lê-las para frente, sem desejo de buscar nelas verdades ou representações, mas querê-las parceiras nos delitos com-fabulatórios.

Fabular é movimento que anseia o corpo no balanço do “entre”, da iminência e da imprevisibilidade dos arranjos. Não se cumpre uma criação possível, perambula-se atrás do que ainda é porvir; nem real nem ficção porque essas categorias já não bastam, já não se opõem, antes se amalgamam. É movimento de “experimentação no real” (BOGUE, 2011, p. 22), na ânsia de liberação de tudo o que “esmaga e aprisiona” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 15). Desejo de criar vida, incontida, irrestrita, incontrolável: “[a] fabulação tem a força da linha de fuga, daquilo que escapa” (MARQUES, 2015, p. 162). Deleuze (1996) retoma a fabulação de Bergson entendendo-a em um sentido político. Aqui, fabular é movimento indispensavelmente político que se prolifera nos arranjos dos materiais poéticos: imagens em movimento, reproduções impressas de fotografias artísticas, palavras, sons, gestos.

Como sinaliza Daniel Lins (2012), pensando estética como acontecimento, na Língua Portuguesa a palavra ética encontra-se contida em estética. Buscar por essa est-ética na educação para as relações étnico-raciais; est-ética, que não tem desejo de “(...) uma verdade, de uma natureza preexistente ou de uma vontade de fazer dela um dogma, uma opinião (...)” (2012, p. 20), mas que arfa por contaminações, forças múltiplas e multiplicáveis, invenções. Amalgamar poética e política: est-ética.

A fabulação é um movimento sempre em vários, no limiar, no entre-intercessores. Ser matilha, já que “O inventor nunca é um, mas multidões: intensidades andarilhas” (LINS, 2012, p. 20). Em intensidade andarilha, os movimentos do pensar neste texto propõem ser arrebatados pelas forças das imagens, seguir em suas vagas, inventar COM. Resistir aos murais explicativos que paralisam seus fluxos: insistir em sentir a pulsação poderosa da vida nas/das imagens-coisas. Com-fabular com essas imagens de artes-áfricas, artes-indígenas, seguindo com elas novos fluxos criativos, para deixar-nos afetar, pensar, cantar, perambular e rir nos currículos-cotidianos da educação básica e superior.

REFERÊNCIAS

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3Mais detalhes da pesquisa realizada podem ser encontrados na dissertação “Confabulações no meio-fio: itinerâncias entre imagens, africanidades, escolas e cidade”, disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/333145?mode=full >.

4Fotografias que circulam nas exposições e compõe o catálogo do Festival Internacional de Artes da Europa Europalia-Brasil (2011-2).

5Parte deste item foi publicado na revista de divulgação científica e cultura Coletiva, em janeiro de 2019 (www.revistacoletiva.com.br).

6Daniel Munduruku tem pós-doutorado em literatura (UFSCar), doutorado em educação (USP), graduação em filosofia e licenciatura em história.

7“Tudo de bom” em língua munduruku

8Para mais informações sobre literatura indígena ver: Livro Colaborativo Bibliografia da Literatura Indígena, Coordenado pela bibliotecária e pesquisadora Aline Franca, pelo escritor Daniel Munduruku e pelo bibliotecário e pesquisador Thulio Gomes. Disponível em : https://pt.wikibooks.org/wiki/Bibliografia_das_publica%C3%A7%C3%B5es_ind%C3%ADgenas_do_Brasil Acesso em 15 abril 2020.

9Bebida indígena preparada com água e farinha.

10Este trabalho compôs a exposição “Parece que foi ontem” realizada na Casa do Lago da Unicamp no 21º Congresso de Leitura do Brasil, em julho de 2018. TEXTOS: Livro “Parece que foi ontem”- Daniel Munduruku. IMAGENS e MONTAGEM: estudantes da disciplina “Temática Indígena na Escola” oferecida por Daniel Munduruku (Professor Visitante da Faculdade de Educação, Unicamp e AUTOR X (Professora da Faculdade Educação, Unicamp). OFICINAS DE CRIAÇÃO: Fotografia, desenho e colagem - Coletivo Fabulografias - Davina Marques, AUTOR X e Marli Wunder. Publicado na Revista de Divulgação Científica e Cultural Climacom- http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9684 .

Recebido: 30 de Maio de 2019; Aceito: 28 de Abril de 2020

Revisão gramatical realizada por:

Marcio Tadeu Girotti. E-mail: girotti_mtg@hotmail.com.

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