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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.1 Campinas jan./mar 2021  Epub 24-Jun-2022

https://doi.org/10.20396/etd.v23i1.8656236 

Ensaio

“VER O QUE TEMOS DIANTE DO NARIZ REQUER UMA LUTA CONSTANTE”: A PÓS-VERDADE COMO DESAFIO À EDUCAÇÃO NA ERA DIGITAL

“TO SEE WHAT IS IN FRONT OF ONE’S NOSE NEEDS A CONSTANT STRUGGLE”: POST-TRUTH AS A CHALLENGE TO EDUCATION IN THE DIGITAL AGE

“VER O QUE TENEMOS ANTE NUESTRAS NARICES REQUIERE UNA LUCHA CONSTANTE”: LA POST-VERDAD COMO DESAFÍO A LA EDUCACIÓN EN LA ERA DIGITAL

Gilson Cruz Junior1 

1Doutor em Educação - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Florianópolis, SC - Brasil. Professor adjunto do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará (ICED/UFOPA). Liberdade, PA - Brasil. E-mail: gijao05@hotmail.com


RESUMO

Este ensaio tem como objetivo discutir as interfaces entre pós-verdade e cultura digital, refletindo sobre algumas das implicações formativas advindas desse vínculo. Por intermédio desse esforço foi possível vislumbrar a complexidade do fenômeno, que se dilui pelas esferas da política, economia, psicologia, comunicação e epistemologia. Dentre os atores inseridos neste território, destacam-se as fake news, a pós-modernidade, o negacionismo científico, a propaganda, os filtros-bolha, o capitalismo de vigilância e os vieses cognitivos. Por fim, constata-se que os principais desafios educacionais nesse cenário convergem para a reconstituição e o fortalecimento da prática cidadã alinhada aos princípios republicanos e democráticos.

PALAVRAS-CHAVE Pós-verdade; Cultura Digital; Educação; Comunicação

ABSTRACT

This essay aims to discuss the interfaces between post-truth and digital culture, reflecting on some of the formative implications arising from this bond. Through this effort it was possible to glimpse the complexity of the phenomenon, which is diluted by the spheres of politics, economics, psychology, communication and epistemology. The actors present in this territory are fake news, postmodernity, scientific negationism, propaganda, bubble filters, surveillance capitalism and cognitive biases. Finally, it concludes that the main educational challenges in this scenario converge on the reconstitution and strengthening of citizen practice aligned with republican and democratic principles.

KEYWORDS Post-truth; Digital Culture; Education; Communication

RESUMEN

Este ensayo tiene como objetivo discutir las interfaces entre la post-verdad y la cultura digital, reflexionando sobre algunas de las implicaciones formativas que surgen de este vínculo. A través de este esfuerzo fue posible vislumbrar la complejidad del fenómeno, que se diluye en las esferas de la política, la economía, la psicología, la comunicación y la epistemología. Entre los actores insertados en este territorio, hay noticias falsas, posmodernidad, negacionismo científico, propaganda, filtros de burbujas, capitalismo de vigilancia y sesgos cognitivos. Finalmente, señala que los principales desafíos educativos en este escenario convergen en la reconstitución y el fortalecimiento de la práctica ciudadana alineada con los principios republicanos y democráticos.

PALAVRAS CLAVE Post-verdad; Cultura Digital; Educación; Comunicación

1 INTRODUÇÃO

A cultura digital representa um fenômeno prenhe de temas e debates em ascensão. Trata-se de uma pauta que tem sido gradualmente nutrida pela crença no potencial revolucionário das tecnologias digitais de informação e comunicação. Além do incremento significativo nas possibilidades de acesso ubíquo e circulação global da informação, a cibercultura é frequentemente exaltada por inaugurar novas formas de inclusão e participação social, contribuindo para o empoderamento político dos indivíduos e para a radicalização da vivência democrática no século XXI.

Paralelamente, surgem também novos desafios que vêm dissipando a aura inerentemente redentora das tecnologias digitais, revelando seus efeitos colaterais sobre os modos de pensar e agir desenvolvidos pelos indivíduos conectados. Um dos exemplos é a crescente onda de fake news que inunda os ambientes on-line. Trata-se de uma problemática que pode ser entendida como uma dentre várias consequências inesperadas da ascensão da web 2.0 e seu conjunto de ferramentas e serviços que retiraram o usuário da condição de consumidor passivo, alçando-o ao status de prosumer2. Nesse sentido, uma das principais respostas dadas à preocupante torrente de notícias falsas é a criação de técnicas e instituições responsáveis pelos processos de checagem e verificação de fatos (fact checking).

A despeito de seu mérito, iniciativas como essa parecem ainda não ser suficientes para anular a disseminação de informações falsas. Em boa medida, isso ocorre por conta da dificuldade de compreender a natureza e as especificidades do contexto político e cultural do qual elas emergem. Desse modo, o objetivo deste trabalho é discutir o fenômeno da pós-verdade, identificando suas articulações com a cultura digital e refletindo sobre as suas implicações na educação.

Trata-se de uma pesquisa teórica de natureza bibliográfica e com caráter exploratório. Logo, não pretende produzir inferências generalizáveis, tampouco respostas definitivas sobre a problemática destacada. É um estudo com contornos ensaísticos que busca estabelecer as características gerais da pós-verdade, mapeando suas alianças e formas de cumplicidade com a cibercultura e as tecnologias de informação e comunicação. Para isso, além do diálogo com a literatura especializada, organiza-se de acordo com o seguinte itinerário de discussão: 1) relações entre fake news, pós-verdade e pós-modernidade; 2) interfaces entre pós-verdade e cultura digital; e 3) implicações formativas e educacionais do cenário descrito.

2 FAKE NEWS COMO SINTOMA DA PÓS-VERDADE

Em termos de ponto de partida, é comum que os debates sobre fake news façam alusão a acontecimentos recentes e polêmicos que geraram fortes impactos na esfera geopolítica mundial. Dentre os mais frequentes, sobressaem o triunfo de Donald Trump no pleito presidencial de 2016 e o Brexit, referendo que determinou a saída do Reino Unido do bloco de países da União Europeia. Até hoje, ambos os episódios vêm sendo apontados como sinais de alerta para o aumento da influência das notícias falsas sobre os processos de constituição da opinião pública, de modo a interferir na tomada de decisões de interesse local, nacional ou mesmo global. A literatura disponível sobre o tema parece entrar em consenso sobre o fato de que esses eventos estão intimamente ligados à pós-verdade (D’ANCONA, 2018; MCINTYRE, 2018; KAKUTANI, 2018).

Por sua vez, a pós-verdade não deve ser confundida com uma simples consequência ou um efeito colateral das fake news e sua proliferação, já que ela constitui um amplo tecido que interconecta múltiplos fenômenos e ocorrências, que nem sempre possuem relações claras e lineares de causalidade entre si. Do mesmo modo, ainda que eventos paradigmáticos como os já referidos Brexit e eleições norte-americanas estejam associados a guinadas conservadoras, é fundamental que o debate sobre a problemática não seja cooptado por rixas ideológicas. Isso significa que a pós-verdade não deve ser classificada como uma manifestação restrita a segmentos de direita ou de esquerda, uma vez que seus efeitos podem ser sentidos em todos os espectros políticos.

As notícias de conteúdo inverídico não são um advento recente. D’Ancona (2018) esclarece que, ao longo da história, políticos, governantes e veículos de comunicação oficiais e não oficiais sempre se utilizaram do expediente da mentira para manipular as massas de acordo com seus interesses. Por isso, segundo o autor, o cenário da pós-verdade não se caracteriza pelo surgimento ou pela multiplicação de informações enganosas, e sim pela mudança no modo como as pessoas lidam com esse tipo de conteúdo. Mais especificamente, a sociedade civil, segmento ao qual pretensamente cabe o papel de combater todas as tentativas de falseamento da realidade, passou a não apenas tolerar essas distorções, mas também a buscá-las e, em casos cada vez mais frequentes, a defendê-las.

Além de seus efeitos para a experiência cotidiana, as notícias falsas também representam um desafio no âmbito conceitual. Enfrentar as fake news nem sempre se resume à definição e ao amadurecimento de operações crítico-analíticas capazes de classificar informações, separando-as em “verdades” e “mentiras”. Partindo da noção de “desinformação”, Fallis (2015) ressalta que o cerne das notícias falsas reside menos em seu conteúdo manifesto do que em suas intencionalidades implícitas. Nesse sentido, sugere que elas podem tanto resultar de equívocos ocasionais (misinformation) quanto de ações deliberadamente fraudulentas (disinformation). Diante dessa distinção, esclarece que técnicas de análise e verificação de fatos eficazes para as primeiras podem não lograr o mesmo êxito com as últimas e vice-versa. Nesse contexto, a desinformação deliberada3 é mais difícil de reconhecer, uma vez que a fonte desse tipo de material normalmente não deseja que a sua natureza enganosa seja descoberta, esforçando-se para ocultar os propósitos escusos da sua elaboração.

Além disso, a própria noção de verdade e a sua complexidade, por vezes, são perdidas de vista. Numa breve mirada na história do pensamento ocidental, Abbagnano (2007) descreve a verdade como conceito fortemente dirigido ao conhecimento e às suas condições de validação e apropriação: “em geral, entende-se por verdade a qualidade em virtude da qual um procedimento cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito” (p. 994). Essa definição abrange tanto concepções de conhecimento e operações mentais, quanto processos linguístico-semióticos. Também associa a verdade a formas de “correspondência”, “revelação”, “conformidade a uma regra” e “coerência”. Trata-se de uma ideia que esteve no nascedouro de diferentes ramos do saber e disciplinas, como a Filosofia, a Ética e o Direito.

Do mesmo modo, a verdade é uma categoria que também possui relações íntimas com o campo político. Desde Platão (2001), o respeito e a busca permanente pela verdade se apresentam como princípios estruturantes da vida republicana, consagrando-se como elemento estratégico no fortalecimento e na manutenção da democracia, contexto no qual assume o papel de vacina contra as ameaças da tirania. Além destas, os helênicos também identificaram os riscos apresentados pela figura dos demagogos, cujos sofismas subvertem a lógica e a razão públicas em função da retórica, agindo no sentido de obscurecer verdades em vez de revelá-las. Também é de origem platônica o entendimento de que a ilusão do domínio do conhecimento e da verdade é mais perigosa que a ignorância em estado bruto, uma vez que esta pode ser mais facilmente superada do que a primeira. Desse modo, a verdade corresponde a uma espécie de terreno comum, um núcleo rígido e impenetrável em torno do qual gravitam todas visões de mundo e em função do qual devem ser mediados embates, diferenças e negociações.

Em vista disso, é conveniente pontuar um equívoco comum nos debates sobre a pós-verdade: nesta, a verdade não desaparece ou simplesmente dá lugar à mentira institucionalizada, e sim deixa de ser considerada um valor social dominante e inegociável. Em seu lugar, assume o centro o apelo às emoções, crenças e ideologias, que acentuam seu protagonismo nos processos de configuração da opinião pública. Com a crescente exposição de escândalos, crimes e violações envolvendo grandes autoridades nas últimas décadas, o cidadão comum se tornou mais suscetível à cultura de desconfiança e ceticismo no que se refere à política representativa, fazendo-o ceder a um estado geral de exaustão em relação à necessidade permanente de buscar a verdade (D’ANCONA, 2018). Como resultado, essa situação favoreceu a propagação de uma espécie de resignação cognitiva coletiva: quando as pessoas desistem (consciente ou inconscientemente) de compreender racionalmente a realidade, suas nuances e contradições, conformando-se com preconcepções, experiências pessoais e narrativas fragmentárias.

Com isso, as tentativas de enfrentar as consequências da pós-verdade frequentemente são freadas pela dificuldade de realizar diagnósticos precisos em relação à natureza do fenômeno. Em geral, suas caracterizações são relativamente heterogêneas, reunindo conjuntos de fatores que habitualmente diferem de acordo com a referência consultada. Um dos exemplos é Kakutani (2018), que associa a ascensão da pós-verdade a forças como o declínio da razão, as guerras culturais, o déficit de atenção, o ataque à ideia de realidade e os trolls. Essa perspectiva reflete a profusão de interpretações em relação aos determinantes circunstanciais da pós-verdade no âmbito da literatura dedicada ao tema, revelando a dificuldade de dissociar o fenômeno de outros assuntos emergentes no âmbito da cultura, da política e da comunicação (D’ANCONA, 2018; MCINTYRE, 2018; KAKUTANI, 2018).

A despeito dessa polissemia, uma leitura transversal também é capaz de auxiliar na identificação de traços supostamente recorrentes da pós-verdade. Um dos exemplos é o consenso em torno da centralidade da pós-modernidade, entendida como alicerce epistemológico do fenômeno. Na perspectiva de Jean François Lyotard (1988), o pós-moderno pode ser associado ao estado generalizado de descrença em relação aos grandes relatos filosóficos de cunho metafísico. Também chamadas de metanarrativas, essas formulações são conhecidas por sua incontornável pretensão à universalidade e atemporalidade. Nessa categoria encontram-se enunciados caros ao projeto da modernidade, como a suposição de que o progresso da humanidade tem como seu principal baluarte a razão esclarecida, aptidão cuja expressão máxima reside, ou pelo menos residiu, na atividade científica. Ao ameaçar prognósticos dessa natureza, o pós-moderno ajudou a corroer a ideia de verdade, deslocando-a do posto de revelação etérea para a condição de objeto de disputa em jogos de poder e linguagem, ou seja, “a verdade seria o resultado da vitória do discurso mais sedutor ou daquele mais forte para impor o seu discurso” (KARASEK, 2010, p. 79). Entre as diversas implicações desse paradigma, destaca-se a multiplicação das brechas para a contestação das regras instituídas nos processos de produção da cultura e do conhecimento.

Em conexão direta com o pós-moderno, encontra-se outro fenômeno em franca ascensão: o negacionismo científico. O declínio da verdade como princípio socialmente valorizado trouxe consequências para todas as atividades que historicamente se beneficiaram dessa ideia. Como parte desse conjunto, a ciência tem sido destituída da função de produtora de saberes insuspeitos, isto é, dotados dos mais altos níveis de confiabilidade. Com a sua desvalorização no mercado do conhecimento, a autoridade da ciência cada vez mais tem entrado em atrito com multidões de leigos que, não raro, são movidos por sentimentos de insatisfação e discordância em relação aos saberes-verdade consagrados em laboratórios e institutos de pesquisa. Entre outros desdobramentos, essa situação concorre para o acirramento dos conflitos entre teorias científicas e crenças ideológicas4, revelando novos atores como o terraplanismo, o antissemitismo revisionista e o movimento antivacina.

Em suas frentes organizadas, o negacionismo costuma recorrer ao argumento de que os resultados e os desdobramentos da ciência, sobretudo os que vão de encontro aos seus interesses, são tendenciosos, desqualificando-os por sua suposta ausência de neutralidade. A esse respeito, Mcintyre (2018) esclarece que, nesse tipo de acusação, frequentemente subjaz a tentativa cínica de minar a ideia de que a ciência é justa, levantando dúvidas sobre a capacidade das investigações empíricas serem efetivamente imparciais. Segundo o autor, essa tática baseia-se em uma visão equivocada, ou em uma hipocrisia deliberada, acerca de como a atividade científica realmente funciona. Não importa quantas evidências uma teoria reúna, ela nunca terá condições de ser apresentada como “a verdade”, uma vez que o surgimento de novos métodos e modos de experimentação pode revelar dados e informações capazes de refutar teorias antes referendadas pela própria ciência. Ou seja,

[...] em algum momento os cientistas devem admitir que mesmo suas explicações mais fortes não podem ser oferecidas como verdade, mas apenas uma crença fortemente outorgada com base na justificação sustentada em evidências. Essa alegada fraqueza do raciocínio científico é frequentemente explorada por aqueles que afirmam ser os verdadeiros cientistas - afinal, se a ciência é um processo aberto, então não deveria estar em jogo a exclusão de teorias alternativas. Até que uma teoria seja absolutamente provada, acreditam eles, uma teoria concorrente poderia ser sempre verdade

(MCINTYRE, 2018, p.19-20, tradução livre).

Atualmente, movimentos negacionistas têm reivindicado a validade de uma amalgama de teorias “alternativas”, que nem sempre se respaldam em procedimentos e métodos reconhecidos por sua comunidade de especialistas correspondente. Esse raciocínio é frequentemente acionado em debates como a inserção do criacionismo nos currículos escolares. Atiçada por instituições educativas confessionais e setores religiosos, essa iniciativa tem buscado afirmar a legitimidade do referido sistema explicativo no que diz respeito à capacidade de demonstrar as origens da vida e do universo. Indiretamente, tentam estabelecer uma falsa equivalência entre o criacionismo e o evolucionismo, igualando-os no status de “teorias”, mas, ao mesmo tempo, ignorando os dispositivos acadêmicos de validação científica que consagraram o segundo em relação ao primeiro. Vale ressaltar que esforços como esse ganham projeção com a consolidação da episteme pós-moderna, na qual, após deixar o plano da verdade metafísica, o conhecimento do real assumiu um viés perspectivista, por vezes relativista, distribuindo-se simetricamente por entre múltiplas comunidades interpretativas.

3 (DES)MONTANDO A ESFINGE DA PÓS-VERDADE NA ERA DIGITAL

As observações feitas até então ajudam a evidenciar o fato de que a pós-verdade não resulta de relações causais inteiramente claras e facilmente identificáveis. Longe de ser uma ideia simples e coesa, esse fenômeno emerge do choque entre várias influências oriundas das esferas política, cultural, econômica e tecnológica.

No que diz respeito à última, destacam-se as transformações induzidas pela consolidação da cultura digital. Mais precisamente, a pós-verdade se alimenta de mudanças estruturais induzidas pela transição de paradigmas comunicacionais ao longo do último século: do modelo linear, centrado na comunicação de massa e em meios como a TV, o cinema, o rádio e a mídia impressa, para um modelo reticular, materializado na forma de diversas plataformas digitais de sociabilidade como Facebook, Twitter, Instagram e YouTube. De acordo com Pierre Levy (2017), esse cenário trouxe transformações radicais à esfera pública, como a possibilidade de acesso irrestrito a um volume crescente de informação, a ampliação da liberdade de interconexão em nível planetário e a multiplicação das vias de expressão pública. Antes confinado à posição de receptor-espectador, o indivíduo se empodera e alcança o status de “usuário”, gozando de prerrogativas como: 1) reduzida interferência de instâncias moderadoras do processo de comunicação (editores, produtores e diretores); 2) liberdade de escuta e expressão com alcance capaz de atingir audiências globais; e 3) estabelecimento de vínculos e comunidades capazes de transcender limites espaço-temporais e conectar pessoas independentemente de sua localização. Estes e outros fatores têm alimentado o imaginário de que a era digital contribui para a radicalização da experiência democrática, ao fornecer aos indivíduos “comuns” mais e melhores meios de participação política.

Entretanto, a visão redentora da comunicação digital esconde desdobramentos sociais intimamente vinculados à pós-verdade, a exemplo das bolhas sociais. Diante do cenário de hiperabundância informacional que caracteriza a cibercultura, o usuário passou a depender de uma gama cada vez maior de recursos para obtenção de informações do seu interesse. Para isso, além de ferramentas tangíveis como motores de busca e sites de pesquisa, entra em ação uma gama de mecanismos invisíveis controlados por inteligência computacional. É o caso dos algoritmos que, em tempo real, reúnem dados de navegação do usuário, processando e convertendo-os em perfis individuais que são responsáveis por reunir, organizar, selecionar, hierarquizar e, com frequência, omitir informações recebidas em canais como feeds de notícias e timelines. Graças a isso, tornou-se possível represar a torrente de dados que circula na rede, proporcionando a cada internauta uma experiência on-line calculada, personalizada e, por vezes, singular.

Em contrapartida, esse tipo de artifício cobra um preço elevado no âmbito das percepções individuais e coletivas de mundo. Ao se retroalimentar das escolhas feitas pelo próprio usuário, os sistemas algorítmicos de triagem informacional também nos confinam no interior de bolhas sociais, moldando nossa compreensão da realidade ao interferir na tessitura de nossos laços e de nossas interações intersubjetivas. Como alerta Pariser (2012), é como se essas estruturas produzissem um conjunto de efeitos (auto)doutrinários: quando nossas próprias decisões são utilizadas para potencializar nossa afinidade com coisas e ideias que já conhecemos, em detrimento de perspectivas que extrapolam nossas zonas de interesse imediatas.

Na bolha dos filtros, há menos espaço para encontros fortuitos que nos trazem novas percepções e aprendizados. A criatividade muitas vezes é atiçada pela colisão de ideias surgidas em disciplinas e culturas diferentes. A combinação dos conhecimentos de culinária e da física cria a frigideira antiaderente e o fogão elétrico. Mas, se a Amazon pensar que estou interessado em livros de culinária, é pouco provável que me mostre livros sobre metalurgia. Não só esses encontros fortuitos que estão em risco. Por definição, um mundo construído a partir do que é familiar é um mundo no qual não temos nada a aprender. Se a personalização for excessiva, poderá nos impedir de entrar em contato com experiências e ideias estonteantes, destruidoras de preconceitos que mudam o modo como pensamos sobre o mundo e sobre nós mesmos

(PARISER, 2012, p. 19).

Partindo do apelo às emoções em detrimento dos fatos, a pós-verdade vem se amparando em modelos de sociabilidade consagrados na cultura digital, cujas manifestações mais evidentes confluem no sentido da tribalização do pensamento e da consciência de mundo. De par com o relativismo epistemológico alavancado pela pós-modernidade, a experiência on-line favorece o estabelecimento de um relativismo que é também moral e, por consequência, político. Trata-se de uma tendência intensificada pelo processo de higienização ideológica dos espaços públicos mediados por tecnologias digitais, os quais, graças à ação de filtros-bolha, vêm perdendo o status de território comum partilhado por grupos sociais heterogêneos em regime de abertura dialógica. Em vez disso, plataformas digitais de sociabilidade têm potencializado a constituição de círculos de convivência autocentrados, carentes em intercessões e, por isso, suscetíveis a lógicas sectárias5.

Hoje, o debate sobre a pós-verdade também está imbuído de uma tônica normativa, deslocando suas principais discussões na direção de “porquês” em detrimento de “o quês”: por que a verdade está deixando de ser um princípio indispensável? Por que as pessoas estão se tornando não só mais tolerantes, mas também, em casos cada vez mais numerosos, dependentes e até mesmo cúmplices de conteúdos inverídicos? Ao refletir sobre essas questões, Mcintyre (2018) enquadra a desinformação como uma das estratégias presentes nas disputas de poder que emergem na esfera pública:

Alguém não contesta um fato óbvio ou facilmente confirmável sem motivo; uma pessoa o faz quando é para sua vantagem. Quando as crenças de uma pessoa são ameaçadas por um "fato incoveniente", é preferível contestar o fato. Isso pode acontecer num nível consciente ou não-consciente (já que às vezes a pessoa que estamos tentando convencer somos nós mesmos), mas o ponto é que esse tipo de relação pós-verdadeira com fatos ocorre apenas quando estamos procurando afirmar algo que é mais importante para nós do que a própria verdade. Assim, a pós-verdade equivale a uma forma de supremacia ideológica, em que seus praticantes tentam obrigar alguém a acreditar em algo, quer haja ou não boas evidências. E esta é uma receita para a dominação política

(MCINTYRE, 2018, p.13, tradução livre).

Essa perspectiva chama atenção para um dos principais ramos de atividade em ascensão na pós-verdade: a propaganda. Diferentemente da ciência e do jornalismo, campos nos quais o compromisso ético com o rigor metodológico e com os fatos representa, ao menos formalmente, um fundamento inegociável, a propaganda é normalmente associada à retórica e aos artifícios de persuasão que, em geral, não dependem da verdade para alcançar seus fins. No livro How Propaganda Works, Jason Stanley (2015) reflete sobre as razões que levam certos tipos de desinformação a serem mais eficazes do que outros, e sobre como essas mentiras conseguem refratar evidências contrárias, mesmo sendo a posse da verdade, em tese, um interesse de todas as pessoas. Para o autor, a propaganda tem como objetivo a manipulação da vontade racional no sentido de um fechamento para o debate, utilizando-se de artifícios como a fraude, a desorientação, a intimidação e o estereótipo. Por esses expedientes, a propaganda política atua como instrumento que permite explorar e fortalecer as fragilidades e imperfeições de uma ideologia: mais do que enganar e iludir, a propaganda é uma tentativa de governar e dominar sem o uso de artifícios radicais como a violência.

Não é sem motivo que a propaganda tenha se consolidado historicamente como traço recorrente em iniciativas de cunho populista e em regimes totalitários. No âmbito da pós-verdade, a submissão da informação à lógica da propaganda é um dos elementos que vêm impulsionando a ascensão de líderes autoritários: “O objetivo da propaganda não é convencer alguém de que você está certo, mas demonstrar que você tem autoridade sobre a verdade. Quando um líder político é realmente poderoso, ele pode desafiar a realidade” (MCINTYRE, 2018, p. 113). Para isso, a propaganda conta com um extenso arsenal constituído por instrumentos como macartismo, divisão de adversários, bodes expiatórios, linguagem incendiária, além do já referido apelo tático às emoções. Desse modo, mais do que generalizar as fake news, a pós-verdade intensifica a subordinação dos fatos às visões de mundo e posições ideológicas, tendendo a se agravar em cenários marcados pela polarização política.

À medida que adentra o território da propaganda, a informação revela a sua função identitária. Stanley (2015) ressalta que para promover a dominação política a propaganda se concentra na busca por lealdade, fazendo com que, diante de um quadro de disputa de poder e hegemonia, cada indivíduo seja induzido a escolher um lado, um “time”. Ao propagar ideias acopladas a afetos impermeáveis à vontade racional, a propaganda se torna um terreno fértil para crenças falsas que, ao se interconectarem, dão origem a sistemas interpretativos viciados capazes de aproximar indivíduos e, por consequência, construir comunidades. Dessa maneira surgiram muitas das teorias conspiratórias e pseudociências em ascensão na contemporaneidade, a exemplo do terraplanismo, cujas ideias originárias acionam crenças falsas como: 1) o ser humano nunca esteve na Lua; 2) as imagens existentes do planeta Terra são fruto de computação gráfica e, portanto, inverídicas; e 3) cientistas estão a serviço das classes dominantes, que, por sua vez, não desejam que a platitude da Terra seja revelada. Stanley denomina esses sistemas discursivos de “ideologias falhas” e esclarece que, uma vez implantadas no imaginário coletivo, estas se tornam autossuficientes e passam a não depender mais da propaganda para existir, podendo reativar as crenças falsas que as constituem sem a necessidade de um reforço externo.

No âmbito da cultura digital, o uso social da informação pode tanto expressar vínculos de pertencimento, quanto forjá-los. Cada grupo consome, organiza e redistribui informações de acordo com a compatibilidade de seu conteúdo com os discursos e significados que sustentam a unidade coletiva. Ao compartilhar notícias em seu perfil nas redes sociais, um usuário não dá apenas visibilidade ao relato jornalístico de um acontecimento, mas também afirma implicitamente sua vinculação a um dado segmento político, religioso ou cultural, materializando publicamente sua posição. Nesse sentido, a problemática da pós-verdade não se esgota no binômio verdade-mentira, uma vez que, mesmo desconsiderando toda a desinformação em circulação, uma informação verdadeira ainda poderá ser rejeitada por não corroborar as narrativas estruturantes de uma dada identidade social. Dito de outra forma, sua legitimidade será aferida de acordo com a sua congruência com os interesses do “time” ao qual cada indivíduo pertence.

4 A PÓS-VERDADE COMO DESAFIO À EDUCAÇÃO: É O BASTANTE DESMASCARAR MENTIRAS?

Com base nas análises realizadas, é permitido afirmar que o fenômeno da pós-verdade impõe diversos desafios de ordem educacional, entre os quais estão as demandas ligadas à formação do cidadão. A cultura digital tem sido aclamada por expandir significativamente as vias de participação social, o acesso à informação e a criação de comunidades globais. Por vezes celebradas como conquistas inerentemente libertárias, essas mudanças têm atuado no estabelecimento de novas configurações de poder. Por consequência, também estão implicadas no surgimento de estruturas de dominação, bem como no ensejo de novas práticas de resistência. Esse enquadramento evidencia o status das tecnologias digitais como agentes políticos, destituindo-as de sua aura de neutralidade instrumental.

Por outro lado, a celebração da multiplicação das referidas vias de participação costuma ofuscar a necessidade de uma observação mais aprofundada em relação ao mérito qualitativo dessas oportunidades, principalmente no que diz respeito à sua capacidade de fortalecer uma cultura genuinamente democrática. Para Morosov (2018), a ascensão da cibercultura tem revigorado correntes positivistas do pensamento político. Essa presença tem se manifestado na forma de especulações e discursos sustentados na premissa de que as tecnologias digitais são capazes de “consertar” problemas da democracia e, como resultado, criar um sistema político perfeito. Com a ajuda de sensores, inteligência artificial e demais recursos que envolvem a Internet das coisas, seria possível reunir e processar um volume imensurável de dados produzidos por todos os usuários-cidadãos, facilitando, assim, a programação de soluções computacionais capazes de fornecer as bases para um regime de regulação algorítmica automatizada e simplificada envolvendo processos de decisão e resolução de conflitos.

Entretanto, a racionalização digital da atividade cívica costuma nutrir uma visão objetivada da política. Nesta, é priorizado o uso inteligente de dados para fins de compreensão de temas diversos e complexos, além da tomada de decisões de interesse público em detrimento de mecanismos tradicionais de deliberação, como o debate, a contradição e a negociação entre sujeitos plurais. A despeito das possíveis potencialidades dessa abordagem, Morosov (2018) esclarece que:

Intuitivamente, a maioria de nós, é claro, sabe que o mundo é mais complexo do que pressupõem as respostas pré-formatadas que os sensores, algoritmos e serviços de IA nos proporcionam. Por mais que os bancos de dados tenham uma capacidade infinitamente maior do que a de nossos cérebros humanos, eles ainda carecem de um componente crucial: a capacidade de narrar a realidade a partir de determinado ponto de vista histórico e ideológico. Os criadores desses sistemas, evidentemente, tentam ao máximo transformar essa deficiência num grande benefício disfarçado, apresentando-a como um passo rumo à objetividade que, uma vez universalizada, nos permitirá levar a política além da ideologia para o domínio dos dados empíricos da racionalidade

(MOROSOV, 2018, p. 142).

A aliança entre pós-verdade e big data está intimamente ligada à crescente importância das tecnologias digitais na organização da vida pública. Nesse caso, essa tendência não se manifesta primariamente sob a forma de uma supressão integral de relatos humanos em favor de dados parametrizados, mas, sim, o contrário: com a proliferação de meios digitais voltados à autoexpressão e sociabilidade, também se multiplicam as narrativas sobre a realidade, criando uma atmosfera favorável ao surgimento de novos enquadramentos, nuances e vozes. Entretanto, por se tratar de um sistema fortemente amparado no modelo das câmaras de eco, essa diversidade, com frequência, se traduz na forma de uma atuação política atomizada, pouco permeável e, não raro, polarizada. Não se deve perder de vista que o fomento à cultura democrática depende da capacidade de “[...] elaborar mecanismos e procedimentos institucionais que permitam às pessoas com visões bastante diversas e opostas não apenas se enfrentarem abertamente, como aproveitarem essa oposição para reforçar a saúde do sistema político” (MOROSOV, 2018, p. 142). Isso significa que, além de suportar a pluralidade de ideias e projetos, a participação cívica efetiva deve garantir o atrito salutar entre posições díspares, de modo a contribuir para a manutenção e o amadurecimento da própria democracia.

De modo insuspeito, a pós-verdade entra em rota de colisão com esse propósito, ao mobilizar forças que contribuem ativamente para o agravamento da crise institucional no âmbito da esfera pública. Na perspectiva de D’Ancona (2018), o século XX nos legou um sistema democrático baseado em instituições, em regras formais e na evolução gradual, no qual estão estabelecidas hierarquias de conhecimento e autoridade que, por sua vez, regulavam a interação de entidades representativas com o estado a partir de protocolos fundamentados. No entanto, segundo o autor, essa estrutura tem sido colocada em xeque pelo crescente conjunto de redes sustentadas por mídias sociais e constituídas por vínculos de natureza não institucional. Paralelamente, a verdade, cada vez mais despida de seu caráter universal, atemporal e apartidário, tem enfrentado dificuldades na tarefa de imbuir formas discursivas socialmente incontestáveis. Como consequência, aumenta a desconfiança em relação aos agentes e às instituições que historicamente ocuparam a função de “arautos” e “juízes da verdade6”, a exemplo de professores, escolas, pesquisadores, universidades, jornalistas e grandes meios de comunicação.

Mesmo em meio ao clima de ceticismo, o combate à desinformação não deixou de figurar na pauta social e educacional. Um dos exemplos é a valorização de propostas de letramento midiático e informacional que, genericamente, tem como alvo a formação de sujeitos dotados de competências de pesquisa, análise, comparação e verificação de informações, aferindo a consistência e confiabilidade destas com base em parâmetros validados por especialistas de áreas acadêmicas e jornalísticas. Trata-se de fornecer a cada indivíduo as habilidades necessárias para discernir racionalmente a “verdade” da “mentira” e, com isso, reduzir os riscos de que sua compreensão da realidade seja contaminada por conteúdos de baixa qualidade, como notícias falsas, hoaxes, pseudociências e teorias conspiratórias. Para ajudar no enfrentamento desse desafio, são conjurados não só aliados mais evidentes, como instituições de ensino e agências de fact checking, mas também agentes inesperados, como a própria “grande mídia”. Esta, até então rechaçada por conta de ocasionais alianças com as classes dominantes e do compromisso com o status quo, tem readquirido força no embate com as mídias alternativas devido à ação da própria pós-verdade7.

Sob outra perspectiva, iniciativas voltadas à promoção de information literacies, apesar de relevantes, parecem ter eficácia limitada. Como vimos, o declínio da verdade como valor fundamental tem suas raízes no acirramento das disputas por hegemonia e dominância. Nesse cenário, a informação deixa de ser apenas um insumo obrigatório em processos de compreensão da realidade e tomadas de decisão, sejam elas individuais, coletivas ou institucionais. Paralelamente, populariza-se o uso da informação como propaganda, que, conforme já explicitado, não tem como objetivo primário iludir e manipular por meio de inverdades, e sim criar e fortalecer vínculos de pertencimento. Ou seja, trata-se de induzir cada indivíduo a escolher “times” e “lados”, seja por meio da oferta de evidências que estimulem a identificação com um posicionamento específico, seja de forma indireta, na produção de adesões reativas resultantes do estímulo à rejeição a uma visão contrária. Uma vez convertidas em munição na guerra em busca da supremacia, a informação, sua confiabilidade e as técnicas de verificação estão propensas a se converterem em meros instrumentos para deslegitimar publicamente visões de mundo, doutrinas e orientações políticas num quadro de antagonismo.

Por essa razão, a defesa irrefletida da “criticidade” nas relações com a informação e com as mídias sociais pode não apenas não contribuir para a superação dos novos jogos de poder instaurados pela pós-verdade, como pode ainda reafirmá-los. As tensões entre verdade, vontade racional e supremacia ideológica estão permeadas por padrões dúbios de credulidade: quando, de acordo com seu posicionamento num embate ideológico, um mesmo indivíduo pode se demonstrar cético em relação a fatos verificados e ao mesmo tempo deliberadamente ingênuo frente a conteúdos de baixa qualidade. Nesse contexto, nem mesmo a “crítica” parece estar imune à possibilidade de se converter em instrumento a serviço da disputa de interesses:

O adjetivo “crítico” é um termo frequentemente relacionado à divisão entre “nós e eles” – ou seja, as pessoas qualificadas como críticas são muitas vezes, simplesmente, aquelas que concordam conosco, ao passo que as que discordam de nós são tidas como aquelas que não sabem criticar. Isto representa uma versão do que foi chamado de “efeito terceira pessoa” em discussões sobre a influência das mídias: sempre os outros são considerados como não tendo competência crítica. Existe sempre também o perigo de que a “capacidade crítica” se torne uma das rotinas padronizadas ou um dos jogos de linguagem das aulas de mídias – um jogo no qual os alunos simplesmente devolvem ao professor as formas de discurso crítico que receberam dele. A ênfase na análise crítica pode sancionar uma abordagem racionalista bastante superficial a respeito da mídia e, até mesmo, uma forma de cinismo superficial incapaz de representar fielmente as maneiras complexas (e não menos emocionais) pelas quais nós realmente nos relacionamos com a mídia

(BUCKINGHAM, 2012, p. 53).

Na condição de desafio à educação, é fundamental admitir que a pós-verdade não age apenas no plano da consciência formal, já que alguns de seus efeitos menos evidentes (e por isso mais desafiadores) se inscrevem em esferas suprarracionais da subjetividade. Essa compreensão diz respeito aos esforços voltados à identificação e à análise das consequências psíquicas do apelo recorrente às emoções por via da informação. Aparentemente, o interesse nessa problemática tem resultado na intensificação dos debates sobre temas ligados à psicologia social e aos vieses cognitivos. Dunning-Kruger, backfire effect, ancoragem, whataboutism, projeção e viés de confirmação designam uma pequena fração das respostas comportamentais intensificadas pela pós-verdade. Em comum, todos esses termos partilham o papel de mecanismo defensivo acionado (inconscientemente) com a intenção de blindar o sujeito de situações de desconforto psicológico, como aquelas que resultam da descoberta de uma verdade espinhosa. Sua função é proteger o ego em circunstâncias em que um indivíduo é confrontado com seus próprios equívocos e eventuais erros de julgamento. Essas situações costumam ser gatilhos de tensão psicológica, uma vez que, como explana Mcintyre (2018), tendemos a superestimar nossas capacidades, de modo a nos percebermos como mais espertos, bem informados e capazes do que somos na realidade. Para ele, somente os egos mais fortes conseguem encarar os fatos que ameaçam a autoimagem idealizada que o indivíduo tende a ter de si mesmo, sem a necessidade de apelar para vieses cognitivos.

Em alguma medida, os aspectos epistemológicos, tecnológicos e culturais descritos estão integrados às tramas da economia política da Internet. Uma das principais contribuições a esse respeito é de Shoshana Zuboff (2019), pesquisadora que ajudou a definir o capitalismo de vigilância, isto é, a nova lógica de acumulação e exploração baseada na vigilância em massa. Seus principais ícones são empresas como Google e Facebook, cujos modelos de negócios se baseiam na maximização do valor dos dados obtidos dos usuários por meios de serviços a eles oferecidos. Para isso, opera de acordo com um ciclo que envolve: 1) inclinação à extração de dados em proporções cada vez maiores; 2) criação de formas contratuais de monitoramento computacional automatizado; 3) personalização e customização de serviços oferecidos aos usuários; e 4) centralidade da infraestrutura tecnológica na realização de experimentos em seus usuários e consumidores. Em geral, a valorização da matéria-prima ocorre mediante o processamento dos dados extraídos e armazenados, cujo resultado deve permitir a identificação de padrões de comportamento do usuário com a finalidade de subsidiar a produção de soluções técnicas capazes de prever e até mesmo modificar esses mesmos comportamentos. Por sua vez, esses recursos são convertidos em mercadorias oferecidas a outras empresas e investidores, materializando-se sob formas que vão desde serviços populares, como o Google Ads, a esquemas controversos, como Cambridge Analytica. Para a autora, o capitalismo de vigilância caminha para se tornar um modelo dominante no que diz respeito à arquitetura da rede, originando impactos civilizacionais ainda não desvendados.

Nos ambientes on-line em que a hiperabundância informacional tem elevado os níveis de saturação e, consequentemente, de exigência do usuário em relação aos conteúdos consumidos, a atenção representa uma commodity cada vez mais valorizada. Atualmente, a capacidade de capturar olhares e engajar internautas não constitui apenas um sinal de carisma, mas também um forte indicador de rentabilidade perseguido por empresas, anunciantes e influenciadores. Não obstante, para além da influência sobre os modelos de negócios da cibercultura, o primado da atenção afeta de igual maneira os processos de subjetivação contemporâneos, resultando na produção de personalidades cada vez mais balizadas pela autoespetacularização e busca permanente de visibilidade. Cada sujeito é impelido a se tornar “uma montagem inspirada nos moldes midiáticos, que seja capaz de con­quistar uma audiência disposta a aplaudir e ‘curtir’ o que somos, porque se trata de alguém que precisa se exibir para confirmar que existe e que é digno de atenção” (SIBILIA, 2015, p. 145). Se, de um lado, a resistência à pós-verdade depende da formação de egos fortes o bastante para serem permeáveis à (auto)crítica, a cultura digital, do outro, tem contribuído para a multiplicação de personalidades altercentradas e cada vez mais dependentes da validação de terceiros expressa por métricas e moedas sociais (likes, comentários, visualizações, seguidores e compartilhamentos).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio teve como objetivo discutir a problemática da pós-verdade, estabelecendo suas interfaces com a cultura digital e a educação, sendo esta aqui entendida em sentido lato. Primeiramente, observa-se que a generalização das fake news pode ser encarada como sintoma da crise da verdade como valor dominante, processo que se encontra associado ao rol de consequências epistemológicas da pós-modernidade. A relação dos indivíduos com a desinformação também é alterada, fazendo com que esta, com frequência cada vez mais significativa, seja não apenas tolerada, como também desejada e defendida. Nessas circunstâncias, a contestação aberta dos fatos se intensifica por conta da crescente primazia adquirida pela busca por supremacia ideológica em relação à vontade racional. Esse deslocamento está ligado a diferentes forças subordinadas à cultura digital, como o primado das bolhas sociais e das câmaras de eco como modelos de integração coletiva, além do capitalismo de vigilância como modelo de acumulação baseado na monetização e criação de valor a partir dos dados do usuário.

Entre as principais demandas da pós-verdade na educação, está o desafio da formação de sujeitos dotados dos modos de agir e pensar capazes de contribuir com o fortalecimento da democracia na era digital. Essa meta implica o reconhecimento não só de novos mecanismos de participação social, mas principalmente de formas de sujeição e dominação emergentes. Em relação a estas, observa-se um deslocamento da ênfase em práticas de silenciamento e censura para o seu oposto, isto é, para a banalização da expressão livre e reiterada. Atualmente, a popularização de meios de comunicação reticular alimenta a esperança na fundação de ramificações on-line da esfera pública, nas quais cada cidadão tem o poder de se manifestar abertamente sobre quaisquer temas. A despeito de seu apelo libertário, o projeto da ágora digital ainda esbarra no protagonismo da propaganda como princípio estruturante da informação em rede, já que esta passa a se concentrar na criação de formas de identificação entre usuários e discursos que, não raro, se alimentam de crenças sem qualquer base factual. Seu papel é estabelecer a indissociabilidade entre ideologias falhas e identidades sociais, ajudando a instituir um estado latente de submissão com base no conformismo ideológico que, via de regra, depende do sentimento de pertença a uma comunidade e da necessidade de validação incondicional dos pares.

Ao canalizar a fidelidade tribal para a figura de um líder, um partido, uma doutrina ou uma ideia, a propaganda lhe(s) concede o poder de afrontar quaisquer atores capazes de ameaçar sua autoridade. Esse antagonismo é frequentemente encarnado pelas instituições responsáveis por garantir o equilíbrio democrático por meio da mediação das divergências e da pluralidade. Não é motivo de surpresa que escolas, universidades e institutos de pesquisa tenham se tornado alvo de investidas antidemocráticas que tentam minar sua legitimidade e desqualificar os conhecimentos que sustentam ou resultam de suas atividades. Nesse cenário, as demandas formativas suscitadas pela pós-verdade não se resumem à mera promoção de competências críticas para a identificação de notícias falsas e demais gêneros de desinformação. É necessário reconhecer que, acima das dicotomias envolvendo fatos e mentiras ou das divergências políticas entre progressistas e conservadores, distingue-se o conflito entre a servidão consentida e o exercício pleno da cidadania. Portanto, é urgente fortalecer os espaços e tempos capazes de reavivar o espírito republicano por meio da participação cívica on-line e off-line norteada pela vontade racional e pela vigilância em relação à ameaça permanente encarnada nas práticas políticas divorciadas de valores democráticos. Entretanto, como reestabelecer uma ação cidadã apartada das paixões tribais e fundada numa ética do bem comum, em um contexto em que a verdade e o próprio projeto iluminista caminham para o colapso? Como viabilizar as respostas institucionais adequadas se estas – as instituições – e a própria democracia estão sob o ataque febril de forças despóticas?

Conforme assinala a frase que dá título a este trabalho, “Ver o que temos diante do nariz”, cada vez mais, “requer uma luta constante”. À luz das evidencias apresentadas, a afirmação de George Orwell, ferrenho opositor das injustiças sociais e dos regimes totalitários, soa não apenas profética, mas também como um alerta para os riscos por vezes imperceptíveis da pós-verdade e da desinformação à integridade de atividades essenciais ligadas à política, ao conhecimento e à sociabilidade no horizonte da era digital.

2Neologismo criado para fundir as palavras producer (produtor) e consumer (consumidor). Uma de suas funções é demarcar o maior protagonismo do indivíduo na comunicação digital em relação à comunicação de massa.

3Deste ponto em diante, o termo “desinformação” será usado apenas como alusão à dimensão intencional das informações falsas (disinformation).

4Convém mencionar que o contexto brasileiro não se encontra distante dessa realidade. De acordo com a pesquisa “Wellcome Global 2018”, realizada com cerca de 140 mil pessoas de 144 países, o Brasil é uma das nações do Planeta com os menores índices de confiança na ciência: cerca de 35% dos brasileiros suspeitam da produção científica e aproximadamente 25% acreditam que ela traz contribuições ao País. Mais detalhes em: https://oglobo.globo.com/sociedade/um-terco-dos-brasileiros-desconfia-da-ciencia-23754327?fbclid=IwAR17WW-J8ESlMyNWOk02ikPlo0R2-71JnVkeXsakUqtJ0fANdw91ogZrxuw.

5Um dos exemplos é o modo como os mecanismos de recomendação presentes em plataformas como YouTube têm impulsionado a divulgação de conteúdos alinhados ao discurso antivacina, por vezes, até de forma monetizada – contrariando o anúncio do site de que vídeos dessa natureza seriam proibidos de veicular propagandas. Mais detalhes em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48695113?fbclid=IwAR3ZfUnFLWimeAjPFcuEG1RRqERLa1IXUPVkKQljFVvBRkjKrEe5Axsez0Y.

6Conforme FORD (2018).

7Em levantamento realizado pelo site “A Pública”, foi observada a tendência de afastamento por parte dos usuários das páginas mais engajadas, que vêm perdendo terreno para os veículos de comunicação tradicionais e suas ramificações na Internet. Mais detalhes em: https://apublica.org/2018/03/jovens-se-afastam-de-paginas-engajadas-e-interagem-com-imprensa-tradicional-revela-estudo/

Revisão gramatical realizada por:

Eliane Ventura

E-mail:elianeventura@yahoo.com

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Recebido: 15 de Agosto de 2019; Aceito: 16 de Junho de 2020

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