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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.2 Campinas abr./jun 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i2.8661505 

Dossiê

A TIRANIA DO VISÍVEL E SUAS IMAGINAÇÕES GEOGRÁFICAS: SOBRE UM ARQUIVO CINEMATOGRÁFICO NA ESCOLA

THE TYRANY OF THE VISIBLE AND ITS GEOGRAPHICAL IMAGINATIONS: ABOUT A CINEMATOGRAPHIC ARCHIVE IN SCHOOL

LA TIRANÍA DE LO VISIBLE Y SUS IMAGINACIONES GEOGRÁFICAS: SOBRE UM ARCHIVO CINEMATOGRÁFICO EN LA ESCUELA

Ana Paula Nunes Chaves1 

Camila Benatti Policastro2 

1Doutora em Educação - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC - Brasil. E-mail: ana.chaves@udesc.br

2Mestranda em Educação - Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC - Brasil. Licenciada em Geografia - Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC - Brasil. E-mail: camilabpolicastro@gmail.com


RESUMO

A obrigatoriedade de exibição de pelo menos duas horas mensais de filmes brasileiros na escola trouxe à tona a discussão a respeito de como (e se) o cinema vem sendo utilizado no âmbito escolar. Em 2016, professores pesquisadores da Rede Internacional de Pesquisa Imagens, Geografias e Educação propuseram uma pesquisa comum a todos os polos da Rede (Brasil, Argentina e Colômbia), por meio de um questionário base, a fim de averiguar de que forma os professores de Geografia estavam se apropriando dessa nova possibilidade na educação. Quais as motivações levam professores a passarem filmes durante as aulas? Quais filmes são esses e quais conteúdos geográficos estão sendo suscitados? Para compreender as possíveis respostas a essas indagações, investigamos as respostas de 136 professores brasileiros. Primeiramente, consideramos o poder das imagens e as reflexões a respeito destas na educação geográfica, bem como trabalhamos com referencial teórico que desse conta de pensar o regime de visibilidade que envolve a apresentação de filmes como recurso didático ou como objeto de ampliação cultural de estudantes. Em segundo lugar, ao lidarmos com os resultados da pesquisa, problematizamos as motivações para o cinema na escola, demonstrando recorrências de temas, conteúdos e filmes citados pelos professores, questionando o protagonismo de alguns espaços. Nesse sentido, observamos como os filmes têm a potência de marcar o imaginário geográfico e cultural dos alunos e, a partir disso, atentar para a necessidade de discussão sobre os filmes apresentados, mostrando-os como um dos pontos de vista da realidade, mas não o único.

PALAVRAS-CHAVE Educação; Ensino de Geografia; Cinema; Cultura

ABSTRACT

The requirement to display at least two hours a month of Brazilian films at school has brought up the discussion about how (and if) cinema has been used in schools. In 2016, research professors from the International Image, Geography and Education Research Network proposed a survey common to all the Network's centers (Brazil, Argentina and Colombia), through a basic questionnaire, in order to find out how Geography teachers were appropriating this new possibility in education. Which motivations lead teachers to show films in class? Which films are these and which geographical content are being raised? To understand the possible answers to these questions, we investigated the responses of 136 Brazilian teachers. Firstly, we consider the power of images and the reflections about them in geographic education, as well as working with a theoretical framework that is capable of thinking about the visibility regime that involves the presentation of films as a didactic resource or as an object of cultural expansion of students. Second, when dealing with the results of the research, we problematize the motivations for cinema at school, showing recurrences of themes, contents and films cited by the teachers, questioning the role of some spaces. In this sense, we observe how the films have the power to mark the geographic and cultural imagery of the students and, from there, we pay attention to the need to discuss the films presented, showing them as one of the points of view of reality, but not the only.

KEYWORDS Education; Geography teaching; Cinema; Culture

RESUMEN

El requisito de exhibir al menos dos horas al mes de películas brasileñas en la escuela ha provocado la discusión sobre cómo (y si) se ha utilizado el cine en las escuelas. En 2016, profesores investigadores de la Red Internacional de Investigación en Imagen, Geografía y Educación propusieron una encuesta común a todos los centros de la Red (Brasil, Argentina y Colombia), a través de un cuestionario único, para conocer cómo los profesores de Geografía se estaban apropiando de esta nueva posibilidad en la educación. ¿Qué motivaciones llevan profesores a proyectar películas en clase? ¿Qué películas son estas y qué contenidos geográficos se están planteando? Para comprender las posibles respuestas a estas preguntas, investigamos las respuestas de 136 profesores brasileños. En primer lugar, consideramos el poder de las imágenes y las reflexiones sobre ellas en la educación geográfica, así como trabajamos con un marco teórico que sea capaz de pensar en el régimen de visibilidad que implica la presentación de películas como recurso didáctico o como objeto de expansión cultural de los estudiantes. En segundo lugar, al abordar los resultados de la investigación, problematizamos las motivaciones del cine en la escuela mostrando recurrencias de temas, contenidos y películas citados por los docentes, cuestionando el papel de algunos espacios. En este sentido, observamos cómo las películas tienen el poder de marcar el imaginario geográfico y cultural de los estudiantes y, a partir de ahí, prestar atención a la necesidad de discutir las películas presentadas, mostrándolas como uno de los puntos de vista de la realidad, pero no el único.

PALABRAS-CLAVE Educación; Enseñanza de la Geografía; Cine; Cultura

1 INTRODUÇÃO

Este artigo parte da reflexão sobre as imagens em seu duplo movimento. O primeiro, refere-se à potência da imagem enquanto documento e janela para conhecermos o mundo. Nosso conhecimento perpassa o ato de olhar e as imagens, em virtude de seu caráter ilustrativo, são uma das principais responsáveis pela construção de nossa concepção de mundo. No segundo movimento, além de informar e ilustrar, as imagens nos educariam e produziriam em nós conhecimentos e sentidos sobre o mundo. Em ambos os movimentos, como numa espécie de dobradiça, as imagens ora ilustram e informam, tornando visível e enunciável determinada realidade, ora omitem, silenciam e ausentam outras.

Dentre as inúmeras maneiras de acesso às imagens, o cinema tem sido um potente instrumento para se conhecer o mundo, desde seu nascimento, em 1895, com a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Esse mundo mostrado nas telas, apesar de muitas vezes carregar consigo uma ideia de realidade incontestável, é, antes de tudo, encenado. Através dos enquadramentos, da composição de imagens em movimento, dos personagens e do enredo, os discursos ganham legitimação e, por assim dizer, poder. Essa característica de verdade trazida pela representação do real nas imagens se detém ao fato de que há uma certa legitimidade naquilo que é filmado, pois o instante foi capturado e documentado. É nesse ato de se assimilar o produto imagético a uma verdade que a crítica pode se instaurar: qual a noção de realidade é escolhida para ser propagada? Qual leitura de mundo é grafada nas imagens? O que as imagens cinematográficas tornam visível e o que elas invisibilizariam? Como contribuem para sedimentar imaginações geográficas decorrentes da exposição de determinados lugares?

A partir das possíveis respostas, propusemos conjecturar como as imagens do cinema presentes no ambiente escolar carregam formas de ver o mundo, de conceber o espaço e as espacialidades e garantem a construção de imaginários ao instituir um determinado real. O estudante, enquanto espectador, recebe as imagens, as processa e interpreta e transforma sua noção de mundo, sua forma de entender o espaço. Ao considerarmos a apresentação de filmes no cenário escolar, somos levados a pensar que o cinema na escola faria o papel eficaz de encontro com o mundo, seja pela fácil assimilação das imagens com um enredo alinhado às disciplinas, seja pela popularidade da sétima arte entre os estudantes (POLICASTRO, 2020).

Apoiadas na noção de imaginação geográfica de Dorren Massey, e em estudiosos da cultura visual, como Nicholas Mirzoeff, Rosa Fischer, Inés Dussel e Verónica Hollman, propusemos colocar em cena o papel educativo das imagens por meio de regimes de visibilidade que circundam a geografia escolar. Para tanto, tomamos como objeto de análise parte dos resultados da pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de geografia”. Particularmente, interessou-nos explorar dois arquivos derivados do questionário respondido por 136 professores de geografia brasileiros: o primeiro, sobre os motivos que levam professores a utilizarem filmes durante as aulas e, o segundo, acerca dos filmes exibidos nas aulas de geografia e os conteúdos associados às películas em evidência.

Para tratarmos dessas reflexões e dados da pesquisa, apresentamos breve contextualização do encontro entre as imagens e os estudos geográficos, em seguida, descrevemos os procedimentos metodológicos e os resultados decorrentes da categorização das respostas dos professores e, por fim, tecemos reflexões sobre as respostas as duas questões problematizadas.

2 AS IMAGENS E SEUS REFLEXOS GEOGRÁFICOS

Em 1929, René Magritte pintou o quadro intitulado A Traição das Imagens, que contém a famosa inscrição Ceci n’est pas une pipe, em português, Isto não é um cachimbo, acompanhada pela ilustração de um cachimbo, colocando em xeque o poder da representação, do real e do simbólico. Desde então, muitos filósofos e pensadores, de Michel Foucault a Jean Baudrillard, levaram em conta essa obra para amparar seus estudos de indagação do real, das realidades construídas e, principalmente, da imagem (GOMES, 2013).

Na Geografia, o interesse pelas imagens e os modos de mirá-las está em crescente estudo. A virada visual (MITCHELL, 2017), como um campo de problematização da imagem nos estudos geográficos, vem acontecendo desde os anos 1990, a partir dos trabalhos de Oliveira Jr. (1994, 1999), Denis Cosgrove (1994, 2001) e Derek Gregory (1998). Segundo Hollman (2014), apesar da Geografia há muito tempo já utilizar de conjuntos de imagens para o seu conhecimento e investigações, como mapas, fotografias, fotografias aéreas e de satélite, gráficos, entre outros, pouco se pensou sobre o poder dessas imagens e o poder que empregamos a elas. Para a autora, a Geografia trata das imagens - tanto as utilizadas comumente na ciência geográfica quanto as produzidas pelos próprios geógrafos e professores de geografia - como representações de uma realidade. Por esse motivo, as imagens teriam a função, dentre outras, de expor uma dada realidade incontestável devido ao poder da linguagem visual de transmitir um discurso que se sustenta por si só (HOLLMAN, 2007-2008).

Amparada nos estudos de Cosgrove (2008), Hollman ressalta dois atos que envolvem a representação imagética: o ato ocular de ver, propriamente dito, e o ato de criar e projetar imagens, ou seja, das conexões que são feitas a partir daquilo que está sendo visto. Sobre a relação da Geografia com as imagens, a autora assevera que, por vezes, marginalizamos os estudos visuais em nossa disciplina e ressalta a importância de sabermos “[...] o que miramos, como miramos, em que momento histórico e desde qual lugar estamos mirando, o quê desejamos ver, quais exclusões e inclusões são protagonistas da construção de uma imagem e de uma mirada” (HOLLMAN, 2007-2008, p. 126, tradução livre).

Conforme tais apontamentos, Hollman sugere pensar a imagem a partir de pelo menos cinco aspectos: 1. A imagem considerada pelos múltiplos significados que são despertados, ambíguos ou polissêmicos; 2. A imagem como traços do real, levando em consideração a curadoria de quem a produziu e, assim, as exclusões e inclusões da realidade que se faz vista; 3. A imagem pelo seu poder e potencial de criação de memória documental, de arquivo, de realidade; 4. O jogo de construção de sentidos múltiplos (por exemplo, entre quem produz e quem a vê); 5. Os sentidos e emoções que podem ser despertados pela percepção.

Diante das possíveis abordagens de análise do visual na ciência geográfica, a geógrafa britânica Gillian Rose (2013) nos provoca a pensar sobre a necessidade de se perguntar de que forma, exatamente, a Geografia é visual. Rose (2013, p. 198) aponta que somente listar os diferentes aparatos visuais utilizados na geografia como os vídeos, gráficos, mapas, fotografias etc, não é suficiente:

A questão mais importante, penso eu, são as formas em que determinadas visualidades estruturam certos tipos de conhecimentos geográficos, conhecimentos estes – e, dessa forma, visualidades – que são sempre carregados pelas relações de poder. Hal Foster (1988:ix) usa o termo “visualidade” para referir-se a “como vemos, como somos capazes, autorizados, ou forçados a ver, e como entendemos nisso a capacidade de se ver ou não”. As visualidades aplicadas pela produção do conhecimento geográfico nunca são neutras (sic). Elas têm seus próprios focos, zoom, seus destaques, suas limitações do olhar e sua cegueira; estes aspectos são centrais tanto para a geografia como disciplina quanto para seus sujeitos – tanto aqueles que ela estuda como aqueles que a estudam.

(ROSE, 2013, p. 198).

Dessa forma, é importante pensar em como determinados regimes de visibilidade estruturam os conhecimentos geográficos e viabilizam o entendimento das imagens em voga. Porém, não só isso, pois também precisamos levar em consideração que as imagens e a forma como elas são reproduzidas em nossa disciplina garantem certa mirada em detrimento de outra; mostram e, por consequência, escondem outras miradas, outras noções daquilo que é dito real, moldando as noções de mundo que acessamos pelo olhar. As imagens em nossa disciplina não estão isentas de relações de poder, assim, como lembrado por Fischer (2002; 2006), é relevante pensar os espaços de enunciação de certos discursos, quais são esses discursos e como se perpetuam através das imagens e das formas que elas são reproduzidas, estruturando (moldando, construindo, enquadrando, delimitando) nosso conhecimento sobre o mundo.

O esforço decorre da compreensão das imagens como um conjunto operado pela e na cultura visual que constrói posições e posicionamentos, isto é, não se trata de pensar as imagens como símbolos iconográficos, mas como acontecimentos (DUSSEL, 2009). Esses acontecimentos são, segundo Dussel (2009), amparada nos estudos de Nicholas Mirzoeff (2005), “[...] como os efeitos de uma rede na qual operam sujeitos e que, por sua vez, condicionam a sua liberdade de ação” (DUSSEL, 2009, p. 182, tradução livre). A liberdade de ação pode ser entendida, aqui, como autonomia para o direito a olhar, ou seja, um direito pelo real, a partir da recusa de ser condicionado pela autoridade de uma visualidade, de uma prática discursiva que omite, esconde, invisibiliza outras (MIRZOEFF, 2016).

Por sua vez, Hollman (2014) percebe que os estudos sobre o visual na geografia, em sua maioria, ainda são carentes em considerar a potência das imagens. Não podemos descartar que as particularidades de cada contexto e suporte promovem um determinado olhar, dirigem a mirada a um entendimento ou, podemos ainda dizer, a um discurso específico. Acerca da importância do contexto das imagens (HOLLMAN, 2014, p. 62, tradução livre), atesta que:

A abordagem do visual na disciplina tende a considerar o contexto das imagens como informação secundária e não como protagonista na definição de seus sentidos. No entanto, as imagens se comunicam em relação a outras imagens, com o texto em que estão inscritas e com o suporte selecionado para abordá-las. Propomos, então, reconstruir e entender os sentidos que os registros visuais assumem através da análise do contexto em três dimensões: suporte, entorno linguístico e montagem.

A autora sugere, assim, que seja feita uma indagação do visual a partir de três dimensões como forma de organizar os estudos das imagens: 1. Suporte: a materialidade onde é analisada; 2. Entorno linguístico: paratextos que compõem a imagem; 3. Composição: como a interação dos paratextos organizados realizam hierarquias, interrupções, vazios, justaposições, visibilidades e invisibilidades.

Dessa forma, poderíamos afirmar que uma imagem de uma cachoeira que circula através de um slide numa palestra de um curso de geografia, para estudantes e acadêmicos da área numa sequência organizada por um professor, estabelece uma certa relação de poder, em que a imagem passa de mera ilustração para ser uma representação – um documento, com caráter oficial – do real, assegurado pelo discurso com autoridade científica do professor e do espaço em que é visualizada, o auditório de uma universidade. Também, podemos dizer que a mesma imagem da cachoeira em outro suporte e contexto como, por exemplo, em um website comercial de turismo, para alguém que procura onde passar suas férias, promoverá outro entendimento geográfico sobre um mesmo espaço. Outros olhares e focos na imagem serão despertados e, por isso, outros elementos do espaço serão concebidos. Portanto, embora a imagem possa ser a mesma, os discursos que a sustentam e são transmitidos por essas imagens são diferentes, conduzindo a distintas interpretações da mesma fotografia.

Para além da compreensão de que a dita representação do real num contexto e no outro é apropriada pelo público de maneiras diferentes, e que se criam noções de mundo igualmente diversas, seria, também, possível ser colocado em xeque o saber geográfico daí derivado. As visualidades disciplinantes nos aparecem como eficientes proporcionadoras de conhecimento e não pretendemos refutá-las ou desvalorizá-las. Ao mesmo tempo, é importante compreender os limites que se estabelecem num dado suporte, em um contexto e numa certa composição. Atentamos com isso ao fato de que ela – alguma visualidade - nos priva de outros entendimentos acerca do espaço, por nos direcionar a uma mirada específica. Criam-se pontos cegos, sombras e lacunas. Em suma, as visualidades consideradas na complexa trama entre suporte, entorno linguístico e composição nos permitem compreender os seus reflexos geográficos específicos, bem como suas invisibilidades.

A respeito do pretenso real transmitido pelas imagens, cabe pontuar os estudos de Wenceslao Machado de Oliveira Jr. (2009). O autor compreende que a imagem é material - “obra palpável aos olhos” (OLIVEIRA JR., 2009, p. 19) -, pois é impressa ou presente em telas. Desse modo, ela em si é o real, mas não aquele real que pretende representar. Nesse caso, o autor considera importante compreender o significado que a palavra representação pode tomar. Representar, como chama atenção Oliveira Jr., significa estar-no-lugar-de e pode, muitas vezes, andar junto com ser-o-mesmo-que, apagando o primeiro significado. Os motivos pelos quais isso acontece podem ser variados: pela semelhança com a realidade; pela ideia de que não há contaminação da subjetividade quando se trabalha com maquinários que copiam o mundo ou pelo discurso de autoridade dos veículos comunicativos por onde circulam as imagens que impedem que ele seja questionado (OLIVEIRA JR., 2009).

O exercício de compreender a imagem como coisa em si nos faz perceber o poder das imagens não só como ilustrativo, documental, nem tampouco representativo, mas a imagem como produtora de mundos, de geografias próprias.

Se concluirmos que o lugar não é um dado em si, mas produto das tensões e das disputas entre as muitas práticas e narrativas que se dobram sobre ele, concluiremos também que, nos dias que correm, conhecer o espaço é também pensar sobre como ele é inventado diariamente diante de nós pelas câmeras fotográficas e pelas narrativas da tevê, e sobre como ele é criado em nossas próprias práticas educativas, onde aparecem muitos mapas, fotografias, filmes, pinturas e outras tantas imagens.

(OLIVEIRA JR., 2009, p. 23)

Por fim, Doreen Massey também percebe “que muito de nossa ‘geografia’ está na mente” (MASSEY, 2017, p. 37). Mesmo não tratando especificamente das imagens, a geógrafa relembra alguns exemplos de imaginações criadas sobre o mundo e como essas ideias (teorias) são carregadas por nós, gerando efeitos poderosos sobre as atitudes e comportamentos com o mundo. A Geografia, segundo a autora, deve questionar e submeter a interrogatórios tais imaginações.

Pensar o que fica de lado, o que fica à margem, o que é limitado quando entra em jogo com o discurso educacional se faz necessário para entender os mundos fílmicos, as realidades construídas, as geografias suscitadas e as experiências que estão sendo estimuladas nas telas da escola. Já que consideramos a escola como contribuidora para a criação da cultura visual e formadora de sujeitos visuais (DUSSEL, 2009), nos coube investigar como ocorre a circulação das imagens no ambiente escolar pelo questionamento das motivações de docentes ao usarem o cinema como suporte, quais filmes e conteúdos são empregados e se acabam por instaurar um certo regime de visibilidade. Na tentativa de problematizar essas questões e compreender melhor esses mundos e geografias que se criam através dos filmes no ambiente escolar, propusemos refletir sobre alguns dados de pesquisa, apresentados a seguir.

3. AS TELAS DA ESCOLA

Em 2014, a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica do país ganhou um importante incentivo: a Lei 13.006, sancionada em 26 de junho de 2014, alterou o artigo 26 da Lei n° 9.394 sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). No artigo 26 da LDBEN, acrescentou-se o inciso §8 tornando obrigatória a exibição mensal de, pelo menos, duas horas de filmes de produção nacional como componente curricular complementar à proposta pedagógica da escola.

Um ano após a aprovação da Lei 13.006, a Rede Internacional de Pesquisa Imagens, Geografias e Educação promoveu o IV Colóquio Internacional “A Educação pelas Imagens e suas Geografias”, em novembro de 2015, na cidade de Uberlândia/MG. Naquela ocasião, professores pesquisadores integrantes da Rede, entusiastas das novas possibilidades advindas da recente Lei, propuseram uma pesquisa comum a todos os polos da Rede no Brasil, na Argentina e na Colômbia. Assim, em 2016, iniciamos a pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de geografia”.

A pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de geografia” tem como objetivo estabelecer relações entre cinema e professores de geografia no intuito de traçar um panorama geral que nos permita visualizar, de forma micro e macro, a utilização do cinema no âmbito escolar. A partir de um único instrumento de investigação, um questionário-base com 16 perguntas3, os polos integrantes da Rede entrevistaram professores da educação básica em diferentes regiões do Brasil e da América Latina.

O formulário de entrevista foi aplicado, ao todo, a 229 professores, sendo 136 do Brasil (provenientes dos estados de São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo), 60 da Colômbia, 32 da Argentina e 1 do Uruguai. Para este trabalho, nos debruçamos na análise e investigação apenas dos dados brasileiros. Das 16 perguntas do formulário, foram selecionadas as perguntas 10, “Quais os motivos que levam você a passar filmes na escola?”, e 11, “Quais filmes você usa para trabalhar quais conteúdos ou temas de Geografia?”.

Olhar para os dados da pesquisa e extrair perguntas sobre o cinema na escola foi uma tarefa árdua. Por meses nos detivemos em analisar o arquivo buscando por suas emergências. Para uma primeira aproximação com esse arquivo diverso foi preciso olhá-lo e mirá-lo com tempo, pois, assim como as imagens para Didi-Huberman (2012), as emergências não eram nem imediatas, nem fáceis de entender.

O primeiro contato com o arquivo de pesquisa aconteceu há dois anos, quando começamos a tabular os resultados dos questionários que tínhamos em mãos, ou seja, dos 31 professores participantes da pesquisa na região da Grande Florianópolis. Em 2019, no 14º Encontro Nacional de Prática de Ensino em Geografia – ENPEG, em Campinas, nos aventuramos a apresentar algumas análises preliminares acerca do papel educativo das imagens a partir do levantamento dos filmes brasileiros mais utilizados pelos professores de geografia em sala de aula. Naquela ocasião, observamos como a recorrência de determinados filmes geravam possibilidades de significação do imaginário espacial e cultural dos alunos (CHAVES, PREVE, 2019). A partir dessa pista, começamos a operar com a hipótese de que a recorrência de apresentação de determinados filmes em sala de aula parecia atestar um regime contemporâneo de imagens que, por vezes, evidenciaria uma tirania do visível.

Assim, na primeira pergunta investigada, os professores deveriam ordenar as respostas quanto ao que mais se aproxima daquilo que consideram o principal motivo pelo qual exibem filmes na escola. Consideramos somente a resposta que os entrevistados sugeriram como o principal motivo, ou seja, que indicaram como primeiro motivo no ordenamento de suas respostas.

Dessa forma, das 136 respostas, 65 entrevistados escolheram “Porque o cinema é uma maneira de ampliação cultural dos alunos” (48%) e 31, “Porque se vincula a algum conteúdo específico de geografia / conteúdo curricular específico” (23%). Seguido por 14 que optaram pela resposta “Porque o cinema amplia a sensibilidade crítica” (10%) e, igualmente, 14 não responderam (10%). Dentre as respostas menos citadas: cinco escolheram “Porque traz um conhecimento importante, mesmo que desvinculado da geografia” (4%), duas “Porque você gostou e quer que seus alunos também o veja” (1%), “Porque é um momento de entretenimento para os alunos” (1%), “Porque é um momento de descanso para você” (1%), “Porque o cinema amplia a sensibilidade artística” (1%) e “Outro” (1%), somente com uma escolha para cada uma dessas respostas.

Na segunda questão investigada, os professores foram convidados a citar os filmes utilizados em sala de aula e os conteúdos a eles vinculados. Os 136 entrevistados indicaram 452 títulos de filmes. A partir da organização desse total de filmes, pôde-se perceber que 263 citações eram de filmes estrangeiros, 173 nacionais e 16 tiveram de ser desconsiderados por apresentarem descrição incorreta ou insuficiente para a identificação. Para este trabalho, abordaremos apenas a lista de filmes estrangeiros, uma vez que está representando o considerável 58% do total de indicações.

Na lista das 263 indicações de estrangeiros, houve muitas reincidências de filmes e, se desconsiderarmos as repetições, são 132 títulos distintos. Os filmes mais mencionados foram: Tempos Modernos (citado 20 vezes), Hotel Ruanda (16 vezes), Diamante de Sangue (15 vezes), Adeus, Lênin! (9 vezes); O Menino do Pijama Listrado (8 vezes) e Diários de Motocicleta (7 vezes).

Quanto aos conteúdos tratados na lista de filmes estrangeiros, eles podem ser categorizados por, pelo menos, quatro grupos de conteúdos principais: filmes que mostram momentos históricos (épocas, guerras, conflitos, marcos históricos), com pelo menos 90 menções de conteúdos nessa classificação; filmes que representam um lugar, paisagem, território (seja continente, país, cidade etc.) com 73 conteúdos que se relacionam a essa classificação; filmes que abordam temáticas ambientais e/ou aspectos naturais e da geografia física (aquecimento global, geomorfologia da Terra, vulcanismo, paisagens naturais etc.) com 51 conteúdos citados e, por fim, filmes com o intuito de mostrar, explicar, definir e/ou representar conceitos, teorias, modos de produção, ideologias e movimentos sociais, com 58 menções nesse grupo.

Nesse leque de opções analíticas, selecionamos a categoria de filmes estrangeiros e conteúdos que abordavam temáticas espaciais, com títulos que representavam e apresentavam um lugar. Dessa forma, trabalhamos com os filmes que mencionam algum continente ou país em seus conteúdos de geografia. Essa motivação tangia o interesse de tratar diretamente aquilo que é caro à geografia - conhecer, compreender e pensar os espaços do mundo – sendo o cinema esse veiculador. Dessa forma, trabalhamos com o recorte que compreende os 73 filmes estrangeiros que abordam conteúdos ligados à representação de um determinado lugar.

3.1 Aas telas da escola: sobre as motivações dos professores

Um primeiro olhar para o vasto material resultante das perguntas aos professores foi o bastante para nos trazer a emergência desta questão: a maioria dos entrevistados diz que o principal motivo para a exibição de filmes nas escolas deriva do objetivo de ampliação cultural dos alunos (48% dos entrevistados), para alcançar conteúdos curriculares ou geográficos pré-estabelecidos (23%) e no intuito de buscar o desenvolvimento da criticidade (10%). Em contraste, as respostas que se relacionam com fins aparentemente menos louváveis da entrada do cinema na escola faz soar quase uma confissão de corajosos, uma vez que somente quatro professores escolheram as respostas “significa um momento de descanso para você” ou “um momento de entretenimento para o aluno”. Conquanto, retomando os dados majoritários, a pesquisa trouxe três desejos explícitos para com o cinema na escola: ter cultura, atingir conteúdos e ser crítico. Mas será que isso que se quer é, de fato, possível? Quanto a esses desejos, podemos debater, primeiramente, o desejo pelo desenvolvimento da criticidade nos alunos. Aquilo que se mostra nas telas desperta a criticidade? Que criticidade é essa?

Para a Geografia, pensar criticamente é uma meta contundente a professores e estudantes. Isso pode estar ancorado em um formato de criticidade envolto por diversas correntes de pensamento, desde a dialética até as consideradas pós-críticas. Não obstante, apesar das nuances de todas as correntes de pensamento e das lentes geográficas que elas favorecem, podemos indicar como exemplo o que apontou Doreen Massey (2017) como implicações às práticas docentes: “a Geografia pode ajudar jovens a compreender a natureza controversa do mundo”, a partir de um “pensar geograficamente” (p. 40). Este pensar geograficamente recorre ao compromisso do geógrafo de perceber as teorias de mundo - as imaginações geográficas -, questioná-las, indagar de onde elas vêm e compreender as contradições que elas carregam (MASSEY, 2017). A criticidade para nossa disciplina envolve perceber o mundo e suas diversas realidades coexistentes. Nos termos que propôs Massey (2017), é através de um “[...] pleno reconhecimento da coexistência simultânea de diferentes outros” (p. 39) no espaço/nos lugares que estimulamos nossas mentes geográficas.

Por essa linha de pensamento, consideramos o cinema para além de seu poder de representação de lugares, de divulgador de realidades fictícias e encenadas. Defendemos a arte cinematográfica, e as imagens por ela veiculadas, como porta-voz de discursos, criadora de significações e olhares sobre o mundo. Uma proposta de olhar a imagem a partir dessa problemática se aproxima daquilo que Miranda (2001, p. 29) chamou de “Educação do Olhar”, que se garante “[...] pela necessidade e função da escola em formar espectadores críticos”. Porém, não é nosso interesse, aqui, propor metodologias ou modelos de práticas pedagógicas para o uso do cinema como recurso tecnológico. Nosso foco é perceber um movimento de docentes e programas em tentar alcançar um “ser crítico” específico nos alunos, e esse movimento, ao nosso ver, parece contraditório, pois, ao promover uma forma de criticidade, o estudante nunca é livre para ser crítico, mas educado a ser. Em outras palavras, a criticidade pretendida, mesmo que alcançada, não é livre das amarras subjetivas que se impõem aos nossos corpos. Somos, a todo instante, construções deste mundo, com olhares e percepções afetadas.

Em confluência, no âmbito da educação visual – ou da “Educação do Olho” - também trabalhada por Miranda, o autor percebe que é através de uma concepção de corpo-máquina de nossa cultura que se estabelecem formatos e expectativas sobre nossos olhos-lentes. Espera-se, assim, que ao colocarmos nossos olhos em algo, haja uma mecanicidade no ato, nos ensinando a ver de forma matemática (MIRANDA, 2001). Dessa maneira, o olhar cartesiano permeia nossos discursos e atitudes, tensionando a própria ideia de ser crítico. A educação voltada às metodologias, modelos e formatos de se ensinar a ser crítico pode cair por terra, pois se torna paradoxal à própria ideia de aprender a ser crítico. Em contrapartida, a arte - e o cinema pode ainda ser arte dentro da escola - pode ser considerada uma potente deformadora de modelos e formatos na medida que nos toca e subverte as funções pragmáticas, desestabilizando nosso ser, dando espaço para libertações de modelos pré-estabelecidos, teorias do mundo ou formatos que impõem um jeito correto de ser (crítico).

Igualmente à reflexão que pode ser feita a respeito do desejo pela criticidade, podemos indagar sobre os outros dois pedidos ao gênio da lâmpada que surge com o esfregar do cinema na escola: ter cultura e alcançar conteúdos curriculares. Alcançar conteúdos geográficos ou curriculares através do uso do cinema, eleita por 23% dos entrevistados como o principal motivo da utilização de filmes nas aulas, pode nos direcionar a um posicionamento a favor ou contra o conteudismo escolar. Não cabe aqui, no entanto, tomar posição frente ao excesso de conteudismo em nossa disciplina ou, ao contrário, valorizar uma fuga de um conteúdo curricular imposto pelos programas. Este debate parece não ter saída. Consideramos que há pertinências em ambas as atitudes pedagógicas. Neste trabalho, em relação aos conteúdos, procuramos compreender quais surgem com o cinema na escola, aproveitando-nos das respostas dos professores dadas à Questão 11, sistematizando-os e refletindo sobre eles. Já em relação à motivação da ampliação cultural, posicionamento de 48% dos professores quanto ao uso dos filmes, foi um dos dados que primeiro despertou o interesse e serviu para levantar questões: Qual cultura é essa de que se fala? Se há diversas (formas de) culturas no mundo, estariam os professores querendo apresentar o maior número possível? Se sim, os filmes exibem a pluralidade cultural desejada? Para estas duas motivações foi necessário investigar os dados da questão seguinte, ou seja, os arranjos dos filmes e dos conteúdos citados pelos professores.

3.2 As telas da escola: um arquivo de filmes e conteúdos

O cinema é um mundo. No cinema vemos um mundo. O cinema nos mostra modos de narrar o mundo. A partir do cinema pensamos sobre nosso espaço, o criamos e recriamos, ele tem essa potência. Seja pelos filmes gravados pelos irmãos Lumiére, que revelam como são os povos da Ásia, as pirâmides do Egito ou a América, seja, nos dias de hoje, pela exibição na escola de como os lugares são. O recorte de dados da pesquisa reforçou esse argumento, pois 27,7% do total de filmes estrangeiros mencionados nas respostas são filmes usados para representar – estar-no-lugar-de ou ser-o-mesmo-que (OLIVEIRA JR., 2009) - os diferentes continentes ou seus países. A Tabela 1 expõe os filmes e os conteúdos associados.

Tabela 1 Filmes estrangeiros citados pelos professores com conteúdos que representam/apresentam porções do espaço 

Filmes Conteúdos
Adeus Lênin Europa oriental
Aluno Condições sociais na África
Amor sem fronteiras Trabalhar a África, Ásia e Europa
Ao sul da fronteira Governos de esquerda na América Latina
Austrália Austrália - questões naturais e sociais
Aventuras de Pi Oceanos, Índia, Biomas
Caçador de pipas culturas dos continentes e conflitos
Caçador de Pipas Oriente Médio
Chove sobre Santiago (1976) Golpe civil militar no Chile e na América Latina.
Conquista do paraíso - 1492 Conquista e colonização das américas
Dança com Lobos OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO NORTE-AMERICANO
Dança com Lobos relevo da américa/ expansão para oeste
Diamante de Sangue exploração da África
Diamante de sangue África
Diamante de Sangue Crianças soldados, África
Diamante de Sangue África: economia, Apartheid (Mandela)
Diamante de Sangue Guerra Civil na África
Diamante de Sangue Geopolítica da África
Diamante de Sangue Guerras civis africanas/neocolonialismo
Diamante de Sangue Continente Africano
Diamante de Sangue Continente Africano
Diamante de Sangue Conhecimento Africano
Diamante de Sangue África
Diamante de Sangue Conflitos no continente Africano
Diários de Motocicleta Sociedade da América Latina
Diários de Motocicleta América Latina
Diários de Motocicleta continente americano
Diários de Motocicleta América Latina
Diários de Motocicleta América do Sul - aspectos naturais e sociais
Diários de motocicleta América Latina
Diários de motocicleta América
Doze anos de Escravidão Guerra de Secessão - E.U.A e abolição da escravidão
Escritores da Liberdade Populações do mundo, culturas mundiais
Fahrenheit 11/9 Geopolítica atual Doutrina Bush Guerra ao terror Política externa estadunidense
Gandhi Ásia meridional
Gran Torino Segregação racial nos EUA
Hotel Ruanda Conflitos na África
Hotel Ruanda Conflitos na África
Hotel Ruanda Aspectos da colonização na África
Hotel Ruanda Conflitos étnicos no continente africano
Hotel Ruanda Conflitos africanos
Hotel Ruanda Conflitos africanos criados pelo neocolonialismo
Hotel Ruanda Colonização da África
Hotel Ruanda conflitos civis na África
Hotel Ruanda Genocídio na África
Hotel Ruanda Guerras civis africanas/neocolonialismo
Hotel Ruanda Efeitos do neocolonialismo na África
Invictus África do Sul, Apartheid
It's a girl População- Índia- China
It's a girl População Índia e China
Lincoln Guerra de Secessão - E.U.A
Lista de Schindler Nazismo na Alemanha
Mandela África do Sul, Apartheid
Mandela a luta pela liberdade Continente Africano - Apartheid
Os Miseráveis batalha de Waterloo / França no século XIX
Na Natureza Selvagem Modos de vida. Padrões de consumo. Paisagens da América
Onze de Setembro América Anglo-Saxônica
Paradise Now Oriente Médio
Persépolis Geopolítica na Ásia
Platoon Guerra do Vietnã
Quem quer ser um milionário? Índia
Quem quer ser um milionário? Demografia e pobreza na Ásia
Quem quer ser um milionário? Índia - Questões Sociais
Quem quer ser um milionário? Desigualdades sociais, Índia
Razões para a Guerra Política externa estadunidense
Red Tails Discriminação Racial nos EUA
Resgate Abaixo de Zero Antártica
Sete Anos no Tibet Diversidade cultural do continente asiático
Sobrevivendo com lobos Europa, relevo, formações vegetais, climas
Sonho de Liberdade Apartheid/África
Sonho Possível cultura norte americana, capitalismo
Syriana: a indústria do petróleo Geopolítica e política externa estadunidense
O Último Samurai Aspectos socioeconômicos do Japão

Fonte: POLICASTRO, 2020, p. 54.

Alguns filmes foram largamente repetidos e, extraídas as repetições, há uma variedade de 39 filmes estrangeiros citados. Os títulos mais repetidos foram Diamante de Sangue, Hotel Ruanda e Diários de Motocicleta. Quanto aos conteúdos descritos – as porções do espaço -, se organizados pelos diferentes continentes mencionados, podem ser percebidas discrepâncias quanto à popularidade dos espaços apresentados nos filmes. Sendo assim, em ordem decrescente: África, com 28 citações, América, com 22 (América Anglo-Saxônica 12 e América Latina 10), Ásia, com 14, Europa 4, Oceania e Antártica, ambas com uma menção cada.

A porção do espaço mais repetida nos conteúdos dos filmes foi a África. Porém, apesar dessa ampla citação, os filmes pouco diversificaram: apenas seis títulos apareceram nas respostas. Esses filmes são ambientados em Serra Leoa, África do Sul, Ruanda e Quênia e contam histórias sobre os conflitos étnicos, sociais, guerras civis e o apartheid. No entanto, houve somente duas respostas que especificavam, nos conteúdos, o país sobre o qual tratava a representação, e ambas remetiam à África do Sul. Por essa primeira análise dos dados, conferimos que o território africano é tido como bloco coeso de histórias similares entre os países: um filme como Hotel Ruanda, ambientado em Ruanda, de um conflito étnico ruandês, se torna exemplo do que a África é. Resume-se um continente a partir de uma história que se presume comum a todos os países africanos. O que não ocorre com a representação da Ásia, em que a cultura e as singularidades socioeconômicas dentro do continente estão em grande medida diferenciadas nas respostas dos conteúdos abordados pelos professores, com a especificação de qual país está presente em determinado conteúdo. As respostas dos conteúdos especificam que ensinam sobre a Índia, o Japão, a China, o Tibete, e não apenas indicam que ensinam sobre a Ásia. Quanto à América, pode-se perceber uma fragmentação entre América Latina e América Anglo-Saxônica ou América do Sul e do Norte. Portanto, as diferenças culturais e econômicas propostas nos conteúdos dos professores são mais pontuais quando se trata de Ásia ou América, do que quando se trata de África, ou seja, apesar de a última ser a mais citada, ela é trabalhada de forma mais generalizada.

Também é interessante perceber os continentes menos citados, os invisibilizados: Europa, Oceania e Antártica. Parece razoável, à primeira vista, os dados quase desprezíveis que Oceania e Antártica demonstraram, podendo ser ingenuamente desculpada essa invisibilidade pelo distanciamento ou uma menor influência histórica aos rumos do mundo (ou do Brasil). Ao mesmo tempo que essa escusa é formulada, é necessário esquecer que a Oceania (e no caso, somente a Austrália é citada) tem história similar a nossa, com marcas coloniais, exploração das populações nativas etc., ou, ainda, a menção pouco significativa da Oceania poderia ser simplificada pela explicação de não haver grande número de produções cinematográficas ou haver acesso limitado às produções que representam esse continente. Mas, se isso tudo for verdade, contradiz de imediato as justificativas sobre a invisibilidade da menção ao continente europeu – também invisibilizado na lista de conteúdos dos professores -, já que a Europa é proprietária de forte indústria cultural. É estranho perceber essa invisibilidade, na medida em que a Europa tem fortes influências históricas no mundo todo, foi colonizadora de diversos países, palco de inúmeras guerras, conflitos e decisões que mudaram os rumos do mundo. Além disso, existe massiva produção cinematográfica ambientada no território europeu, e de fácil acesso. Mesmo assim, o continente não foi citado de acordo com essa popularidade. O que acontece? Com as poucas menções à Europa, percebe-se o desinteresse em transformá-la em objeto de estudo. Pode-se compreender que docentes e programas talvez considerem o continente europeu demasiadamente visualizado nas diversas mídias e, por isso, seja comum a todos. Porém, a escola é um espaço para o questionamento de lugares-comuns, para colocá-los sob suspeita e crítica. É o local por excelência onde se transforma tudo (e todo lugar) em objeto de estudo.

Essas contradições nos levam a compreender um regime de visibilidade na projeção de porções do espaço que são veiculadas nas telas da escola. Essa tendência parece sugerir que há uma necessidade de exibir, nas escolas, o que é a África e, ao contrário, não há o interesse em exibir o que a Europa significa. Os atos simbólicos de visibilizar e invisibilizar lugares deflagra a criação de um exótico, a África, e de um normal, a Europa. Nesse sentido, são imagens de um outro (e seus espaços) que estão sendo definidas, enquanto que o ordinário é esquecido e não se deixa tornar conteúdo escolar para ser colocado sob suspeita, estranhado e problematizado.

A África é exibida nas telas como objeto de estudo, porém, em uma limitada variedade de imagens. É perceptível um expoente engajamento temático quanto à indicação de filmes sobre a África, mas que não permite amplo entendimento desse espaço. Além de parecer haver a necessidade da exposição do exótico, o olhar a ele é proferido com o uso de imagens de autoria estadunidense e europeia, pois nenhum dos seis filmes citados que abordam o conteúdo África é de produção unicamente africana. As narrativas criam uma África coesa, com uma única história, em que países, etnias e culturas estão generalizadas.

Em contrapartida à visibilidade africana, há a invisibilidade da temática europeia. As imagens do continente, como vimos, parecem estar naturalizadas. Seu espaço é tido como norma. Apesar de sermos latino-americanos, colocamos esse fato em suspensão e não reservamos espaço e tempo para transformar o europeu (e seus espaços) em objeto de estudo. Não há uma dessacralização do colonizador, entendendo-o como um diferente, estrangeiro e exótico à nossa cultura, já que não somos africanos, nem tampouco europeus. O normal (e seus espaços), ao impor suas direções (cinematográficas ou não) e suas lentes como filtros para enxergarmos o mundo, acaba omitindo as próprias narrativas, transformando-as em uma estetizada e natural ordem das coisas. Esse argumento conversa diretamente com a ideia de direito a olhar de Nicholas Mirzoeff (2016). A visualidade age classificando o outro, separando-o e estetizando nossa percepção do mundo, que é tida, em seguida, como realidade. Como o autor mesmo percebe, o direito a olhar é negado quando autoridades (ou o normal neste caso) suturam nossa interpretação sensível. As massivas citações ao continente africano como conteúdo e, em oposição, os poucos filmes lembrados sobre o continente demonstram isso. A negligência ao conteúdo do continente europeu como objeto de estudo, naturalizado nas imagens que circulam em diversas mídias, apontam uma normalização da Europa, uma estetização do poder que não é colocada sob análise e crítica.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da investigação de duas questões do formulário da pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de geografia”, aplicado a 136 professores brasileiros, procurou-se problematizar as respostas e lidar com o grande arquivo de filmes e conteúdos que os professores disseram trabalhar em suas aulas.

A primeira questão investigada questionava por qual motivo os professores passam filmes nas escolas. A maioria dos entrevistados diz que o principal motivo para isso é pela ampliação cultural dos alunos, o desenvolvimento da criticidade e para se alcançar conteúdos curriculares ou geográficos pré-estabelecidos. Essas respostas nos levaram a questionar: O que é ser crítico? Quais conteúdos curriculares aparecem junto aos filmes? O que significa ampliação cultural e será que ela ocorre?

A segunda questão indagava sobre os títulos dos filmes e os conteúdos a eles associados. Ao analisar o conjunto de respostas, notamos a recorrência de títulos e de conteúdos. Os dados apontavam conteúdos que pareciam demonstrar o interesse em querer mostrar espaços geográficos desconhecidos, apresentar o mundo e representá-lo em sala de aula por meio do cinema. No recorte de dados considerado, ou seja, a lista de filmes citados pelos professores com a intenção de se mostrar uma porção do espaço, encontramos o protagonismo do continente africano.

A África despontou em número de citações e referências a ela nos títulos de filmes e conteúdos. Entretanto, os filmes citados não variaram muito, eram produções de países não-africanos e, salvo duas vezes em que foi discriminado o país sobre o qual se tratava, a história e a geografia do conteúdo África partiam de uma noção de continente coeso. Tal narrativa atuaria como uma recusa às diferenças espaciais em cada um daqueles 54 países que fazem parte desse grande continente, invisibilizando, assim, suas trajetórias múltiplas e coexistentes.

Outra emergência percebida parte da invisibilidade de alguns espaços citados nos conteúdos, como o caso da Europa. Se na escola pensamos muito sobre como a África é, da mesma forma fechamos o espaço para compreender o europeu também como outro, como exótico, ou, ainda, compreender o porquê há a necessidade de expor a cultura africana como um diferente, ao contrário da europeia que, por assim dizer, tomamos como norma. Dessa maneira, um espaço e um tempo para perceber esse mundo é igualmente banido quando alguns espaços não são transformados em objeto de estudo, não são dissecados e refletidos, quando não são estranhados e dessacralizados.

No que concerne à pluralidade temática dos filmes indicados, embora a listagem de filmes estrangeiros tenha ultrapassado a marca de 130 filmes sugeridos, uma análise mais acurada apontou para a recorrência acentuada de apenas cinco desses filmes. Em grande medida, os principais filmes exibidos nas aulas são marcados pela homogeneidade temática, aprisionam as imagens a um certo contexto de mazela social e direcionam nossa maneira de olhar os espaços postos em voga. Tais filmes circulam nas aulas de geografia e perseveram como uma fonte poderosa na consolidação de determinada imaginação geográfica.

Ademais, buscamos colocar em cena os principais filmes em circulação nas aulas de geografia como componentes de um jogo entre o visível e suas ausências, como parte de uma trama política de visibilidade criadora de significados. Destacamos os modos de enunciação de determinados espaços, como a África, as estratégias de fixar significados às representações únicas e a perpetuação de uma cultura visual pelo cinema nas aulas de geografia que, a nosso ver, celebra imagens e temas que se convertem em verdades e alimentam nossa imaginação sobre os lugares.

Por fim, quiçá, enquanto professores de geografia, nossa tarefa possa ser “[...] desorganizar os pactos de representação hegemônica que controlam o uso social das imagens, semeando a dúvida e a suspeita analítica no interior de suas regras comunicativas” (RICHARD, 2006, p. 105, tradução livre), já que as imagens em movimento nas escolas nunca tratam de um só filme.

Revisão gramatical realizada por: Delvanir Lopes.

E-mail: lopesdelvanir@bol.com.br.

3O questionário-entrevista encontra-se anexo à Apresentação desse Dossiê.

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Recebido: 05 de Outubro de 2020; Aceito: 20 de Janeiro de 2021

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