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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.2 Campinas abr./jun 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i2.8661516 

Dossiê

AS IMAGENS DA AMAZÔNIA ENTRE CINEMA E GEOGRAFIA ESCOLAR

THE IMAGES OF THE AMAZON BETWEEN CINEMA AND SCHOOL GEOGRAPHY

LAS IMÁGENES DE LA AMAZONIA ENTRE CINE Y GEOGRAFÍA ESCOLAR

Raphaela de Toledo Desiderio1 

Ana Maria Hoepers Preve2 

1Doutora em Geografia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora - Faculdade de Ciências Humanas do Instituto de Estudos do Trópico Úmido -Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). E-mail: raphaela.desiderio@unifesspa.edu.br

2Professora Doutora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro da Rede Internacional de Pesquisa "Imagens, Geografias e Educação", pós-doutoranda na Faculdade de Educação (FE/UNICAMP). Email: anamariapreve@gmail.com


RESUMO

Este texto resulta da pesquisa intitulada “As telas da escola: cinema e professores de geografia”, oriunda da Rede Internacional de Pesquisa “Imagens, Geografias e Educação” e realizada com professores de geografia da educação básica. Com base nos resultados da pesquisa apresentamos uma reflexão acerca das imagens preponderantes nos filmes que alguns professores citaram utilizar em sala de aula. A ausência de filmes sobre a região norte do Brasil marcou o interesse dessa investigação. Como a geografia escolar trata a região norte e a Amazônia quase como sinônimos, direcionamos nossa investigação para as imagens da Amazônia. A partir de respostas específicas do questionário, de pesquisas em livros didáticos e das produções cinematográficas citadas, problematizamos as relações que se estabelecem entre cinema e professores de geografia. A pesquisa revelou que os professores utilizam filmes para ilustrar e representar conteúdos e temáticas geográficas, ou seja, que o cinema é tomado como recurso didático, documento de uma perspectiva educacional baseada na transmissão de informações. Embora tenhamos observado uma diversidade de imagens da Amazônia, a força da repetição apresenta-se muito mais pungente; as imagens da floresta continental e o crescente desmatamento, ambos consubstanciam uma contradição que não nos permite pensar o espaço como multiplicidade.

PALAVRAS-CHAVE Imagens da Amazônia; Cinema; Geografia Escolar

ABSTRACT

This paper results from a research project entitled “School screens: cinema and teachers of Geography” carried out by the International Research Network “Images, Geographies, and Education” with teachers of Geography in basic education. Based on the results of the research, we reflect on the images that appear in the cited films about the Amazon. The absence of films about the northern region of Brazil marks the interest of this investigation. As school Geography treats the northern region and the Amazon almost as synonyms, we direct our investigation to images of the Amazon. Based on specific responses to the questionnaire, research on textbooks and cinematographic productions mentioned by these, we problematize the relationships that are established between cinema and Geography teachers. The research revealed that Geography teachers use films to illustrate and represent content and geographic themes, i.e., cinema is taken as a didactic resource, a document from an educational perspective based on the transmission of information. Although we have observed a diversity of images of the Amazon, the force of the repetition is much more pungent; both the images of the continental forest and the growing deforestation embody a contradiction that does not allow us to think of space as multiplicity.

KEYWORDS Images of the Amazon; Cinema; School Geography

RESUMEN

Ese texto resulta de la investigación titulada “Las pantallas de la escuela: cine y profesores de Geografía” de la Red Internacional de Investigación “Imágenes, Geografías y Educación”, realizada con profesores de Geografía de educación básica. Basándonos en los resultados de la investigación, presentamos una reflexión con las imágenes que aparecen en las películas citadas sobre la Amazonia. La ausencia de películas sobre la región norte de Brasil marca el interés de esta investigación. Como la geografía escolar trata la región norte y la Amazonia casi como sinónimos, dirigimos nuestra investigación a las imágenes de la Amazonia. A partir de respuestas específicas del cuestionario, de investigaciones en libros didácticos y de las producciones cinematográficas mencionadas, problematizamos las relaciones que se establecen entre cine y profesores de Geografía. La investigación ha revelado que los profesores de Geografía utilizan películas para ilustrar, representar contenidos y temáticas geográficas, es decir, el cine es tomado como recurso didáctico, documento de una perspectiva educativa basada en la transmisión de información. Aunque hayamos observado una diversidad de imágenes de la Amazonia, la fuerza de la repetición es mucho más pungente; las imágenes de la selva continental y la creciente deforestación, ambas encarnan una contradicción que no nos permite pensar en el espacio como multiplicidad.

PALABRAS-CLAVE Imágenes de la Amazonia; Cine; Geografía escolar

1 APRESENTAÇÃO

Nas imagens presentes em livros didáticos de geografia, a Amazônia aparece junto aos estudos da região norte do Brasil e das histórias abordadas a partir do processo de sua ocupação colonial. Essas imagens fazem circular uma ideia de Amazônia que é a da floresta desmatada, da imensidão e lentidão das águas dos rios, da biodiversidade vinculada a um modelo de ocupação que se dá somente a partir da segunda metade do século XX e que só foi possível através da implementação de políticas públicas estatais na “última fronteira agrícola do Brasil”.

Neste texto problematizamos imagens fílmicas sobre a Amazônia a partir dos resultados da pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de Geografia”, realizada pela Rede Internacional “Imagens, Geografias e Educação” e focada nas relações entre geografia escolar e cinema. As imagens fílmicas aparecem aqui a partir da percepção de que, num contexto de pesquisa em que professores de geografia usam filmes para abordar a regionalização brasileira, a região norte é ausente na lista das obras mencionadas.

A presença do cinema na escola e nas aulas de geografia não é uma novidade. Os professores que se interessam pela exibição de filmes em sala de aula costumam, em sua maioria, utilizá-los como um modo de representar o espaço geográfico. Nesta perspectiva, os filmes, mesmo que de ficção, acabam funcionando como documentos, já que são escolhidos para mostrar lugares com objetivo de aproximação e comprovação da “realidade”.

O contexto de aprovação e regulamentação da Lei 13.006/2014, que acrescentou o § 8° ao artigo 26 da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional, tornou obrigatória a exibição de filmes nacionais nas escolas de educação básica por no mínimo duas horas mensais, mobilizando dessa maneira os pesquisadores da Rede em torno da proposta de uma pesquisa comum sobre as relações do cinema com a geografia escolar.

O presente texto, como os demais deste dossiê, tem então seu ponto de partida nos dados compilados pela pesquisa já mencionada, a qual, “As telas da escola: cinema e professores de Geografia”. Esses dados foram apresentados em uma tabela que reúne as respostas dos questionários aplicados aos professores de geografia das escolas onde os polos da Rede estão situados (ver questionário anexo ao dossiê).

A pesquisa com os professores teve como objetivo conhecer um pouco das relações entre o uso do cinema nas práticas escolares de geografia e algumas das preferências cinematográficas nacionais dos docentes para utilização nas aulas de geografia. A temática da regionalização brasileira apareceu como uma das mais citadas pelos professores.

Nesse sentido, nosso interesse nesta análise é explorar não as presenças, senão a ausência de algumas regiões nessas escolhas. Em específico, importa-nos discutir a ausência da região norte. Na geografia escolar a Amazônia aparece como uma região geográfica, quase como um sinônimo do Norte do país, de forma que consideramos, para os efeitos do que pretendemos discutir, apenas as referências dos professores a filmes e documentários que se referiram a esse bioma.

Trabalha-se aqui com várias imagens, desde as apresentadas nos dois filmes mencionados pelos professores na pesquisa comum até aquelas que estão presentes em alguns livros didáticos. Num primeiro momento, apresentamos o percurso da investigação, revelando nossas incursões pelos resultados do questionário e o modo como organizamos nosso pensamento a partir da pergunta que deu origem a esta reflexão: quais os motivos da ausência de filmes sobre a região norte nas respostas dos professores?

Em seguida, dialogamos a respeito das duas produções cinematográficas que encontramos dentre os filmes citados para a abordagem do conteúdo “Amazônia”: “Tainá: Uma Aventura na Amazônia” (2000) e “Amazônia S/A” (2015). Todas essas incursões objetivam apresentar as imagens recorrentes que marcam situações escolares em que há a presença do cinema nas aulas de geografia. Por fim, apresentamos nossas considerações finais, que não encerram, mas ao contrário suscitam outras questões e debates que podem ser travados no diálogo com os resultados da pesquisa comum.

2 O PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO

A pesquisa “As telas da escola: cinema e professores de geografia” foi organizada e aplicada pelos pesquisadores integrantes dos polos da Rede Internacional de Pesquisa “Imagens, Geografias e Educação” entre os anos de 2016 e 2019. Contou com a elaboração de um questionário-base comum a todos os polos, composto por dezesseis questões abertas e fechadas aplicadas a professores de geografia de escolas públicas onde estão situados os polos da Rede3. O questionário também continha um cabeçalho informando o contexto geral da pesquisa e sua vinculação com a Lei 13.006/2014. As respostas foram inseridas em uma tabela, o que possibilitou que todos os membros da Rede a acessassem posteriormente ao fim da pesquisa.

As temáticas que aparecem nos textos do dossiê foram pensadas a partir do desejo de cada pesquisador ou de grupos de pesquisadores de tensionar alguma questão neles suscitadas pelas respostas. O questionário não teve como propósito ser apenas um instrumento de coleta de informações, mas sim uma ferramenta para que mais perguntas fossem elaboradas nos diferentes contextos em que as práticas educativas estabelecem relações diversas com o cinema. Uma pesquisa pode ser potente não só para oferecer respostas, mas para criar e desmanchar pensamentos que gerem novas e variadas perguntas (OLIVEIRA JR., 2017). É preciso, nesse caso, considerar a imensa variedade e a aceleração das mudanças da cultura docente, bem como o contexto de transformações nas legislações e documentos curriculares.

Neste sentido, é necessário registrar que esta análise não tem intenção de generalizar o modo como os professores de geografia estabelecem relações com o cinema em sala de aula, mas ser instrumento, tendo em vista o que se pode inferir a partir da pesquisa comum, para suscitar questões que nos aproximem das práticas e expectativas docentes nas relações por eles estabelecidas entre o cinema nacional e a geografia escolar.

Ao acessar a tabela do questionário-base percebemos que dentre as respostas havia um número significativo de referências ao conteúdo da regionalização do espaço brasileiro atreladas ao uso do cinema nas aulas de geografia. Entretanto, entre os filmes citados, nenhum deles aludia à região norte. Questionamo-nos sobre esse apagamento de referências nacionais que pudessem ser utilizadas pelos professores. Consideramos que, assim como são fundamentais as repetições para se pensar uma pesquisa em educação geográfica (o excesso da exibição de um mesmo filme para trabalhar determinado conteúdo ou da abordagem do mesmo conteúdo quando do uso de filmes), a ausência (nenhuma menção) também é uma questão a ser considerada.

Dentre as 136 respostas dos questionários aplicados aos professores brasileiros, apenas três fizeram menção a filmes cujo conteúdo a ser trabalhado é a Amazônia. Debruçamo-nos inicialmente sobre a questão que solicitava o registro de uma frase sobre as relações entre escola e cinema. Os professores que citaram filmes sobre a Amazônia assinalaram as seguintes respostas: “o cinema colabora no processo de ensino-aprendizagem”; “o filme permite a ampliação do acesso a outros pontos de vista e motiva a discussão significativa no processo de ensino e aprendizagem”; “o cinema é uma linguagem fundamental no aprendizado dos conteúdos escolares, tanto como conteúdo complementar, como uma forma de provocar outras perspectivas e outro imaginário sobre os temas trabalhados”.

Comparamos, na sequência, esses registros às respostas da questão que tratava dos motivos que levavam os professores a passar filmes na escola. Aqueles que indicaram as obras às quais nos atemos, qual sejam, “Tainá: Uma Aventura na Amazônia” (2000) e “Amazônia S/A” (2015), escolheram como primeira opção, dentre outras possíveis, a de que as utilizaram porque se vinculam a algum conteúdo de geografia. Ao refletirmos sobre essas respostas não pudemos deixar de pensar a respeito da força do hábito no uso das diferentes linguagens como recurso didático. Com o cinema não seria diferente. A exibição de filmes nacionais nas aulas de geografia nos pareceu estar majoritariamente a serviço da ilustração de algum conteúdo ou temática específica.

Os filmes nacionais estão no rol dos recursos que esses professores têm disponíveis para comunicar, informar, transmitir e ilustrar conteúdos e temas da geografia escolar. É uma linguagem cujo sinônimo é “[...] recurso, ferramenta ou instrumento comumente adjetivados de didáticos” (OLIVEIRA JR.; GIRARDI, 2011, p. 02) e na qual as preocupações estão (con)centradas no âmbito da didática ou das metodologias de ensino.

Oliveira Jr. e Girardi (2011) já haviam identificado, através de um levantamento realizado nos trabalhos apresentados nos Encontros Nacionais de Prática de Ensino em Geografia (ENPEGs)4, especificamente nos grupos de trabalho que trataram de pesquisas sobre as diferentes linguagens utilizadas em sala de aula, a presença de dois grandes grupos. Em um deles estavam os trabalhos que versavam sobre a compreensão da linguagem atrelada ao ato de comunicar, de transmitir algo a alguém, ou seja, uma concepção de educação tomada como ensino e aprendizagem. Para os autores, neste primeiro grupo

[...] não há a problematização de qual conhecimento é este que é transmitido, mas sim a busca de melhores caminhos didáticos para ensinar os conhecimentos já tidos como verdadeiros e necessários para se alcançar um bom conhecimento geográfico do mundo no qual vivemos.

(OLIVEIRA JR; GIRARDI, 2011, p. 03).

Não é de se estranhar esse cenário pouco alentador. Considerando que no levantamento realizado pelos pesquisadores identificou-se que a maior parte dos trabalhos que compõem o primeiro grupo foram produzidos por professores da educação básica e estudantes dos cursos de graduação em Geografia, é possível dizer que esse modo de lidar com as diferentes linguagens prevalece na geografia escolar. Os professores que estão em sala de aula, bem como os docentes em formação, têm mais contato com pesquisas e práticas que os colocam diante do hábito de escolher recursos, ferramentas e instrumentos que sejam adequados à transmissão de conteúdos geográficos na educação básica.

Ao serem utilizadas como recurso disponível à ilustração e comprovação do que já foi dito e lido nos livros didáticos, as linguagens perdem a força motriz de potencializar a produção de conhecimentos. Neste aspecto, elas não são acionadas como “[...] viabilizadoras de novas produções de mundos, [...] como fundamento de um processo de criação, de produção de pensamento sobre o espaço” (OLIVEIRA JR.; GIRARDI, 2011, p. 04). Ainda assim, Oliveira Jr. e Girardi (2011) consideram que, mesmo que utilizado apenas como recurso didático ilustrativo, o cinema enquanto linguagem continua funcionando como possibilidade de ampliação de diálogos mais consistentes e amplos acerca da produção do pensamento sobre o espaço.

Em todo caso, parece-nos que temos nessa situação alguma dificuldade por parte dos professores em lidar com as linguagens que contemplem as subjetividades capazes de vir à tona através de práticas educativas que arrastem as obras fílmicas para outros usos que não somente o de prova da realidade ou ilustração de conteúdo. Entretanto, e esta é uma limitação que reconhecemos na pesquisa comum cujos dados servem de base para esta análise, os resultados do questionário esbarram, ao mesmo tempo, em suas próprias insuficiências, uma vez que as práticas docentes com as obras fílmicas por eles elegidas também podem ter acionado o uso da linguagem como criação e produtora do pensamento espacial – mas isso os questionários, por si só, não são capazes de evidenciar. O que levantamos aqui como problemática é, assim, tão somente fruto do que pudemos acessar através da pesquisa comum a qual, infelizmente, não nos possibilitou vislumbrar todos os desdobramentos que, em sala, possam ter advindo do uso dessas produções.

O cinema opera pelo currículo tal qual os livros didáticos e as imagens servem como documento, prova do real, ilustração, representação de conteúdos e temáticas geográficas. Ao constatar as poucas citações de filmes que poderiam ser utilizados para trabalhar temas da região norte e amazônica, consultamos alguns livros didáticos de Geografia5 nos quais encontramos diversas indicações de obras que tratam de temáticas relacionadas a esse espaço. Entre os sete livros aos quais tivemos acesso (Quadro 1), apenas o intitulado “Geografia: Território e Sociedade” (LUCCI; BRANCO, FUGII, 2018) apresenta a divisão do Brasil em três complexos regionais: Nordeste, Centro-Sul e Amazônia. Os outros seis seguem a divisão “oficial” do IBGE (aquela que divide o Brasil em cinco regiões: norte, nordeste, centro-oeste, sudeste e sul). Todos os livros apresentam sugestões de filmes relacionados aos conteúdos trabalhados nas unidades, e há indicações de obras com temáticas variadas tanto da Amazônia como da região norte, como podemos observar no Quadro 1 abaixo.

QUADRO 1 Indicações de filmes sobre Amazônia e região norte em livros didáticos de Geografia. 

Livro didático Filme(s) indicado(s)
Araribá Mais Belo Monte: depois da inundação. Direção de Todd Southgate. Brasil 2016. 55 min.

Chico Mendes: um depoimento. Direção: Bernardo Fernandes. Brasil: Associação de Geógrafos Brasileiros, 1988. 60 min.

Serra Pelada. Direção Heitor Dhalia. Brasil, 2013. 100 min.
Expedições Geográficas. 7º ano. Componente Curricular: Geografia Chico Mendes: o preço da floresta. Direção: Rodrigo Astiz. Brasil: Rt2A Produções Cinematográficas Ltda., 2008. Duração: 43 min.

Expedições Amazônia: nascente do Amazonas I e nascente do Amazonas II. Dir. Paula Saldanha e Roberto Werneck. Brasil: RW Cine, 2007/2008. 60 min.

Os calangos do Boiaçu. Direção: Ricardo Dias. Brasil: Cinematográfica Superfilmes, 1992. 21 min.
Geografia: Território e Sociedade, 7º ano: Ensino Fundamental, anos finais Amazônia em chamas. Dir. John Frankenheimer. EUA: Warner Bros, 1994. 123 min.

Avaeté: a semente da vingança. Dir. Zelito Viana. Brasil:Embrafilm/Mapa Filmes, 1985. 110 min.

Borracha para a vida. Dir. Wolney Oliveira. Brasil: Bucanero Arte, 2005. 52 min.

O vale dos esquecidos. Dir. de Maria Raduan. Brasil, 2012. 72 min.
Geografia Espaço & Interação: 7º ano: Ensino Fundamental: anos finais Belo Monte: depois da inundação. Direção de Todd Southgate. Brasil 2015
Geração Alpha Geografia: Ensino Fundamental: anos finais: 7º ano Amazônia Desconhecida: Daniel Augusto e Eduardo Rajabally. Brasil, 2013 (52 min)
Por dentro da Geografia, 7º ano, anos finais Chico Mendes: o preço da floresta. Direção de Rodrigo Astiz. Brasil. 2008. 43 min.
Vontade de Saber: Geografia: 7º ano: Ensino Fundamental: anos finais. Tainá: Uma Aventura na Amazônia. Direção de Lamarca; Sérgio Bloch. Brasil. Tietê Produções Cinematográficas Ltda., 2000 (101 min).

Fonte: Elaborado pelas autoras (2020).

Nota-se que não se trata, portanto, da total ausência de referências que abordem conteúdos e temáticas sobre essa porção (a porção norte) do território brasileiro, mas dos modos pelos quais lidamos, em sala de aula, com eles. As sugestões presentes nos livros servem, inclusive, como inspiração para que outras produções audiovisuais sobre a região norte ou a Amazônia possam ser utilizadas em sala. Não obstante, não podemos perder de vista que há, em todas elas, pelo menos duas possibilidades de uso das linguagens, conforme já indicam Oliveira Jr. e Girardi (2011). Ou seja, embora algumas produções possam ser mais propícias que outras para diversificar o olhar para a Amazônia e para a região norte do país, a potência de ilustrar uma situação espacial ou criar algo novo nas situações já dadas não está em um ou outro filme, mas antes num modo de ver as produções audiovisuais que se reproduz também nos cursos de formação de educadores em Geografia.

Dessa maneira, enfatizamos a importância de um trabalho de formação de professores que acione as linguagens de diferentes modos, dado que o problema parece não estar tanto na linguagem (fotografias, mapas, gráficos, tabelas), senão no tipo de acesso e de questões que colocamos em torno delas. Elegemos como caminho de formação, como proposta de formação, a que suscita também novas produções de mundos, de lugares, de um pensamento sobre o espaço capaz de arrastar o cinema e a nós mesmos para outras compreensões do território brasileiro, das regiões e lugares diversos que estudamos.

3 A AMAZÔNIA NAS TELAS DA ESCOLA

Diante da constatação de que não havia nenhuma menção a filmes que pudessem ser utilizados pelos professores para uma discussão sobre a região norte e dado que encontramos, nas respostas, a citação de duas produções audiovisuais que, segundo eles, “serviam” para tratar a temática da Amazônia, olhamos para as imagens desse bioma suscitadas nessas produções buscando compreender de que Amazônia se tratava.

Isso porque, na geografia escolar, também se produz uma imagem da Amazônia. É importante dizer que nas imagens didáticas, Amazônia e região norte aparecem quase como constituindo a mesma porção do espaço territorial, um espaço tomado como região, mesmo que o maior bioma brasileiro ocupe todos os estados do norte e que a floresta escape das linhas traçadas nos mapas políticos do território, estando presente também em porções dos do Maranhão e do Mato Grosso: a denominada “Amazônia Legal”. A ciência, de modo geral a geográfica e, por consequência, também a geografia escolar, sempre demonstraram a necessidade de recortar e fragmentar o mundo para melhor compreendê-lo e explorá-lo. Dentre algumas invenções do modo de dividir o imenso território brasileiro, a Amazônia, além de floresta tropical, de bioma que ocupa mais da metade do país, também passou a ser tomada como região.

Se observarmos com mais atenção – ainda que não escapemos da recorrência, na geografia escolar, de tratar a região como um mero “recorte” do espaço em múltiplas escalas (HAESBAERT, 2018, p. 230) –, é preciso considerar também que esse exercício de “recortar”, classificar e nomear os espaços é um ato de poder, já que nele se colocam em disputa diferentes instituições e grupos sociais atravessados por diversos interesses. No caso da Amazônia, podemos pensar em condições estratégicas relacionadas ao papel que essa porção do espaço vem protagonizando nas últimas décadas, tanto em nível internacional, com a discussão em torno das questões climáticas, quanto em nível nacional, a partir da condição de última “fronteira agrícola do país”. Não temos “região Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica”, mas temos a região amazônica.

Nas imagens cartográficas presentes nos materiais didáticos, o estudante encontra diferentes formas de “regionalizar” o Brasil, sendo a oficial e mais utilizada a do IBGE – a que divide o território brasileiro nas cinco macrorregiões já anteriormente citadas. Há também a divisão dos “três complexos regionais brasileiros”: Amazônia, Nordeste e Centro-Sul; e a dos quatro “brasis”: Região Amazônica, Região Nordeste, Região Centro-Oeste e Região Concentrada, menos utilizadas nos livros, mas apresentada aos estudantes.

O cinema na escola também é capturado pelo hábito de apresentar o país de forma fragmentada, como se as linhas que dividem essas regiões nos mapas “realmente” definissem os limites entre o que chamamos “regiões”. A pesquisa “As telas da Escola: cinema e professores de Geografia” revelou uma aproximação significativa entre a utilização de filmes nacionais e a temática da regionalização brasileira para fragmentar não só as geografias do Brasil, mas também as geografias do mundo. Segundo Oliveira Jr.:

A escala do pensamento geográfico tem sido aquela apontada pelo conceito de região [...]. Um conceito que implica inevitáveis generalizações e aglutinamentos, redutores também inevitáveis da diversidade das tensões, das fissuras existentes em qualquer lugar em seu interior, tanto das regiões quanto das redes.

(OLIVEIRA JR, 2005, p. 30).

Aliás, não se trata apenas da captura da temática regional ou do conceito de região pelos professores de geografia através da exibição de filmes, mas de uma base curricular alicerçada no modelo fundador da geografia escolar – a geografia francesa regional. Nesse sentido, além da escala geográfica regional estruturar toda a organização e sequência curricular na geografia escolar, ela também se torna, através do cinema, conteúdo das aulas de geografia. Os filmes utilizados pelos professores não escapam dessa dinâmica, ou seja, se os filmes servem para representar ou ilustrar determinada porção do espaço brasileiro ou conteúdo geográfico, estão a serviço quase que exclusivamente do currículo.

Policastro (2020), na pesquisa intitulada “‘É só um filme’: aproximação entre geografia escolar e o outro no/do cinema”, identificou, através de questionários respondidos por professores brasileiros, a presença significativa da escala regional como recorte espacial presente nos conteúdos dos filmes que utilizaram nas aulas de geografia. A exibição de obras nacionais cujo enredo se passa em lugares bastante específicos do país está em grande medida relacionada ao “conteúdo” da regionalização brasileira. Os professores, conforme mostrou a pesquisa de Policastro (2020), tomam os filmes como um recurso capaz de tornar um lugar a própria expressão de uma região. No recorte da análise realizada pela pesquisadora, as menções a filmes relacionados ao conteúdo “regionalização” “[...] equivalem a 19,6% do total de menções a filmes brasileiros citados na pesquisa completa” (POLICASTRO, 2020, p. 53). Policastro (2020) também observou que quando os professores citaram os conteúdos usando a palavra “região” ou apontando regiões específicas, a região norte não foi mencionada nenhuma vez.

Considerando o que foi exposto, para além da captura da Amazônia pelo viés regional – abordagem e conteúdo –, interessou-nos saber um pouco mais como ela é abordada nas duas produções audiovisuais citadas na pesquisa, a saber: “Tainá: Uma Aventura na Amazônia” (2000) e a série “Amazônia S/A” (2015). Os docentes relacionaram essas produções a conteúdos como “floresta” e “aspectos físicos e impactos ambientais”.

O que essas produções audiovisuais nos dizem a respeito desse espaço? A que geografia da Amazônia dão existência? Os dois filmes, de formas bastante distintas, dão ênfase a uma Amazônia relacionada à ideia de uma floresta densa e homogênea. Quando ressaltamos essa ênfase, queremos sublinhar as muitas outras “amazônias” que não aparecem ou que vêm imageticamente coladas a uma imagem dominante funcionando, portanto, meramente como imagens produzidas a partir dessa dominância.

“Tainá: Uma Aventura na Amazônia” é um filme de 2000, classificado pelo gênero aventura e destinado ao público infantil. Nesse filme, cuja personagem principal é uma criança indígena órfã, um fragmento da floresta amazônica aparece como a “selva” permeada por lendas e mitos, habitada por diferentes espécies. As “aventuras” da pequena índia na floresta são atravessadas por narrativas fílmicas que envolvem questões como preservação ambiental, biopirataria, pesquisa científica, interesses estrangeiros e diferenças entre modos de vida.

Ao longo do filme é possível perceber, através de cenas e diálogos entre Tainá e Joninho, “o menino da cidade”, uma geografia que posiciona a diferença cultural entre duas crianças. A menina índia é “colocada” em contato com o mundo através do estranhamento com os objetos e produtos que ela encontra na casa de Rudi, personagem que vive na floresta, mas tem um modo de vida urbano/ocidental. Ocorrem encontros cruciais com outros personagens que não são “nativos da floresta”. Um deles é Isabel, uma pesquisadora que se dedica à inovação da vacina contra a “febre da floresta”. Ela sabe que a “mãe” do macaco que Tainá salvou das armadilhas dos contrabandistas é a fêmea de uma espécie em extinção e por isso teme pela integridade física da menina. Também discursa a respeito dos interesses da indústria farmacêutica multinacional na biodiversidade amazônica.

O enredo é marcado por oposições. Oposição entre personagens que representam “o bem”, dispostos a ajudar Tainá e cuja escolha é viver em harmonia com a floresta e oposições entre seus modos de vida as quais se mostram, por exemplo, no encontro de Tainá com o filho de Isabel, um menino que não suporta estar na floresta, odeia os “bichos nojentos” e é viciado em jogos eletrônicos. Essas cenas são marcadas pela presença das tecnologias e de um modo de vida urbano e “contemporâneo” em contraste com o de Tainá.

Oposições, ainda, entre personagens caricatos do “mal”. Por um lado, contrabandistas em barcos cheios de armadilhas e animais capturados para serem enviados a pesquisadores estadunidenses. Por outro, “gringos” que chegam no porto de Manaus de maneira bastante estereotipada, vestidos com roupas de exploradores como nos filmes de expedições às “selvas africanas”.

Tainá também aparece como a salvadora dos animais, já que vai desarmando as armadilhas preparadas pelos contrabandistas, atrapalhando seus planos. A personagem representa a ideia do povo nativo como o responsável pela preservação da floresta. A menina aciona a memória dos conhecimentos transmitidos por seus ancestrais, representados por seu avô que morre logo no início da história. Também chama a atenção o fato de que o filme já se inicie com Tainá acompanhada apenas dele e que os dois não vivam em uma comunidade ou uma aldeia, mas isolados caminhando pela floresta ou navegando de canoa pelos igarapés.

As cenas em que Tainá caminha pela floresta são compostas de imagens e sons que nos remetem a um ideal de harmonia edênica entre a menina e o lugar onde vive. Em determinado momento do filme, entretanto, oposição e estranhamento se invertem. A partir daí, Tainá faz com que Joninho, nada afeito ao lugar em que vive e desejoso em recuperar sua antiga vida urbana, passe por uma transformação, encare seus medos, respeite os saberes dela e contemple os sons da floresta. Cria-se então uma relação de afeto entre as crianças. Os adultos, porém, percebem que Tainá e Joninho sumiram e passam a buscá-los incessantemente. Nessas cenas percebe-se como os movimentos da câmera (enquadramentos e ângulos) desejam oferecer ao expectador a deia da vastidão e do desconhecido da floresta. A trama é desenrolada pela luta do “bem” contra o “mal”. No final há, como sempre, os perdedores e os vencedores, e estes últimos são aqueles que se aliam para preservar e cuidar da floresta, de sua biodiversidade. Em suma, uma visão romantizada. Aos perdedores resta a prisão ou a morte.

O filme, feito dessa narrativa simples, estereotipada e romântica, é usado pelos professores e indicado em livros didáticos do 7° ano do Ensino Fundamental. O conhecimento da Amazônia nessa esfera escolar está praticamente limitado ao que ele consegue representar, uma vez que é considerado didático dada tal “simplicidade”. Essa história tem encantado o público infantil, que facilmente se identifica com os personagens. Mesmo que seja um filme de ficção e que outras geografias possam ser acionadas pelas práticas escolares, sua escolha parece não escapar de um modo de ver a Amazônia que está atrelado a uma ideia de olhar aquilo que é autêntico, original, exótico, tradicional, em contraponto ao que difere disso, “como se a cultura e a história pudessem ser congeladas e não houvesse interações multidimensionais e multiescalares entre as culturas, os sujeitos e os lugares” (CRUZ, 2006, p. 67).

“Amazônia Sociedade Anônima S/A”6 (2015), por sua vez, é uma série documental de cinco episódios que foi exibida no ano de 2015 pelo “Fantástico”, programa dominical da TV Globo. O professor que mencionou essa produção audiovisual cita como conteúdo relacionado a ela: “aspectos físicos e impactos ambientais na Amazônia”.

Os episódios apresentam informações espaciais sobre uma “região que continua desconhecida da maior parte da população, ainda que os brasileiros comam a carne, usem a eletricidade, vistam o algodão, bebam a água e pisem na madeira vinda de lá” (AMAZÔNIA, 2015). Um conjunto de imagens são acionadas em sequência para compor uma ideia de Amazônia, as quais pretendem revelar “uma sociedade que continua anônima para o Brasil” (AMAZÔNIA, 2015). Essa narrativa, apesar de considerar a impossibilidade de dar voz a todos que lutam por esse espaço e apesar de tratar de muitas “amazônias”, toma a junção de imagens e sons em uma sequência didática quase que documental, um inventário de recursos e investimentos para a exploração da “última fronteira agrícola do Brasil”.

As imagens são exibidas e deslocadas em diversos ângulos e enquadramentos que parecem dançar ao som da voz da narradora, a atriz Fernanda Montenegro. Há uma sincronia didática entre as informações/sons e as imagens/ilustrações. Essa sincronia é tamanha que em alguns momentos o expectador parece ser capturado pelas informações produzidas no encontro de sons e imagens que mostram a exuberância, o exótico, a imensidão da floresta de “maior concentração de biodiversidade da Terra, maior bacia hidrográfica do mundo, mais de 400 bilhões de árvores, maior biomassa florestal do planeta, mais de 180 línguas nativas” (AMAZÔNIA, 2015).

Nos episódios, as imagens em seus diversos ângulos e a sincronia entre elas trazida pelo tipo de narração evocam o que Oliveira Jr. (2020), ante um funcionamento das imagens em série, denomina “tropa de imagens”. Para o autor as “[...] imagens fazem tropa, se ligam a tropas específicas de outras imagens funcionando em séries (de tropas), coproduzindo entre elas vínculos dos quais dificilmente escapamos” (OLIVEIRA JR, 2020, p. 13), o que também acontece com as imagens nos livros didáticos de geografia.

É possível observar diversas sequências em que a contradição opera pelas imagens e sons, como por exemplo, essa que citamos acima. Há sequências de trechos em que eles nos transportam à grandiosidade da Amazônia. Estas são alternadas por falas de “especialistas”: “a gente não tem experiência no Brasil e no resto do mundo de como fazer uma civilização em trópicos úmidos, gerar conhecimento e tecnologia em floresta tropical é um desafio para a ciência e para a tecnologia” (AMAZÔNIA, 2015).

Causa espanto essa narrativa de uma Amazônia não civilizada, como se já não fosse ocupada e explorada em proporções descomunais. Todo conhecimento e tecnologia que já existem na “floresta” parecem, então, não servir para a elaboração da tal “civilização em trópicos úmidos”. Nesse trecho, há uma desconsideração pelas vidas que já se organizam e ocupam esse lugar. Cria-se ou repete-se/reforça-se a ideia do vazio demográfico, da subalternização das populações que já foram inclusive citadas na própria série. Deborah Duprat, procuradora geral da República - Distrito Federal, afirma em um trecho específico da série: “convivem na Amazônia um universo absurdamente rico e ainda bastante desconhecido da população brasileira” (AMAZÔNIA, 2015).

As populações “tradicionais” aparecem na série como um contingente que não existe ou não é “civilizado”. O estereótipo de uma Amazônia desse tipo, selvagem e exótica, é reforçado pelas oposições que inundam, a todo o tempo, as imagens. Assim como em outras produções, inclusive em “Tainá”, a narrativa fílmica da Amazônia está sempre atravessada pela contradição a qual, entretanto, não parece ressaltar a diversidade como algo inerente aos lugares, ao contrário aprisionando essa mesma diversidade.

Os slogans são incessantemente repetidos a cada episódio: “a Amazônia é o coração do Brasil”; “o berço de boa parte dos povos indígenas que ocuparam o continente”; “em breve será o principal produtor em minério, energia elétrica, soja, carne e madeira, itens estratégicos para economia do país”; “a Amazônia é uma usina de serviços ambientais”; “cheia de riquezas e ao mesmo tempo marcada pelo subdesenvolvimento”; “a floresta tem papel fundamental para o futuro do clima e da economia do Brasil”, “a Amazônia é o futuro do Brasil, ainda que mais da metade da população brasileira nunca tenha posto os pés aqui” (AMAZÔNIA, 2015). A Amazônia aparece nas narrativas como plural, desmatada, lugar de pastagem, pobre, subdesenvolvida, com cidades precárias, rica em recursos e diversidade de povos, o futuro do país. Ela vai, a cada episódio, se transformando numa coleção de imagens e sons, funcionando em tropas cuja repetição incessante revela também o desejo de que esse mesmo excesso de informações se torne um recurso didático para as aulas de geografia. Esse funcionamento em muito se assemelha ao de uma aula informativa e expositiva.

Nesse caso, há ainda que se considerar a narrativa como um forte apelo ecológico a partir do que Godoy (2008, p. 77) diz a respeito da “ecologia maior”:

A ecologia, esta que chamo de maior, diz respeito ao possível que se realiza de uma determina maneira, isto é, aquele já dotado de realidade (realizado), escolhido entre um conjunto predeterminado segundo a lógica das proposições científicas a partir de uma redução da circunstância àquilo que pode ser observado: a destruição como realidade e o conservacionismo como necessidade, enredando-nos no debate entre biólogos da conservação, porta-vozes dos direitos das populações tradicionais de permanecerem idênticas a si mesmas.

As “populações tradicionais” são capturadas pela narrativa documental. Os conflitos e as disputas geradas há séculos por um modelo de “desenvolvimento” que vai chegando e desorganizando as vidas dessas populações as posicionam, ao mesmo tempo, como “salvadoras” de toda essa riqueza.

A preservação e a continuidade da “floresta em pé” dependem, assim, do modo de vida das populações ditas “tradicionais”, o que nos parece uma noção bastante estruturada pelo colonialismo, que posiciona o diferente como tradicional. Em outras palavras, a diferença só é reconhecida quando se trata de reforçar a desigualdade. É ao que incita a série Amazônia S/A, ao afirmar: “Hoje nossa grande esperança de salvar a imensa floresta está na capacidade das populações tradicionais de entender e defender o nosso maior patrimônio” (AMAZÔNIA, 2015).

Não sabemos como construir uma civilização nos trópicos úmidos, reconhecemos a diversidade dos povos que habitam a Amazônia, mas queremos comê-la, derrubá-la, transformá-la em pastagem, em soja, em hidrelétricas, em estradas, queremos extrair os seus minérios. Mas nossa esperança, nossa expectativa a respeito de seu salvamento está, paradoxalmente, num modo de vida que não respeitamos. Os supostos “salvadores” da floresta, por exemplo, não aparecem nas imagens de “Tainá” ou “Amazônia S/A”, considerando toda a tropa que compõem a Amazônia. Não aparecem pois não fazem tropa com as imagens que desejam mostrar uma Amazônia homogênea, problemática e diversa meramente em relação à vida “natural”. A diversidade não ecoa quando operada pela força da repetição e da contradição e assim não nos permite pensar o espaço como o conjunto, a expressão de multiplicidades, como nos propõe Massey (2008).

4 ABRIR FILMES, TEXTOS, MAPAS

O pequeno universo de respostas utilizado nesta análise nos leva a pensar em um conjunto de outras imagens que, numa aproximação com o trabalho de Oliveira Jr. (2020), chamaríamos “imagens em tropa”, uma vez que se encontram com aquelas presentes nos livros didáticos, aquelas que circulam na mídia e também as que nossos alunos trazem para as salas de aula nos cursos de Geografia. Assim, compõem uma série de imagens diferentes em suas formas e, ao mesmo tempo, similares na ideia de Amazônia que acionam em nós, ou melhor, que já de antemão é ativa e reativada em nós.

Além de as produções cinematográficas serem tratadas como conjuntos de imagens e sons tomados como recurso didático na geografia escolar, sua utilização pelos professores revela uma aproximação dessas produções com o que se caracteriza como uma aula tradicional. Aulas em que os professores são capturados “por um destino da educação em comunicar ou transmitir aos sujeitos algo que está, em regra, fora deles (normalmente os saberes da Geografia acadêmica tornados conteúdo da Geografia escolar)” (OLIVEIRA JR., 2020, p. 57). Nesse aspecto,

[...] a abordagem que se faz da obra cinematográfica situa-se em uma perspectiva de documentário (documento do real), estratégia que contribui para a estabilidade do território, uma vez que se harmoniza com as práticas docentes consolidadas de ilustrar conteúdos com imagens tomadas como o real manifestado, o que já acontecia nas fotografias dos livros didáticos, só que agora adicionado a movimentos.

(OLIVEIRA JR, 2020, p. 57).

Tais considerações são importantes para pensarmos a respeito da produção de “lugares” no cinema, já que a pesquisa comum que originou os dados para esta análise também revelou a presença marcante da escala regional tanto na estrutura curricular da geografia escolar como nas produções cinematográficas. Tomadas como “reais”, essas imagens funcionam em tropa, como representação desses lugares. Nessa relação que se estabelece entre o cinema como linguagem e as aulas de geografia, não há espaço para fazer dos filmes possibilidades de encontros com tais lugares, de experimentá-los numa perspectiva de espaço em devir (MASSEY, 2008), sempre por fazer-se, aberto às suas imprevisibilidades.

Talvez essa possibilidade (de fazer dos filmes encontros com os lugares) deva ser pensada como parte do trabalho do formador de educadores em Geografia nos cursos de licenciatura. É nesse sentido que a reflexão a respeito das ausências, as quais permearam esta análise, nos interessou. Nossa ponderação caminha no sentido das múltiplas dimensões das linguagens e não na direção única de representar um lugar, uma coisa e/ou uma situação. As linguagens podem mais do que isso e é essa compreensão, dada pelo exercício tanto da análise das respostas dos professores quanto da escrita desta investigação, também pelas perguntas que fizemos ao nos deparar com os resultados de uma pesquisa (as quais abrem-nas a muitas leituras e ainda outras perguntas).

Para além das escolhas dos filmes e o que eles representam, importa-nos ainda mais o modo como são utilizados. No caso de nossa análise, seguindo a mesma lógica de uma aula tradicional. A aula comunica uma informação e o filme, que também a comunica, prevalece em sala com função aparentemente semelhante. Mas tanto a aula quanto o filme podem muito mais que apenas comunicar. Consideramos que as diferentes linguagens (qualquer linguagem escolar) podem tomar dois caminhos diferenciados, como já apontaram Oliveira Jr. e Girardi (2011): o de apenas comunicar ou o de criar algo a partir de um colocar-se em relação com as obras que levamos para a sala de aula. Nos episódios da série “Amazônia S/A” (2015), em especial, é possível observar com muito mais força essa proximidade do documentário televisivo e sua “arte” de comunicar com as aulas de geografia, dada sua característica narrativa calcada na informação.

Acreditamos que é o trabalho de formação do educador o único capaz de alterar a relação direta do filme com a escola, do filme com os estudantes, dele com o conhecimento, ainda com o pensar, também com os lugares e por fim com a imaginação de mundos. Lugares, regiões e espaços se constituem nas obras fílmicas, portanto, elas devem ser estudadas como se estuda um mapa ou um texto. É necessário o trabalho de destrinchar o filme, entendendo-o em sua construção como uma obra posicionada no mundo e que diz de um mundo. O cinema é um ponto de vista de um diretor, de uma equipe de realização. É um texto e, como texto, precisa ser aberto para ser olhado na perspectiva que Doreen Massey (2008) atribui à multiplicidade.

Abrir um filme, abrir as linhas que tecem essa produção, as tramas, a composição de cores, de sons, as sequências de imagens que juntas criam lugares, espacialidades e estórias de mundos. Abrir um filme e com as linhas que o tecem experimentar modos de se aproximar dessas obras a partir de uma perspectiva de linguagem como criação, como criação de espaços e lugares, como obras que dão existência a geografias que escapam desse desejo de representação. Abri-los também como formas de combate às “imagens que atravessam nosso território de poder mais específico, a geografia escolar” (OLIVEIRA JR., 2020, p. 7). Nesse território específico, as diferenças espaciais são capturadas pela “narrativa única da globalização”, a de classificar os lugares como mais desenvolvidos, atrasados, civilizados. Para que haja diferença (em suas múltiplas e distintas formas), “deve existir espaço” (MASSEY, 2004, p. 10).

Talvez seja preciso pensar a respeito das composições fílmicas já existentes e de que outras ainda são possíveis, compreender os contextos escolares e de vida dos professores e como a força da distância e do desconhecido age sobre nossos corpos e sobre nossos percursos formativos. Os filmes, assim como os mapas e os textos, estão aí, circulando nas escolas do país, podendo representar ou criar mundos. Cabe então ao educador fazer novas proposições para e com eles, abrindo-os a inúmeras possibilidades de pensar com e pelas imagens em suas interfaces com a geografia e a educação. O exercício de produzir um pensamento espacial implicado nas diferentes linguagens que usamos nas aulas de geografia tem sido o que motiva os trabalhos de pesquisa e ensino que empreendemos na Rede “Imagens, Geografias e Educação”.

Revisão gramatical realizada por:

Luiz Guilherme Augsburger

Michele Fernandes Gonçalves.

E-mail:

luizg.augs@gmail.com.

carpe_mizinha@hotmail.com.

3Os questionários, no Brasil, foram aplicados com professores de Geografia de escolas públicas de Campinas/SP; São Paulo/SP; Vitória/ES; Dourados/MS; Presidente Prudente/SP e Florianópolis/SC, portanto, não é uma pesquisa que revela a cena das relações entre cinema e professores de Geografia em âmbito nacional, mas nas cidades em que os polos da rede estão situados. É importante destacar que a pesquisa também foi realizada nos polos internacionais da rede – Buenos Aires, na Argentina, e Montería, na Colômbia.

4Para a elaboração do artigo “Diferentes linguagens no ensino de Geografia”, Oliveira Jr. e Girardi (2011) pesquisaram os anais dos ENPEGs e Encontros Nacionais de Geógrafos e também realizaram buscas online a partir de diferentes combinações de palavras-chave, a exemplo, “[...] geografia-ensino-linguagem-2008 ou geografia-fotografia-educação-2009 ou cinema-geografia-aprendizagem-2010” (OLIVEIRA JR.; GIRARDI, 2011, p.07).

5Os livros consultados foram todos aprovados pelo Plano Nacional do Livro do Livro Didático (PNLD) de 2020. São livros destinados ao componente curricular Geografia para o 7º ano do Ensino Fundamental. No currículo oficial, as regiões brasileiras são abordadas como conteúdo do 7º ano.

6Na época em que os questionários foram aplicados, o filme “Amazônia Sociedade Anônima”, longa-metragem de Estevão Ciavatta, ainda não havia sido lançado, o que ocorreu em agosto de 2020.

REFERÊNCIAS

AMAZÔNIA S/A (Sociedade Anônima). Direção de Estevão Ciavatta e Fernando Acquarone. Brasil, Pindorama Filmes, 2015. (Youtube) [ Links ]

CRUZ, Valter do Carmo. R-existências, territorialidades e identidades na Amazônia. Terra Livre, Goiânia, ano 22, v. 1, n. 26, p. 63-89, jan./jun, 2006. [ Links ]

GODOY, Ana. A menor das ecologias. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. [ Links ]

HAESBAERT, Rogério da Costa. Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018. [ Links ]

LUCCI, Elian Alabi; BRANCO, Anselmo Lazaro; FUGII, William. Geografia: território e sociedade, 7º ano: ensino fundamental, anos finais. São Paulo, 2018. [ Links ]

MASSEY, Doreen. Filosofia e Política da Espacialidade: algumas considerações. GEOgraphia – Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, ano 6, n. 12, p. 07-23, 2014. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/13477/8677. Acesso em: 31 ago. 2020. [ Links ]

OLIVEIRA JR., Wenceslao Machado de. Tropas de imagens partilham o (não) saber geográfico: territórios contestados de poder. Punto Sur, v. 2, p. 5-19, en./jun, 2020. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/RPS/issue/view/640. Acesso em: 30 ago. 2020. [ Links ]

OLIVEIRA JR., Wenceslao Machado de. O mistério das comédias entre o cinema e a escola - primeiras perguntas de uma pesquisa às respostas dos professores de Geografia. In: ENCONTRO NACIONAL DE PRÁTICA DE ENSINO EM GEOGRAFIA, 12., 2017. Anais do XII ENPEG, Belo Horizonte, 2017. v. 1. p. 1142-1162. [ Links ]

OLIVEIRA JR., Wenceslao Machado de; GIRARDI, Gisele. Diferentes Linguagens no Ensino de Geografia. In: ENCONTRO NACIONAL DE PRÁTICA DE ENSINO DE GEOGRAFIA, 11., 2011, Goiânia. Anais... Goiânia, 2011, p. 1 -11. Disponível em: https://poesionline.files.wordpress.com/2015/02/oliveirajrgirardi-20111.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020. [ Links ]

POLICASTRO, Camila Benatti. “É só um filme”: aproximação entre a geografia escolar e o outro no/do cinema. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Geografia) -Universidade do Estado de Santa Catarina, 2020. [ Links ]

TAINÁ: uma aventura na amazônia. Direção de Lamarca; Sérgio Bloch. Brasil. Tietê Produções Cinematográficas Ltda., 2000 (101 min). [ Links ]

Recebido: 06 de Outubro de 2020; Aceito: 06 de Janeiro de 2021

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