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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.3 Campinas jul./set 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i3.8657657 

ARTIGO

FORMAÇÃO HUMANA INTEGRAL NO ENSINO MÉDIO: UM ESTUDO DAS LEGISLAÇÕES E ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS NO BRASIL, CHILE E ARGENTINA

COMPREHENSIVE EDUCATION IN HIGH SCHOOL: A STUDY OF NATIONAL LEGISLATIONS AND CURRICULUM GUIDELINES IN BRAZIL, CHILE AND ARGENTINA

FORMACIÓN INTEGRAL HUMANA EN LA EDUCACIÓN SECUNDARIA: UN ESTUDIO DE LEGISLACIONES NACIONALES Y DIRECTRICES CURRICULARES EN BRASIL, CHILE Y ARGENTINA

Rebeca Amorim1 

Cássia Ferri2 

1Mestranda em Educação - Universidade Regional de Blumenau (FURB). Blumenau, SC - Brasil. Colaboradora do Observatório do Ensino Médio de Santa Catarina- OEMESC. Florianópolis, SC - Brasil. Professora do quadro efetivo da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina. Florianópolis, SC - Brasil. E-mail: prof.rebecaamorim.arte@gmail.com

2Doutora em Educação - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). São Paulo, SP - Brasil Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Regional de Blumenau (FURB) - Blumenau, SC - Brasil. E-mail: ferricassia67@gmail.com


RESUMO

A Educação Básica, como escolarização obrigatória dos 4 aos 17 anos, é considerada direito da pessoa e dever do Estado, da sociedade e da família. A etapa do Ensino Médio corresponde ao espaço-tempo em que a formação humana idealizada pela Educação Básica se conclui, assegurando, mesmo que teoricamente, um determinado modelo de sociedade. No estudo dos documentos normativos de Brasil, Chile e Argentina que dispõem sobre as atuais Bases Nacionais Curriculares para o Ensino Médio, a Formação Integral evidencia-se como fim e princípio da Educação, não se referindo apenas ao prolongamento do tempo da jornada escolar, mas às características do sujeito que se pretende formar. Este estudo documental pretende elucidar possíveis convergências entre a flexibilidade das Bases Curriculares Gerais e dos Itinerários Formativos de documentos normativos que dispõem sobre o currículo do Ensino Médio e as concepções de Formação Humana Integral expressas nas leis e organizações curriculares brasileiras, chilenas e argentinas. Constatou-se que estes documentos pertencem a uma mesma matriz ideológica, apresentam uma organização curricular por competências e enfatizam a necessidade do desenvolvimento do projeto de vida dos jovens e a formação técnico-profissional.

PALAVRAS-CHAVE Educação Integral; Ensino Médio; Currículo

ABSTRACT

Basic education, such as compulsory schooling from 4 to 17 years old, is considered to derive from the person and deber of the state, society and family. The high school corresponds to the space-time in which human formation idealized by basic education concludes by securing, even theoretically, a certain model of society. In the study of the normative documents of Brazil, Chile and Argentina, which establishes the current national curriculum bases for high school, it is evident that the objectives and principles of comprehensive education, in not reference of the day school, but the characteristics of the student to want to form. This documentary study aims to clarify possible convergences in the flexibility of the general curriculum bases and the formative itineraries of the normative documents about the secondary school curriculum and the concepts of comprehensive education expressed in the Brazilian curriculum organizations and laws, Chilean and Argentine. It was found that these documents belong to the same ideological matrix, present a curricular organization by competencies, emphasize the need for the development of the Life Project of young people and the Technical-Professional formation.

KEYWORDS Education; High school; Curriculum

RESUMEN

La educación básica, como la escolarización obligatoria de 4 a 17 años, se considera el derecho de la persona y el deber del estado, la sociedad y la familia. La etapa de la educación secundaria corresponde al espacio-tiempo en el cual la formación humana idealizada por la educación básica concluye asegurando, incluso teóricamente, un cierto modelo de sociedad. En el estudio de los documentos normativos de Brasil, Chile y Argentina, que establece las bases curriculares nacionales actuales para la educación secundaria, es evidente que los objetivos y principios de la educación son la formación integral, no solo en relación a la jornada escolar extendida, silo tambien a las características del alumno a formar. Este estudio documental tiene como objetivo dilucidar posibles convergencias en la flexibilidad de las bases curriculares generales y los itinerarios formativos de los documentos normativos sobre el currículo de la escuela secundaria y los conceptos de Formación Humana Integral expresados en las leyes y organizaciones curriculares brasileñas, chilenas y argentinas. Se encontró que estos documentos pertenecen a la misma matriz ideológica, presentan una organización curricular por competencias, enfatizan la necesidad del desarrollo del un Proyecto de Vida para los jóvenes y la formación Técnico-Profesional.

PALABRAS-CLAVE Formación integral; Educación secundaria; Currículo

1 INTRODUÇÃO

Em tempos de reformas educacionais, os valores que governam o país e movem a sociedade ficam evidenciados nas propostas de organização curricular para a Educação Básica. A perspectiva de formação do sujeito fica definida pelos fins e objetivos apresentados nos documentos oficiais/governamentais, e o conceito de formação humana integral tem feito parte destes nos últimos anos. O objeto deste estudo é este conceito. Em especial, a forma como está expresso nos documentos curriculares do Ensino Médio – última etapa do processo de escolarização básica, dividida em parte geral e específica – de Brasil, Chile e Argentina.

A etapa do Ensino Médio corresponde ao espaço-tempo em que a formação humana idealizada pela Educação Básica se conclui, assegurando, mesmo que teoricamente, um determinado modelo de sociedade. Assim, concordamos com Torres (1995, p. 17) quando afirma que “todo currículo é uma opção entre muitas possíveis. Ele responde e representa recursos ideológicos e culturais definidos, nos quais são priorizados determinados interesses, visões de mundo, grupos sociais etc. em detrimento de outros”.

Desde a Antiguidade, a Paideia já idealizava a formação humana mais completa do corpo e do espírito, que, segundo Coelho (2009, p. 85-86), correspondia

à natureza do que denominamos de educação integral: uma perspectiva que não hierarquiza experiências, saberes, conhecimentos. Ao contrário, coloca-os como complementares e fundados radicalmente no social: “o espírito não é considerado através do ponto de vista puramente intelectual, formal ou de conteúdo, mas sim em relação com as suas condições sociais [...].”

(aspas no original)

Anos mais tarde, no século XVIII, mais precisamente com a Revolução Francesa e a constituição da escola pública, a concepção de educação integral volta à cena “concretizada sob a perspectiva jacobina de formação do homem completo – o que significava abarcar o ser físico, o ser moral e o ser intelectual de cada aluno” (COELHO, 2009, p. 86). Ainda de acordo com Coelho (2009, p. 86), a formação do homem completo se amplia, considerando o pensamento anarquista construído ao longo dos séculos e tornando relevante, por exemplo, a dimensão estética dessa formação completa”. Mais tarde, trabalhando com pressupostos críticos emancipadores, “é com Bakunin e Proudhon, entre outros pensadores do movimento anarquista, que se estabelecem bases político-ideológicas para a educação integral forjada pelos ideais libertários: igualdade, liberdade e autonomia”, pois, “uma vez que os burgueses já possuíam uma instrução integral, Bakunin parte de uma concepção de sociedade – igualitária – para requisitar essa mesma educação para todos, ou seja, não apenas para os burgueses” (COELHO, 2009, p. 86).

Com muitas influências e inconstâncias ao longo da história, as ideias de educação integral foram defendidas, em meados de 1940, por Anísio Teixeira e, posteriormente, em 1980, por Darcy Ribeiro, intelectuais que sonhavam com uma sociedade mais democrática e participaram da construção de uma agenda pública de educação preocupada com a formação integral para todos os brasileiros,

uma formação que abarcasse o campo das ciências, das artes, da cultura, do mundo do trabalho, por meio do desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, político, moral e que pudesse incidir na superação das desigualdades sociais mantidas, se não reforçadas, pela cultura escolar.

(MOLL, 2012, p. 126)

No estudo dos documentos normativos que dispõe sobre as atuais bases nacionais curriculares para o Ensino Médio de Brasil, Chile e Argentina, a Formação Integral evidencia-se como fim e princípio da Educação, não se referindo apenas ao prolongamento do tempo da jornada escolar, mas às características do sujeito que se pretende formar. Arroyo (2012, p. 37) apresenta como foco mais específico desses programas a “centralidade das vivências do tempo-espaço nos processos de socialização, humanização, formação, aprendizagens do viver”; e como função da escola, “os processos de aprender a ser humano, de apreender a produção intelectual, ética, cultural” (ARROYO, 2012. p. 40).

Este estudo documental pretende elucidar possíveis convergências entre a flexibilidade das Bases Curriculares Gerais e dos Itinerários Formativos de documentos normativos que dispõem sobre o currículo do Ensino Médio e as concepções de Formação Humana Integral expressas nas leis e organizações curriculares brasileiras, chilenas e argentinas. Para tal, são investigados os seguintes documentos:

  1. do Brasil: a Lei nº 9.394, de 21 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), conhecida por Lei de Diretrizes e Bases d Educação Nacional (LDBEN); as Diretrizes Curriculares Nacionais, particularmente a Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE) (BRASIL, 2010), e a Resolução CNE/CEB nº 3, de 21 de novembro de 2018 (BRASIL, 2018a); além da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018b);

  2. do Chile: a Lei nº 20.370, de 28 de julho de 2009 (CHILE, 2009), conhecida por Ley General de Educación (LGE); as Bases Curriculares 7º básico a 2º medio (CHILE, 2015) e as Bases Curriculares para 3º y 4º medio (CHILE, 2019);

  3. da Argentina: a Lei nº 26.206, de 27 de dezembro de 2006, conhecida por Ley de Educación Nacional (LNE) (ARGENTINA, 2006), os Lineamientos políticos y estratégicos de la educación secundaria obligatoria (ARGENTINA, 2009) e o Marco de Organización de los Aprendizajes para la Educación Obligatoria (MOA) (ARGENTINA, 2017).

Foram considerados critérios para a seleção dos países investigados:

  1. o resultado do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) apresentado pelo Sistema de Informação de Tendências Educativas da América Latina (Siteal) em 2019. Chile e Argentina ocupam o primeiro e o segundo lugar, respectivamente;

  2. os resultados de 2018 no Programa Internacional de Avaliação do Estudante (Programme for International Student Assessment – Pisa), que avalia a Educação Básica em leitura, Matemática e Ciências. O Chile é o primeiro colocado entre os países da América Latina, servindo assim de referência para a implantação de políticas educacionais. Brasil e Argentina estão na 7ª e 8ª posição, respectivamente. No ranking mundial, Chile, Brasil e Argentina ocupam, nesta ordem, a 46ª, a 66ª e a 68ª colocação. Estes países possuem alguns aspectos históricos, políticos e sociais semelhantes, e consideramos, para este estudo, o fato de que todos transitaram em tendências com vistas à social-democracia e atualmente se encontram sob regime de governos neoliberais.

A seguir, de cada país, são evidenciadas: as etapas da educação, as especificidades sobre a atual estruturação para o Ensino Médio, suas finalidades e princípios referentes à Formação Humana Integral. Em seguida, são articuladas considerações em relação aos aspectos convergentes elucidados ao longo do texto, no intuito de apontar possíveis tendências para a educação brasileira, chilena e argentina.

2 BRASIL

Os níveis escolares da educação brasileira dividem-se em: Educação Básica (que compreende as etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) e Educação Superior.

A LDBEN/1996, atualizada pela Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017), contribuiu para o processo de reformulação curricular do Ensino Médio, com fomento para sua oferta em tempo integral. Nessa lei, também foram estabelecidos os princípios da Educação e os deveres do Estado no que lhe diz respeito.

Entre seus princípios e fins, além da igualdade de condições para acesso e permanência na escola e da consideração à diversidade étnico-racial, a LDBEN/1996 estabelece que

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

(BRASIL, 1996, Art. 2º)

Nesse sentido, o Ensino Médio tem entre suas finalidades expressas o “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 1996, Art. 35, III). Nesta etapa final do percurso formativo, considera-se “a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (BRASIL, 1996, Art. 35, § 7º).

A Resolução CNE/CEB nº 4/2010 definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (DCN), que devem

evidenciar o seu papel de indicador de opções políticas, sociais, culturais, educacionais, e a função da educação, na sua relação com um projeto de Nação, tendo como referência os objetivos constitucionais, fundamentando-se na cidadania e na dignidade da pessoa, o que pressupõe igualdade, liberdade, pluralidade, diversidade, respeito, justiça social, solidariedade e sustentabilidade.

(BRASIL, 2010, Art. 3º)

No que se refere às particularidades do Ensino Médio, as DCNs apresentam os princípios e finalidades previstas para esta etapa do ensino, qual sejam, “o desenvolvimento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e estética, o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 2010, Art. 26).

Tendo em vista as alterações introduzidas na LDBEN/1996, conforme mencionado anteriormente, o Conselho Nacional de Educação, em 21 de novembro de 2018, aprovou a Resolução CNE/CEB nº 3, que atualizou as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM). Esta nova versão define alguns termos utilizados na Resolução anterior, expressando a concepção de formação integral como

o desenvolvimento intencional dos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais do estudante por meio de processos educativos significativos que promovam a autonomia, o comportamento cidadão e o protagonismo na construção de seu projeto de vida.

(BRASIL, 2018a, Art. 6º)

Em decorrência da atualização das DCNEMs e “na direção de substituir o modelo único de currículo do Ensino Médio por um modelo diversificado e flexível” (BRASIL, 2018b, p. 468), a organização curricular brasileira para o Ensino Médio foi reestruturada pela BNCC, homologada por meio da Portaria nº 1.348, de 14 de dezembro de 2018 (BRASIL, 2018c), contemplando a Formação Geral Básica e os Itinerários Formativos.

A Formação Geral constitui-se no desenvolvimento das competências e habilidades de quatro áreas do conhecimento: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, e ciências humanas e sociais aplicadas. Na Formação Geral, língua portuguesa e matemática são os únicos componentes curriculares obrigatórios durante os três anos do Ensino Médio.

Os Itinerários Formativos apresentados pela BNCC são distribuídos por cinco áreas do conhecimento: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas, e formação técnica e profissional. Os projetos pedagógicos das escolas de Ensino Médio podem oferecer dois ou mais itinerários, que devem considerar a realidade local, os anseios da comunidade escolar e os recursos físicos, materiais e humanos para a sua oferta. Para tanto, esses Itinerários organizar-se-ão em um ou mais dos seguintes eixos estruturantes: investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural, e empreendedorismo.

A atual BNCC é um documento de caráter normativo que vinha sendo pensado desde 2014, quando a Lei nº 13.005, de 25 de junho (BRASIL, 2014b), regulamentou o Plano Nacional de Educação (PNE). Entre as vinte metas apresentadas pelo PNE para a melhoria da qualidade da Educação Básica, quatro falam sobre a BNCC no âmbito da Educação Básica. A Base define o conjunto de aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas por todos os alunos ao longo de etapas e modalidades exclusivamente da educação escolar, orientadas “pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2018b, p. 7), mostrando-se alinhada também à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU, 2015).

As aprendizagens essenciais definidas na BNCC concorrem para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais ao longo da Educação Básica, como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

A BNCC propõe a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento, o estímulo à sua aplicação na realidade, a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante, tanto em sua aprendizagem quanto na construção de seu projeto de vida. Neste sentido:

reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações. Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades.

(BRASIL, 2018b, p. 14)

Em nota de rodapé com o intuito de contextualizar a Educação Integral na história da Educação brasileira, a BNCC faz referência à década de 1930 e ao movimento dos Pioneiros da Educação Nova. Sem mais referenciais teóricos sobre o tema, a BNCC apresenta seu compromisso com a educação integral ao prever, além da ampliação do tempo da jornada escolar, uma formação que vise ao “desenvolvimento humano global, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva), ou a dimensão afetiva” (BRASIL, 2018b, p. 14).

Importante observar que, em relação ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Coelho (2009, p. 88) afirma que, no Brasil, desde a primeira metade do século XX, a educação integral é defendida por um grupo mesclado: os católicos, por exemplo, “efetivaram uma concepção de educação integral calcada em atividades intelectuais, físicas, artísticas e ético-religiosas, aliadas a uma disciplina rigorosa, aos integralistas, aos anarquistas e aos liberais, como Anísio Teixeira”, que é considerado um dos mentores intelectuais do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. O movimento integralista, tendo Plínio Salgado como seu chefe nacional, apresentava como bases dessa educação integral “a espiritualidade, o nacionalismo cívico e a disciplina, ou seja, fundamentos que podemos caracterizar como político-conservadores”, ao passo que, “para os anarquistas, ainda ativos no mesmo período, a ênfase recaía sobre a igualdade, a autonomia e a liberdade humanas, em uma clara opção pelos aspectos político-emancipadores” (COELHO, 2009, p. 88).

Observa-se, no estudo da LDBEN/1996, das DCNEMs e da BNCC, que os usos da expressão Formação Humana Integral permitem um amplo entendimento do seu conceito, inclusive em relação à atual divisão em Base Comum e Itinerários Formativos, ou seja, são valorizados os aspectos cognitivos e os denominados socioemocionais no desenvolvimento de competências que habilitem os jovens estudantes a participar do mercado de trabalho e da vida social cotidiana.

A flexibilização dos Itinerários Formativos, especificamente para a formação técnico-profissional, em decorrência das atuais necessidades do mercado, fortemente presentes no discurso do atual governo, deveria contemplar, além da dimensão técnica, a dimensão afetiva almejada para o desenvolvimento da formação integral do estudante, uma vez que as competências essenciais do trabalhador do futuro são traçadas no âmbito de um sujeito altamente flexível e criativo, capaz de se adaptar a múltiplos contextos.

Vale lembrar que, ao descrever as reformas do Ensino Médio no Brasil dos anos 1990, Zotti (2015, p. 177) afirma que estas “sistematizam e executam as orientações da Conferência de Jomtien, síntese das recomendações e princípios do grande capital para o campo educacional no final do século XX e início do século XXI”, e, como consequência, “se inserem no âmbito das necessidades do contexto produtivo, no intuito de atender às novas demandas para a formação do trabalhador”.

3 CHILE

Em 17 de agosto de 2009, foi promulgada a Lei nº 20.370, Ley General de Educación (LGE), pelo Congresso Nacional do Chile, que regulamenta os direitos e deveres dos integrantes da comunidade educativa e fixa os requisitos mínimos que serão exigidos em cada nível da Educação. Na LGE/2009, a organização da educação formal chilena se subdivide em quatro níveis: “pré-escolar, básica, média e superior” (CHILE, 2009, Art. 17, tradução nossa).

O nível do Ensino Básico regular terá uma duração de seis anos e o nível do Ensino Médio regular terá uma duração de seis anos, quatro dos quais, no segundo caso, serão de formação geral e os dois finais de formação diferenciada.

(CHILE, 2009, Art. 25, tradução nossa)

A LGE/2009 visa instituir um sistema educativo caracterizado pela equidade e qualidade de seu serviço, enfatizando que “os alunos e alunas têm direito a receber uma educação que lhes ofereça oportunidades para sua formação e desenvolvimento integrais” (CHILE, 2009, Art. 10, tradução nossa). Sendo assim, apresenta como finalidades:

alcançar seu desenvolvimento espiritual, ético, moral, afetivo, intelectual, artístico e físico, mediante a transmissão e o cultivo de valores, conhecimentos e habilidades. Está marcada pelo respeito e valorização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, da diversidade multicultural e da paz, e de nossa identidade nacional, capacitando as pessoas para conduzir sua vida de forma plena, para conviver e participar de forma responsável, tolerante, solidária, democrática e ativa na comunidade, e para trabalhar e contribuir com o desenvolvimento do país.

(CHILE, 2009, Art. 2º, tradução nossa)

Prescreve ainda, não necessariamente como disciplina, o desenvolvimento de “planos de vida e projetos pessoais, com discernimento sobre os próprios direitos, necessidades e interesses” (CHILE, 2009, Art. 30, tradução nossa).

O Decreto nº 369, de 1º de setembro de 2015, estabeleceu as Bases Curriculares 7º básico a 2º medio (CHILE, 2015), que divide seus Objetivos Gerais em Objetivos de Aprendizagens Transversais e Objetivos de Aprendizagem por curso e disciplina. Como Formação Geral comum, obrigatória para todos os estabelecimentos, as Bases apresentam as seguintes disciplinas: “Língua e Literatura; Língua Indígena; Idioma Estrangeiro: Inglês; Matemática; Ciências Naturais; História, Geografia e Ciências Sociais; Artes Visuais; Música; Tecnologia; Educação Física e Saúde; Orientação e Religião” (CHILE, 2015, p. 23, tradução nossa). Protegendo a liberdade dos estabelecimentos na oferta de outras disciplinas, a LGE/2009 (CHILE, 2009, Art. 31) prevê, para as instituições que operem em regime de Jornada Escola Completa (JEC), 30% da carga horária do dia letivo em tempo de livre disposição.

As Bases (CHILE, 2015, p. 16) mantêm os princípios orientadores da Constituição Política, a concepção antropológica e ética que orienta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmando o sentido, que tem toda educação, de “contribuir com o desenvolvimento completo e integral de todas as pessoas em suas dimensões, espiritual, ética, moral, afetiva, intelectual, artística e física, mediante a transmissão e o cultivo de valores, conhecimentos e habilidades” (tradução nossa). Nesse sentido, as Bases apontam como relevante o “desenvolvimento de planos e projetos pessoais” (CHILE, 2015, p. 27), conforme sugere a LGE/2009, e o “carácter moral, regido pelo amor, pela solidariedade, tolerância, verdade, justiça, beleza, sentido de nacionalidade e desejo de transcendência pessoal” (CHILE, 2015, p. 18).

Na continuidade do processo de reformulação curricular, em 17 de junho de 2019, pelo Decreto nº 193 (CHILE, 2019), foram aprovadas as Bases Curriculares para 3º y 4º medio, estruturadas em: um plano comum de Formação Geral, um plano comum eletivo e um plano de Formação Diferenciada, mantendo também os 30% de tempo de livre disposição para as instituições que operem em regime de JEC (CHILE, 2019, p. 33).

Nestas Bases (CHILE, 2019, p. 15), o plano comum de Formação Geral define como obrigatórias as disciplinas de “Língua e Literatura; Matemática; Educação Cidadã; Ciências para a Cidadania; Filosofia e Inglês” (tradução nossa). No plano comum eletivo, o estudante pode escolher uma dentre quatro opções: “Religião; Educação Física e Saúde; Artes; e História, geografia e Ciências Sociais” (CHILE, 2019, p. 25, tradução nossa). As Formações Diferenciadas contempladas são: a Humanístico-Científica (HC), a Técnico- Profissional (TP), e a Artística (A) (CHILE, 2019, p. 24).

As Bases (CHILE, 2019, p. 15), com foco na formação integral, referem-se às necessidades do mundo contemporâneo globalizado, que “exigem competências particulares, identificadas internacionalmente como Habilidades para o século XXI, e respondem aos diversos desafios do mundo de hoje” (tradução nossa).

Dessa forma, visam atingir os Objetivos Gerais da LGE/2009, entre os quais o desenvolvimento dos planos de vida e dos projetos pessoais.

De forma polissêmica, os documentos chilenos caracterizam a Formação Humana Integral para o egresso da Educação Média considerando as diferentes dimensões do ser humano, entre as quais a socioemocional e a artística. No entanto, é interessante observar que componentes curriculares como Religião, Educação Física e Saúde, Artes, História, Geografia e Ciências Sociais são apresentados como plano eletivo, e condições de oferta da formação técnico-profissional são privilegiadas. Tal organização compromete a idealização de Formação Humana Integral sugerida nas atuais reformas curriculares, aproximando a atual realidade ao contexto de 2006, quando estudantes engajados promoveram a Revolta dos Pinguins (nome dado em razão do uniforme que vestiam), movimento que, além de ocupar escolas chilenas, como ocorreu recentemente no Brasil, forçou “o debate público acerca das matérias que a ditadura e o sistema político autoritário haviam deixado instaladas para ‘proteger’ o modelo neoliberal na educação” (SOUZA; GOUVEIA; DÍAZ, 2015, p. 95), questionando o modelo educacional vigente, mercantilizado e segmentado.

4 ARGENTINA

A Ley de Educación Nacional (LEN) foi promulgada a 27 de dezembro de 2006, sob o número 26.206, em substituição à Lei nº 24.195, de 23 abril de 1993 (ARGENTINA, 1993), definindo o sistema educativo da Argentina em quatro níveis: “Educação Inicial, Educação Primária, Educação Secundária e Educação Superior” (ARGENTINA, 2006, Art. 17, tradução nossa). As jurisdições poderão optar entre dois modelos de estrutura para a educação primária e secundária, dividindo-as ou em seis anos cada, ou em sete anos de primária e cinco de secundária, segundo as disposições transitórias e complementares da lei (ARGENTINA, 2006, Art. 134).

O Estado Nacional, as províncias e a cidade autônoma de Buenos Aires têm como principal responsabilidade oferecer, segundo a LEN/2006,

oportunidades necessárias para desenvolver e fortalecer a formação integral das pessoas ao longo de toda a vida e promover em cada educando(a) a capacidade de definir seu projeto de vida, baseado nos valores de liberdade, paz, solidariedade, igualdade, respeito à diversidade, justiça, responsabilidade e bem comum.

(ARGENTINA, 2006, Art. 8º, tradução nossa)

Como fins e objetivos da política educativa, a LEN/2006 afirma a garantia de uma educação integral que desenvolva todas as dimensões da pessoa e a habilite tanto para o desempenho social e do trabalho como para o acesso aos estudos superiores, promovendo o conhecimento, valores que fortaleçam a formação integral de uma sexualidade responsável e a articulação das políticas de educação, ciência e tecnologia com as de cultura, saúde, trabalho, desenvolvimento social, esportes e comunicação, para atender integralmente às necessidades da população. Para a Educação Secundária, a LEN/2006 apresenta como finalidade das modalidades e orientações o exercício pleno da cidadania para o trabalho e para a continuação dos estudos (ARGENTINA, 2006, Art. 30).

Os Lineamientos políticos y estratégicos de la educación secundaria obligatoria (ARGENTINA, 2009), ou, em português, Orientações políticas e estratégicas da Educação Secundária obrigatória (tradução nossa), aprovadas pela Resolução do Consejo Federal de Educación (CFE) nº 84, de 15 de outubro de 2009, dispõem sobre a Educação Secundária, organizando sua estrutura em dois ciclos:

um Ciclo Básico comum a todas as modalidades (de dois ou três anos de duração, segundo a localização do sétimo ano) e no Ciclo Orientado com caráter diversificado, que será de três anos, no mínimo, em todas as jurisdições, e de quatro anos nas ofertas das modalidades Técnico-Profissional e Artística que assim exijam.

(ARGENTINA, 2009, p. 20, tradução nossa)

A organização dos saberes desses ciclos se subdivide em Campos de Formação Geral e de Formação Específica. A Formação Geral e comum é contemplada desde o Ciclo Básico até o fim da obrigatoriedade no Ciclo Orientado, possibilitando aos estudantes a produção teórica e prática de conhecimentos próprios

da Língua e da Literatura, da Matemática, das Ciências Sociais – e entre elas, da História, da Geografia e da Economia –, das Ciências Naturais – e entre elas, da Biologia, da Química e da Física –, da Formação Ética e Cidadã e das Humanidades, da Educação Física, da Educação Tecnológica, da Educação Artística, e das Línguas (clássicas, regionais, de herança, estrangeiras).

(ARGENTINA, 2009, p. 20, tradução nossa)

Para um maior aprofundamento em determina área do saber, nesta formação, são ainda ofertadas as seguintes orientações: “Ciências Sociais/Ciências Sociais e Humanidades; Ciências Naturais; Economia e Administração; Línguas; Arte; Agrário/Agro e Ambiente; Turismo; Comunicação; Informática e Educação Física” (ARGENTINA, 2009, p. 16, tradução nossa).

O campo da Formação Específica possibilita a ampliação da Formação Geral no campo de conhecimento próprio das seguintes orientações ou modalidades: “Formação Orientada Específica, Formação Técnico-Profissional Específica e Formação Artística Específica” (ARGENTINA, 2009, p. 23, tradução nossa).

Objetivando vincular o nível secundário com o mundo universitário e o mundo do trabalho, o CFE aprovou, em 6 de dezembro de 2017, a Resolução nº 330, política federal cuja implementação iniciou em 2019, com incorporação progressiva das instituições até 2025, a qual apresenta o Marco de Organización de los Aprendizajes para la Educación Obligatoria Argentina (ARGENTINA, 2017) (Marco de Organização das Aprendizagens para a Educação Obrigatória – MOA). Para a trajetória escolar obrigatória, o documento estabelece o desenvolvimento das capacidades transversais relacionadas às competências da educação digital, apresentando seis dimensões, que se articulam de modo integral: “Criatividade e inovação, Comunicação e colaboração, Informação e representação, Participação responsável e solidária, Pensamento crítico e Uso autônomo das TICs [Tecnologias da Informação e Comunicação]” (ARGENTINA, 2017, p. 17-18, tradução nossa).

Nesse sentido, o MOA/2017 preceitua a organização institucional e pedagógica das aprendizagens e apresenta também o perfil do egresso como consequência da educação de qualidade, sendo

um processo habilitador para que os(as) jovens sejam protagonistas da sua própria vida e cidadãos conscientes de seus direitos e obrigações, capazes de contribuir com o melhoramento de suas comunidades locais e do mundo complexo e mutante em que vivem, questionando a realidade, compreendendo sua história, resolvendo os desafios que a sociedade lhes apresenta, com critérios flexíveis, respeitosos com os outros e sustentando posicionamentos éticos e democráticos.

(ARGENTINA, 2017, p. 13, tradução nossa)

Em sua trajetória escolar, pretende-se que o jovem desenvolva capacidades para atuar e desenvolver-se com plena autonomia, exercendo sua liberdade com responsabilidade, para construir seu projeto de vida numa sociedade democrática. Dessa forma, aprovados em etapas sucessivas, entre 2004 e 2012, pela Resolução CFE nº 214, de 27 de abril de 2004 (ARGENTINA, 2004), e a Resolução CFE nº 180, de 26 de setembro de 2012 (ARGENTINA, 2012), os Núcleos de Aprendizagens Prioritárias (NAP) são os saberes prioritários, organizados por áreas do conhecimento ou disciplinas, que propõem condições equivalentes de ensino em todo o sistema educativo nacional.

Acompanhando a lógica do Brasil e do Chile, o Sistema Educativo Médio da Argentina identifica com múltiplos conceitos a Formação Integral idealizada, entendendo-a como responsável pela promoção de determinados valores e relacionando-a com o desenvolvimento de todas as dimensões da pessoa. Segundo o relatório do Ministério das Relações Exteriores brasileiro (BRASIL, 2014a, p. 38), devido à crescente privatização da Educação no país, colocam-se em questão quais valores podem ser relacionados ao desenvolvimento das capacidades e competências previstas no atual contexto, no qual

a educação técnica tem sido um dos focos da atenção do governo nacional. Entre 2003 e 2010, registrou-se aumento de mais de 90% no número de matrículas no ensino secundário técnico (de 324.437 para 628.248). Nesse período, foram criadas nada menos que 274 novas escolas técnicas na Argentina.

Boa parte das instituições de ensino da Argentina recebe subsídios governamentais: “de 452 mil novas matrículas, 83% (373 mil alunos) foram feitas em escolas privadas, enquanto apenas 17% foram em instituições públicas de ensino (79 mil alunos)” (BRASIL, 2014a, p .39). Dessa forma, o setor privado determina os desenhos curriculares das escolas, moldando os processos pedagógicos, ressignificando as relações entre o professor, o estudante e o conhecimento, bem como redefinindo a trajetória da Formação Humana Integral idealizada para a Educação Secundária e, como consequência, a construção do projeto de vida do estudante.

5. CONSIDERAÇÕES

Identificadas as legislações vigentes e as atuais propostas de reorganização curricular para o Ensino Médio nas recentes reformas brasileira, chilena e argentina, tornou-se evidente a necessidade do debate sobre Educação Integral. Este conceito tem sido utilizado como alternativa à fragmentação da escola pública nos discursos de implantação das políticas públicas neoliberais, nos três países.

Os documentos dos três países preveem o aumento da jornada escolar, relacionando assim o termo integral à ampliação do tempo desta jornada. Para além deste uso do termo, os aspectos relacionados a ele revelam também a preocupação com a definição de formação humana destes documentos. Para Coelho (2009, p. 83), “em termos sócio-históricos, podemos compreendê-la a partir das matrizes ideológicas que se encontram no cerne das diferentes concepções e práticas que a constituíram e vêm constituindo ao longo dos séculos”. Esta preocupação, que é também um compromisso assumido para com a educação, não é nenhuma novidade. O termo vinha sendo utilizado por movimentos, tendências e correntes que coexistiam “discutindo educação; mais precisamente defendendo a educação integral, mas com propostas político-sociais e teórico-metodológicos diversas” (COELHO, 2009, p. 88). As concepções são elaboradas “de acordo com a forma como veem e entendem o mundo, conservadores, liberais e socialistas (re)apresentam concepções de educação cujas características – diversas em sua(s) natureza(s) – engendram práticas também diversas” (COELHO, 2009, p. 85).

Na organização curricular, Brasil, Argentina e Chile apostam na divisão do Ensino Médio em Formação Geral e Específica e idealizam percursos formativos diferenciados, de acordo com as necessidades e interesses dos estudantes. Os três países mantêm coerência em relação às suas respectivas legislações e pertencem a uma mesma matriz ideológica.

O contexto em que se inserem estas reformas apresenta um panorama social de exigências e desafios, dele emergindo o controverso conceito de competências, que Gómez (2011, p. 82) diz se basear, por um lado, “na informação (complexidade, mudança e incerteza) e na economia de mercado (utilidade, inovação, fragilidade)” e, por outro, no “convencimento acadêmico da necessidade de orientações holísticas para o desenvolvimento de aprendizagens relevantes”.

Protagonizam o contexto de elaboração dessas competências organizações internacionais como, por exemplo, as Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Criada em 1945 pela ONU para agenciar a agenda da educação, a Unesco realizou, em 1990, em Jomtien, Tailândia, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos. Baseada nas discussões em pauta neste evento, sob coordenação de Jacques Delors, a organização publicou, em 1996, o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (DELORS et al., 1998), que apresentou como base epistemológica os quatro pilares essenciais para um novo conceito de Educação: aprender a conhecer, aprender a viver juntos, aprender a fazer e aprender a ser.

Segundo Sacristán (2015, p. 18-19), a Unesco é um organismo “um tanto adormecido e que vem perdendo protagonismo e capacidade de liderar o discurso sobre educação para o Banco Mundial e a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]”. O autor explica que, não ingenuamente, essa mudança propõe uma “nova forma de ver os problemas a partir do nível macro”. Como exemplo, o autor apresenta o relatório norte-americano A Nation at Risk, lançado em 1983, que destacava a baixa qualidade do sistema de ensino dos EUA, “detectada pelos resultados dos testes aplicados a estudantes”. Ao lançar um debate sobre a deficiência do sistema educacional norte-americano, “citando os pobres resultados obtidos, manifestando o temor da perda da liderança econômica, científica e tecnológica dos Estados Unidos”, o relatório ultrapassou fronteiras, tornando-se referencial “para o pensamento e para as políticas conservadoras; seus promotores consideraram que a causa da falta de eficiência em um sistema escolar tão caro era a ausência de um controle rigoroso sobre a função dessa educação financiada”. Em vista disso, conclui que a “demanda se ligava à prestação de contas e ao estabelecimento de comparações entre o público e o privado e entre as escolas públicas para captar clientes”.

Neste sentido, a OCDE propôs, a partir de 1997, o projeto Definição e Seleção de Competências-Chave (DeSeCo), que, na intenção de “redirecionar seus [da educação] fundamentos e difundir novos marcos para a lógica de competências”, tornou-se “seminal para o projeto de criação e implementação do Pisa” (PEREIRA, 2016, p. 146). Em 2003, a entidade lançou a versão definitiva do documento, que leva o mesmo nome do projeto, Definição e Seleção de Competências-Chave. Este marco conceitual, revisado em 2005, apresenta as competências-chaves em três amplas categorias, a saber: “usar ferramentas de maneira interativa; atuar de forma autônoma e; saber interagir e atuar com grupos heterogêneos” (OCDE, 2005, p. 4).

Considerando este documento como ponto de partida, “a maioria dos países da OCDE, incluindo a União Europeia e a Espanha, começaram a reformular o currículo escolar e a construir os instrumentos do famoso programa de avaliação Internacional das aprendizagens denominado Pisa” (GÓMEZ, 2015, p. 73). O Pisa, lançado em 1997, tem a centralidade de suas ações intrinsecamente demarcada pelas possibilidades de desenvolvimento econômico e estabilidade financeira dos países que compõem a OCDE.

Para Pereira (2016, p. 96), as concepções e interesses compatíveis entre OCDE, Unesco e Banco Mundial dão “origem a um pensamento único, no intento de estabelecer uma política internacional de indicadores”. Segundo o autor,

seria um equívoco considerar tal simetria apenas por seus aspectos técnicos. Na realidade, a confluência de esforços demonstra a materialidade de uma agenda globalmente estruturada para a educação básica pública, que, por intermédio dessas iniciativas, constrói meios e ações que servem ao processo de padronização e hierarquização dos sistemas educativos, a partir da criação de modelos que interessam ao setor hegemônico.

(PEREIRA, 2016, p. 96)

O que se observa nas legislações educacionais de Brasil, Chile e Argentina nada mais é do que a objetivação deste processo, impondo à comunidade escolar tais concepções. A valorização da formação técnico-profissional, sugerindo o perfil desejado para o egresso da Educação Básica, é outra prova deste alinhamento, embora a continuidade de estudos com vistas ao Ensino Superior também possa ser percebida. No entanto, a valorização da Formação Humana Integral sucumbe ao entendimento de uma formação que permita o desenvolvimento de habilidades cognitivas e socioemocionais tidas como ideais para que o egresso da Educação Básica ingresse no mercado de trabalho.

Apesar do consenso entre os três países e sua oficial relação com o desenvolvimento de aspectos cognitivos e socioemocionais do estudante, bem como da educação para a cidadania e o mundo do trabalho, é lícito questionar, como o fez Saviani em 1996, no contexto da reforma do ensino de 1º e 2º grau:

se essa ênfase na habilitação profissional é compatível com a formação integral do adolescente. Conclui-se, pois, que a análise do próprio texto da lei nos põe de sobreaviso quanto aos riscos de se tomar as definições de objetivos ao pé da letra.

(SAVIANI, 1996, p. 149)

Nesse sentido, é preciso ainda refletir sobre a articulação, sugerida pelas atuais reformas curriculares, entre o conceito de Formação Humana Integral e o desenvolvimento, por parte do estudante, de um projeto de vida. Para Gómez (2015, p. 76), “as finalidades da escola devem se concentrar no propósito de ajudar cada indivíduo a construir seu projeto de vida (pessoal, social e profissional), para percorrer seu próprio caminho da informação ao conhecimento e do conhecimento à sabedoria”. O que se observa, entretanto, é que esta proposição de elaboração de um projeto de vida é apresentada – em geral, por instituições da iniciativa privada – para ser desenvolvida em redes e escolas públicas como um componente com carga horária delimitada, ou seja, como mais uma “disciplina” da matriz curricular, responsabilizando o indivíduo pela sua dinâmica educativa.

Múltiplos aspectos ainda merecerão atenção no contexto de reformulações curriculares para o Ensino Médio, entre os quais são pontos de incertezas e tensões: as possibilidades de interpretação dos documentos apresentados e sua efetivação, as divergências entre as propostas curriculares, principalmente quanto à valorização de um componente, área ou temática em detrimento de outro, as ações das instituições escolares e de formação de professores, entre outros, que podem representar janelas de oportunidades para as mais diversas intencionalidades referentes a esta etapa da educação. Dessa forma, torna-se imprescindível a coerência na estruturação de um Sistema Nacional de Educação que contemple o percurso formativo e promova a Formação Humana Integral na Educação Básica, para que o estudante do Ensino Médio desenvolva seu projeto de vida com autonomia e criticidade, entre outros valores, que devem ser internalizados com a finalidade de promover seu autoconhecimento, e não como forma de colaborar com qualquer tipo de sistema relacionado à lógica de mercado.

Revisão gramatical realizada por: John Paulo Mafra

E-mail: trabalho.academico.bnu@gmail.com

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Recebido: 27 de Agosto de 2019; Aceito: 28 de Abril de 2020

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