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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.4 Campinas oct./dic. 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i4.8658267 

Artigos

EXISTÊNCIAS MÍNIMAS: TRAPAÇARIAS DE UM OLHAR AÍ. AS PRÁTICAS DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS

MINIMUM STOCKS: DRAWINGS FROM A LOOK THERE. THE PRACTICES OF A BODY WITHOUT ORGANS

EXISTENCIAS MINIMAS: DIBUJOS EN UNA MIRADA ALLÍ. LAS PRACTICAS DE UN CUERPO SIN ÓRGANOS

Carmen Lucia Vidal Pérez1 

Helen Pereira Ferreira2 

Marcele Cristina Teixeira Barbosa3 

1Doutora em Educação - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. Doutorado sandwiche - Universidade de Lisboa, Portugal. Pós-doutorado em Filosofia da Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Professora da Faculdade de Educação - Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, RJ, Brasil. E-mail: clvperez@gmail.com

2Doutora em Educação - Universidade Federal Fluminense. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, RJ, Brasil. Professora da Faculdade de Educação - Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, RJ - Brasil. E-mail: helenpereiraferreira@gmail.com

3Doutoranda em Educação - Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, RJ - Brasil. Pedagoga da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. E-mail: digitalmarcele@gmail.com


RESUMO

Buscamos fomentar alguns apontamentos em torno da questão levantada por Deleuze e Guattari sobre um corpo-sem-órgãos. Tal conceito tem como inspiração o trabalho de Antonin Arthaud e nega a pressão de um corpo organizado. Trata-se da experiência fotográfica de Zazu, um menino “autista” de oito anos, que não faz uso da linguagem verbal de maneira funcional. Cartografamos as experiências de Zazu com a câmera fotográfica. Ao deslocar o olhar para as imagens produzidas por Zazu, perdemos a configuração humana “adquirida” como ideal. As imagens de Zazu nos remetem a refletir sobre como reagimos a esse turbilhão de imagens-clichês. Suas imagens desarranjam nossos discursos sobre as coisas e os seres altamente representativos; há, em suas fotografias a potência do corte do todo em partes e da retenção do efêmero, um olhar vago, um olhar que desloca o corpo-self para o corpo “asimbólico”, corpo-sem-órgãos cheio de um “olhar aí...”

PALAVRAS-CHAVE Corpo sem órgãos; Existências mínimas; Imagens; Autismo

ABSTRACT

We seek to promote some notes around the issue raised by Deleuze and Guattari about a body-without organs. This concept is inspired by the work of Antonin Arthaud and denies the pressure of an organized body. As there are multiple ways to “answer” this call, we call on Fernand Deligny's ethical-political-aesthetic materialism. It is the photographic experience of Zazu, an eight-year-old “autistic” boy, who does not use verbal language. We mapped Zazu's experiences with the camera. Zazu's images lead us to reflect on how we reacted to this whirlwind of cliché images. For Zazu, there is no command. He (re) creates his body, his time, his image. His images disrupt our speeches about highly representativethings and beings; there is, in his photographs, the power of cutting the whole into parts and retaining the ephemeral, a vague look, a look that shifts the self-body to the “asymmetric” body, body-without organs full of a “look there…”

KEYWORDS Body without; Minimal stocks; Images; Autism

RESUMEN

Buscamos promover algunas notas sobre el tema planteado por Deleuze y Guattari sobre un cuerpo sin órganos. Este concepto está inspirado en el trabajo de Antonin Arthaud y niega la presión de un cuerpo organizado. Como hay múltiples formas de "responder" a esta llamada, recurrimos al materialismo ético-político-estético de Fernand Deligny. Es la experiencia fotográfica de Zazu, un niño "autista" de ocho años que no usa lenguaje verbal. Mapeamos las experiencias de Zazu con la cámara. Las imágenes de Zazu nos llevan a reflexionar sobre cómo reaccionamos a este torbellino de imágenes cliché. Para Zazu, no hay comando. Él (re) crea su cuerpo, su tiempo, su imagen. Sus imágenes interrumpen nuestros discursos sobre cosas y seres altamente representativos.Existe, en sus fotografías, el poder de cortar el todo en partes y retener lo efímero, una mirada vaga, una mirada que desplaza el cuerpo propio al cuerpo "asimétrico", cuerpo sin órganos llenos de una "mirada allí".

PALAVRAS-CLAVE Cuerpo sin órgano; Existencias mínimas; Imágenes; Autismo

1 INICIANDO A CONVERSA

O presente artigo busca tencionar a indagação/desafio levantado por Deleuze e Guattari (doravante G&D) de “como criar um corpo-sem-órgãos” (1996-v.3) com a experiência fotográfica de Zazu, um menino “autista” de oito anos, que não faz uso da linguagem verbal. Para esse chamado, convocamos o materialismo ético-político-estético de Fernand Deligny (2015, p.217-248), especialmente no texto “quando o homenzinho não está aí”, para sustentar a hipótese de que se é a linguagem (escrita e/ou oral e/ou visual) que constitui o corpo humano como ideal e normalizado, será, também, através dela que poderemos confrontar e driblar toda sua funcionalidade e poderio simbólico de uma única representação. Nesse esforço, queremos ultrapassar os estereótipos de um “sujeito humano” que se constituiu apenas pela palavra (falada e/ou escrita). Ou seja, buscamos sustentar um corpo que se comunica para aquém e para além de uma linguagem articulada e bio-molecularizada, para abrir uma fenda no estruturalismo linguístico e em toda ordem do discurso (FOUCAULT, 2013). Na fenda encontra-se a tessitura de existências singulares, como o modo de ser e de olhar e de escrever com o corpo de Zazu, através de suas fotografias...

Ora, essa forma de encarar a linguagem e a comunicação interpõe-se como possibilidade de resistência aos sistemas capitalistas de ser e de dizer. Seria uma espécie de vacância identitária, onde o corpo torna-se experimentação ética e estética com o cotidiano, antes de tornar-se uma narrativa imagética, roteirizada pela cultura midiática e/ou capitalista. Portanto, ao deslocar o olhar para as imagens produzidas por Zazu, perdemos a configuração humana adquirida como ideal o que significa perder também as possibilidades de se preencher com toda funcionalidade de uma “linguagem maior”. As imagens produzidas por ele desarranjam nossos discursos sobre as palavras e as coisas. Há, no seu modo de dizer, através do olhar que zóia, a potência do corte e da retenção do efêmero, posto que no zóiar, sugerido por Fernand Deligny (2015), Zazu não estabelece distâncias entre “a coisa e o lugar da coisa” (DELIGNY, 2015, p.226). Assim, na sociedade contemporânea marcada pelo uso incessante e exaustivo da imagem do eu, Zazu nos remete a refletir de que maneira reagimos ao turbilhão de imagens-clichês que nos circundam? (DELEUZE, 2005).

Há, na forma de zóiar de Zazu um olhar vago, que desloca o corpo-self para o corpo “asimbólico”, corpo-sem-órgãos cheio de um “olhar aí”. Ou seja, um olhar incorporado no agir objetivo e que promove aproximações, estranhamentos, encontros, e desencontros com outra forma de existir.

2 O AUTISMO COMO ARTE DE EXISTIR

Com Deligny (2015) pensamos o autismo como outra forma de existir. Em nossas pesquisas buscamos capturar as nuances de uma existência tomada em si mesma, sem referencia a nenhum outro. Na procura, o diálogo entre Fernand Deligny (2015) e Étienne Souriau (2017) se revelou profícuo para pensarmos a forma autista de existir como uma obra inacabada (como todos nós), pois existe por si mesma.

Pensamos o autismo como forma de existir (em si mesmo e para si mesmo) na sua própria existência. E enfrentamos a dificuldade de superar uma concepção de existência como essência ou substância – que deforma a forma singular de existir, “tornando-a dependente de outro, supostamente mais consistente e real”, (SOURIAU, 2017, p.114) para afirmar o existir como uma arte feita de nuances momentâneas que compõem uma existência própria, independente e fugidia.

O que nos chama atenção em nossos encontros com crianças autistas e suas maneiras de existir, singulares (e transmodais) são os esboços de suas existências em “estado de rascunho”; pluriverso que nos coloca diante de uma pluralidade de artes de existir, que se manifestam na fugacidade do instante e nos momentos em que a existência se realiza plenamente. Em nossas tentativas4 buscamos cartografar as nuances de suas existências e explorar a variedade de maneiras de ser por si mesmas. Inspiradas na proposta heideggeriana de “um fundamento sem fundamento” (HEIDEGGER, 1999, p.64), não vemos o autismo e seu modo de existir como fundamento, mas como um sem-fundo mais profundo que qualquer fundamento; procuramos estudar a maneira pela qual as existências se erguem desse fundo sem fundo. Para Heidegger (1999), o fundamento é um afundamento, um sem-fundo. O pensamento heidggeriano põe em suspenso qualquer fundamento ao articular tal noção ao sentido do SER – fundamento "inessencial", pois a única essência possível do ser é a sua própria existência.

Buscamos pensar o autismo, ou autistar (no dizer deligniano) a partir da filosofia da diferença, embora não exclusivamente. Cientes de que D&G foram leitores de Deligny (inspiração de conceitos importantes como linhas de fuga, por exemplo), procuramos ressaltar conexões que consideramos necessárias para ampliar nossa compreensão sobre a(s) forma(s) de existir do(s) autista(s), essa singular etnia, segundo Deligny (2015). Em nossas tentativas vislumbramos a ideia do ser aí (HEIDDEGER, 1999), como um ponto de conexão entre o pensamento deligniano e a filosofia da Diferença e, embora considerando a argumentação de Deleuze em sua crítica a Heidegger, não nos propomos entrar neste debate. Sem desconsiderar os pontos divergentes, buscamos pela via da epistemologia conectiva, nos dobrarmos sobre as convergências entre esses dois pensadores e as formulações de Deligny - que pensa o autismo como forma de existir, o que do nosso ponto de vista está em conexão com a noção de fundamento de Martin Heiddger, para quem a existência não tem nenhuma base senão ela mesma. A intuição heideggeriana nos ajuda a pensar a forma de existir autista em sua própria existência.

Entendemos com Souriau (leitor de Heidegger) que as maneiras são maneiras de ser, nesse sentido abandonamos um pensamento que nos remete a uma ontologia fundamental e afirmamos um pensamento que nos remete a uma ontologia modal.

O homem é uma realidade pluri e multimodal e o que chamamos de mundo é o lugar de vários intermundos, de um emaranhado de planos. Cada um desses modos é uma arte de existir. Souriau (2017) nos ajuda a compreender o existir autista, a partir da distinção entre modo e maneira: o modo (modus) pensa a existência a partir dos limites dos seres, enquanto a maneira (manus) pensa a existência a partir dos gestos, da forma tomada pelo ser. O modo limita uma potência de existir, enquanto a maneira revela a forma do existir, a linha, a curvatura singular, e assim mostra uma arte. A forma é inseparável da matéria que ela informa. Portanto,

Existir é sempre existir de qualquer maneira [...] uma maneira de existir, uma maneira especial, singular, nova e original de existir, é existir a sua maneira [...] A arte do Ser é a variedade das suas maneiras de ser ou dos modos de existência.

(SOURIAU, 2017, p.125).

Os questionamentos de Souriau (2017) nos desafiam: “o que acontece quando o fundamento esmaga as existências e com sua autoridade as priva de realidade? O que resta a um ser quando sua forma de existir é contestada? Como pode um ser no limite da inexistência conquistar uma existência mais “real”, mais consistente? Com que gesto? Qual é a “arte” que permite que as existências aumentem sua realidade?” (p. 60).

Nas interações com as crianças autistas legitimamos sua maneira de ser (autistar) como forma de existir e, em nossas tentativas vimos buscando experimentar outras formas de existir, nos reinventando em nossas próprias existências, pois como nos lembra Souriau (2017, p. 97), “toda existência precisa de intensificadores para aumentar sua realidade”. Na pesquisa buscamos intensificar formas outras de existir - essa arte, que se faz nos gestos instauradores de uma existência singular.

3 A TRAPAÇARIA DO OLHAR

O princípio de linguagem de uma cultura é carregado de seus valores e precedências, com conjuntos específicos de símbolos e de ideias, formulando assim, um mundo físico e social, altamente institucional e com “vontade de verdade”5 (FOUCAULT, 2013). Cabe salientar que devemos pensar a verdade como uma invenção posterior ao conhecimento e muitas vezes como processo de massificação. Fomos educados para compreender a verdade como algo bom, agradável e perfeito. Para Nietzsche (2001), a verdade é uma ilusão. Tomamos o valor de verdade para enquadrar nossas ações no que deve ser levado a sério, no que nos faz pertencer a um sistema.

Se por um lado os sistemas de linguagem na contemporaneidade ganham uma dimensão ainda maior com o advento e expansão das tecnologias de informação e comunicação (TICs), por outro nos remete a outra maneira de conhecer, sem os requisitos hierárquicos imprescindíveis à formação e à circulação dos saberes clássicos. Trata-se, assim, como aponta AUTOR (2016), de buscar outras redes de sentidos e de significados para além das causas e efeitos; trata-se, por exemplo, de ser atento e cuidadoso na configuração de um olhar aí e de um olhar sensível.

Para D&G (v. 2, 2000, p.249) a linguagem não comunica, ela é a palavra de ordem. O enunciado seria a palavra de ordem – “Senta!”, “Fecha a porta.”, ‘Quietos!”. A enunciação está no plano da expressão e manifestação e não da significação. Sendo assim, não existe enunciação individual, nem sujeito de enunciação; o caráter social da enunciação é formado pelos agenciamentos coletivos, pela subjetivação da enunciação. Para Certeau (1998, p. 250) a enunciação desloca. O problema da enunciação seria “o ato de falar” regulado pelo sistema: o enunciado (objeto escrevível) e a enunciação (ato de dizer). “Mesmo deslocada, posta de lado – ou transformada em resto – a enunciação não pode ser dissociada do sistema de enunciação” (CERTEAU, 1998, p. 253).

A máquina de ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito da enunciação etc.). A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem. Mais do que senso comum, faculdade que centraliza as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer.

(D & G, 2000, v.2, p.7).

Admitimos com a força do pensamento de Deligny (2015) que a linguagem é necessária, mas não suficiente para a tomada de consciência de si, uma vez que o si está estreitamente ligado à preocupação de “semelhantizar”. Para o autor o autista em “vacância de linguagem” não tem acesso, de maneira real ou fictícia, a “consciência de si”. Somos nós que o nomeamos, o classificamos e o enquadramos num sistema discursivo. Assim é que assumimos o desafio de tomar o olhar de Zazu como potência criativa na construção de um corpo-sem-órgãos. Na maioria das vezes, o olhar também é influenciado pela valorização de determinado grupo. Entendemos que é preciso romper e ousar no gesto de olhar, que é preciso estranhar o que está dado nas imagens cotidianas e mais que isso, que é preciso pensar a linguagem para além dos meios sistemáticos de comunicação convencional.

Supomos conhecida a relação do olho humano com a produção de suas imagens fotográficas. Ademais, inferimos, sem maiores dificuldades, que é um corpo que olha todas as coisas visíveis, que se movimenta por entre elas e que escolhe uma cena qualquer para disparar seu flash, ou seja, concebemos a fotografia como uma encarnação sensório-motora do real, como um retrato-síntese daquilo que nos interessa ver e interpretar; como uma “imagem-clichê” (DELEUZE, 2005, p.31). Para Deleuze as imagens que se multiplicam rapidamente por todos os cantos, têm como habitual serem clichês. O mundo contemporâneo/acelerado produz imagens que nos impõe respostas/reações imediatas afetando diretamente nosso olhar, tornando o mesmo acomodado. Porém, o que ocorre quando o olhar não está viciado?

As imagens que engendram nossas investigações são de um olhar não viciado e tem como referência um menino “autista” de oito anos, que não faz uso da linguagem verbal. Um menino que exala em suas fotos a “pura determinação de intensidades, a diferença intensiva” da imagem-de-si; sempre outra e, simultaneamente, sempre a mesma. Um menino que, apesar de ter um nome próprio, não atende com facilidade aos mais insistentes chamados de outrem. Aqui o nomeamos de Zazu, mas poderia ser “cadeira”, “mesa” ou teto”, coisas que ele fotografa com certa insistência.

Ora isso acontece por quê? Diria-nos algum especialista que, “para os autistas, humanos e objetos inanimados são a mesma coisa”. Será? O que nos autoriza pensar por eles? Dizer para eles? Seria a longa trajetória de estudos e pesquisas psicofarmacológicas, neurológicas, psiquiátricas e genéticas etc.? Certamente que sim. Estamos demasiadamente acostumados a nos submeter a tal herança, que classifica e nos traz prognósticos gerais; que produz manuais paradidáticos e métodos de trabalho a fim de melhorar a funcionalidade e a atenção do corpo autista.

Não é nosso intuito menosprezar o status e/ou a importância desses estudos e suas ressonâncias na vida prática de inúmeras famílias. Apenas queremos nos distanciar desses aparatos clínicos, terapêuticos e/ou institucionais em prol da “presença próxima” à Zazu, que encarna uma forma de existir fora da norma (DELIGNY, 2015). Trata-se, assim, de estarcom6 ele e saber que, apesar de lhe imputarem toda a forma de negação e de falta, Zazu resiste, persiste e vive um outro modo de existir. Estarcom é saber que o poder da linguagem e dos conhecimentos macroestruturais não pode dar conta daquilo que é único e geograficamente localizável, como a sua experiência de fotografar a si mesmo (self portrait?).

Ao trazer um corpo cuja composição é afetada pelas experimentações, saímos do que está dado. Não cabe interpretar o olhar singular de Zazu, mas cartografar suas experiências na produção de imagens. Nas imagens de Zazu um traço intensivo começa a trabalhar por sua conta, “uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de imagens se destacam e a hegemonia do significante é recolocada em questão” (D&G, 1995, v.1, p.34). Trata-se de imagens não centradas na lógica linear e cronologicamente determinada; trata-se de colocar em xeque nossos esquemas sensório-motores habituais, que estão acostumados a encadear e/ou prever ações do tipo arbóreo (D&G, 1995, v.1, p.38).

O que Zazu produz é o fora, o intolerável para olhos acomodados, porque justamente foge da imagem-clichê e de todo o signo; “em todo o signo há uma convenção; o outro, a quem o signo se dirige, é supostamente capaz de fazê-lo, caso contrário o signo nunca será mais que um gesto, um gesto de nada [...]” (DELIGNY, 2015, p. 243). Tal perspectiva nos permite afirmar, que as imagens produzidas por Zazu são como um meio para determinar uma duração temporal fora do tempo... uma temporalidade não orientada, travessuras impessoais e transversalizadas no olhar para nada... potências de intensidades envolventes com o seu entorno, fendas disparadoras de problemas no espaço... ocupação de lugares ...pontos de ver...

2.1-Olhar trapaceiro

O que é olhar? Com base em algum dicionário podemos dizer, por exemplo, que olhar é a “observação visual que é feita de alguma coisa exterior a si”. Ora, tal definição coloca a visão como um órgão estreitamente vinculado ao modo como percebemos e comunicamos o mundo ao nosso redor, modo habitual de perceber um corpo operante e funcional, um feixe de funções e de movimentos coordenados, no entanto, ao pedirmos para Zazu olhar a si mesmo de forma a fixar-se de corpo inteiro na tela do celular, ele não o faz. Retomamos o pedido, mostrando-lhe o reflexo do seu corpo no espelho, especialmente seu rosto. Enunciamos: “Tira foto do seu rosto, Zazu”, não cansávamos de repetir. Ele nos respondia com uma sucessão de cliques para todos os lados. Quando se sentia, talvez, menos importunado com nossos enunciados (palavra de ordem), concentrava-se em tirar fotos da cadeira, do teto e de partes do seu corpo, especialmente sua testa. Esse agir inusitado, que é próprio de crianças autistas “não verbalizadas”, evoca uma forma de driblar o “olho que tudo vê”, vidente e visível de um corpo encarnado e preenchido do real; essa atitude de Zazu nos sugere, a partir dos estudos de Deligny, um olhar aí, ou seja, um olhar incorporado no agir objetivo e que promove aproximações/encontros com outro modo de existir.

Um olhar trapaceiro. Não de uma trapaça intencional, arquitetada aos mínimos detalhes. Mas aquele, digamos do tipo infantil: não funcional ou comparativo esvaziado de qualquer conteúdo expressivo. Um olhar aí que (re)inventa seu corpo, seu tempo, sua imagem; que abre uma fenda no olhar do observador/pesquisador, demasiadamente acomodado a uma sucessão de imagens-roteiros, previamente encadeadas. Um olhar aí que desloca o corpo-self para o corpo a-simbólico. Enfim, um olhar provocador e provocativo do corpo-sem-órgãos.

Para Deleuze, um filósofo que amava cinema, há uma potência nas lentes que filtram o olhar: “A câmera funda uma consciência que se define não pelos movimentos que é capaz de captar, mas pelas relações mentais e psicológicas nas quais é capaz de entrar.” (DELEUZE, 2005, p.143). Isso nos faz refletir que talvez o olhar de Zazu através das lentes, seja um olhar de resistência à imagem-clichê; um olhar aí, criador de realidades outras.

O “se” que nos especifica, em parte, como “sujeito” de linguagem funcional não está dado para uma criança autista em “vacância de linguagem”; olhar-se de maneira “consciente” e se envolver em signos, nomes e símbolos para nomear e viver uma avalanche de significações é envolver-se no mundo cultural que distingue o humano do animal... Contudo, esse “se” sempre será o ponto de vista do observador, pesquisador, professor, etc., que distancia, julga, compreende e escolhe em nome de uma coletividade, de uma normalidade... Muito diferente, para Deligny (2105), é o ponto de ver dos “autistas” que sempre vai nos escapar radicalmente... o ponto de ver da criança que não vive segundo o uso convencional da linguagem será sempre inapreensível para nós, os humanos que vivem o projeto-pensado....Para Deligny, o zoiar dessas crianças é infinitivo e estará sempre em ruptura com um mundo onde tudo é linguagem e palavra audível...

Ponto de ver = zoiar = maneira específica de ver; olhar interminável...

2.2-Olhar aí:

“Olhar aí” seria o despojamento máximo da capacidade “natural” de ver e ser visto. Capacidade que é produzida historicamente pelo poder da linguagem e pela consciência de si. Zazu, assim como o Janmari7 de Deligny, demonstra um olhar aí, um olhar que zóia. Para Deligny (2015), há uma diferença entre “se ver” (olhar fundado numa concepção memorial da história e do fazer intencional) e “esse ver” (olhar sem finalidade, remanejado na ação sem finalidade), da criança autista, que não faz uso da linguagem verbal. A materialidade das imagens produzidas por Zazu estão no campo das potencialidades dos acontecimentos. Zóiar não é olhar, Deligny (2015) nos ensina que “entre se ver e esse ver, que só se diferenciam por duas letras, exista uma diferença não apenas de alcance, mas de função, pois que o próprio órgão de ver não funciona da mesma maneira, o que não tem nada de surpreendente” (DELIGNY, 2015, p.230).

É exatamente assim que nos sentimos diante dos olhos de Zazu que não espera sequer um sorriso, quem dirá um comando de voz (enunciado - palavra de ordem), de uma linguagem costumeira. Mesmo assim sempre nos dirigimos a ele, fazendo comando e perguntando: “o que quer fotografar hoje?”. Não há resposta, há um agir que nos parece aflição. Tudo acontece com uma velocidade de entorpecer nossas vistas. Ele pega o celular, abre o aplicativo da câmera e põe-se a capturar imagens… faz um giro de 360º.. concentra-se na cadeira e no teto... Não estamos satisfeitas e oferecemos outro dispositivo com a tela no modo self: “cadê o Zazu?”, reiteremos nossa fala. Tira uma foto de você inteiro… insistimos... “Tira uma do seu corpo… ao menos do seu rosto”. Nada acontece com o nosso querer. Continuamos a tagarelice: “tira uma foto nossa”, “então… tira”. Aqui, estamos esperando… a espera persiste… Zazu não faz o que pedimos, parece não nos ouvir.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 1 Experimentações – Camerar de Zazu. 

Com seus gestos e maneira de existir (sem fundamentos), Zazu nos convoca à trapaçaria de um olhar nada habitual; um olhar-sem-órgãos (olhar sem ver, “visão cutânea”); “um olhar aí”, pleno de antiprodução; suas imagens corporais e/ou virtuais/reais se atualizam no lugar do resto e do inapropriado: “o corpo é o corpo/ ele está só/ e não precisa de órgãos/ o corpo nunca é um organismo/ os organismos são o inimigo do corpo” (ARTAUD, apud, D&G, 2010, p. 21)8.

O corpo fratura-se, entra em relações artísticas e biocibernéticas; o corpo goza e se desfaz num sistema de medicalização e de estética nunca visto; há uma velocidade e um entorpecimento que Zazu não capta: ele vive o agora; parece não pensar com nossos códigos simbólicos e simbolizantes, é uma constante linha de fuga da semiótica. O corpo fratura-se para se reconstruir… sempre outro, mutante e ambivalente: sem fronteiras... sendo o todo.

As im@gens fotográficas de Zazu surgem como potências intelectuais de expressão e comunicação, para além daquelas que foram canonizadas pela razão instrumental. Há, aqui (no texto) e (nas ocasiões), tentativas de criar e/ou fazer circular pensamentos e palavras e imagens e gestos e olhares inusitados, ensaiando-os, experimentando-os, tencionando-os nos fios mesmos que os constituem… A inspiração para tal empreendimento surge do próprio “método cartográfico” de Fernand Deligny. Através dele foi possível pensar os movimentos e os interesses, provisórios ou persistentes de Zazu e das presenças que lhe são próximas nos encontros que ocorreram durante os atendimentos no Centro de Atendimento Educacional Especializado.

Em se tratando de uma pesquisa que acompanhou crianças “autistas” com baixa funcionalidade verbal, fraturar palavras é uma condição... Nesse trajeto de tecer uma viagem cúmplice, ao encontro dos traçados aracnianos torna-se uma necessidade - força vital e esforço criador... Perceber como esses corpos inspiram mapas tão engenhosos, sem representação definida, sem autoria e sem nenhum grau de subjetividade, um desafio que nos conjuga as coexistências e ao acaso. Na verdade, são mapas de embaralhar as vistas, uma espécie de desenho bruto...

4 DA FRATURA AO CORPO SEM ÓRGÃO: A TRAPAÇARIA DO CORPO

Partindo de um questionamento espinoziando: “O que pode um corpo?” Um corpo vazio, um corpo pleno, um corpo só, um corpo no espaço - o próprio Spinoza (2007) trata de responder este questionamento, o esqueleto/a estrutura de um corpo é o desenho da sua relação, ou seja, um corpo é processo de afetações. Mas, o que pode um corpo que desliza fora de um mundo normatizado e normalizado?

Para refletir sobre estas questões, é preciso ficar alerta ao nosso hábito de querer controlar o que aparece inusitado e caótico nas relações entre o saber pedagógico e o corpo. É preciso “celebrar os prazeres – até mesmo os perigos – da confusão de fronteiras” entre os corpos e os saberes; entre objeto e sujeito de pesquisa; entre professora e pesquisadora. Assim, optamos por traçar nossa cartografia enquanto professoraspesquisadoras9 atrelando nossos estudos e pesquisas no Campo dos Estudos do Cotidiano. Trata-se de uma opção metodológica de falar com e não sobre.

Uma pesquisa “sobre” o cotidiano está ligada a lógica da diferença enquanto controle e domínio do objeto e “resultados” da pesquisa. Ao contrário, quando fazemos pesquisacom o cotidiano, objeto e sujeito não existem em separado como polos díspares; objeto e sujeito são pensados como híbridos, nômades, rizomáticos e plurais. Nas palavras Regina Leite Garcia (2003), “nós simplesmente não trabalhamos numa perspectiva de 'construção do objeto’. O objeto está lá a ser investigado e nós o reconhecemos como sujeito, o que faz toda a diferença.” (LEITE GARCIA, 2003, p.13). Ou seja, os estudos e pesquisascom cotidiano acontecem em meio ao que está sendo feito. Assim, nossa perspectiva de pesquisarcom desfaz nosso olho acomodado, e nos faz tencionar o que está normalizado e normatizado.

A pesquisa em tela acontece num Centro de Atendimento Especializado10 (doravante CAEE) com crianças autistas em vacância de linguagem verbal. Como lembra Leite Garcia (2003), não buscamos, definimos ou elegemos um “objeto” a priori. O autismo entra na pesquisa à medida que as crianças autistas passam a habitar e praticar o cotidiano escolar. Sua presença altera o (e instaura outro) movimento no cotidiano das escolas: fratura certezas rompe fronteiras epistemológicas, desafia os limites do fazer, incomoda a ordem estabelecida e, deixa suas marcas...

É importante destacar que praticar a pesquisacom no cotidiano do CAEE é uma oportunidade para agenciar um devir-criança, uma espécie de bloco de infância que é “desterritorializante; desloca-se no tempo, como o tempo, para reativar o desejo e fazer suas conexões proliferarem” (D&G, 2010, p.140). Atravessar esse processo de devir, com as crianças e suas infâncias, é vivenciar a diferença em jogos de lances únicos; é vivercom as tramas que compõe cada gesto, cada olhar, cada sorriso, cada voz... Assim, trabalhar com crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, autismo e altas habilidades/superdotação, estigmatizadas por um laudo médico ou por outros rótulos de uma “educação maior”, é uma experiência ainda mais radical e “molecular”, porque temos a oportunidade de problematizar e colocar em xeque as “injustiças cognitivas” empreendidas na escolarização regular.

Nosso desejo é perceber ressonâncias entre o pensamento criativo das crianças autistas e o arcabouço teórico-metodológico defendido por pesquisadores que se reportam aos escritos de Michel de Certeau (1998) e a trabalhos por ele influenciados no campo educacional como, por exemplo, os estudos de ALVES & BARBOSA (2008a, 2008b); FERRAÇO (2003); LEITE GARCIA (2003); BARBOSA (2012, 2015) e SOARES (2013). Além disso, buscamos estender e/ou aproximar essas ressonâncias, ainda que de modo precário, às pistas do método cartográfico, cuja filiação teórica é ancorada em D&G e nas tentativas11 de Deligny.

A pesquisa a cartográfica mapeia os movimentos, trajetos e percursos dos autistas nos territórios, registrando e acompanhando suas linhas erráticas. No trabalho de Deligny (2015) encontramos um conceito de cartografia nos fios da existência, o tramar é o que conta e não a captura ou o capturado, mais sim o processo ou algo que está se fazendo. A cartografia, na prática deligniana, é traçar o vagar infinitivo, errante e costumeiro das crianças autistas e das presenças próximas, com o intuito de fabricar um território comum entre os participantes da rede. O espaço vivido torna-se imagens em mapas… As cartografias não são “produzidas em extensão apenas, são também intensidades, narrativas e afetos: uma experiência do entre”. (ALVES, BARBOSAD, 2015, p. 693).

Dessa feita, ainda que vislumbremos alguns caminhos a percorrer com os sujeitos da pesquisa será, nos acontecimentos ordinários das experiências de professoraspesquisadoras do CAEE, que eles tomam forma, espessura e cor. Ou seja, trata-se de um engendramento que será dado no fio-a-fio do social, do político, do estético e também, é claro, das práticas culturais e democráticas tecidas numa comunidade única e geograficamente localizável.

Embora haja certo consenso sobre a necessidade de conceber a escola como um espaço de todos, no qual qualquer criança possa construir seu conhecimento, segundo sua capacidade, o modelo cognitivo priorizado nas escolas que acompanhamos pelo CAEE, traduz processos educativos marcados pela lógica da homogeneidade e da exclusão. Portanto, a dificuldade de estabelecer práticas pedagógicas inclusivas, que considere a ambivalência do desenvolvimento e dos saberes infantis constitui um dos maiores desafios do nosso empreendimento de pesquisa e de uma educação que se queira democrática.

Trata-se, então, da entrada de professoraspesquisadoras nos emaranhados e nos múltiplos desafios engendrados pelas aventuras cotidianas de uma pesquisacom crianças e suas imagens (BARBOSA, 2015). Trata-se, aprender como se faz para criar territórios, experimentar linguagens; aprender a praticar a cartografia, produzir redes e a se emaranhar em linhas ou em outras tessituras.

A pesquisacom crianças autistas tornou-se um aguçar de fagulhas pelas possibilidades de aproximar as redes de conhecimento produzidas pelas táticas dos praticantes, aos “acontecimentos rizomáticos” das pesquisas cartográficas. Ou seja, a trajetória e as aventuras de qualquer pesquisador que se filie a uma dessas tendências, se fazem no plano das experimentações...

Evocamos todo potencial criativo que irradia em torno de qualquer processo de desenvolvimento de uma criança autista (Zazu) – que provoca nossa capacidade de colocar conceitos para girar, tal como um cata-vento ou um caleidoscópio. As “lições” de Zazu são poeticamente efetivas porque não remetem a um mestre explicador, nas palavras de RANCIÈRE (2015); mas de um poeta inventor que nos convida a fazer uma contra tradução daquilo que está ausente. A pesquisacom Zazu é um processo de inter(in)venção - uma “forma de investigação que é também uma invenção” (BARBOSA, 2015, p.51) - que agita nossos pensamentos e nos desafia a inventar novas formas de dar visibilidade e/ou dizibilidade a aquilo que produz.

Encontrar Zazu nos deu a possibilidade de exercitar uma prática de “caça ilegal” (CERTEAU, 1998, p.250): a leitura habitada numa escuta sensível. Colocar-se a escuta é, portanto, promover diferentes possibilidades de ser-estar-dizer-fabular-pensar com a vida, com a arte, com imagens, com resistências, com silêncios, com palavras inaudíveis, com forças inesperadas. Ao assumirmos a escuta sensível nos colocamos a procura dos ruídos que escapam às pesquisas totalizantes de uma “educação maior”. Escuta sensível que seja capaz de causar um deslumbramento na maneira de olhar do/a pesquisador/a, para além dos “modos dominantes de ‘ver’- ver para crer” (ALVES & BARBOSA, 2008a). Escuta de burburinhos e de acontecimentos inaudíveis.

A pesquisacom exige do/a pesquisador/a uma volta sobre si mesmo: voltar-se sempre para seu agir e seu pensar, no decorrer mesmo do “rumo das coisas”; um estar atento a quaisquer circunstâncias que lhe propicie algum deslocamento inesperado e produtivo, ainda que, “de repente, no meio do caminho, a festa dos ventos vire redemoinho” (COELHO, 2012, p.25). É óbvio que sair-entrar de um redemoinho causa angústia e tremores, contudo não seria essa a melhor maneira de colocar as ideias para funcionar? Um redemoinho de dúvidas não é próprio de quem quer executar “um mergulho com todos os sentidos” no que deseja

estudar? Um redemoinho de teorias herdadas não pode/deve nos “virar de ponta cabeça”?

Acreditamos que as peripécias da pesquisacom Zazu são claramente transversalizadas pela pulsão poética dos estudos com o cotidiano e, pela experimentação do pensamento como um “ethos rizomático”. Dizendo de outro modo, Zazu traz à superfície os múltiplos corpos que subjazem nos confins de nossos corpos, sempre outro: habitado por múltiplos afetos, tanto mais intenso quanto mais contido; sempre outro: tanto mais contrariado quanto mais ocultos; sempre outro, em busca de outros sentidos para a “comunicação de si”. Corpo-agora-fluxo, que não cessa de se ausentar no ato mesmo da criação, pois um fluxo: “é algo de intensivo, de instantâneo e de mutante, entre uma criação e uma destruição” (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 66).

Voltando ao questionamento inicial: O que pode um corpo que desliza FORA no mundo normalizado e normatizado? D&G chamam de sínteses conectivas e disjuntivas entre produtor e produto; entre sujeito e objeto; entre corpo e órgãos. Trata-se de um conjunto de práticas autoprodutivas: “eu, Antoin Artaud, sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu” (ARTAUD, apud G&D, 2010, p.29). Um corpo que desliza FORA pode nos oferecer imagens-fraturadas, como aquelas produzidas por Zazu, que guarda um caráter fluído e antiprodutivo, dentro mesmo das condições em que foi produzido. Assim, não poderíamos afirmar que Zazu experimenta um corpo sem órgãos (CsO), uma vez que não compartilha dos fantasmas, do conjunto de significações e subjetivações da sociedade?

Zazu é um experimentador de uma escritura imagética - imagem e criação de “aquis e agoras” - potência criadora de uma percepção livre e “selvagem”. Imagens desvinculadas de uma narrativa. Conhecemos Zazu através de suas imagens, que como ele também não falam: imagens de um “estar aí”, uma bordura, que fora das compreensões concentracionárias das instrumentalizações biopolíticas nos aproximam de seu pensamentear (Deligny, 2015). Imagens vagueantes, multiplicidades que “singularizam a individuação do pensamento em cada dobra do mundo: desconhecidos traçados do mundo-cérebro que engendra novas conexões, novas sinapses: dobra do cérebro sobre si mesmo que potencializa o múltiplo e produz singularidade pela atualização do virtual”. (ALVES & BARBOSA, 2018, p.700-01).

D&G nos dão algumas pistas:

Para cada tipo de CsO devemos perguntar: 1) Que tipo é este, como ele é fabricado, por que procedimentos e meios que prenunciam já o que vai acontecer; 2) e quais são estes modos, o que acontece, com que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas em relação à expectativa? Em suma, entre um CsO de tal ou qual tipo e o que acontece nele, há uma relação muito particular de síntese ou de análise: síntese a priori onde algo vai ser necessariamente produzido sobre tal modo, mas não se sabe o que vai ser produzido; análise infinita em que aquilo que é produzido sobre o CsO já faz parte da produção deste corpo, já está compreendido nele, sobre ele, mas ao preço de uma infinidade de passagens, de divisões e de subproduções.

(DELEUZE & GUTTARI, 1996, v. 3, p. 11).

Produzir um corpo-sem-órgãos trata-se de um experimento, onde as variantes e perspectivas são da ordem do inesperado, com – interpretações e + experimento. Interpretar menos e experienciar mais é o que estarcom Zazu nos possibilita, numa vida em pesquisa...

5 INCLONCLUIR

O conhecimento produzido só pode ser avaliado diante do seu valor para a vida. Sendo assim, precisa afetar o outro, precisa deslocar o outro. Por isso nos descolamos enquanto ser professora nos (re)inventando como professoraspesquisadoras. Compartilhamos da constante busca pelo conhecer, não para produzir um conhecimento verdadeiro, tão criticado por Nietzsche (2001), não para confirmar e engrossar o coro padronizado e seriado das confrarias acadêmicas, não para reproduzir esquemas e forçar um pensamento copiado dos grandes teóricos, mas para criar campos e promover encontros, para criar linhas de fuga, afetações e poder cartografá-los, cartografar a produção de vida.

Zazu, um menino chamado de autista, mas que não se detém a esse chamamento; que nos oferece a trapaça de um corpo não funcional; a trapaça do todo em partes e destas no todo, que não cabem em si… que não cabem em imagens… Zazu é potência!

Corpo inconclusivo, prestes a perder suas formas e a criar, a partir daí, e sem sabermos como (sem fundamentos petrificados), novas relações e recomposições. Sem sabermos como, posto que seja a cada vez; posto que seja viver a vida-arte, com as possibilidades que se tem. Um corpo-sem-órgãos em que “nada é aqui representativo, tudo é vida e vivido...” (D&G, 2000, v.2, p.34).

As imagens produzidas por Zazu desarranjam nossos discursos sobre as coisas e os seres altamente representativos; há, nas fotografias dele a potência do corte do todo em partes e da retenção do efêmero…

Pensar a educação contemporânea inclusiva implica em trabalhar a desconstrução do normatizado e normalizado. Se pensarmos os processos educativos como subjetivação territorializada carregada de enunciado – palavras de ordem - perceberemos o Ser preso a um panorama ideológico, a uma subjetivação normatizada. E tudo que foge? Que desvia? Exige de nós, professoraspesquisadoras, experimentar... práticas desviantes... um “zóiar aí”: que aparece nas trapaças daquilo que resta….

4Desde o início do processo de pesquisa há tentativas de produzir afetações a partir de uma metodologia incriada. Pesquisa-criação para fazer escrituras imagéticas, através de textos, fotografias, vídeos e mapas; pesquisa-invenção de exercícios de olhar (ponto de vista) e do zóiar das crianças autistas (ponto de ver)...

5Segundo Foucault o poderio da linguagem promove um sistema triplo de exclusão do discurso: da palavra proibida, da segregação da loucura e a vontade de verdade… diz ele “o que está em jogo, senão o desejo e o poder? […] assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal...” (2013, p.20).

6A junção de palavras que guardam intima relação entre si é uma opção teoricometodologica que busca fraturar o binarismo da ciência moderna - que apresenta pares de palavras hierarquicamente dispostos como numa equação matemática, em que o primeiro termo aparece como dominante e o segundo como de efeito do primeiro, tal como ensino-aprendizagem, espaço-tempo, etc. Ao juntarmos os termos numa única palavra buscamos romper com o paradigma binário na escrita de nossas formulações: espaçotempo que também pode ser grafado como tempoespaço, não se refere a primazia de um termo em relação ao outro, mas ao movimento e a interdependência dos fluxos que compõem tal formulação. Portanto mais do que uma “novidade” na escrita produzimos uma torção conceitual, para nós espaçotempo/tempoespaço é totalmente diferente de espaço-tempo/tempo-espaço, trata-se de uma formulação paradigmática que afirma outra posição epistêmica.

7JANMARI é uma criança acolhida pela rede criada por Deligny em Cevenas, que, apesar ser uma criança muda e autista, ainda assim possuía, segundo Deligny, a mão fértil em linhas. O gesto escritural de Janmari é retomado a partir da leitura operada pelo próprio Deligny, que vê aí outra noção de escrita. A esse respeito ver Frant, Adriana Bolite. Sobre o caderno de Janmari e a sobrevida das linhas — de fuga. In: ALETRIA: Revista de Estudos de Literatura, v. 28, nº2, 2018, p.74.

8Segundo D.&G (2010, p.98) o termo Corpo sem Órgãos é O termo é retirado da transmissão radiofônica de Artaud,Para Acabar com o Julgamento de Deus(1947): “Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força,/mas não existe coisa mais inútil que um órgão./Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,/então o terão libertado dos seus automatismos/e devolvido sua verdadeira liberdade”.

9A noção de professora pesquisadora está ancorada no princípio freireano de que não há ensino sem pesquisa. Nesse sentido remete a todas (e todos) professoras (professores) que mergulhados no cotidiano de sua prática e da própria escola, reflete sobre suas experiências - no sentido heiddegeriano, do acontecimento que conserva a força vital do que instiga a refletir, estudar, pesquisar e, no sentido larrosiano do termo, que remete ao viver e sentir: encharcar-se na experiência, senti-la intensamente, sentido com todos os sentidos despertos - pensa, sente, estuda para melhor compreender o compreender o compreender de seus alunos e se transforma como pessoa e como docente, pois faz docente ao mesmo tempo em que se faz pesquisadora da própria prática.

10Centro de Atendimento Educacional Especializado CAEE tem como fundamento de seu projeto político-pedagógico atividades de oficinas pedagógicas, estimulação essencial, Atendimento Educacional Especializado (AEE) e de fonoaudiologia, sempre no contraturno escolar. O Objetivo geral do Centro de AEE é proporcionar atendimento pedagógico aos estudantes público-alvo da educação inclusiva, crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, matriculados em classes comuns de ensino regular, que não tenham o AEE nas salas de recursos multifuncionais da própria escola ou de outra escola de ensino regular da rede pública.

11Deligny há mais de 50 anos, realizou tentativas de encontro com a diferença através de práticas transversais, implicando outras maneiras de tecer redes e de novas tramas nas quais outras formas de viver, outros modos de existir e de conviver tornam-se possíveis. A dimensão experimental, central em seu pensamento e em sua prática, busca a invenção de contextos e meios que propiciem reconfigurações espaciais e coletivas, através de ferramentas como objetos, mapas, câmeras, e imagens... A esse respeito ver II Encontro Internacional Fernand Deligny: gestos poéticos e práticas políticas transversais: https://deligny.jur.puc-rio.br/index.php/2019/09/16/ii-encontro-internacional-fernand-deligny-gestos-poeticos-e-praticas-politicas-transversais/

Revisão gramatical realizada por: Ceumar Siebert.

E-mail: ceumarsiebert606@gmail.com

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Recebido: 31 de Janeiro de 2020; Aceito: 18 de Abril de 2020

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