SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número4CINEMA FEITO POR MULHERES FIGURANDO GÊNEROS NO CINEMAA PRODUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE A DOCÊNCIA EM EDUCAÇÃO FÍSICA: A CONSTRUÇÃO DE VERDADES E ALGUMAS PROBLEMATIZAÇÕES índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.4 Campinas out./dez. 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i4.8658614 

Artigos

PROBLEMAS ESCOLARES, MEDICALIZAÇÃO E SINGULARIDADES DE ADOLESCENTES: CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA/INTERVENÇÃO DE ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA

SCHOOL PROBLEMS, MEDICALIZATION AND SINGULARITIES OF ADOLESCENTS: CONTRIBUTIONS OF PSYCHOANALYTIC RESEARCH/ INTERVENTION

PROBLEMAS ESCOLARES, MEDICALIZACIÓN Y SINGULARIDADES DE LOS ADOLESCENTES: CONTRIBUCIONES DE LA INVESTIGACIÓN/INTERVENCIÓN PSICOANALÍTICA

Luciana Renata Moreira Fonseca1 

Raquel Martins de Assis2 

Ana Lydia Bezerra Santiago3 

1Doutoranda em Educação - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil. Especialista em Educação - Funcionária pública da Prefeitura Municipal de Itabira. Itabira, MG - Brasil. E-mail: lurmfonsecalf@gmail.com

2Pós-doutorado em Psicologia da Educação - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). São Paulo, SP - Brasil. Doutora em Educação - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil. Professora. Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil. E-mail: rmassis.ufmg@gmail.com

3Doutora em Psicologia Clínica - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP - Brasil. Professor Associado - Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil. E-mail: analydia.ebp@gmail.com


RESUMO

O presente artigo descreve os resultados de uma pesquisa/intervenção de orientação psicanalítica por meio do relato de um estudo de caso de uma aluna do ensino fundamental de uma escola pública da rede estadual de ensino da cidade de Itabira-MG. A estudante apresentava várias dificuldades de aprendizagem e impasses na esfera escolar, enfrentados por meio do processo de medicalização. Contrapondo-se à medicalização, o caso visa demonstrar a contribuição de um dos procedimentos adotados nesta pesquisa: o diagnóstico clínico-pedagógico (DCP), cuja intervenção realiza a leitura daquilo que o adolescente ensina ao educador sobre sua singularidade e sobre as particularidades que se repercutem na sua relação com o saber e com os laços sociais engendrados na escola. Os resultados obtidos por meio do DCP permitiram perceber o impacto do fenômeno da adolescência nas relações com o saber escolar e a possibilidade de utilizar abordagens teóricas e práticas que permitam aos sujeitos agir sobre os seus problemas.

PALAVRAS-CHAVE Psicanálise; Dificuldades de aprendizagem; Medicalização; Adolescência; Educação

ABSTRACT

The present article describes the results of a psychoanalytic research / intervention through the report of a case study of an elementary school student from a public school in the state school of Itabira-MG. The student presented had learning difficulties and impasses in the school sphere faced through the medicalization process. In contrast to medicalization, the case aims to demonstrate the contribution of one the procedures adopted in this research: the Clinical-Pedagogical Diagnosis (DCP), which intervention analyses what teenager teaches the educator about its uniqueness and about the particularities that impact on their relationship with knowledge and the social ties engendered in school. The results obtained through the DCP allowed us to understand the impact of the advent of adolescence on relations with school knowledge and the possibility of using theoretical and practical approaches that allow subjects to act on their problems.

KEYWORDS Psychoanalysis; Learning difficulties; Medicalization; Adolescence; Education

RESUMEN

El presente artículo describe los resultados de una investigación / intervención de orientación psicoanalítica a través del relato de un estudio de caso de una estudiante de primaria de una escuela pública de la red provincial de enseñanza de la ciudad de Itabira-MG. La estudiante presentaba varias dificultades de aprendizaje e impedimentos en el ámbito escolar, afrontados a través del proceso de medicalización. Se contraponiendo a la medicalización, este caso pretende demostrar el aporte de uno de los procedimientos adoptados en esta investigación: el Diagnóstico Clínico-Pedagógico (DCP), cuya intervención realiza la lectura de lo que enseña el adolescente al educador sobre su singularidad y sobre las particularidades que incidem en su relácion com el conocimiento y los vínculos sociales que se generan en la escuela. Los resultados obtenidos a través del DCP permitieron percibir el impacto del fenómeno de la adolescencia en las relaciones con el conocimiento escolar y la posibilidad de utilizar enfoques teóricos y prácticos que permitan a los sujetos actuar sobre sus problemas.

PALAVRAS-CLAVE Psicoanálisis; Dificultades de aprendizaje; Medicalización; Adolescencia; Educación

1 INTRODUÇÃO

Este artigo4 relata o estudo de caso de Melissa, uma menina entrando na puberdade e cursando o ensino fundamental em uma escola pública do Estado de Minas Gerais. O caso visa a apresentar, principalmente, um dos procedimentos que fundamentam a pesquisa/intervenção de orientação psicanalítica proposta pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Educação (NIPSE) para a abordagem de casos de impasses na aprendizagem escolar: o Diagnóstico Clínico-Pedagógico (DCP). O DCP foi forjado como um método de intervenção inspirado na psicanálise e elaborado para o pedagogo investigar, junto à criança e ao adolescente em situação de fracasso escolar, se a dificuldade de aprendizagem sobressai de uma falha no processo de ensino/aprendizagem e/ou de questões subjetivas relativas a um sintoma.

A análise dos entraves escolares, não apenas sob a ótica da educação, mas também a partir das contribuições da psicanálise, está presente nas produções acadêmicas contemporâneas (KAMADA; NASCIMENTO, 2017). Na pesquisa aqui apresentada, opta-se por uma abordagem interdisciplinar dos casos de fracasso escolar, sendo que cada uma das disciplinas se vale de suas práticas e de seus saberes próprios. Nessa perspectiva, a interdisciplinaridade é entendida a partir das elaborações de Millot (1995), que estabeleceu uma orientação decisiva quanto à distinção entre educação e psicanálise, considerando os métodos e os objetivos desses dois campos. A obra Freud antipedagogo não defende a proposta de uma pedagogia analítica nem de uma psicanálise pedagógica, pois, para Millot, não é possível estabelecer sobreposições entre o lugar do psicanalista e o do pedagogo. Esses atores têm funções específicas nos processos de intervenção a serem conduzidos, mesmo podendo-se admitir aspectos comuns em ambas experiências, como a presença do fenômeno da transferência.

Tomando essa distinção como ponto de partida é que foram forjadas, no curso dos anos, metodologias específicas de intervenção para o fracasso escolar. Propõe-se uma dimensão clínica, para a ação do analista, baseada nas contribuições das teorias sobre a inibição intelectual (MILLER, 1988; LACAN, 1999; SANTIAGO, 2005), bem como uma abordagem pedagógica, para o educador, levando em conta as contribuições sobre os processos de aprendizagem e de aquisição da leitura e da escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999; SOARES, 2017). Essa distinção permitiu destacar, na produção bibliográfica relativa a estudos de casos de fracasso escolar, aqueles cuja abordagem é exclusivamente clínica e outros de visada pedagógica. Cordié (1996), Santiago (2005) e Santiago; Assis (2015) são estudos psicanalíticos com enfoque clínico do fracasso escolar, enquanto Silva (2008) e Fonseca (2015) são estudos e pesquisas com destaque na intervenção do pedagogo visando, igualmente, a modificar a situação do aluno frente às dificuldades de aprendizagem.

Melissa era aluna de uma escola em que foi proposta a pesquisa/intervenção a partir da iniciativa de oferecer a ajuda da psicanálise para casos de alunos que, segundo seus professores, apresentavam problemas na aprendizagem dos conteúdos escolares e para os quais as ações da escola não haviam surtido efeito.

Melissa, contando onze anos de idade, estudava desde os seis na mesma escola. Estava no sexto ano do ensino fundamental e era alfabetizada, porém tinha muita dificuldade para acompanhar as aulas e realizar as atividades propostas para a turma/série que frequentava. Apresentava muitas defasagens nas habilidades básicas de leitura e escrita. Por outro lado, era uma menina comunicativa, que gostava de contar histórias e se mantinha atenta a tudo o que acontecia no ambiente escolar e familiar.

No percurso de sua escolaridade, as dificuldades de Melissa começaram a ultrapassar o terreno dos entraves na aprendizagem: sua atitude com os professores tornou-se mais desafiadora e, com o advento da puberdade, seu comportamento modificou-se: não parava quieta na sala de aula, conversava com seus colegas o tempo todo, não fazia as tarefas escolares e desobedecia às regras estabelecidas pela instituição. O enigma que seu caso significava para os educadores, contudo, estava ligado, principalmente, às suas dificuldades para apresentar uma resposta minimamente positiva ao aprendizado.

Como se verá, o caso de Melissa mostrou-se especialmente elucidativo para os educadores, tanto em relação ao conhecido problema da medicalização das dificuldades de aprendizagem (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2011) quanto ao que alguns profissionais testemunham como impotência do acompanhamento pedagógico individualizado, realizado nos programas de intervenção pedagógica (PIP), que, entre outros, têm o objetivo de ajudar o aluno a sair da situação de impasse na aprendizagem.

O PIP, programa adotado pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, foi criado em 2008 e tinha o intuito de proporcionar um acompanhamento pedagógico para discentes classificados como de baixo desempenho nas avaliações sistêmicas. Esses alunos são listados nominalmente por escola, pela Secretaria de Educação, e devem receber uma intervenção especial para que, no ano seguinte, sejam novamente avaliados. Entretanto, esse acompanhamento escolar pode mostrar-se ineficaz, pois nem sempre o aluno consegue avançar em seu aprendizado de maneira significativa ou atingir o nível esperado para crianças de sua idade. Fazemos a hipótese de que o PIP pode se mostrar ineficaz quando há a necessidade de o aluno incluir, em seu processo de aprendizado, algo bem particular, ou seja, algo relativo a sua subjetividade. No caso de Melissa, o DCP foi capaz de contemplar a subjetividade de modo que o aluno pudesse ser introduzido no processo escolar.

Nessa perspectiva, os dispositivos utilizados para a realização da pesquisa/intervenção de orientação psicanalítica pretendem isolar e introduzir a subjetividade partindo do pressuposto de que é possível abrir um espaço analítico na escola diferente daquele manejado na clínica, mas que se utiliza de aportes dessa prática (SANTIAGO; ASSIS, 2015). Embora o objetivo do presente artigo seja apresentar os resultados obtidos a partir do diagnóstico clínico-pedagógico de orientação psicanalítica, faremos menção também a dois outros procedimentos utilizados na referida pesquisa: a entrevista clínica de orientação psicanalítica (ECOP) e a Conversação.

Para apresentar a contribuição pontual de intervenção pedagógica, proposta a partir dos fundamentos da psicanálise e de sua clínica pragmática, o caso de Melissa será discutido em quatro tópicos, após a apresentação do método. No primeiro tópico, daremos enfoque à queixa escolar e à trajetória da família diante das solicitações da escola apresentando também os esforços da instituição escolar para intervir nas dificuldades apresentadas pela aluna e o início do processo de medicalização. Em seguida, trataremos das hipóteses construídas pelos professores para as dificuldades da aluna e das nomeações conferidas a ela pelo discurso da escola. O terceiro item discutirá a singularidade da adolescente em sua relação com o aprendizado e com o ambiente escolar, bem como o questionamento feito junto à aluna sobre as disfunções a ela atribuídas pelo processo de medicalização. Por fim, o quarto tópico, descreverá, no caso apresentado, os laços entre adolescência e saber escolar.

Como se verá, a pesquisa/intervenção realizada por meio do DCP e da ECOP permite perceber a particularidade do caso, ou seja, o singular do sintoma da adolescência que se inscreve a partir do advento da puberdade (STEVENS, 2004) e seus efeitos sobre a relação com o saber escolar. No caso em foco, se explica, igualmente, a problemática da medicalização como fenômeno contemporâneo na abordagem do fracasso escolar que incide sobre alunos apresentando impasses com as aprendizagens ou comportamentos considerados inadequados5 dentro do ambiente escolar.

2 MÉTODOS DA PESQUISA/INTERVENÇÃO DE ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA NA ESCOLA

A psicanálise de orientação lacaniana propõe a leitura do sintoma escolar e a intervenção sobre o que revela ser impasse subjetivo e singular na relação do sujeito com o saber, repercutindo sobre o desempenho escolar, a relação com os professores e com a vida escolar. A intervenção parte do aluno visando investigar, diretamente, junto do sujeito, o ponto de sua singularidade que constitui o impasse na aprendizagem, a fim de possibilitar o surgimento de novidades na relação com a escola e com o saber. Desse modo, pretende-se inventar, na instituição, um espaço onde o sujeito possa entrar em contato com o que constitui seu impasse permitindo a emergência de possibilidades de ação sobre as dificuldades manifestadas.

A pesquisa/intervenção de orientação psicanalítica se realiza por meio de metodologias desenvolvidas para serem utilizadas a partir da leitura prévia do problema de cada instituição escolar e inclui dois procedimentos principais: o diagnóstico clínico-pedagógico (DCP), a partir do qual se realiza a intervenção pedagógica, e a entrevista clínica de orientação psicanalítica (ECOP). A ECOP consiste em entrevistar a criança identificada pela escola como um aluno que apresenta problemas escolares, sendo convocados também os pais quando necessário. Partindo da queixa da escola, a entrevista tem o objetivo de ouvir o que o sujeito tem a dizer sobre o problema que ele representa para a instituição escolar, as nomeações designadas a si e a sua posição diante do aprendizado. Já o DCP é um instrumento proposto por Santiago (2011) para estabelecer uma diferenciação entre dois aspectos integrantes da aprendizagem: o primeiro, aquilo que é próprio da dimensão conceitual pedagógica no âmbito das dificuldades apresentadas pela criança, ou seja, dificuldades na construção de conceitos e habilidades relacionadas aos conteúdos escolares ou defasagens conceituais constituídas ao longo do processo escolar; o segundo, aquilo que sobressai da subjetividade, ou melhor, os impasses que podem ser oriundos das construções singulares que se estabelecem entre o Outro social — a escola — e o aluno. Resumidamente, entendemos a subjetividade como “a capacidade do indivíduo de se inserir como sujeito no que concerne a sua particularidade em relação aos seus desejos, suas demandas, suas escolhas e sua história de vida dentro do contexto social” (CAMPOS, 2013, p. 71). A partir do que a criança nos ensina sobre sua singularidade, é possível fazer uma leitura de como isso se repercute na relação com o saber e nos laços sociais engendrados na escola.

O DCP e a ECOP fornecem elementos para a escolha e a construção de uma intervenção particularizada com cada aluno, justamente partindo daquilo que ele próprio sabe e ensina sobre seu sintoma. As dificuldades que se encontram na esfera conceitual-pedagógica são trabalhadas pela intervenção pedagógica a fim de reconstruir conceitos que, por diversos motivos, não ficaram bem estabelecidos. Essa intervenção é realizada por pedagogos ou professores de disciplinas específicas. A ECOP é realizada por psicanalistas e psicólogos com formação analítica quando se detectam, para além do conceitual pedagógico, questões subjetivas que interferem na operação que a criança faz sobre os conceitos ou na vida escolar. O método utilizado propõe, portanto, que cada profissional atue em seu campo e realize, com base no caso, uma interlocução interdisciplinar entre psicanálise e educação.

Além desses dois procedimentos, são realizadas, também, Conversações com os gestores e professores. A Conversação é um dispositivo para o trabalho com grupos partindo do sintoma, ou seja, daquilo que causa mal-estar na instituição. Ela permite a circulação da palavra por meio de associação livre e é utilizada para que a intervenção possa ultrapassar o limite do trabalho individual feito com o aluno. Tem como objetivo gerar achados inéditos a partir de saberes já constituídos pelo corpo gestor e docente da escola e, a partir disso, tocar nos aspectos inerentes à relação estabelecida entre a instituição e o aluno. Sendo assim, a intervenção feita nas escolas é permeada por diversas situações de Conversação6.

A pesquisa/intervenção proposta nas escolas inicia-se por Conversação com gestores e docentes para levantar os casos de alunos que, na visão do professor, são considerados um problema para a escola e que poderiam se beneficiar do trabalho proposto. Essa Conversação que é realizada no início, além da indicação dos casos a serem acompanhados, possibilita verificar os problemas enfrentados pela escola nos processos de ensino de crianças consideradas com dificuldades no aprendizado ou que apresentam comportamentos vistos como inadequados pela comunidade escolar. Durante esse processo, a necessidade de outras Conversações pode surgir. Quando a pesquisa/intervenção é finalizada, é feita a Conversação devolutiva, cujo intuito é auxiliar a construção de novos saberes que permitam mobilizar mudanças na posição do corpo docente em relação às crianças acompanhadas por esse processo que gira em torno do sintoma, pois é a partir do que o aluno nos ensinou que se reintroduz a singularidade no coletivo da escola e possibilita a reinserção da criança no circuito da aprendizagem.

No caso de Melissa foram usadas ECOP, DCP e Conversação. A intervenção durou quatro meses. Foram realizadas três Conversações, sendo duas com a equipe gestora e uma com os docentes. Além disso, foram feitas três ECOPs e dezesseis encontros para o DCP. Embora a pesquisa/intervenção tenha utilizado esses três procedimentos, este artigo enfocará, principalmente, o processo de diagnóstico clínico-pedagógico desenvolvido ao longo do caso, como mencionado na introdução.

3 PROBLEMAS ESCOLARES, ESTRATÉGIAS DA ESCOLA E SOLICITAÇÃO DE AVALIAÇÃO MÉDICA

Quando Melissa frequentava o 1º ano do ensino fundamental, os professores achavam estranho a imobilidade da aluna, sua atitude passiva e sua pouca participação nas aulas. Diante dessas observações, ela foi inserida no Programa de Intervenção Pedagógica (PIP), cujas ações consistiram em atividades diferenciadas dentro de sala, no horário da aula — exercícios complementares/estudos orientados extras (a serem realizados em casa, e posteriormente corrigidos pelo professor) —, e o reforço escolar ocorrido na própria escola, no turno em que estudava.

As dificuldades de Melissa permaneciam a despeito das ações da escola. Tal constatação levou os educadores a solicitar avaliação médica. Os pais procuraram uma equipe médica que, após a realização de vários testes, concluiu que a menina não sofria de nenhuma doença ou transtorno. Contudo, diante do comportamento inalterado da aluna, a escola insistiu na busca de um diagnóstico e demandou novas avaliações. Durante quatro anos, a família passou por vários especialistas à procura de um diagnóstico ou de uma explicação para os entraves escolares. Embora todos os profissionais procurados tenham atestado a ausência de problemas, tanto do ponto de vista orgânico quanto de saúde geral e mental, um deles, um neurologista, acabou cedendo à insistência dos pais em responder à demanda da escola e prescreveu uma medicação para déficit de atenção visando a melhora do desempenho escolar.

Assim, Melissa fez uso de Ritalina7 (metilfenidato) por oito meses. Depois desse período, sem efeito sobre os resultados na escola, os pais avaliaram que o medicamento não estava surtindo efeito e resolveram reavaliar. Procuraram novamente o mesmo neurologista e sugeriram a troca da medicação, alegando aquela não parecia trazer benefícios. O médico acatou a demanda suspendendo a Ritalina e receitando Tofranil (cloridrato de imipramina)8.

edicação pela falta de resultados sobre o desempenho escolar da filha e decidiu suspendê-la. Os profissionais da escola se fiavam na hipótese de uma disfunção que pudesse ser sanada com medicação e o relatório escolar destacava a relação causal entre o baixo desempenho escolar e uma suposta síndrome. Assim, observa que, após a suspensão do medicamento, a aluna havia apresentado uma queda significativa no desenvolvimento escolar, fato não corroborado pelos próprios resultados inalterados da aluna.

No ano de 2013, uma das professoras de Melissa, a partir dos conhecimentos obtidos em um curso de especialização, levantou a hipótese de que a menina tivesse síndrome de Irlen9. A partir dessa hipótese, a escola solicitou mais uma avaliação, dessa vez, uma avaliação psicopedagógica realizada por especialista em diagnosticar casos dessa síndrome. A psicopedagoga, responsável pela avaliação, confirmou o pressuposto da escola e indicou o uso frequente do overlay, uma lâmina colorida de sobreposição que tende a facilitar a leitura para os portadores da síndrome de Irlen.

Com esse diagnóstico, os pais de Melissa procuraram um oftalmologista, uma vez que a síndrome está relacionada ao campo visual. O profissional da área não concordou com o diagnóstico e atestou que a menina não tinha problemas relacionados à visão ou ao campo visual. Na escola, entretanto, prevaleceu o laudo da psicopedagoga e a aluna passou a utilizar overlay para a leitura. O uso da lâmina não surtiu efeito sobre as suas dificuldades e não modificou sua posição de aluna problema para a instituição.

4 MELISSA: MENINA INQUIETA QUE LÊ, MAS NÃO ASSIMILA

Enquanto se dava a rotina pela busca de respostas em vários consultórios, Melissa, apesar de apresentar rendimento insatisfatório, foi promovida por progressão continuada em todas as séries cursadas. A progressão continuada é um sistema vigente em escolas públicas que não prevê a reprovação do aluno ao final da série ou ano letivo, e sim ao final de cada ciclo de aprendizagem. Independentemente do rendimento escolar do aluno, ele é promovido à série seguinte, de forma a evitar históricos de retenções.

Nesse sistema, o discente com rendimento escolar insatisfatório deve receber acompanhamento pedagógico de acordo com suas necessidades educacionais. Mas as nossas investigações constatam que, nem sempre, essas estratégias conseguem ter o efeito esperado (SANTIAGO; ASSIS, 2015). Portanto, existem alunos que acumulam, cada vez, mais dificuldades, comprometendo o seu processo de aprendizagem e de inclusão escolar.

No caso de Melissa, ao longo do tempo, construíram-se defasagens conceituais evidentes da discrepância entre o nível de aprendizado da aluna e de outras crianças enturmadas em sua sala de aula. A maneira como ela se inseria na escola e se relacionava com a aprendizagem desafiava seus professores: eles não entendiam que fenômenos sustentavam as dificuldades da aluna. Assim, a professora de português afirmou que, apesar de comunicativa, a aluna apresentava muitos impasses em atividades de leitura, pois lia de forma silabada, parecia não conseguir interpretar os textos e dava respostas desconectadas das perguntas feitas. Segundo a docente, mesmo com as intervenções pedagógicas de reforço, esse quadro não havia se modificado. A professora de matemática, por sua vez, acreditava que Melissa tinha muita dificuldade na “assimilação” dos conteúdos, não sabendo ao certo se isso era oriundo das falhas do processo escolar ou de alguma disfunção orgânica: “Eu fico pensando até onde isso é de alguma doença ou diagnóstico que ela possa vir a ter, ou mesmo até onde é enrolo dela”.

Como os recursos utilizados pelos educadores surtiam poucos efeitos sobre a adaptação aos conteúdos e às normas da escola, Melissa foi constituindo-se em um enigma que denotava o fracasso da escolarização. Nesse processo, nomeações demonstravam o lugar conferido à aluna na relação com o saber: “inquieta”, “lenta”, “lê, mas não compreende” e “tem dificuldade”. Com os colegas, os adjetivos tornavam-se mais explícitos: “Eles me chamam de burra, falam que eu preciso estudar mais! Me mandam sentar virada para frente”.

Assim como Melissa, muitos alunos não apresentam as habilidades e competências a serem adquiridas até o final do ciclo de alfabetização. Isso pode ser percebido pelos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) realizada em 2016. Tais resultados demonstram que 54,73% de mais de 2 milhões de estudantes concluintes do 3º ano do ensino fundamental apresentaram desempenho insuficiente no exame de proficiência em leitura; 33,95% estavam em níveis insuficientes também em relação à escrita, ou seja, não conseguem escrever “palavras alfabeticamente” ou as escrevem com desvios ortográficos; produzem textos ilegíveis ou não conseguem escrever pequenos textos (BRASIL, 2019, p. 10).

Essa aluna, portanto, engrossava a estatística dos escolares que, com desempenho insuficiente nas habilidades de leitura e escrita, parecem constituir-se em desafios invencíveis para seus professores, a despeito de seus esforços. Sem localizar mais possibilidades a serem realizadas no âmbito das atividades pedagógicas, os professores recorrem ao saber médico com a expectativa de que tratamentos aos entraves escolares possam ser oferecidos pela medicina. Entretanto, pesquisas demonstram que os docentes também não encontram nas especialidades médicas — muitas vezes descoladas de políticas públicas adequadas ao cuidado da criança e do adolescente — respaldo suficiente para explicar os problemas manifestados na escola, apesar dos inúmeros encaminhamentos para os serviços de saúde (SANTIAGO & ASSIS, 2015).

5 A SINGULARIDADE A PARTIR DA PRÓPRIA CRIANÇA, O QUESTIONAMENTO DO DIAGNÓSTICO E A PRODUÇÃO DE TEXTOS SOBRE O AMOR

Durante a intervenção desenvolvida por meio do DCP, Melissa mostrou-se bem consciente de sua situação na escola. Ao conversar sobre seus problemas escolares relatados pelo corpo docente, ela prontamente afirmou: “Eu não consigo aprender!”. Associou suas dificuldades ao fato de enxergar as “letras dançando” no papel. Repetia o laudo da síndrome de Irlen, identificando-se a ele de forma alienada para explicar seus impasses.

Durante as entrevistas clínicas, conforme Melissa tomava a palavra, tornava-se claro que a explicação das suas dificuldades por meio da síndrome associava-se às nomeações provenientes da fala dos adultos. A própria adolescente, entretanto, não via as supostas “letras dançando” como o seu problema principal. Na entrevista foi aberto o espaço, até então preenchido pelo diagnóstico da doença indeterminada, e, a partir disso, foi possível que surgissem, na esfera do saber desse sujeito, as curiosidades relacionadas ao encontro com o outro sexo, que são próprias do tempo da adolescência (STEVENS, 2004; LACADÉE, 2011; LACAN, 1999; WEDEKING, 1991). Em relação à escola, a menina pôde falar da humilhação sentida, na sala de aula, por ser tratada como um ser marcado por um menos, estigmatizada pelo déficit. Esse estigma era reafirmado cada vez que seus professores lhe propunham exercícios, deveres de casa ou provas diferentes daqueles realizados por seus colegas de sala. Ela, que cursava o 6º ano do ensino fundamental, estudava no livro do 3º ano; suas avaliações eram diferentes daquelas dos colegas e suas atividades em sala de aula não eram pontuadas como as do restante da turma. Por isso, sentia-se humilhada. Na entrevista clínica, foi possível expressar a vergonha experimentada por ser tratada diferente e, por isso, seu mal-estar no ambiente escolar, seu sofrimento de maneira geral e, em especial, na sala de aula, diante dos colegas.

A experiência da ECOP para essa menina permitiu-lhe suspender o diagnóstico que lhe foi conferido pela intervenção psicopedagógica para justificar — para a escola e para a família — o fracasso escolar e dar expressão ao seu mal-estar e às suas questões particulares. O relato de seu mal-estar, nas entrevistas, mostrou o efeito indesejado e não calculado das iniciativas feitas pela instituição educacional: as “boas” medidas adotadas podem se tornar iniciativas que constrangem o aluno, uma vez que não conseguem incluir a subjetividade nesse processo. Nesse caso, parecia aos docentes que possibilitar à aluna a realização de atividades mais adequadas ao seu nível de aprendizagem, enquanto seus colegas ocupavam-se de tarefas mais complexas, seria incluí-la na escola. Entretanto, ela recusava o tratamento especial entendendo-o como humilhante.

A utilização do DCP possibilitou perceber que Melissa conseguia ler muito bem sem o auxílio da lâmina azul. As dificuldades estavam ligadas às defasagens conceituais que se instalaram ao longo do tempo. Ela apresentava boa capacidade de atenção e de habilidade na realização das atividades propostas. Nos jogos, demonstrava concentração e buscava utilizar diferentes estratégias para solucionar os problemas apresentados pela pedagoga. Sobressaía também o interesse em competir, ou seja, encontrava soluções rápidas diante das tarefas propostas de modo a ganhar de sua oponente. Diante dessa constatação, podemos questionar o uso de medicamentos para melhora do desempenho acadêmico de Melissa, pois suas habilidades de concentração e raciocínio evidenciavam-se quando havia interesse pela atividade executada.

Por meio das atividades realizadas na intervenção, percebeu-se que a aluna apresentava escrita alfabética, embora precária, com trocas e omissões de letras e união de duas ou mais palavras em uma frase. A sua produção textual não apresentava pontuação nem parágrafos. Havia erros ortográficos e de concordância revelando características típicas da fase inicial da alfabetização e pouco domínio dos aspectos convencionais da escrita. A leitura também manifestava uma série de limitações, caracterizadas por ritmo muito lento e pela silabação, bem como pela dificuldade em entender o que foi lido.

Nos encontros da pesquisa, Melissa passou a reproduzir o que fazia em sala de aula. A alegação de que as letras ficavam dançando era usada sempre que ela não queria fazer alguma tarefa proposta. Consideramos essa atitude como uma forma de interrogar o diagnóstico que havia recebido, ou seja, uma pergunta em ato: “Tenho uma síndrome?”. Diante desse questionamento, a intervenção consistiu em problematizar posturas e lugares que a adolescente ocupava na escola, convidando-a a se responsabilizar por suas decisões e atitudes. Desse modo, pretendíamos romper as explicações cristalizadas sobre suas dificuldades, repetidas nos diferentes espaços em que circulava. Melissa modificou sua postura e começou a demonstrar mais interesse pelas atividades propostas na intervenção pedagógica.

Durante a leitura de uma história, a aluna demonstrou muita dificuldade em ler palavras desconhecidas por ela. A leitura, porém, seguiu sem o uso da lâmina de overlay. Assim, o primeiro aspecto identificado na intervenção relacionava-se à limitação de vocabulário. A orientação dada foi que, para entender um texto, é preciso conhecer o significado das palavras e, quando necessário, usar o dicionário.

Melissa não conseguia encontrar uma palavra sequer no dicionário, não sabia como usá-lo e desconhecia sua forma de organização em ordem alfabética. A primeira intervenção, portanto, foi ensiná-la a procurar as palavras, tarefa aprendida com sucesso. O uso do dicionário abriu para a menina um mundo de possibilidades. Poder procurar o sentido de uma palavra, ou mesmo conferir a escrita correta de outra, adquiriu um grande sentido. Esse foi o primeiro livro pelo qual ela se interessou.

6 A SINGULARIDADE ADOLESCENTE, PRODUÇÃO DE TEXTOS E OS QUESTIONAMENTOS SOBRE O AMOR

A produção de textos era uma atividade para a qual Melissa demonstrava pouca habilidade. A intervenção consistiu, entre outros aspectos, em mostrar à aluna a importância de planejar a escrita ressaltando a necessidade de ter clareza do assunto que seria tratado, do público leitor e do melhor suporte e gênero textual para expressar suas ideias. Ao propormos uma produção de texto, ela decidiu escrever a história de Rapunzel, escolhendo, assim por diante, os contos de fada com finais felizes como seu gênero de predileção:

Era uma Vez uma menina

certimha um cabelo Bem grandis ir

uma Bruxa não dexava ela corta o Cabelos

porque se Ela cortar a Bruxa ia morrer

emtão a Brincesatava Perdida na

torre Muitos ano então u prinsipir

ficou perdido ir eles tinha jarComhesidor

arrapunzeuemtão ela Gritou ar rapunzeu

rapunzeu jogo seu gabeloEmtão ela jogo

irorprimsipirsubio então ar Bruxa

pegou ele ir prendeu ele Ficou prejor

nacorenti ir a Bruxar prendeu ele na correntiremtão ele pediu para

Bruxar para dar um Bejor na rapunzeu

ir a Bruxa dexouemtão um espeho

ceprouEmtão ar rapunzeu foi bexar

Ele pegou orcatrodir vidro ir cortou

or cabelo delar ir ar Bruxar foi morendo

ir ar rapunzeuLiberto ele ir emcomtro

ceus pais dir novo

fim !

A partir da produção reproduzida acima, a intervenção priorizou, além do incentivo à leitura e à escrita, um trabalho sobre o uso da pontuação e sobre a reflexão de aspectos convencionais da escrita. A narrativa possibilitou, ao lado disso, por meio do diálogo com a pesquisadora, um espaço para o falar livremente sobre si e sobre os impasses que incomodavam a menina. Diversos textos sobre moças aprisionadas, amores e libertação foram produzidos no desenrolar da pesquisa. Desse modo, Melissa foi construindo sua saída da infância e, aos poucos, pôde se aproximar das atitudes e interesses dos colegas de sua idade.

Em uma das intervenções, a aluna trouxe uma agenda e confidenciou que se tratava de uma espécie de diário que ninguém poderia ver. Por meio do registro de detalhes do seu dia a dia e dos seus amores, a escrita tornou-se uma forma de tencionar fenômenos próprios da adolescência ligados à reatualização das escolhas de objeto da infância e da posição em relação à sexuação (LACADÉE, 2011; LACADÉE, 2017). Nessa tarefa, a menina, até então desinteressada da escrita, começou a escrever sobre os mistérios do amor e sobre os encontros e desencontros que a afligiam:

Meu diário idiota

Quando era pequena tinha meu primeiro diário, que meu pai mideu escrevia todos meus problemas meus amores e também meu coração meus sentimentos quando sentia perto do menino que eu gosto, ele estuda na mesma escola do que eu mais ele estuda ditardiesti menino xama, Lucas ele foi meu primeiro amor am ele era da minha sala no 2º e 3º ano.

Ele taroje no 5º ano e também ele vai para o 6º ano anucivem mais tem uma coisa ele gosta de uma menina da sala dele i essa menina eu não sou comacaradela.

Mas o importanti é o amor. FIM.”

No texto acima, percebe-se o avanço da aluna em relação às produções anteriores: uma escrita mais organizada e com menos erros ortográficos. Além disso, ela deixou os contos de fada para escrever sobre si, apropriando-se da escrita como possibilidade de tradução de seus sentimentos. Assim, esse interesse foi enlaçado pela entrada na adolescência.

O interesse pela leitura também pôde emergir. Em um dos encontros da intervenção, a aluna trouxe o livro A culpa é das estrelas, de John Green, publicado em 2012. O best-seller, bastante famoso entre o público infanto-juvenil, narra o romance entre dois adolescentes que se conhecem em um grupo de apoio para pessoas com câncer. Encetou-se um diálogo entre Melissa e a pesquisadora:

Pesquisadora: Você já começou a ler o livro?

Melissa: Sim.

Pesquisadora: É uma história bacana. Fizeram um filme que está em cartaz. Eu já assisti.

Melissa: A professora de Ciências levou nossa turma para assistir!

Pesquisadora: E você gostou?

Melissa: Eu coloquei meu fone no ouvido e fiquei vendo as imagens!

No decorrer da conversa, Melissa relatou não ter conseguido ler a legenda do filme, pois as letras passavam rápido demais. Por isso havia se limitado a “ver as imagens”. No cinema, com a turma da escola, a menina percebeu que sua dificuldade de leitura não permitia o acesso a muitas circunstâncias comuns a seus colegas, como compreender um filme que não fosse dublado e cujo roteiro tratava da possibilidade da morte e das relações amorosas entre adolescentes. Suas dificuldades escolares, portanto, perturbavam suas possibilidades de encontro com a turma e entravavam sua proximidade com colegas da mesma idade. Distanciada de seus pares pela humilhação do pouco acesso à escrita e à leitura, Melissa parecia ter menos chance de compreender, junto aos colegas de sua idade, o que acontece de inaudito e de inédito quando se anunciam os primeiros sinais da puberdade (LACADÉE, 2011).

Após a ida ao cinema para assistir ao filme A culpa é das estrelas, dirigido por Josh Boone e lançado em 2014, segundo seus professores, Melissa estava melhor nas aulas: mais interessada e mais participativa; passou a fazer as tarefas e, na última aula, havia pedido para ler uma questão do trabalho realizado pela turma.

Ao final da intervenção, foi feita uma Conversação com os professores do sexto ano. Entre os que estavam presentes, alguns demonstravam grande dificuldade em aceitar a possibilidade de ter ocorrido alguma mudança em Melissa, sendo que apenas as professoras de português e de ciências admitiram ter percebido modificações na maneira como a menina se colocava em sala de aula. Os comentários dessas duas professoras abriram uma interrogação para os outros docentes, fazendo emergir uma aluna que eles não estavam vendo. Já na Conversação com os gestores da escola, podemos dizer que eles perceberam o novo interesse pelos livros e notaram também uma mudança de postura de Melissa, como nos informou a coordenadora da escola: “Hoje Melissa fica pra baixo e pra cima com um livro debaixo do braço!”.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso de Melissa faz refletir sobre os problemas escolares que afetam alunos, pais, professores e instituições educacionais, bem como a forma com que esses problemas têm sido tratados. Assim, não é raro observar que eles podem ser enfrentados pela tendência da medicalização, como discutimos no início do artigo. Quando falham as estratégias que a escola utiliza para viabilizar a aprendizagem ou para corrigir os comportamentos inadequados, os alunos são encaminhados a diferentes profissionais para serem avaliados, com o intuito de receberem um diagnóstico e a prescrição de tratamentos específicos, entre eles, especialmente, espera-se que a criança seja medicada para ter uma maior concentração e/ou um comportamento mais produtivo em termos de seu desempenho acadêmico.

Um processo de medicalização acontece quando “problemas que não eram considerados de ordem médica passaram a ser vistos e tratados como problemas médicos” (BRZOZOWSKI; CAPONI, 2013, p. 209). Eis uma tendência ainda atual de se interpretar problemas escolares como um tipo de doença que deve ser sanada por meio de medicação10 (CRP SP, 2011). Por esse viés — que transforma o problema escolar em problema médico —, as dificuldades de muitas crianças no processo de escolarização passam a ser entendidas como patologias que, a partir da causalidade orgânica, estariam afetando cognição e conduta. Assim, diagnósticos e tratamentos próprios do campo da medicina introduzem-se nas escolas, onde são utilizados como cifras do impasse escolar cujos números questionam e angustiam educadores e familiares (CRP SP, 2011, LEONARDO; SUZUKI, 2016, MANSKE; QUADROS, 2018).

O caso de Melissa evidencia aspectos indesejados do processo de medicalização: a peregrinação aos serviços de saúde, a contradição entre diagnósticos dados por diversos especialistas e o uso de medicamentos para tratamento do problema escolar podem gerar mais angústia e mais dúvidas e agravar o mal-estar do aluno trazendo tensões nas relações entre família e escola. Além disso, retira dos alunos e dos educadores a possibilidade de pensar e agir sobre o mal-estar que atinge os sujeitos e a instituição. Um diagnóstico ou um laudo, no ambiente escolar, pode, equivocadamente, transformar-se em mecanismos que diferenciam um aluno de outros a partir da constatação de deficiências, distúrbios ou transtornos, nomeações difíceis de suportar e que se colam à imagem do aluno (SANTIAGO; ASSIS, 2015).

No caso aqui apresentado, os medicamentos e o diagnóstico de síndrome de Irlen provocaram uma identificação que servia para a aluna justificar sua incapacidade diante do aprendizado, mas em nada auxiliaram a instituição a ouvir o que incomodava Melissa ou o que lhe interessava no cotidiano escolar. O mal-estar da aluna, no momento da intervenção, estava relacionado às nomeações que os colegas lhe endereçavam, assim como ser obrigada a fazer atividades em um livro de crianças mais novas enquanto seus colegas seguiam o texto do 6º ano. Ser chamada de burra e receber um livro de uma série bem anterior a sua constituíram-se em uma verdadeira “humilhação”, de acordo com as próprias palavras de Melissa. Pode ser particularmente difícil na adolescência, momento em que se torna tão importante ser desejado pelos pares, ser caracterizada por traços tão depreciativos. Identificada e constituída por nomeações como “burra”, Melissa não fazia nenhum esforço para se sair bem nos estudos e ocupava um lugar bem singular em sua sala de aula: a menina lenta para aprender e que não dá conta de realizar as atividades.

Além de “menina que não aprende”, também a nomeação “inquieta” foi conferida a Melissa. É comum que impasses no aprendizado estejam associados aos comportamentos considerados inadequados ao ambiente da escola (NEVES, 2011). Esses comportamentos podem se acirrar conforme vão fracassando as intervenções pedagógicas propostas pela escola. Ou seja, um aluno com dificuldades para avançar na aprendizagem pode mostrar-se apático e recusar as atividades escolares, além de se tornar agitado e indisciplinado em decorrência do lugar que começa a ocupar na instituição (CORDIÉ, 1996), como ocorreu com Melissa. Assim, constrói-se um circuito discursivo em que os alunos reagem ou se identificam às nomeações e posições instauradas pelo Outro, no caso, a instituição escolar. Devido à angústia que esse fenômeno gera na instituição, começa a surgir a pergunta: o que será que esse menino tem? Quando os impasses dos alunos se tornam um enigma para os educadores, é comum a crença de que, onde a pedagogia falhou, o saber médico pode funcionar e encontrar a disfunção orgânica associada ao problema apresentado na escola pela criança ou adolescente (RAMOS, 2012).

Torna-se necessário, então, refletir sobre os possíveis efeitos do processo de medicalização. Quando os entraves são localizados apenas nos indivíduos, perde-se a possibilidade de modificar aspectos presentes na instituição, nos métodos e técnicas de ensino e nas relações interpessoais construídas no interior da escola. Em vez de silenciar os sintomas das crianças e das escolas por meio de medicamentos, o mais interessante é utilizar abordagens teóricas e práticas que permitam aos sujeitos agir sobre os seus problemas. Nessa perspectiva, acreditamos que o diagnóstico clínico-pedagógico, ao adotar como ponto central a leitura do que a criança ou o adolescente dizem sobre si e sobre o seu mal-estar na escola, pode ser tomado como um instrumento capaz de possibilitar a construção de ações diante dos problemas escolares.

Durante a intervenção realizada por meio do DCP, como relatamos neste artigo, os textos produzidos por Melissa, embora não sejam objeto de interpretação, mostraram a construção de um percurso que implicou o processo de libertação da infância e a tomada de uma posição singular dessa menina diante do saber próprio a sua idade. A singularidade, entretanto, “só pode ser ouvida, se deixamos a cada um a escolha de dizer com suas palavras o que está acontecendo em sua vida” (LACADÉE, 2011, p. 31). Os veículos para isso foram o diálogo com as pesquisadoras, os livros e construção de textos e a oferta de um espaço em que os impasses vivenciados pela aluna pudessem se manifestar. O DCP permitiu que a particularidade da aluna — evidenciada por meio de seu mal-estar com as nomeações a ela endereçada pelo Outro social e por meio do seu não-saber sobre a entrada na adolescência — fosse incluída em seu processo de aprendizado. Desse modo, foi possível dar lugar a uma reintrodução da aluna no processo escolar.

Melissa conseguiu reconciliar-se com sua idade aproximando-se de temas mais apropriados a sua faixa etária, incluindo tanto a apropriação dos conteúdos escolares do ano frequentado quanto a elaboração de novos saberes sobre o amor. Apesar de ter havido uma modificação da aluna na apropriação do saber e da aprendizagem, ela possuía uma defasagem muito grande nos conteúdos escolares, que exigiria um bom apoio pedagógico para que ela tivesse condições de acompanhar a turma/ano escolar que frequentava.

4Esse artigo é fruto de uma dissertação de mestrado. A pesquisa contou com o apoio da FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais).

5Consideramos como dificuldades de aprendizagem principalmente os entraves na aquisição dos processos de alfabetização, leitura e escrita, que se protelam por mais de três anos, assim como impasses no aprendizado de conteúdos de disciplinas específicas. Quando se trata de adolescentes, comportamentos inadequados, por sua vez, são as manifestações consideradas excessivas pela comunidade escolar e estão relacionadas, principalmente, às esferas da sexualidade e da agressividade (SANTIAGO; ASSIS, 2015).

6A conversação é uma prática da palavra proposta para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos. Diferentemente da roda de conversa, centra-se no sintoma identificado pelos pares e necessita da condução do analista. A entrevista, por seu turno, no âmbito dessa pesquisa, é uma intervenção individual.

7Metilfenidato é uma medicação muito utilizada no tratamento de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), que tem como efeito aumentar a concentração dos indivíduos.

8Cloridrato de imipramina é um antidepressivo para formas de depressão (endógenas, orgânicas psicogênicas e as associadas com distúrbios de personalidade), pânico, condições dolorosas crônicas, terror noturno e enurese noturna.

9Síndrome definida como uma alteração visuoperceptual causada por um desequilíbrio da capacidade de adaptação à luz que produz alterações no córtex visual e déficits na leitura.

10É importante ressaltar que medicação é diferente de medicalização. A medicação é a utilização de um medicamento para tratar doenças ou disfunções. A medicalização envolve a utilização de medicamentos para tratamento dos problemas escolares, mas é um fenômeno mais amplo relacionado a posições discursivas, culturais e políticas que tendem a individualizar os problemas escolares no aluno, tratando-os como doenças ou disfunções de origem orgânica.

Revisão gramatical realizada por: por Virgínia Gomes Junqueira.

E-mail: virginiagomesjunqueira@gmail.com

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA Política Nacional de Alfabetização- Brasília: MEC, SEALF, 2019, 54p. [ Links ]

BRZOZOWSKI, Fabíola Stolf; CAPONI, Sandra Noemi Cucurullo. “Medicalização dos desvios de comportamento na infância: aspectos positivos e negativos”. Psicologia: ciência e profissão, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpc/v33n1/v33n1a16 > . Acesso em: 5 nov. 2014. [ Links ]

CAMPOS, Sérgio. “Existe uma nova forma de atenção?” In: SANTIAGO, Ana Lydia; MEZÊNCIO, Márcia. A psicanálise do hiperativo e do desatento... com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum, 67-78, 2013. [ Links ]

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA SP. Medicalização de crianças e adolescentes. Conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. [ Links ]

CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem: psicanálise de crianças com fracasso escolar. (Trad. Sônia Flach e Marta d’Agord). Porto Alegre: Artes Médicas, 2013. [ Links ]

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. (Trad. Diana Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco e Mário Corso). Porto Alegre: Artmed, 1999. [ Links ]

FONSECA, Luciana Renata Moreira. Impasses na aprendizagem e inclusão escolar: estudos de caso sob a ótica da Psicanálise. 2015, 119f. Dissertação em Educação. Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. [ Links ]

GREEN, John. A culpa é das estrelas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. [ Links ]

KAMADA, Mariana Yuki; NASCIMENTO, Liliane Cristina Ribeiro. Em busca do conhecimento em Educação e Psicanálise. PSI UNISC. Santa Cruz do Sul, v. 1, nº 1, jul/dez. 2017, p. 113-128. [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. [ Links ]

LACADÉE, Philippe. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011. [ Links ]

LACADÉE, Philippe. Los sufrimientos modernos del adolescente. Buenos Aires: UNSAM Edita, 2017. [ Links ]

LEONARDO, Nilza Sanches Tessaro; SUZUKI, Mariana Akemi. “Medicalização dos problemas de comportamento na escola: perspectivas de professores”. Fractal: Revista de Psicologia. v. 28, n. 1, jan-abr. 2016, p. 46-54. [ Links ]

MANSKE, George Saliba; QUADROS, Daniela Cristina Rático de. “Medicalização na escola e a produção de sujeitos infantis”. Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul, v. 26, n. 2, mai/ago. 2018, p. 57-73. [ Links ]

MILLER, Jacques-Alain. “A criança e a mulher e a mãe”. Opção Lacaniana, 21, 1988, p. 7-12. [ Links ]

MILLOT, Catherine. Freud Antipedagogo. (Trad. autorizada da primeira edição francesa, publicada por Navarin Éditeur). Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro, 1987. [ Links ]

NEVES, Libéria Rodrigues. Teatro Conversação na escola: o uso do teatro na conversação como mediador de conflitos na educação. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011. [ Links ]

RAMOS, Fernanda do Valle Corrêa. Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: da categoria psiquiátrica à particularidade do caso a caso nos processos de inclusão escolar. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. [ Links ]

SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. A inibição intelectual na psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. [ Links ]

SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra (2011). Entre saúde mental e educação: abordagem clínica e pedagógica de sintomas na escola nomeados por dificuldades de aprendizagem e distúrbios de comportamento. In: SANTIAGO, Ana Lydia; CAMPOS, Regina Helena Freitas (Orgs). Educação de crianças e jovens na contemporaneidade: pesquisas sobre sintomas na escola e subjetividade. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, p. 93-99, 2011. [ Links ]

SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra; ASSIS, Raquel Martins. O que esse menino tem? Sobre alunos que não aprendem e a intervenção da psicanálise na escola. Belo Horizonte, Editora Sintoma, 2015. [ Links ]

SILVA, Marlene Maria Machado. “Os alunos da sala 11”. Presença pedagógica. Ed. Dimensão, 12(72), 2006. p. 16-33. [ Links ]

SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2017. [ Links ]

STEVENS, Alexandre. “Adolescência, sintoma da puberdade”. Curinga, nº 20. Belo Horizonte, 2004, p. 27-39. [ Links ]

WEDEKIND, Benjamin Franklin. O despertar da primavera. Lisboa: Ed. Estampa, 1991. [ Links ]

Recebido: 06 de Março de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution Non-Commercial No Derivative, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais, sem alterações e que o trabalho original seja corretamente citado.