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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.23 no.4 Campinas Oct./Dec. 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v23i4.8658618 

Artigos

A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS SOBRE A DOCÊNCIA EM EDUCAÇÃO FÍSICA: A CONSTRUÇÃO DE VERDADES E ALGUMAS PROBLEMATIZAÇÕES

THE PRODUCTION OF NARRATIBES ABOUT TEACHING ON PHYSICAL EDUCATION: THE TRUTHS’ CONSTRUCTION AND SOME QUESTIONS

LA PRODUCCIÓN DE NARRATIVAS SOBRE LA ENSEÑANZA EM EDUCACIÓN FÍSICA: LA CONSTRUCCIÓN DE VERDADES Y ALGUNOS TEMAS

Mário Luiz Ferrari Nunes1 

Marina Contarini Boscariol2 

1Pós- doutorado em Educação - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP- Brasil. Professor Doutor - Faculdade de Educação Física - Universidade Estadual de Campinas - FEF/UNICAMP. Campinas, SP - Brasil. E-mail: mario.nunes@fef.unicamp.br

2Mestrado em Educação Física - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Professora de Educação Física da Prefeitura Muncipal de Piracicaba. Piracicaba, SP - Brasil. E-mail:marina.boscariol@yahoo.com.br


RESUMO

Este texto objetiva localizar as tecnologias de regulação docente, a fim de potencializar saídas para uma compreensão (pelo próprio sujeito) do lugar da docência produzida pela racionalidade política neoliberal. Utiliza como instrumento metodológico o grupo de discussão, realizado com quatro professores de Educação Física em atuação na Educação Básica e formados pela mesma instituição. Toma como operador conceitual de análise as noções de técnicas de si e de cuidado de si, formuladas por Michel Foucault. As análises efetuadas indicam a força de discursos pedagógicos da Educação e da Educação Física na constituição da subjetividade docente e responsável por fazer com que os professores produzam narrativas sobre si mesmos no campo de atuação, orientadas, principalmente, pelo neoliberalismo. A partir desse debate, este artigo também dá alguns passos no sentido de pensar outras formas de se constituir docente no exercício da profissão.

PALAVRAS-CHAVE Educação Física; Ensino; Docência; Neoliberalismo e Educação

ABSTRACT

This article aims to open wide teaching regulation’s technologies in order to potentialize solutions for an understanding (by the subject himself) of the teaching place produced by neoliberal political rationality. It uses as a methodological tool the discussion group, carried out with four Physical Education teachers working in Basic Education and educated by the same institution. This text takes the notion of self-care and technologies of self as conceptual analysis formulated by Michel Foucault. The analyzes indicate the strength of pedagogical discourses of Education and Physical Education in the constitution of teacher subjectivity and responsible for making teachers produce narratives about themselves at working act oriented by neoliberalism. From that debate, this article also takes some steps towards thinking about other ways to produces others narratives about being a teacher.

KEYWORDS Physical Education; Education; Teaching profession; Neoliberalism and Education

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo abrir las tecnologías de la regulación de la enseñanza, a fin de potencializar soluciones para una comprensión (por el sujeto mismo) del lugar de la enseñanza producido por la racionalidad política neoliberal. Utiliza el grupo de discusión como una herramienta metodológica, realizada com cuatro maestros de Educación Física que trabajan em Educación Básica y capacitados por la misma institución. Toma como operador de análisis conceptual las nociones de tecnologias del yo y cuidado del si formuladas por Michel Foucault. Los análisis realizados indican la fuerza de los discursos pedagógicos de Educación y Educación Física em la constitución de la subjetividad docente y responsables de hacer que los maestros produzan narrativas sobre el los mismos en el campo de la actividad orientada principalmente por el neoliberalismo. A partir de ese debate, este artículo también da algunos pasos para pensar em otras formas de narrar la docência em elejercicio de la profesión.

PALAVRAS-CLAVE Educación Física; Enseñanza; Docencia; Neolberalismo y Educacíon

1 AS TRAMAS

Desde o início dos anos 1980, notamos mudanças nas estruturas e formas de governamentalização do Estado e, com isso, alterações nos modos de governo das populações. Elas visam transformar a percepção que cada indivíduo tem de si mesmo e do mundo. Ações que decorrem da expansão dos efeitos da atual globalização e da hegemonia do neoliberalismo.

Tomamos, neste texto, o neoliberalismo nos moldes pensados por Foucault (2008a): uma racionalidade política que instaura uma arte de governo. Para o autor, o neoliberalismo radicalizou a doutrina econômica clássica dolaissez-faire, na qual o mercado é visto como instituição natural autorreguladora, ao fundir essa noção com a elaboração de uma política econômica liberal correlativa ao quadro jurídico do Estado, minimizando os riscos para o funcionamento do mercado. A ideia de troca, base do liberalismo, é substituída no neoliberalismo pela de concorrência. Trata-se de uma forma de racionalização do exercício de governo, guiada por uma grade de inteligibilidade que espraia a racionalidade do mercado do âmbito da economia para todo o tecido social, incluindo os campos não econômicos, como a educação escolarizada. O neoliberalismo decorre de uma multiplicidade de processos heterogêneos, cujos regimes de verdade pautados na economia regulam o campo das ações do sujeito, logo da sua liberdade, pretendendo construí-lo como sujeito econômico: o empresário de si mesmo.

No Brasil, há mais de duas décadas, o campo da Educação é afetado pelos efeitos dessa arte de governo. O resultado tem sido a produção de políticas curriculares que enfatizam temas como gestão e performatividade, que envolvem aspectos tais como eficiência, responsabilidade e flexibilidade. O propósito é reformar o modo como a Educação é ofertada na tentativa de adaptar aquilo que se faz no cotidiano das escolas e universidades às exigências do capital. Meta que torna as políticas públicas voltadas para a Educação em oportunidade de lucro para o mercado educacional global, que hoje envolve grandes conglomerados econômicos, além do mercado local, composto por um grande setor de serviços e mercadorias que atende a esse segmento. Condição que produz táticas que levam seus sujeitos a pensar e a atuar na docência de uma maneira distinta de épocas anteriores (BALL, 2002). Afinal, ao docente cabe tanto formar as novas gerações como ele próprio atuar na manutenção dos discursos que regulam sua profissão.

Nesse cenário, Ball (2005) enfatiza o modo como o paradigma gerencialista avança em nossas sociedades e se espraia nas formas de organizar e de planejar a Educação. Faz crer que esse é o modus operandi mais adequado para salvar o ensino que acontece nas escolas públicas, propalado como ineficaz, e inserir adequadamente a nação na sociedade globalizada. O gerencialismo tem por função desfazer qualquer traço dos sistemas ético-profissionais que predominavam nas escolas, acarretando na troca por sistemas empresariais competitivos. Nesses sistemas, aqueles que estão envolvidos no trabalho se sentem responsáveis pelos resultados do processo educacional e pela organização da escola, ao mesmo tempo em que ficam sujeitos a variados mecanismos que incluem o julgamento de suas ações e comparações de desempenho, que são estabelecidos por metas mensuráveis, que se transmutam a todo o momento. O gerencialismo instaura uma cultura de performatividade, que enaltece a competição ao envolver objetivos, prêmios e sanções e, com isso, fabrica um perfil institucional. Tenciona-se transformar o cidadão dependente do Estado do bem-estar em um consumidor ativo (BALL, 2005). O gerencialismo e a performatividade operam de modo a facilitar o governo do Estado, que "governa sem governo", à distância.

Esses discursos são incorporados e naturalizados na labuta diária docente. Ancorados na narrativa do progresso, da melhoria da qualidade (econômica) e da ciência, logo da transformação social, os discursos advindos do campo econômico e os das teorias psi articulam-se de modo a favorecer a identificação docente com os mesmos. Essa articulação não permite aos professores se perceberem nas posições de sujeito projetadas pela racionalidade neoliberal, gerando incertezas quanto ao exercício da sua prática. Esses fatores fortalecem a noção de uma identidade docente desejada, impactam a subjetividade, e, como efeito, fragilizam a ação política e precarizam a condição do trabalho.

Cabe destacar também o papel preponderante da Educação Física no sucesso do neoliberalismo. Em que pese seu vínculo com as Ciências Humanas ter se ampliado nas últimas três décadas, o que lhe permitiu produzir críticas ao contexto social dominante, o paradigma hegemônico no campo é o das Ciências Médicas e Biológicas de viés positivista. O que se vê é a manutenção histórica de um modo de governo utilitarista, logo docilizador de corpos. Tencionamos, com este estudo, identificar as tecnologias de regulação docente a fim de potencializar saídas para uma compreensão (pelo próprio sujeito) do lugar da docência produzida pela racionalidade política neoliberal, possibilitando a invenção de outras narrativas sobre ser professor de Educação Física.

2 O CAMINHO METODOLÓGICO3

Por meio de um grupo de discussão (GD), proposto por Ibañez (1996), analisamos o modo como os colaboradores da pesquisa percebem a constituição docente e as estratégias que utilizam para a manutenção de determinados discursos sobre a docência. O GD é um grupo artificial, elaborado em função dos objetivos da pesquisa e moderado pelo pesquisador. Tenciona a participação ativa do sujeito no evento, a fim de que comunique o sentido de suas ações relacionadas, neste caso, à sua prática pedagógica. Considera-se o GD como um todo e não como a soma de indivíduos. O resultado do encontro é a promoção de um diálogo, cuja produção resulta em um discurso (pedagógico da Educação Física). Enquanto técnica, o GD promove conflitos e problematizações de modo a suscitar a incoerência do discurso.

O GD foi composto por quatro professores desconhecidos por nós, por pesquisadores, a partir de convites endereçados aos participantes de grupos de pesquisas e de curso de extensão, que ocorrem na mesma universidade. Adotamos como critério de inclusão professores que: a) atuam no sistema público de ensino; b) são formados em Licenciatura em Educação Física na mesma Instituição e assujeitados ao mesmo currículo c) e assumem identidades diversas tais como: geração, classe, raça, gênero etc.

A discussão teve como ponto de partida a prática docente, a partir de uma problematização acerca do conceito de cultura corporal e teve duração aproximada de 2 horas. Os colaboradores expuseram seus pontos de vista sobre situações cotidianas que ocorrem nas escolas, pelas quais enunciaram questões de conhecimento teórico e prático, além dos valores que sustentam suas tomadas de decisão. Na condução do GD, o moderador do encontro absteve-se da emissão de opiniões, reduzindo sua participação em momentos de derivação do tema e de tentativa de monopólio de fala por parte de um dos membros.

Tomamos como ferramentas de análise as noções de técnicas de si e cuidado de si, formuladas por Michel Foucault, mais especificamente entre os anos de 1979 a 1984. Entrecruzando o referencial teórico com as ferramentas metodológicas adotadas, defendemos aqui que esse procedimento de produção de dados permite extrair as posições de sujeito que os docentes assumem frente aos discursos pedagógicos destes tempos, divulgando ou interditando ordens de toda espécie.

Também é importante demarcar que este texto é o recorte de uma pesquisa mais ampla, que investiga a relação entre o currículo de uma licenciatura em Educação Física e a constituição da subjetividade docente. Por isso, nos limitamos a expor apenas trechos de falas que remetem à constituição do professor a partir das diferentes perspectivas pedagógicas, articulando-as às teias da racionalidade política neoliberal.

3 AS MANIFESTAÇÕES DAS VERDADES SOBRE A DOCÊNCIA

Foucault (2008a) define o discurso como um conjunto de enunciados oriundos de um mesmo sistema de formação, o que nos permite falar em discursos jurídicos, econômicos, médicos e, entre tantos, os discursos pedagógicos. Estes se referem, de modo geral, ao que acontece no campo da educação no que tange aos processos de ensino e de aprendizagem, e, de modo específico, a cada disciplina que os constitui, dentre elas: a Educação Física. Esses enunciados são produzidos e limitados por um conjunto de regras, que se estabelecem de modo diferente em cada época e em função das condições de possibilidade de sua existência, ou seja, em meio a determinadas relações que se constituem em jogos de força. Foucault (2008a) denomina essa relação de práticas discursivas e não discursivas, que se caracteriza por uma relação saber-poder. Não há um saber que possa operar sem as relações de poder. Desse modo, podemos considerar os discursos pedagógicos como um conjunto de enunciados que, para ter legitimidade e produzir efeitos no campo de sua atuação, se apoia nas relações de poder que conduzem a ação das pessoas no âmbito das práticas educativas, enfim, no currículo.

Os discursos que atravessam a constituição do corpo docente da Educação Física são muitos. Dentre eles, podemos destacar aqueles que atribuem ao docente promover a saúde e a qualidade de vida de seus alunos, incentivar a prática esportiva, desenvolver habilidades motoras, fomentar a análise crítica dos usos inadequados do corpo e, também, a crítica à ideologia dominante presente nos esportes e aos modos de promoção da saúde etc. Aos discursos da Educação Física acrescentam-se os da Educação, como, por exemplo, os que abordam questões de: organização curricular e sistematização didático-metodológica; concepções de escola, aprendizagem, aluno etc. Há aqueles que, por tratarem da função docente, impactam diretamente no modo como ele é representado culturalmente, ou seja, os discursos que lhes atribuem a responsabilidade pela formação das novas gerações. Esses também não são uníssonos. Há os discursos que envolvem a formação do próprio docente, que ora os criticam por serem especialistas em conteúdos específicos, ora pela esparsa formação didático-pedagógica fornecida pelas licenciaturas e, de modo geral, às políticas de formação docente. Aspectos antagônicos que resultam em dificuldades para o enfrentamento das questões políticas, culturais, morais, éticas e sociais que perpassam o seu fazer no cotidiano escolar.

Tais discursos circulam em diferentes contextos e produzem o sujeito da docência nas diferentes ordens discursivas que manifestam verdades sobre esses corpos. As instituições de formação atuam na constituição de uma docência que atenda demandas sociais de ordem mundial. Demandas referentes ao projeto de sociedade vigente, que corrobora com a organização social neoliberal, como é o caso da produção de um sujeito que investe em si mesmo, sendo assim autorregula seu comportamento com as questões da produtividade e do consumo. Essas demandas, associadas às formações que ocorrem no cotidiano da labuta docente nas escolas da educação básica, reforçam esses discursos. Como efeito, produzem professores a partir de demandas locais (estaduais, municipais, comunitárias), que buscam inserir esses contextos na ordem global, a fim de atingir índices de desempenho também específicos. Necessidades essas que são criadas por grupos de interesses diversos, tais como as agências do Estado, órgãos supranacionais, instituições financeiras etc. (BALL, 2002).

Essas formas de regulação sobre as capacidades e qualidades do docente evidenciam-se nas diversas esferas de formação do professor de Educação Física, seja a inicial ou a continuada. O currículo desses espaços tem produzido um conjunto de práticas que tenciona fazer com que o professor incorpore a noção do eu-empresa, naturalize a competição entre os pares e o aumento de sua produtividade. Isso também se dá na esfera do conhecimento, pois a formação é fragmentada, generalista e não estabelece as fronteiras epistemológicas entre os campos da licenciatura e do bacharelado. Com isso, forma-se um docente para atuar em áreas diversas e distantes entre si, precarizando sua formação e atuação (NUNES; NEIRA, 2018).

Não por menos, expressões individualistas como "fazer a diferença" ou políticas que promovem a remuneração de acordo com os resultados, acompanhada da avaliação do desempenho profissional, são consideradas pela grande maioria dos graduandos e docentes como pontos positivos e benéficos para si e para a sociedade. Como se vê, as tecnologias impostas pelas reformas educacionais são mecanismos que contribuem para a fixação de identidades e para a subjetivação dos sujeitos.

Outras instituições como a família, os meios de comunicação, a Igreja, também se preocupam em produzir discursos sobre a docência no intuito de defender determinadas concepções de mundo, de sociedade, de educação, de escola e de sujeito. Esses discursos também impactam as práticas docentes e se dão em diversos aspectos, sendo um deles o aspecto moral, o qual atravessa tempo e espaço na tentativa de manter tradições sociais na maior parte das vezes conservadoras, como, por exemplo, as que o professor deve impor respeito; ser exemplo; apresentar-se adequadamente no trabalho (roupas, gestos, falas); ser a autoridade; nos anos iniciais a professora deve ser afetuosa e cuidar das crianças etc. Nota-se, nesses discursos, a presença de uma força de manutenção dos dispositivos4 disciplinares que garantem a ordem e a normalização de padrões de comportamento dos docentes para que os mesmos sejam sujeitos de manutenção de uma ordem social, independentemente das transformações sofridas pelas teorias da Educação (Física). Essas teorias também produzem os discursos pedagógicos que mais impactam o exercício da docência, como é o caso das concepções dos currículos tradicionais eficientista e progressivista e dos currículos críticos reprodutivista e daqueles advindos da fenomenologia. E, mais recentemente, os pós-críticos5.

O currículo tradicional eficientista compreende o sujeito professor como personagem principal no processo de ensino, detentor do conhecimento e responsável por transmiti-los aos alunos. Nesse caso, a preocupação é com a garantia do desenvolvimento de habilidades cognitivas e psicomotoras para que os alunos adquiram o conhecimento útil para se tornarem sujeitos eficientes, produtores nos moldes do capitalismo industrial, que foi o contexto social no qual essas teorias ganharam força. O currículo tradicional progressivista coloca o aluno no centro da aprendizagem. Nela, é importante tomar as experiências dos alunos como ponto de partida para aquisição do conhecimento. Aqui, o professor deve ser aquele que orienta os alunos, deve ser motivador, mediador do processo para fazer com que as crianças tenham interesse por aquilo que se estuda. Para isso, ele parte do conhecimento de mundo já adquirido, tornando os sujeitos da aprendizagem competentes, garantindo a formação integral do indivíduo competitivo aos moldes do capitalismo de mercado (SILVA, 1999).

O currículo crítico reprodutivista compreende que o professor tem a função de desenvolver nos alunos a consciência de que a sociedade se organiza a partir da noção de classes, as quais se dividem em dois polos: os detentores dos meios de produção e os da força de trabalho; os que exercem a dominação e os que são dominados. O professor, aqui, deve garantir a extração da consciência de classe nos alunos, diagnosticando os problemas sociais para que, assim, criem estratégias de superação da condição de dominação da classe subjugada. A outra concepção crítica de educação, de matriz fenomenológica, compreende um sujeito em essência, atravessado por relações construídas socialmente e que vão caracterizando as formas como ele se percebe no mundo em relação aos outros. O docente, nessa concepção de educação, é aquele que vai permitir que o sujeito aluno acesse essa essência, entendida como a subjetividade, e compreenda as estruturas que o constroem enquanto membro da cultura, a fim de emancipá-lo daquilo que o aprisiona enquanto sujeito em essência (SILVA, 1999).

Para cada um desses currículos de Educação, tem-se um currículo de Educação Física, cada qual com um objeto de saber específico, que mobiliza modos de intervenções pedagógicas diferentes e que orienta a formação dos professores de forma a atender às demandas do contexto de produção desses currículos (NEIRA; NUNES, 2009). Por conseguinte, produz discursos específicos da Educação Física e do docente de Educação Física. São elas: a desenvolvimentista; a psicomotora; a da saúde renovada; a crítico-superadora e a crítico-emancipatória. Essas formas de pensar e fazer a Educação Física formularam-se a partir da década de 1980. Anteriormente a isso, o objeto de estudo da área era a aptidão física e o esporte, os quais educavam corpos no que tange os aspectos fisiológicos e sociais, que produziram e ainda produzem discursos que atribuem aos professores de Educação Física o dever de educar por meio do esporte e de seus valores, melhorar a aptidão física dos alunos para que eles cresçam saudáveis e disciplinados (BRACHT, 1999).

Por impactarem os modos de atuação docente, torna-se importante realçar que cada uma dessas teorias é atravessada por racionalidades quanto à formação. A racionalidade técnica, herdeira do positivismo, por exemplo, produz discursos que enaltecem que o aprendizado na teoria é o suficiente para a ação laboral, pois a prática pedagógica deve ser resolvida de maneira objetiva. Por outro lado, ela sofre críticas que a tomam como uma atividade meramente instrumental por decorrer da aplicação de conhecimento sistemático, o que torna a prática pedagógica uma ação neutra, despolitizada, adaptável a qualquer circunstância e, geralmente, produzida por um especialista. Nessa perspectiva, cabe ao professor executar a tarefa e controlar o comportamento dos alunos. Destacamos, aqui, que ela é hegemônica na formação inicial docente da Educação Física, na qual prevalece um currículo normativo, que hierarquiza conhecimentos: ciência básica; ciência aplicada; habilidades técnicas e prática cotidiana.

Diante da crítica à racionalidade técnica, emerge a racionalidade prática-reflexiva (SCHÖN, 2000). Nessa, as situações cotidianas questionam a teoria, ressaltando que o conhecimento é oriundo da prática e necessita que o docente reflita sobre a sua ação. Nesse caso, ao professor é concebido outro modo de atuar, pois o mesmo deve ser autor da sua própria prática. Por outro lado, a crítica a essa racionalidade é a da supervalorização do saber prático, evidenciando excessivamente a importância do método em detrimento do conhecimento teórico, o que desvaloriza a formação acadêmica. Essa forma de pensar foi bem capturada pela racionalidade neoliberal, pois ela organiza os cursos de capacitação docente, geralmente promovidos por empresas especializadas, que apontam como pautas centrais o incentivo à criatividade e à inovação pedagógica. Na Educação Física, proliferaram livros e cursos com modelos de aulas prontas.

Influenciada pela obra de Paulo Freire, a literatura sobre a formação do professor prático-reflexivo migrou para uma racionalidade que leva em consideração os contextos escolares. Ganhou destaque a complexidade dos problemas que se colocam a cada escola, exigindo do docente uma capacidade de leitura crítica de cada realidade, a fim de interpretar esses dados e buscar soluções mais adequadas para cada contexto. Nesse processo, ao professor crítico-reflexivo exige-se um trabalho cooperativo, uma atitude de investigação na ação pela ação, valorizando a importância da formação pela pesquisa e o uso da pesquisa pelos docentes em regime de colaboração entre o professor e a universidade (ALARCÃO, 2001).

Além das racionalidades que pautam a formação docente, não podemos desconsiderar os discursos pedagógicos que modulam o seu fazer, tais como: a pedagogia das competências; a pedagogia de projetos de trabalho na escola e as pedagogias ativas. Essas recontextualizaram discursos do aprender a aprender do movimento da Escola Nova, conferindo à educação a função de formar para a cidadania pautada na lógica do mercado. Por aqui, temos o professor facilitador da aprendizagem e a individualização do plano de trabalho dos alunos como um instrumento para a autodireção deles mesmos. Todos esses discursos coadunam-se com a racionalidade neoliberal por conta de seus aspectos individualizantes; por limitar os problemas da educação aos aspectos psicológicos de cada um e por promover uma formação de modo que cada um sinta-se responsável pelas suas decisões. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, enaltecem a ação docente como potencial agente de transformação da sociedade, atribuindo-lhe um aspecto salvacionista (SILVA, 1998).

Recentemente, o discurso do professor prestador de serviços também foi incorporado e contribui para domar a docência. Na lógica cultura-empresa, o professor deve ser aquele que faz para além das suas funções, de forma que o trabalho que se dá no âmbito da vida pública invada a vida privada. Ao longo da formação dos professores, os mesmos acessam esses discursos e assumem uma (ou várias) posição de sujeito dada pela ordem discursiva neoliberal, o que constrói e transforma a forma como se conduzem enquanto docentes, as verdades que eles tomam para si sobre a docência e, especificamente, sobre o si professor.

4 COMPREENDER A DOCÊNCIA PARA ATUAR SOBRE ELA

Foucault (1986) argumenta que os discursos de verdade se manifestam a partir de um jogo que garante a hegemonia de uma produção discursiva sobre outra, isso se dá na relação saber/poder. Essa relação também implica a construção dos processos de subjetivação docente. Eles são compostos pelas práticas que assujeitam os professores a determinadas ordens discursivas, pelas estratégias de controle desses corpos a partir de determinados discursos e pela subjetividade, que representa a produção do(a) próprio professor acerca da construção de sua docência. A produção desses processos de subjetivação não é incorporada pelos sujeitos da docência de maneira pacífica, ao passo que, nesse momento, se chocam discursos sobre o ser professor, muitas vezes antagônicos. Uma professora entrevistada narra a seguinte sensação:

[...] é uma angústia né, são dias angustiantes, [...] você vive a contradição, no caso a contradição do lugar onde eu estou, a contradição do que eu gostaria de fazer. Então é angustiante [...] tem que ser mais realista, tem que saber o lugar onde eu estou e saber quais são as possibilidades, o que é possível de ser feito.

(docente 1).

A angústia é vivida a partir da produção de uma expectativa, gerada pela constituição de um discurso docente e assumido por ela, que, ao chegar à escola, não é correspondido. Afinal, ao adentrar nesse espaço, o professor vai se deparar com outros discursos sobre a docência, tanto os que circulam há tempos naquele ambiente como os que se produzem e se renovam a todo instante. A mesma docente nos faz compreender essa angústia produzida por um sistema de avaliação que afeta a subjetividade e regula o comportamento dos professores:

Você tem que fazer um trabalho bom e não pode desagradar aos pais e nem os alunos [...] eu fico pensando qual a minha função aqui [...], trabalhando muito você acaba se submetendo né, é onde mais está minha angústia, me submeter àquilo porque preciso daquilo para sobreviver.

(docente 1).

Fazer um bom trabalho pressupõe alguns parâmetros avaliativos que, para além de demonstrar que alguns objetivos foram atingidos, regula a forma como a docente conduz sua prática em âmbito pedagógico, moral, laboral. Ao acrescentar: “não pode desagradar aos pais”, tanto reforça a regulação que se dá por meio das práticas avaliativas como coloca a docente no lugar de prestadora de serviços, atendendo a organização neoliberal. Não é demais reforçar que o modelo vigente de tais práticas segue padrões de comparação de desempenho típicos do mundo econômico.

Para Foucault (2008b), o poder se inscreve no corpo. No caso do professor, por meio de discursos sobre uma docência ideal que circula nos meios de comunicação, nos cursos de formação continuada e em lugares do convívio pessoal, como a família e o círculo de amizades. Esses discursos assombram os professores nos dias de hoje, que estão sempre em busca de uma meta que nunca será atingida – se formos pensar nas características da sociedade em que vivemos: líquida, volátil, efêmera. Não basta lidar com as próprias angústias. O corpo docente também lida com as angústias e com a frustração de uma sociedade que deposita a origem dos seus “erros de percurso” – crises econômicas, degradação do ambiente, ataques ao estado de bem-estar social, entre tantos – nos próprios sujeitos, que ela mesma produziu. Ao questionar sua função nos espaços, percebemos que, por mais que ela não concorde com os encaminhamentos do trabalho, também não identifica o lugar da sua docência, o que faz com que seja mais uma vez (re)inventada pela maquinaria escolar a serviço da lógica neoliberal.

Ao perguntarmos para os professores de que forma eles cuidam da docência, duas são as formas pelas quais se manifestam as respostas. A primeira é da ordem do investimento pessoal:

[...] a minha docência, tenho cuidado fazendo bastante curso, gosto de fazer bastante curso.

(docente 1).

Eu procurei por exemplo voltar a estudar, eu estava fazendo pedagogia, mas larguei, achei o curso muito chato, daí resolvi tentar um mestrado, daí voltei a estudar, voltei a participar de grupo de estudo aqui na faculdade.

(docente 4).

A segunda, é da ordem de um cuidado com a saúde:

[...] cuidar da minha docência não diz respeito só aos meus estudos, mas minha saúde também, esse ano eu quero fazer yoga, eu quero ir de bicicleta para o trabalho.

(docente 3).

[...] ultimamente fiz até umas aulas de dança. Isso me faz ter mais confiança.

(docente 1).

Nas duas primeiras, o cuidar da docência é entendido como capacitação. O cuidar associado à realização de cursos de pós-graduação demonstra os discursos da docência capturados pela performatividade, que faz com que os sujeitos se autorregulem e invistam em si mesmos. Assim, os professores consomem informações e as reproduzem, mantendo-se na lógica da assimilação das marcas atribuídas a eles sobre o que é ser professor: um eterno aprendiz, fixando uma identidade docente. Nas duas últimas, o cuidar ultrapassa os momentos destinados à prática docente. Cuidar da saúde nos momentos fora do horário de trabalho faz parte do cuidar docente. Assim, envolver-se em práticas corporais ganha um sentido utilitarista, com finalidade no próprio trabalho, na conquista de algo que possa servir à prática docente (como no exemplo da professora que faz a dança para adquirir confiança, a qual é importante no seu trabalho como professora).

A docência é, em primeiro lugar, um trabalho, o que a torna alvo da conformação social (neoliberal). A vida pública dos indivíduos representada pelo trabalho passa a controlar a vida privada com o auxílio das instituições já citadas, que hoje estão a serviço do Estado e que, por sua vez, age sob a lógica do mercado, efetivando-se também como uma empresa (FOUCAULT, 2008b). Desse modo, o cuidado com a saúde mantém o sujeito produtivo, assim como a preocupação com o desempenho mantém o sujeito interessado em si mesmo, no seu desenvolvimento e, assim, o torna consumidor, um investidor de si, reforçando o pilar neoliberal da teoria do capital humano, o que, mais uma vez, captura discursos sobre a docência e marcam corpos docentes. Dardot e Laval (2016, p. 327) atentam que: “Não se trata mais de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, [...]; trata-se de ver nele o sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua atividade profissional”.

O trabalho é influenciado por questões muito maiores do que eu [...] acho que uma das grandes dificuldades da educação e do trabalho como docente é querer desfazer todos os nós sozinho. [...] Conseguir focar no dia a dia de boa convivência ajuda muito no meu trabalho docente.

(docente 2).

Mais uma vez, percebemos uma expectativa que ronda o trabalho docente com relação a esse desfazer nós – tentar resolver grandes problemas sociais por meio da escola, por meio de uma visão hegemônica e totalitária de mundo ideal. Docentes formados por teorias que partem desses pressupostos adquirem para si uma concepção de sujeito professor ideal, a qual ele deve buscar atingir durante a carreira docente por meio de suas práticas na escola e fora dela.

As teorias pedagógicas da Educação e da Educação Física constroem-se em cima do tripé da modernidade (NIETZSCHE, 2006)6: a dúvida (por quê?), a explicação (racional às dúvidas) e a totalidade (as concepções pedagógicas modernas partem do indivisível). Em específico, na teoria da Educação Física crítico-superadora7 assumem-se três dimensões do ensino, a diagnóstica – identificação daquilo que constrói a realidade –, a judicativa – explicação daquilo que foi diagnosticado e o julgamento das estratégias de ação – e a teleológica – que pressupõe uma meta a ser atingida por meio dessas ações, no caso desta vertente pedagógica voltada para a superação das condições de classe (SOARES et. al., 1992).

Essa construção da sociedade moderna produz também no sujeito docente uma responsabilidade para com a solução de problemas advindos de uma organização social e econômica capitalista. O que torna a atingir o professor ideal em mais uma meta difícil de ser alcançada, logo motivo de frustrações. Na narrativa citada anteriormente, o professor demonstra não só o incômodo sobre esse discurso docente – que talvez ele ainda não o tenha formulado – mas anuncia uma ação que o protege do mesmo, protege sua docência. Quando aponta sua tentativa em “focar um dia por vez”, produz um discurso sobre o ser da docência aberto às incertezas e assim exposto às experiências. Larrosa (1995), a partir de Foucault, argumenta que as experiências que os sujeitos têm de si mesmos, a forma como eles se enxerga e se narra, é o que os constituem de fato. E propõe: “A experiência de si, em suma, pode ser analisada em sua constituição histórica, em sua singularidade e em sua contingência, a partir de uma arqueologia das problematizações e de uma pedagogia das práticas de si” (LARROSA, 1995, p. 41). Esse sujeito que existe para si mesmo deve ser capaz de se perguntar como essa experiência de si foi produzida. Atuando sobre sua própria constituição docente a partir de um exercício de problematização do sujeito professor. Ainda assim, não é algo que surge do nada, é necessária a criação de estratégias, de tecnologias (FOUCAULT, 2014) que permitem que os indivíduos iniciem um processo de digestão das angústias que rondam o trabalho, assumindo, assim, posições que rompam com a lógica dominante no que tange às decisões pedagógicas do espaço escolar da Educação Física.

Tomado pelas leituras acerca da ascese dos gregos antigos, Foucault (2017) explica que a conquista das compreensões que compõem os processos de subjetivação advém de um cuidado de si. No caso, é o cuidado de si docente que permite que o mesmo se conheça, conheça o que compõe seu ser docente e, consequentemente, suas práticas. Esse processo é chamado pelo filósofo de práticas de si, correspondentes ao desenvolvimento de técnicas que permitam essa genealogia dos discursos que constroem os corpos docentes. Técnicas estas desenvolvidas pelos próprios sujeitos sem que haja uma regra específica para que esse movimento do cuidado de si exista. A proposta não é trazer para os dias de hoje as práticas gregas antigas, mas pensarmos formas de acessar os discursos que constituem os sujeitos.

Pensemos nas possíveis saídas para um cuidado de si docente e um conseguinte conhecer-se docente. Dialogando com Foucault, é necessário analisar as técnicas de poder que capturam os sujeitos da docência, estando atentos aos discursos produzidos e reproduzidos sobre os sujeitos professores. Cuidar desse si docente diante dessas questões seria experimentar técnicas que possibilitassem compreender o porquê desses professores dizerem o que dizem, fazerem o que fazem, entendendo que nenhuma forma de poder é intrinsecamente legítima, mas, sim, produto de construção. Também implica em compreender que os discursos que constituem cada docência são parte de um processo histórico e cultural determinado por condições de espaço e tempo, atendendo às demandas sociais específicas. Algumas técnicas que permitem esse cuidado são anunciadas pelos entrevistados:

Gosto de conversar bastante quando tem encontro, com os amigos na escola [...] porque sozinho você não dá aula.

(docente 1).

[...] me apoio em pessoas que compartilham mais ou menos do mesmo mundo que eu [...] minha companheira é da sociologia, então ela me traz para a realidade, compartilha do mesmo ponto de vista.

(docente 3).

[...] arte, eu gosto muito de cinema, teatro, música. São esses momentos que, para mim, funcionam como catarse, viver outro mundo de uma hora e meia, isso faz com que eu entenda que existem questões maiores.

(docente 2).

Não há uma prescrição de técnicas de si, de estratégias que permitam conhecer as forças que constituem os sujeitos nas diferentes ordens discursivas. Mas, ao passo que se entende os sujeitos enquanto produções, estes devem ser capazes de desenvolver estratégias que melhor se adéquam e que permitem uma genealogia mais profunda da constituição dos discursos sobre a docência. Não estamos dizendo, aqui, que esses professores entrevistados, de fato, compreendam as tramas que produzem o si docente de cada um por meio dessas práticas anunciadas por eles. Mas as pensamos como uma possível saída nesse exercício ascético do cuidado de si.

Larrosa (1995) chama a atenção para o caráter historicista da experiência de si. Sendo assim, faz-se necessário um exercício genealógico de compreender as forças que permitem a criação e a consolidação de um saber sobre um sujeito professor. Trata-se de uma história da subjetividade, sendo o sujeito o objeto de si mesmo.

Há um sujeito porque é possível traçar a genealogia das formas de produção dessa experiência. [...]. Na perspectiva de Foucault, a experiência de si não é um objeto independente que permaneceria imutável, através de suas diferentes representações, mas, antes, é a experiência de si a que constitui o sujeito, o eu enquanto si mesmo (soi, self). É essa a razão pela qual o sujeito mesmo tem uma história.

(LARROSA, 1995, p. 53).

O autor complementa que, para isso, se faz necessário também um estudo dos mecanismos que constituem o que é dado como sujeito, no caso, aqui, o professor. Quando os professores narram o si docente, permitem-se alguns apontamentos a partir do momento em que se percebem no lugar da fala e para quem se fala. Compartilhar isso com pessoas com pontos de vista semelhantes se torna importante, considerando que o processo de se conhecer também demonstra as inconsistências e as ambivalências produzidas pelos discursos que atravessam o corpo docente. Ao se descrever ao outro, esse conhecimento sobre si é sistematizado e as problematizações tornam-se possíveis. A crítica deve vir do lugar-comum, para que ela seja sentida, seja profunda. E o contato com a arte como forma de acesso a outras realidades deve abastecer o repertório dos sujeitos para essa compreensão das forças que constituem os discursos, sendo que a mesma mostra o plano da realidade como um plano construído, movente, assim como a verdade sobre o ser docente. Para isso, é necessário deixar-se afetar pelas coisas. Diante das relações diárias e repetitivas que se dão no cotidiano escolar, é comum que as coisas passem sem questionamentos e nos tornemos alheios a elas, não nos expondo a essas práticas de produção das experiências de si. O que pode indicar que a inserção em determinados jogos de verdade e a não abertura a compreendê-los estão limitando o alcance da constituição desse ser docente, da escola.

5 BRECHAS PARA ESCAPAR DA TRAMA

Os processos de constituição da subjetividade docente se organizam a partir de três elementos: o primeiro, referente à produção de uma verdade sobre a docência; o segundo, que considera as técnicas que permitem a circulação e a fixação de algumas dessas verdades em detrimento de outras e as formas de subjetividade, sendo esta a capacidade que o(a) docente em exercício tem de produzir sobre seu si professor (LARROSA, 1994). Como vimos ao longo do texto, há de se destacar que, por ser constituído como objeto de tipos de saberes e práticas normativas, que são produzidos historicamente, o sujeito docente não pode ser considerado a partir de um fundamento da verdade. Não se pode compreender a verdade sobre o ser professor fora do que são as disputas pela atribuição de significados e o esforço de manutenção de alguns, além do que os mesmos objetivam o governo das condutas ancorado em saberes que são específicos da docência em Educação Física.

As falas dos professores estudadas e expostas neste artigo nos permitem localizar a ordem discursiva na qual os docentes deste estudo estão inseridos. O que aqui se evidencia é a força do neoliberalismo na formação de uma subjetividade que: orienta a maneira de ser e atuar na escola; a produção do verdadeiro e do falso relativo tanto aos discursos pedagógicos como na validação das formas de ser docente; e, em contraposição, indica alguns dos efeitos que as amarras dessa arte neoliberal de governar a alma docente produz. Nesse sentido, como demonstrado, torna-se cada vez mais urgente a exploração da constituição da subjetividade dentro do que é o processo de subjetivação – uma atuação docente sobre a construção do si professor, a qual foge ao cuidado utilitarista para com a saúde ou ao cuidado que atende às demandas neoliberais, a qual tenciona tornar o sujeito cada vez mais competente e inseguro.

Pensamos, com este texto, dar alguns passos no sentindo de formular algo que contribua para a compreensão do contexto que forma este docente para atuação sobre as políticas que subjetivam a partir do neoliberalismo, para que, assim, esse sujeito possa produzir outras formas de orientar suas práticas e suas condutas na escola.

3A pesquisa recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa para a sua realização (CAAE:55920816.7.0000.5404).

4“[...] o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que se trata no caso de uma certa manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc... [...]É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 1986, p. 139).

5Em função da ausência do currículo pós-crítico nos enunciados proferidos pelos colaboradores da pesquisa, neste texto não nos ateremos a ele.

6Nietzsche em “O Crepúsculo dos Ídolos” cita a construção da modernidade a partir da tríade socrática representada pelo sentido/ origem, pela moral e pela razão. Segundo o autor, esses três pilares se modulam sobre a construção da dúvida, da explicação e da totalidade como uma estratégia de preservação dessa sociedade, atribuindo-lhe a falsa ilusão das certezas sobre sua própria existência e sobre a existência de seus sujeitos.

7O exemplo direcionado a esta perspectiva da Educação Física se dá diante do fato de que todos os entrevistados afirmam assumir tal posicionamento em suas práticas pedagógicas, em que pese elas seguirem outros caminhos. Discursos que reforçam a necessidade do consumo de cursos de capacitação.

Agradecimentos

Agradecemos à FAPESP pelo auxílio que viabilizou este estudo.

Revisão gramatical realizada por: Luzimar Goulart Gouvêa

E-mail: luzimarg@uol.com.br

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Recebido: 06 de Março de 2020; Aceito: 06 de Janeiro de 2021

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