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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.1 Campinas ene./apr 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i1.8665214 

Entrevista

A EDUCAÇÃO NA ERA DA INTERNET: ENTREVISTA COM MICHEL MAFFESOLI1

EDUCATION IN THE INTERNET AGE: INTERVIEW WITH MICHEL MAFFESOLI

LA EDUCACIÓN EN LA ERA DE INTERNET: ENTREVISTA A MICHEL MAFFESOLI

Fabio Lopes Alves2 

Eduardo Portanova Barros3 

Claudia Barcelos de Moura Abreu4 

Tania Maria Rechia Schroeder5 

2Doutor em Ciências Sociais - Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Porto Alegre, RS - Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel, PR - Brasil. E-mail: fabiobidu@hotmail.com

3Pós-doutorando PNPD/CAPES junto ao PPG de Sociedade, Cultura e Fronteiras - Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Foz do Iguaçu, PR - Brasil. Jornalista, Professor, Tradutor e Pesquisador. E-mail: eduardoportanova@hotmail.com

4Doutora em Educação - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC /SP). Docente do departamento de Educação e do PPG em Educação - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). São Paulo, SP - Brasil. E-mail: claudia.abreu@unifesp.br

5Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Docente do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, PR - Brasil. E-mail: tania.rechia@hotmail.com


RESUMO

Michel Maffesoli, nascido em 14 de novembro de 1944 em Graissessac, na França, é um sociólogo apaixonado pelo Brasil e vem, com frequência, para debates que envolvem o atual e o cotidiano em um tempo que ele compreende como pós-moderno. Aluno de Gilbert Durand, assumiu a cadeira de Émile Durkheim na Sorbonne (Université de Paris-Descartes) em 1981, onde permaneceu até setembro de 2014. Atualmente, é professor emérito e membro honorário do Instituto Universitário da França ad vitam. Considera-se um pensador da pós- modernidade ou da contemporaneidade que procura evidenciar as mutações de fundo (a raiz da vida em conjunto), pois, para ele, a crise atual não é apenas econômica, mas “societal”. Nesta entrevista, o diálogo com Maffesoli se deu a partir de quatro eixos: 1) formação acadêmica; 2) compreensão do fenômeno educacional na contemporaneidade; 3) pesquisas realizadas; e 4) reflexões de aspectos políticos na contemporaneidade. A entrevista procurou evidenciar como o pensador francês trata das mudanças que a internet trouxe para o campo da educação e, em especial, para a relação professor-aluno. Neste diálogo, sobrelevaram-se, igualmente, os autores que mais contribuíram com sua formação, assim como a relação que Maffesoli estabeleceu com o pensamento de Karl Marx, Max Weber, entre outros, e a compreensão sobre o ambiente universitário.

PALAVRAS-CHAVE Michel Maffesoli; Educação contemporânea; desafios educacionais; tribos urbanas; Sociologia da Educação

ABSTRACT

Michel Maffesoli, born on November 14, 1944 in Graissessac, France, is a sociologist in love with Brazil and frequently comes to debate what involves the actual and the quotidian in a time he understands as post-modern. A student of Gilbert Durand, he took up the chair of Émile Durkheim at the Sorbonne (Université de Paris- Descartes) in 1981, where he remained until September 2014. He is currently professor emeritus and honorary member of the French University Institute ad vitam. He considers himself as a thinker of post-modernity or contemporaneity who seeks to highlight the fundamental changes (the root of life together), that´s because, for him, the current crisis is not just economic, but “societal”. In this interview, the dialogue with Maffesoli was based on four axes: 1) academic training; 2) understanding of the educational phenomenon in contemporary times; 3) research carried out; and 4) reflections on contemporary political aspects. The interview sought to show how the French thinker deals with the changes that the internet has brought to the field of education and, in particular, to the teacher-student relationship. In this dialogue, the authors who contributed the most to his education also appears as well as the relationship that Maffesoli established with the thought of Karl Marx, Max Weber, among others, and the understanding about the university environment.

KEY WORDS Michel Maffesoli; Contemporary education; educational challenges; urban tribes; Sociology of Education

RESUMEN

Michel Maffesoli, né le 14 novembre 1944 à Graissessac, France, est un sociologue amoureux du Brésil et vient fréquemment aux débats qui impliquent l`actualité et le quotidien à une époque qu`il considère comme post- moderne. Elève de Gilbert Durand, il a pris la chaire d`Émile Durkheim à la Sorbonne (Université de Paris- Descartes) en 1981 où il est resté jusqu`en septembre 2014. Actuellement, il est professeur émérite et membre honoraire de l`Institut Universitaire de France ad vitam. Il est considéré comme un penseur de la post-modernité ou de la contemporanéité qui cherche à mettre en lumière les changements fondamentaux (la racine du vivre ensemble), car, pour lui, la crise actuelle n`est pas seulement économique, mais "sociétale". Dans cet entretien, le dialogue avec Maffesoli s`articulait autour de quatre axes: 1) la formation académique; 2) compréhension du phénomène éducatif à l`époque contemporaine; 3) les recherches effectuées; et 4) réflexions sur les aspects politiques contemporains. L`entretien visait à montrer comment le penseur français appréhende les changements qu`Internet a apportés au domaine de l`éducation et, en particulier, à la relation enseignant-élève. Dans ce dialogue, les auteurs qui ont le plus contribué à sa formation se sont également démarqués, ainsi que le rapport que Maffesoli a établi avec la pensée de Karl Marx, Max Weber, entre autres, et la compréhension du milieu universitaire..

PALABRAS CLAVES Michel Maffesoli; Educación contemporánea; desafíos educativos; tribus urbanas; Sociología de la educación

1 APRESENTAÇÃO

O sociólogo francês Michel Maffesoli, autor que trata, em suas pesquisas, de um imaginário cotidiano, por influência, principalmente, de seu orientador, o falecido antropólogo e mitólogo Gilbert Durand (1921-2012), também francês, fez, para aprofundamento dessa temática de uma Sociologia do Imaginário, doutorados em Sociologia e em Letras na Universidade de Grenoble em 1973 e 1978, respectivamente.

Essa formação eclética, pode-se dizer, formou o que poderíamos chamar de espinha dorsal (ou o centro teórico) de suas ideias. Ou abriu o caminho para reflexões em torno de uma – se não for exagero - Fenomenologia do Cotidiano, na qual justifica sua pesquisa. Posteriormente, assume a cadeira de Émile Durkheim na Sorbonne (Université de Paris- Descartes) em 1981, onde permaneceu até setembro de 2014.

Atualmente, é professor emérito e membro honorário do Instituto Universitário da França ad vitam. De acordo com as suas próprias palavras, oficialmente se apresenta como sociólogo, muito embora não aprecie “[...] ser catalogado como tal” ou fechado dentro de uma disciplina (MAFFESOLI; FISCHER, 2016, p. 13).

Logo, é a partir do imaginário cotidiano, incluindo temas relacionados à Educação, como veremos a seguir, que Maffesoli analisa um termo recorrente na sua obra – termo esse ao qual sempre se agarra -, que é o pós-moderno, buscando, aí, encontrar a lógica de um estar-junto em toda sua radicalidade - no sentido de um enraizamento do tipo dinâmico -, sem pré-julgamentos ou de um “dever-ser”. Em razão de seus fortes argumentos, embasados em múltiplas referências aos campos da sociologia, filosofia, antropologia, mitologia, dentre outros, Maffesoli é considerado, hoje, um importante intelectual que se dedica à reflexão da atualidade e do cotidiano, incluindo o tema da Educação.

PARTE I – FORMAÇÃO ACADÊMICA

FLA: Quais foram os principais pensadores que mais contribuíram para sua a formação e de que maneira isso foi ocorrendo?

Michel Maffesoli (MM):O nome que mais me marcou, quando comecei e era bastante jovem, em 1967, foi o de Heidegger. Isso organizou meu pensamento em torno da questão técnica, em particular, e, por isso, fiz, em Strasbourg, minha primeira tese, com um grande sociólogo que se chama Julien Freund (1921-1993) e o filósofo Lucien Braun sobre “A técnica em Marx e Heidegger” (1970). Tenho, como diria, uma boa formação marxista, mas prefiro dizer “marxiana”, porque não se trata de uma formação militante. Trata-se, apenas, de uma reflexão sobre Marx, pensador do século XIX, e Heidegger, pensador do século XX. É isso. Estão aí os primeiros autores que me marcaram na minha formação inicial. Depois, a partir de 1970, encontrei Gilbert Durand (1921-2012), e a partir desse contato, emerge a reflexão sobre imaginário, uma vez que eu era, creio, seu discípulo preferido. Fui influenciado, portanto, por ele e por seu trabalho, especificamente em “As estruturas antropológicas do imaginário” (publicado, originalmente, em 1960, na França, com diversas edições já traduzidas no Brasil. Ver Referências). Principalmente, e aqui vale ressaltar, porque Durand escreveu sobre a importância do “imaginal”, expressão cunhada por ele e Henry Corbin (1903- 1978), na vida em sociedade. Resumindo: um primeiro polo de formação “marxiana” (prefiro “marxiana” a “marxista”, veja bem, por se tratar antes de uma perspectiva teórica do que política) e um segundo polo, que, para mim, é o mais importante, o de Gilbert Durand.

CBMA: Em que momento de sua carreira o senhor se deparou com as leituras de Karl Marx e qual é sua avaliação sobre a forma de ele analisar a sociedade?

MM: Comecei a ler Karl Marx nos anos de 1965/66. Considerei um trabalho importante, principalmente porque enfatizava tanto as condições materiais que regiam a sociedade quanto suas consequências culturais. Também destacaria seu enraizamento no trabalho filosófico de Hegel, que me pareceu da maior importância e que, da mesma forma que a produção intelectual de Feuerbach (1804-1872), era uma boa alavanca metodológica para entender o que era o apogeu de modernidade no século XIX. O trabalho Marx não me parece ter qualquer utilidade hoje em dia. De fato, como disse, trata-se de um notável analista do século XIX, mas, totalmente, ultrapassado para apreender as evoluções ocorridas no século XX, sobretudo no que diz respeito à pós-modernidade, em gestação no século XXI.

EPB: Quais foram os objetos de estudos de seu mestrado e doutorado, respectivamente?

MM: Minha dissertação de mestrado tinha por título La technique chez K. Marx et M. Heidegger (Trad. “A técnica em K. Marx e Heidegger”). No que concerne ao doutorado, minha tese se chamou Logique de la domination (Trad. “A lógica da dominação”), que foi meu primeiro livro, publicado em 1976, pela PUF (Presses Universitaires de France). No Brasil, o livro homônimo apareceu em 1978, publicado pela Zahar, do Rio de Janeiro. Minha outra tese, defendida em 1978, foi publicada em duas partes, La violence totalitaire (Trad. “A violência totalitária”), em 1979, reeditada pela Sulina, de Porto Alegre, em 2001, e La conquête du présent (Trad. “A conquista do presente”), também em 1979, publicada no Brasil em 1984, pela Rocco, do Rio de Janeiro, com o mesmo título, “A conquista do presente”, e reeditada pela Argos, em 2001. Na França, fazíamos duas teses: a de Terceiro Ciclo e a de Estado.

TMRS: Como se deu seu ingresso na docência?

MM: Comecei a lecionar em 1972, na Universidade de Grenoble, no Departamento de Urbanização. Tratava-se de um curso de estudos voltados para o doutoramento. Durante os anos que se seguiram, fui coordenador dos cursos no Departamento de Sociologia em Grenoble. Em 1978, fui nomeado maître-assistant (ou maître de conférence, atualmente, o equivalente a Professor Associado, no Brasil) na Universidade de Strasbourg, onde dirigi o Instituto de Polemologia, fundado por Julien Freund, que tinha sido, junto com o professor Lucien Braun, meu orientador de doutorado. Em setembro de 1981, fui nomeado, então, professor de Sociologia na Sorbonne (Université de Paris V) na cadeira de Émile Durkheim. Eu era, naquela época, o mais jovem Professor Titular na França.

PARTE II – EDUCAÇÃO

FLA: Quais são os desafios da educação após o advento da internet na atualidade?

MM: O desafio é pensar no termo “iniciação”. Quer dizer: como podemos explicar isso? Ou seja, não podemos mais ter uma simples concepção de educação vertical, aquilo que foi o Professor (com “p” maiúsculo); aquilo que eu mesmo fui (risos). O conhecimento não pode ser imposto. É preciso, simplesmente, saber antes acompanhar do que impor. Então, do ponto de vista da educação habitual, em termos de estrutura educativa, digamos, o importante era a ideia do poder, no sentido de impor alguma coisa. Porém, o que me parece prevalecer, agora, é a ideia de autoridade, em latim autoritas, aquilo que faz crescer. O papel do professor, portanto, é o de acompanhar, com autoridade, mas não com poder. Eu faço uma distinção entre poder e autoridade. Podemos sintetizar o que eu disse da seguinte maneira: enquanto o poder impõe, a autoridade faz crescer. É essa a diferença fundamental entre os dois termos. Eu creio que aquilo que são as redes sociais, Wikipedia, enfim, todas essas técnicas de vanguarda, elas não mais suportam o poder imposto de cima para baixo do Professor ou dos pais (tanto o do Pai quanto o da Mãe) como poderes instituídos, mas, ao contrário, suscitam uma dimensão de acompanhamento com autoridade. Eu faço uma distinção entre o poder em termos de educação moderna e a autoridade daquilo que chamei de “iniciação pós-moderna”.

CBMA: Seguindo no campo educacional, como se daria então, essa diferença entre a Lei do Pai e a Lei dos Irmãos?

MM: Lembro que, nos últimos anos, em várias conferências e em vários artigos, mostrei que a própria palavra educação é específica da modernidade, enquanto a de “iniciação” é mais adequada para entender a era pós-moderna em gestação. De fato, como Jacques Lacan coloca, na verdade, a educação é baseada na Lei do Pai, um conhecimento de cima para baixo, verticalizado. Ao passo que a “iniciação” coloca em jogo o que propus chamar de Lei dos Irmãos, cuja dimensão é horizontal. Desenvolvi essa ideia, em particular, no meu livro Le trésor caché, de 2015 (Trad. “O tesouro escondido”), traduzido no Brasil pela editora porto-alegrense Sulina, em 2019. Saliento que ele é dedicado a Gilbert Durand (Magistri amico defuncto, discipulus amicus).

EPB: Como o senhor avalia a atuação dos influencers digitais na educação do futuro?

MM: Nesta “iniciação” pós-moderna, e dada a dimensão da horizontalidade à qual me referi, é bastante óbvio que os “influenciadores digitais” desempenham um papel fundamental. Em particular, essa influência pode ser vista tanto em redes sociais, fóruns de discussão, blogs quanto na produção enciclopédica da Wikipedia.

TMRS: Quais seriam, portanto, dentro desse cenário tecnológico, os desafios de uma Sociologia da Educação?

MM: Se a Sociologia leva mesmo a sério o surgimento desse processo “iniciático”, ela só poderá desempenhar um papel importante acompanhando as discussões das quais acabei de falar anteriormente. É preciso esclarecer que, desde Aristóteles, a característica da pesquisa intelectual que se opõe à doxa (opinião) é, precisamente, saber “fazer perguntas”. Quando a sociologia abandonar os sistemas desenvolvidos nos séculos XVIII e XIX será capaz de acompanhar o ritmo da “iniciação” pós-moderna.

FLA: Também em termos de desafios, como pensar a violência no ambiente escolar?

MM: Desde minha tese, que se chamou La violence totalitaire (Trad. “A violência totalitária”), de 1979, publicada no Brasil pela Sulina, de Porto Alegre, em 2001, eu havia alertado sobre o perigo de uma assepsia da vida social. Trata-se daquilo que chamamos na França de “ideologia do risco zero”. De fato, quando uma sociedade não sabe como ritualizar a violência, essa mesma violência assume formas perversas e, totalmente, incontroláveis. Certamente, o mesmo vale para a escola. Ela precisa encontrar formas de lidar, ritualisticamente, digamos, com aquela violência, a fim de evitar sua forma perversa, que, cada vez mais, vem ocorrendo nesses estabelecimentos de ensino.

CBMA: É possível afirmar que quando a comunicação se rompe, a violência torna-se, uma forma de comunicação? Como se dá esse processo?

MM: Isso acontece, justamente, quando não somos capazes de promover as múltiplas formas de comunicação, intercâmbio e compartilhamento. Assim, a violência assume as formas que acabei de indicar. O desenvolvimento de esportes, festas, carnavais em particular, a representação de papéis, tudo isso pode ser uma maneira de evitar uma violência perversa. Em suma, é preciso restaurar a comunicação, o que, de uma maneira tradicional, podemos chamar de ordem simbólica. Lembro que nessa ordem simbólica, de essência “iniciática”, pode haver sofrimento, sim, como nos ensinaram as sociedades primitivas, mas antes de caráter simbólico, o que nos inspira a evitar os muitos comportamentos perversos que tendem a dominar a modernidade. Os assassinatos em massa em faculdades norte-americanas são, a esse respeito, ilustrativos.

PARTE III – PESQUISAS

EPB: O senhor tem afirmado que o Brasil é um laboratório “natural” da pós-modernidade. Fale-nos mais sobre essa constatação.

MM: Sou um apaixonado pelo Brasil, mas não um especialista. Eu havia dito, de fato, que o Brasil poderia ser o “laboratório da pós-modernidade”, assim como a Europa havia sido o “laboratório da modernidade”. Mas por que motivo? Isso se dá pelo fato de que um dos elementos que está mudando contemporaneamente - trata-se daquilo que chamei de tribalismo - é a importância da comunidade: o “nous” (Trad. “nós”) e não o “je” (Trad. “eu”). Parece-me que, no Brasil, existe essa concepção de comunidade, ao passo que a França e a Europa têm uma concepção de individualismo, diria eu. Esse é o meu primeiro ponto. Penso que, quando debato com meus vários amigos brasileiros, me dou conta de que existe, sim, esse sentido de comunidade, de tribo. Meu segundo ponto é o seguinte:enquanto a dimensão moderna europeia tinha uma dimensão racionalista, existe no Brasil, por outro lado, essa importância dada ao caráter emocional das coisas, como as emoções compartilhadas, as comunhões, os pactos etc. E, finalmente, meu terceiro ponto trata do fato de que existe no Brasil essa espécie de acentuação sobre a importância do presente, em oposição ao que foi a dominação moderna europeia. Foi nesse sentido que me referi ao Brasil daquela forma, mas, que fique claro, não sou especialista em Brasil. Não passo de um amador em assuntos relacionados ao Brasil (risos). E sou um amador no sentido forte do termo: é aquele que ama. Mas perdeu-se a etimologia da palavra. Quando os historiadores falavam de amador no século XIX, queriam dizer “amar esta ou aquela civilização”. Penso, sobretudo, que devemos retornar às etimologias e, também, alguma coisa que nos ajude a pensar, como fazia Heidegger.

TMRS: Gilles Lipovetsky defende a tese que já saímos da pós-modernidade e estamos na hipermodernidade. E vários outros não chegam a um consenso. Como o senhor vê isso? Quais seriam, a partir desse ponto, as principais diferenças entre seus estudos e os de Lipovetsky, autor que, comumente, faz essa análise?

MM: Não concordo, de jeito nenhum, com ele. Discordo, com efeito, dessas noções de hipermodernidade, modernidade tardia, segunda modernidade etc.

FLA: Modernidade líquida?

MM: De fato, há uma grande quantidade desses termos. Digo isso porque alguns desses intelectuais que se utilizam dessas expressões têm, na verdade, medo de deixar a modernidade. Por isso, dirão segunda modernidade etc. É preciso reconhecer, simplesmente, que entramos em outra época, a época pós-moderna, e que não podemos guardar os móveis enquanto a casa cai (como se diz na França). E nem medo de dizer, com todas as letras, pós-modernidade. Lembro que a palavra modernidade apareceu em 1848, sob a pluma de Baudelaire. Por isso é “pós”, porque vem depois, com outros valores que não só os valores modernos. Antes de utilizarmos o termo modernidade, usávamos pós-medievalidade (2013). Depois se passou para outra coisa, e a pós-medievalidade ficou modernidade. Eu digo, atualmente, pós-modernidade (porque não sabemos exatamente o nome daquilo que está vindo) em relação a isso que está nascendo.

CBMA: E isso que está nascendo impacta no funcionamento da avaliação dos cursos de mestrado e doutorado na França?

MM: Mesmo não conhecendo esse tema em profundidade, admito, posso apenas observar que, infelizmente, sob a influência das ciências duras, estamos nos afastando de um processo do que chamei de “iniciação”, na medida em que, com base em uma “objetividade” e uma “neutralidade”, o orientador da tese não mais faz parte do júri de banca dos seus respectivos alunos.

EPB: Falando em objetividade, tanto na França, como aqui no Brasil, uma avaliação e uma cobrança das revistas acadêmicas por produtividade e ranqueamentos podem ser consideradas uma tendência?

MM: A França e Brasil não fogem, como de resto em todo o mundo, dessa tendência mais quantitativa do que qualitativa nas suas avaliações. Do meu ponto de vista, esse tipo de avaliação é, essencialmente, de viés econômico e não deve perdurar. Que fique claro que as novas gerações não se reconhecem e não irão se reconhecer, e isso cada vez mais, na prevalência do quantitativo. O mesmo se verifica em empresas que, pelo contrário, estão, cada vez mais, interessadas em pesquisas como a Sociologia Compreensiva.

TMRS: No âmbito de suas pesquisas de uma Sociologia do Cotidiano, portanto, como podemos compreender a pós-modernidade?

MM: É difícil para mim, em poucas palavras, indicar as características essenciais da pós-modernidade, isso porque as desenvolvo em meus diversos livros. Um bom resumo desse termo, porém, coloco no meu livro intitulado Le temps revient: Formes elémentaires de la postmodernité (Trad. “O tempo retorna. Formas elementares da pós-modernidade”), de 2010, que, no Brasil, foi traduzido pela Forense (Rio de Janeiro, 2012). Sempre resumi a pós-modernidade, na verdade, com esta fórmula: “Sinergia do arcaísmo e do desenvolvimento tecnológico, as tribos urbanas e a Internet”.

FLA: Também o imaginário é termo comum em suas pesquisas. Qual é o entendimento que o senhor tem a respeito dele?

MM: Do mesmo modo, o tema do imaginário - do qual meu mestre e amigo Gilbert Durand foi o iniciador - é encontrado de maneira recorrente em todos os meus livros. Em suma, podemos dizer que esse tema nos conscientiza do espírito do tempo e das mudanças que ele sofre, mudanças essas decisivas para a compreensão do laço social. Resume-se bem o imaginário pela expressão “imperativo atmosférico”.

CBMA: Em outro livro, “O conformismo dos intelectuais” (2015), o senhor utiliza a noção de “estepe teórico”. O que quis dizer com isso?

MM: Lembro que este livro foi escrito em colaboração com Hélène Strohl, uma importante autoridade pública francesa, inspetora-geral honorária de Relações Sociais e que, além disso, também é formada pela Escola Nacional de Administração (ENA), de grande prestígio no país. Destacamos, nesse livro, que os grandes sistemas teóricos desenvolvidos nos séculos XVII a XIX não são mais relevantes para o nosso tempo. É nesse sentido que as elites contemporâneas como jornalistas, acadêmicos, políticos são protagonistas de um deserto teórico, um modo de pensar totalmente desconectado do cotidiano, do povo. E é, justamente, por causa desse “deserto teórico” que estamos testemunhando essas numerosas revoltas populares que estão acontecendo em diversos países. Tanto o Brasil quanto a França não se reconhecem mais no discurso oficial da intelligentsia, o que explica o surgimento dos vários demagogos que conhecemos.

EPB: Em se tratando de “discurso oficial”, dito acima, como o avalia as reflexões como as de Pierre Bourdieu, sociólogo respeitado na França?

MM: Não tenho por hábito criticar meus colegas franceses. Mas, como já escrevi antes, especialmente em meus últimos livros, considero que o trabalho de Pierre Bourdieu é totalmente anedótico e não nos permite pensar em profundidade as grandes mutações sociais em andamento. Sem querer desenvolvê-lo, pode-se salientar que as reflexões de Pierre Bourdieu são sintomáticas de uma ideologia “marxizante”, desatualizada para a compreensão do espírito do tempo pós-moderno. Cabe a cada um(a) verificar essa assertiva.

PARTE IV – POLÍTICA

TMRS: Max Weber já apontou para os perigos quando não há separação entre a militância e a docência. Como o senhor analisa, a partir disso, a militância protagonizada por docentes, tanto da direita quanto da esquerda (se essa divisão ainda se coloca), no ambiente universitário?

MM: É bom deixar claro, desde já, que sou weberiano. Meu supervisor de tese, Julien Freund, foi o tradutor de Weber na França. Sempre me inspirei em um dos livros de Weber, que se chama Le savant et le politique6. Creio que a atuação no meio universitário deva ser teórica, mas não política. Na França, vários intelectuais costumam assinar petições disto ou daquilo, mas eu, particularmente, jamais o fiz. Creio que seja necessário manter essa diferença weberiana entre o cientista e o político.

FLA: Vários pesquisadores, no Brasil, associam pós-modernidade tanto ao neoliberalismo quanto ao reacionarismo, por vezes, numa tentativa de desqualificação das pesquisas sobre pós-modernidade.

MM: Discordo dessa relação mencionada, porque se trata de uma interpretação em termos econômicos, mas, ao contrário, o que vemos é uma mutação de fundo, que seria caracterizada pela palavra “societal”. E, quando verificamos essa mutação “societal”, não se trata de defender o liberalismo, o capitalismo ou o socialismo. Trata-se, no meu entender, de uma concepção demasiado política ou mesmo econômica. Estou ciente de que é uma maneira de desqualificar a pós-modernidade, mas eu, particularmente, não penso que seja assim.

1Entrevista concedida aos autores por Michel Maffesoli, antes de sua palestra na ACIC - Associação Comercial e Industrial de Cascavel - PR, no dia 26 de setembro de 2019. Na ocasião, ele foi convidado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável para participar do Fórum “A educação do futuro, estamos no caminho certo? ”. O tema da palestra foi “Da educação moderna à iniciação pós-moderna”.

Revisão gramatical realizada por: Valéria Cristina Pereira Silva

E-mail: vpcsilva@hotmail.com

Revisão de tradução do francês: Eduardo Portanova Barros

E-mail:eduardoportanova@hotmail.com

6Trata-se, na verdade, de livro das duas famosas conferências do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) sobre a ciência e a política como vocações, em 1917 e 1919, respectivamente. Em francês, optou-se pelo uso do artigo definido masculino “o”. A tradução literal seria, portanto, “O sábio e o político”.

REFERÊNCIAS

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WEBER, Max. Le savant et le politique. Paris : Union Génerale d´Éditions, 1963. [ Links ]

Recebido: 06 de Abril de 2021; Aceito: 23 de Agosto de 2021

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