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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.2 Campinas mayo 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i2.8659894 

Artigos

DELICADEZAS E (RE)-EXISTÊNCIAS NA TERRA DA MAKUNAIMA: PROPOSIÇÕES EDUCATIVAS

DELICACIES AND RE-EXISTENCES IN THE LAND OF MAKUNAIMA: EDUCATIONAL PROPOSITIONS

DELICADEZAS Y RE-EXISTENCIAS EN LA TIERRA DE MAKUNAIMA: PROPUESTAS EDUCATIVAS

Ivete Souza da Silva1 

1Doutorado em Educação - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, RS - Brasil. Pós-Doutorado - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC - Brasil. Professora Adjunta - Universidade Federal de Roraima (UFRR). Boa Vista, RR - Brasil. E-mail: ivete_luge@outlook.com


RESUMO

Os escritos aqui apresentados são um recorte da pesquisa de Estágio Pós-Doutoral que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/UFSC) na linha Educação e Comunicação. Tem como proposta criar proposições educativas que abordem as questões interculturais a partir da narrativa dos moradores das cidades de Boa Vista - RR e Florianópolis - SC. A construção destas proposições inicia por meio do bordado com a criação de objetos artísticos carregados de simbologias representativas dos saberes locais, disparados por minhas memórias a partir da experiência vivida nesses dois lugares. Esses objetos vão ao encontro dos moradores de ambas as cidades com a intenção de provocar diálogos interculturais a partir da escuta das narrativas de seus moradores. Para tecer os fios desse diálogo toma-se como princípio metodológico a ideia de ambientação trazida por Hélio Oiticica em seu Programa Ambiental. Nesta oportunidade compartilharei reflexões a partir da proposição educativa intitulada 'Delicadezas e (Re)-existência', realizada em Boa Vista-RR na Galeria de Arte Indígena Contemporânea Jaider Esbell. Levar a escola/universidade para dentro de outros lugares e fazer de outros lugares escola/universidade é a provocação deixada pelas proposições educativas que venho pensando. 'Delicadezas e (Re)-existência na Terra de Makunaima' foi um pouco disso, um espaço de aprendizagem rico de possibilidades, provocador da construção de diálogos interculturais.

PALAVRAS-CHAVE Educação; Intercultura; Proposições; Arte-Educação

ABSTRACT

The writings submitted here are an excerpt from a research of my Post-Doctorate Stage in the Graduate Program in Education at the Federal University of Santa Catarina (PPGE/UFSC), Line of Research: Education and Communication. The main aim is to make educational proposals to broach intercultural issues from a narrative of residents in the Brazilian cities of Boa Vista-RR and Florianópolis-SC. The proposition planning starts from an embroidery by creating artistic objects which symbols are carried to depict local knowledge, setting off my own memories from living experience in these two places. These objects meet the residents from both cities with the aim of triggering intercultural dialogues based on listening to the resident narratives. In order to weave these dialogue threads, the idea brought by Hélio Oiticica in his Environmental Program is taken as a methodological principle. On occasion, I will share reflections based on an educational proposal named 'Delicacies and Resis(Exi)tance', held in Boa Vista-RR at the Jaider Esbell Contemporary Indigenous Art Gallery. Taking school/university into other places and making other places school/university is an incitement left by educational propositions that I have been thinking about. 'Delicacies and Resis(Exi)tance in the Land of Macunaima' was a little bit of that, a learning space rich in possibilities, giving rise to the structure of intercultural dialogues.

KEYWORDS Education; Intercultural; Proposals; Art Education

RESUMEN

Los escritos presentados aquí son un extracto de la investigación de pasantías posdoctorales que desarrollo en el Programa de Posgrado en Educación de la Universidad Federal de Santa Catarina (PPGE / UFSC) en la línea de Educación y Comunicación. Su propuesta es crear propuestas educativas que aborden cuestiones interculturales a partir de la narrativa de los residentes de las ciudades de Boa Vista - RR y Florianópolis - SC. La construcción de estas proposiciones comienza a través del bordado con la creación de objetos artísticos cargados con símbolos que representan el conocimiento local, provocados por mis recuerdos de la experiencia vivida en estos dos lugares. Estos objetos se encuentran con los residentes de ambas ciudades con la intención de provocar diálogos interculturales basados en escuchar las narraciones de sus residentes. Para tejer los hilos de este diálogo, la idea del escenario que trajo Hélio Oiticica en su Programa Ambiental se toma como un principio metodológico. En esta oportunidad compartiré reflexiones basadas en la propuesta educativa titulada 'Delicadezas e Re-existencia', celebrada en Boa Vista-RR en la Galería de Arte Indígena Contemporáneo Jaider Esbell. Llevar la escuela / universidad a otros lugares y hacer que otros lugares sean escuela / universidad es la provocación que dejan las propuestas educativas en las que he estado pensando. 'Delicias y Re-existencia en la Tierra de Makunaima' fue un poco de eso, un espacio de aprendizaje rico en posibilidades, que provocó la construcción de diálogos interculturales.

PALAVRAS-CLAVE Educación; Intercultura; Proposiciones; Educación artística

INTRODUÇÃO: PROPOSIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

Antes de iniciar a conversa sobre as 'Delicadezas e (Re)-Existências' realizadas na Terra de Makunaima, entendo ser importante situar o(a) leitor(a) no texto. O que vou trazer aqui é um recorte da pesquisa de Estágio Pós-Doutoral desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/UFSC), na linha de Educação e Comunicação e supervisionada pelo Prof. Dr. Leandro Belinaso Guimarães. A pesquisa teve como objetivo criar proposições educativas abordando as questões interculturais a partir da narrativa dos moradores das cidades de Boa Vista - RR e Florianópolis – SC e neste artigo discutirei de forma específica sobre a proposição 'Delicadezas e (Re)-Existências' desenvolvida na cidade de Boa Vista, estado de Roraima, na Galeria de Arte Indígena Contemporânea Jaider Esbell. Importante salientar que uma outra versão da proposição, com nome idêntico, foi realizada na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina, que deverá ser apresentada em outro artigo oportunamente, a fim de que cada uma delas tenha seu devido protagonismo.2

Criar proposições educativas que promovam o diálogo intercultural têm sido o desafio e o foco que nortearam o Estágio Pós-Doutoral. A caracterização do conceito de proposições educativas, teve início em 2013, por conta de doutoramento, quando ao investigar as contribuições antropofágicas de Paulo Freire, Augusto Boal e Hélio Oiticica para a educação e a formação de professores3, fui desafiada para que enquanto pesquisadora, mergulhasse na “própria radicalidade” do pensamento que vinha apresentando e procurasse vivenciar corporalmente os efeitos teóricos propostos pelos pensadores e artistas escolhidos por meio de processos formativos; que poderiam ser inventados por mim. Aceita a provocação pensei em algumas experimentações e/ou intervenções, que chamei de "proposições educativas” realizadas na universidade em que desenvolvia a pesquisa e em cursos de formação de professores. Passados alguns anos, me senti como no dizer de Almir Sater “… mais forte, mais feliz quem sabe?” para avançar nessas proposições, dando a elas um caráter sistemático na e para além dos limites da universidade. E foi assim que nasceu 'Delicadezas e (Re)-Existências'. Mas, óbvio, não foi tão simples assim….

Tudo começou com a ideia de tecer diálogos interculturais entre Norte e Sul. Não qualquer “norte”, nem qualquer “sul”, mas, nomeadamente, Boa Vista capital do estado de Roraima e Florianópolis capital do estado de Santa Catarina. Mas, porque este norte e este sul?

A região sul do Brasil, especificamente o estado do Rio Grande do Sul, foi minha morada nos primeiros 32 anos de vida. É neste lugar que aprendo a ser gente como diria Paulo Freire, é nele também que desenvolvo a base profissional que me acompanha neste desafiador exercício de ser professora. Tomando emprestada as palavras de Gilberto Gil, digo que o Rio Grande do Sul “me deu régua e compasso” para conhecer outros mundos, mas, ele próprio é uma imensidão de mundos que até então desconhecia. Mundos que fui conhecer quando desloquei de suas terras e, posso afirmar que só depois disso me compreendi gaúcha e compreendi a complexidade que existe em ser de algum lugar específico. Um lugar tão específico que por vezes esquece que faz parte de um todo e que esse todo é imensuravelmente diverso. O Rio Grande do Sul constitui então minha base cultural e identitária oferecendo os primeiros óculos para ver as coisas do mundo. Florianópolis, ou Ilha da Magia como é carinhosamente chamada por seus moradores simboliza meus traços identitários sulista, e é para esse sul que volto depois de um período de 5 (cinco) anos itinerante em um dos nortes brasileiros. Olhar outros suis era(m) necessário para continuar a provocação de pensar os processos interculturais na educação e da minha própria constituição, por isso escolhi ancorar meu barco do sul da Ilha da Magia.

Do extremo sul para o extremo norte do Brasil, passo em 2013 a residir no estado de Roraima. É na sua capital Boa Vista que escolho para habitar, movida pela busca da construção de uma carreira profissional. Me deparo então com um caldeirão de diversidade que causa uma espécie de perturbação em tudo o que vinha estudando sobre intercultura. Nas minhas falas que tratava do respeito ao estranho, ao estrangeiro, da convivência com o diferente, do surgimento do novo a partir das trocas interculturais, passo a me sentir uma estrangeira em meu país. Mas este parecia outro país! De qual estranho e estrangeiro eu vinha falando até o momento? É possível essa convivência respeitosa e devoradora? Enquanto buscava respostas para os questionamentos, tentava me situar neste novo espaço e tempo, nesses outros ritmos e temperaturas. Sentia dificuldade para entender palavras, expressões e formas de se relacionar, e percebia que os outros - os que conviviam comigo - faziam o mesmo movimento. Aos poucos metamorfoseava, vivia o processo antropofágico na pele. Habitei Boa Vista por pelo menos 3 (três) anos, só depois fiz dela minha morada.

E se, conforme Chico Buarque “não existe pecado do lado de baixo do equador”, bem ali4 logo acima da Linha do Equador, em Boa Vista, única capital brasileira situada totalmente no hemisfério norte, existe muito menos pecado ainda. Boa Vista é terra de toda a gente e tem gente de toda terra: índio, branco, negro, venezuelanos, cubanos, angolanos e brasileiros de todos os Brasis. Como bem disse o poeta roraimense Eliaquin Rufino: “tudo índio, tudo parente”. Sem romantismos é claro! Pois as relações entre os povos desta terra são complexas e envolvem histórias de extermínio das etnias indígenas, exploração de índios e não-índios em regiões de garimpo e outras infinidades de conflitos5. Atualmente podemos citar a experiência com os venezuelanos que ainda ocupam as ruas da cidade, reconfigurando sua paisagem arquitetônica e cultural. Mas o fato é que Boa Vista, assim como o estado de Roraima, de maneira geral, é quente, rica e atraente. É terra de morada, mas também é terra de passada. Essa característica faz da cidade um entre-lugar constante onde nada se define, onde tudo está sempre em processo. Este norte que em um primeiro momento causou estranhamento, hoje mostra outros nortes para pensar a interculturalidade tanto na educação como em meu próprio processo formativo e identitário. Foram esses novos nortes que me provocaram a olhar outros suis.

É o movimento de caminhante entre o Norte e o Sul/o Sul e o Norte (primeiro do Rio Grande do Sul para Roraima, depois de Roraima para Santa Catarina) que atuam como fator principal para a definição das proposições educativas e dos diálogos interculturais entre eles. Acredito que os diálogos são anteriores as proposições, pois eles se iniciam na busca que faço de aproximar saberes e fazeres do norte e do sul a partir das minhas experiências nestes dois lugares. Para esse movimento, (re)tomo meus próprios saberes e trago para a materialização dessa conversa as linhas, os tecidos e as agulhas por meio do bordado, do crochê e do tear. Disparadas por minhas memórias, recentes ou distantes, as linhas vão tomando outra(s) forma(s): Ora se tornam palavras, ora desenhos, ora rendas feitas de crochê e tear que se misturam com os tecidos para contar estórias. Tomando formas diferentes (rede, travesseiro e estandartes) acabam por se constituírem em objetos artísticos que mais tarde vão ao encontro dos moradores de Boa Vista e de Florianópolis com o intuito de provocar novos diálogos. Assim nasce 'Delicadezas e (Re)-existências' tendo como base teórica a ideia de “ambientação” trazida por Hélio Oiticica em seu Programa Ambiental, onde ele “propõe uma manifestação total, íntegra do artista nas suas criações, que poderiam ser proposições para a participação do espectador.” (OITICICA, 2011, p. 81).

O Programa Ambiental proposto por Oiticica é construído a partir do conjunto de suas obras experienciais (Os Núcleos, os Penetráveis, os Bólides e os Parangolés), e tem como uma de suas principais características a possibilidade de criação e invenção a partir da valorização das particularidades de cada espaço e indivíduo. Sua ideia de ambiental é,

[…] a reunião indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação, construção, etc., e as que a cada momento surge na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contato com a obra. […] Há tal liberdade de meios, que o próprio ato de não criar já conta como uma manifestação criadora. Surge ai uma necessidade ética de outra ordem de manifestação, que incluo também dentro da ambiental, já que os seus meios se realizam através da palavra, escrita ou falada, e mais complexamente do discurso: é a manifestação social incluindo aí fundamentalmente uma posição ética (assim como uma política) que se resume em manifestações de comportamento individual.

(OITICICA, 2011, p. 81)

O princípio inventivo, propositivo e participativo imbricado em sua proposta de programa ambiental, possibilita orientar caminhos investigativos para a prática de pesquisas acadêmicas. Em especial a pesquisa apresentada aqui, uma vez que ela se propõe a construir proposições educativas provocadoras de diálogos interculturais a partir da participação dos moradores das duas cidades citadas anteriormente, que ao comporem o espaço e se relacionarem com os objetos artísticos lá presentes dentro de toda a ambientação que a envolve, (re)-constroem e (re)-iniciam o diálogo intercultural entre Norte e Sul.

2 O QUE SÃO ESSAS PROPOSIÇÕES EDUCATIVAS?

'Delicadezas e (Re)-Existências' foi o nome que escolhi para as proposições educativas, tanto a delicadeza quanto a (re)-existência fazem parte do processo criativo que venho construindo. A delicadeza surge inicialmente no gesto do bordado, no cuidado com as linhas, na paciência empregada nesse fazer. Daí surge a busca pelo conceito que encontro em Denilson Lopes (2007, p. 14), para quem “[…] a tarefa da delicadeza é a difícil e diária reinvenção do cotidiano”. É necessária atenção e precisão para compreendermos aquilo que realmente importa para nossa existência.

A ideia da (re)-existência emana da observação que faço em relação ao exercício feito ao longo da história pelos povos colocados a margem do protagonismo da construção identitária dos nossos Brasis. Refiro-me especialmente às culturas indígenas e africanas e, de forma ampliada, à todas as outras tantas identidades silenciadas e tornadas menores, de modo pejorativo. Estas culturas podem nos ensinar o exercício da delicadeza que, de forma dolorosa, embora se mostrem lindas, resistem na busca de mantê-las viva a sua existência. Uma existência que só foi possível por meio da arte da reinvenção de si em um constante (re)-criar-se que, por entre as brechas do incessante trabalho de invisibilidade feito pelas chamadas culturas de massa, transformam-se e constroem em outras formas de existir.

Para pensar as existências, chamo para conversa Lapoujade (2017, p. 89), para quem “Existir é sempre existir de alguma maneira. Ter descoberto uma maneira de existir, uma maneira especial, singular, nova e original de existir, é existir à sua maneira (IP,367)”. As existências já não recebem a luz de uma fonte exterior, elas a produzem durante o processo anafórico que foi traçado por elas, entre profundezas obscuras e vértices lúcidos (LAPOUJADE, 2017, p. 89). Assim, ao propor buscar narrativas produzidas pelos povos das cidades de Boa Vista-RR e Florianópolis-SC olhando para os elementos culturais constituidores das suas identidades, percebo os complexos movimentos de (re)-existências realizados pelos povos habitantes dos respectivos locais. Nesse contexto, volto o meu olhar de maneira particular para os povos indígenas em Boa Vista junto à diversidade de saberes e culturas que constituem o estado por meio de seus habitantes que vêm de todas as partes dos Brasis e de países vizinhos, como Venezuela e a República Cooperativista da Guiana; em Florianópolis aproximo de elementos trazidos pelos povos açorianos e elementos que resistem e (re)-existem das culturas indígenas. Esses achados, no meio do caminho, foram se apresentando quase que ao acaso, sem que buscasse muito por eles, mas, admito, talvez estivesse (e esteja) impregnada pela procura constante da minha própria constituição identitária e, assim, meus olhos escolheram ver aquilo que minhas memórias e afetos de alguma forma orientaram. Nessa perspectiva, a memória afetiva, como afirma Tedesco (2014, p. 199), “é um sentimento, uma impressão e uma sensação manifesta quando se reinvoca uma recordação”.

E estas - as memórias - são recordadas por meio das lembranças que conforme Lapoujade (2017, p.74) são:

como uma nuvem de almas que plana acima dos corpos vivos. Elas esperam serem atraídas por um corpo que se assemelhe a elas e responda às suas aspirações; elas inclinam-se então para ele, deixam-se cair e passam para a existência. É como um vampirismo próprio das lembranças. Assim como a alma procura um corpo, a lembrança procura uma sensação que se assemelhe a ela para voltar a vida.

E assim, minhas lembranças buscam voltar à vida, encontrando nas narrativas de diferentes pessoas que compõem Boa Vista e Florianópolis, um abrigo, um corpo. Elas voltam então a existir ao mesmo tempo que possibilitam a existência das vozes presentes nas narrativas que as movimentam. Num processo dialógico, elas ganham vida própria e se reinventam, pois não identifico mais se são as narrativas que atuam como disparadoras das minhas memórias ou se são minhas próprias memórias que atuam como disparadoras das narrativas encontradas. Assim como as identidades, múltiplas, diversas e sempre em movimento as narrativas se misturam e ganham um novo corpo. No entanto, este corpo embora único, abriga uma infinidade de conflitos, diferenças histórias de convivências e (re)- existências.

A tecitura desses diálogos interculturais se dá por meio das linhas e dos bordados a partir de elementos culturais dos estados de Roraima e de Santa Catarina, em especial de suas capitais, por meio do entrelaçamento das narrativas produzidas por alguns sujeitos moradores das duas cidades. Trançadas a estas narrativas, estão os elementos culturais que me constituem, os quais são potencializados por experiências vivenciadas nas terras do Norte e do Sul e que atuam como disparadores de minhas memórias afetivas. As linhas, os tecidos, as agulhas, os teares e bilros são elementos para tratar de delicadeza e (re)- existência, ao se entrecruzarem contam os saberes produzidos nas narrativas de lá de cá, costurando-as e hibridizando-as delicadamente, mas, sem deixar de considerar a dor, o medo, o estranhamento e a ruptura, elementos necessários para o processo de (re)- existência(s) e criação. Elas próprias podem ser as narrativas já que guardam em si saberes culturais.

O ato de bordar, assim como a delicadeza, é 'um gesto menor' que nos faz experimentar a lentidão, o cuidado, a paciência e também nos dá liberdade para brincar com as memórias, os afetos, estabelecer conceitos e categorias. Junto a delicadeza, há o processo de (re)-existência representado pelo tecido, o papel ou outro suporte que faça parte da obra. Ao resistir o atravessamento da agulha em seu corpo impõe-se e reinventa-se transformando-se em um novo elemento. Bordar é um convite constante à simplicidade, à valorização ou o olhar para as pequenas coisas, da mesma forma que nos provoca ao difícil exercício de aparar arestas, evitar aceitar os excessos ou de olhar para as arestas e os excessos a partir de uma outra perspectiva, já que muitas vezes o lado bonito do bordado fica no seu avesso, pois carrega as marcas do processo de criação. Os encontros e confrontos culturais/étnicos/conceituais estão longe de estarem temporalmente distantes de nós. Ao contrário, estamos imersos nesse tempo e, para atravessarmos será necessário nos reinventarmos e conseguir enxergar a “leveza presente mesmo em meio ao maior descontrole", como nos diz Lopes (2007, p. 77-78).

As proposições 'Delicadezas e (Re)-existências', tanto em Boa Vista quanto em Florianópolis, foram compostas por diferentes momentos, são eles: Exposição dos objetos artísticos desenvolvidos por mim durante o processo de pesquisa; rodas de conversa com o público participante sobre a temática da pesquisa contando com a participação de convidados dos respectivos locais, os quais, de alguma forma, possuem em seus fazeres aproximação com as questões interculturais; produção de cartas trocadas entre os moradores das duas cidades; e degustação de sabores culturais. Neste artigo em específico, volto a afirmar, serão apresentadas as reflexões acerca da proposição educativa realizada na cidade de Boa Vista-RR, tendo o olhar voltado para a participação da convidada Bernaldina José Pedro - Meriná, que dividiu comigo o espaço de conversa levando sua arte de tear e as aproximações com as questões interculturais que sua presença movimenta/provoca em nossos fazeres educativos.

3 DELICADEZAS E (RE)-EXISTÊNCIAS NA TERRA DE MAKUNAIMA6

Nasceu e cruzou fronteiras, cresceu na linha de frente da resistência. Ela é gratidão quando às duas da madrugada em sua rede entoa cânticos da escuridão. É para além do mundo que canta. Canta no mundo da luz para onde nos transporta. É um cantar para dentro, um chamar para a calma profunda da alma.

(Jaider Esbell, 2018)

No dia 17 de maio de 2019 às 19h, acontece em Boa Vista-RR a proposição 'Delicadezas e (Re)-existências'. O evento ocorreu nas dependências da Galeria de Arte Indígena Contemporânea Jaider Esbell e contou com a linda e forte presença da Meriná. Nesta noite, nossas artes se misturaram e compuseram um cenário propositivo para tecer conversas e com-partilhar saberes. Estandartes, travesseiro, rede e as interferências bordadas no livro “Cantos e Encantos Meriná Eremu”7 intercalavam-se aos teares da mestra makuxi Meriná, cujas tipoias são usadas pelas mulheres indígenas para carregarem seus filhos - quando bebês - e as miniaturas de rede, elementos integrantes da cultura indígena; assim como suas produções de pulseiras e colares feitas de miçangas e brincos, fabricados a partir de sementes e penas de pássaros diversos. Completando o cenário estava uma mesa posta com Damurida8, comida tradicional indígena feita pelas mãos da mestra Makuxi. Meriná nos abençoou presenteando com uma reza e seus cantos xamânicos e, em seguida, iniciamos a prosa, que se deu com a apresentação da pesquisa, a escuta sobre os fazeres e saberes ancestrais que nossa convidada trazia consigo e, ao final, os moradores foram convidados a escrita de cartas a serem enviadas ao público de Florianópolis, na segunda versão da proposição educativa.

Mulher indígena da etnia Makuxi, conhecida também como Bernaldina José Pedro, a mestra emana em seus cantos, teares e rituais xamânicos os saberes ancestrais de seu povo. Sua presença é a estrela da noite e as histórias compartilhadas por ela dá o tom às reflexões que escolho trazer neste momento de escrita. Apresentada nas palavras de seu filho adotivo, o artista Makuxi Jaider Esbell, conforme podemos remeter à epígrafe acima, Meriná é delicadeza e (re)-existência juntas em um só corpo. Delicadeza porque carrega em seu sorriso e em seu olhar luminosidade, alegria e encantamento com o mundo. Emoções que são percebidas quando a ouvimos falar das suas experiências em viagens que fez recentemente divulgando os saberes de seu povo Makuxi e atuando politicamente nas lutas dos e pelos povos indígenas do Brasil. (Re)-existência porque, conforme nos fala Jaider Esbell, no auge dos seus setenta e poucos anos, Meriná é “uma sobrevivente do holocausto cultural no topo das montanhas onde a fé faz seu próprio caminho.” (ESBELL, 2019, p. 07).

Na noite de 'Delicadezas e (Re)-existências', a mestra Makuxi brilha os olhos contando sobre seu encontro com o Papa Francisco realizada em novembro de 2018, onde juntamente com Jaider Esbell, entregou uma carta dos povos indígenas do Brasil denunciando a possível desmarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, anunciada pelo recém-eleito presidente brasileiro. A carta também alertava para o extermínio dos povos indígenas, não apenas no norte, mas em todo território brasileiro e chamava atenção para as questões ambientais advindas deste ato. Para Meriná, aquele momento foi de grande importância, pois, além de representar um reconhecimento da sua cultura, é algo que nunca imaginou fazer: ir para tão longe e ver o Papa. Embora seus fazeres espirituais carreguem os saberes ancestrais, vovó Bernaldina, como é conhecida, é também uma mulher de fé cristã e seu ritual xamânico traz o encontro dessas duas formas de existência. Mistura que é possível percebermos nos cantos religiosos “Areruia” e “Simmiidin”, registrados no livro “Cantos e Encantos Meriná Eremu”, foram entoados lindamente pela mestra Makuxi, sendo ambos representados na sua língua materna com acompanhamento de instrumentos típicos dos rituais tradicionais indígenas, os cantos trazem no seu conteúdo saberes tanto da religião católica quanto de seu povo, podendo ser exemplos do processo intercultural vivido. Como observa Fiorotti:

O primeiro surgiu com os primeiros contatos entre as religiões cristãs e a realidade indígena. Na Guiana Inglesa, inclusive, foi reconhecimento como religião oficial. É um canto relacionado ao culto. (…) O segundo, segundo a cantora, está relacionado a festas de Natal. Os indígenas costumam sair para caçar em grupo nesse período e são recebidos com festa e muita bebida (caxiri, pajuaru, esse último com teor alcoólico), canta parixara, mas também esses cantos de Natal.

(2019, p. 11)

Os povos indígenas de Roraima, principalmente os Makuxi e Wapichana que tiveram um contato maior com a cultura branca e ocidental, sofreram influência muito forte das religiões católica e evangélica, transformando seus costumes e tradições. O convívio entre as etnias indígenas que compõe o estado, é também outro fator que contribui para a transformação de suas identidades, seus ritos e mitos. Pode-se dar como exemplo o casamento entre Makuxis e Whapichanas e a existência de comunidades mistas com moradores de ambas as etnias, prática antes incomum. Esse processo de encontros tornam as culturas indígenas e não indígenas um constante vir a ser, e os elementos que caracterizam suas identidades são transformados, recriados, reelaborados, de maneira que “toda a existência torna-se legitimamente inacabada” (LAPOUJADE, 2017, p. 39). Um exemplo desse processo pode ser percebido na fala de Esbell sobre sua infância em entrevista feita por Nina Vicent e Sérgio Cohn para Coleção Tembeta que reúne a trajetória de pensadores indígenas do Brasil, onde ele relata sobre a influência da cultura nordestina em sua educação, bem como a influência indígena nas práticas agrícolas adotas pelos nordestinos9:

Minha família é até hoje referência por fazer uma farinha de altíssima qualidade. E a gente produzia muito, tanto para consumo próprio quanto para vender o excedente, de onde a gente complementava a renda para o meu pai e minha mãe criarem os seus onze filhos. Havia também um componente muito forte de caça e pesca, que são elementos dessa relação direta com a natureza. A gente vivia de aprendizados que remetem a uma vivência anterior, embora fragmentada, de uma prática cultural com uma raiz mais direta com os povos tradicionais. De onde talvez também tenha se firmado muito fortemente a habilidade que os próprios nordestinos tem de cultivar a terra.

A minha infância veio muito marcada por uma educação nordestina, que me remete até a herança coronelista muito latente. Peguei palmatória da minha mãe, por exemplo, e muita surra mesmo, bastante violenta, por ela também ter sido educada dessa forma. Havia essa cultura de violência bruta na relação de mães e filhos. Essa relação de bastante violência da minha mãe é uma coisa que me intrigou por muito tempo, ao ponto de buscar uma compreensão, até entender que era sim uma herança cultural, de uma cultura herdada, de uma cultura do coronelismo.

(ESBELL, 2018, p. 19-20)

Ao mesmo tempo que este é um exercício de (re)-existência possibilitando com que as culturas indígenas se reinventem e adentrem espaços antes jamais ocupados, há igualmente um processo de perda de elementos culturais essenciais para a constituição de um povo, como por exemplo, a língua materna. Ainda nas palavras do artista Makuxi, podemos perceber esse movimento:

Meu avô já não falava, porque ele foi da primeira geração da proibição. Quando os índios eram adotados, a primeira ordem era abandonar a língua, pela razão de oferecer perigo de articulação e rebelião entre os índios nas fazendas. Então a partir da geração do meu avô já não se fala mais a língua.

(ESBELL, 2018, p.22)

A língua, conforme Mattoso Câmara, é o que “integra no indivíduo e fica sendo o meio permanente do seu contato com o mundo extralinguístico, com o universo cultural que o envolve, de tal sorte que se cria uma associação íntima entre o símbolo linguístico e aquilo que ele representa” (1965, p. 85 apudSEKI, 2000, p. 234). Atualmente, estas duas etnias, aqui mencionadas, vivem ameaçadas pelo esquecimento da língua, conhecimento ainda mantido pelos idosos e que têm se extinguido a medida que estes anciãos morrem. É certo que este processo de perda da língua vivida pelos povos indígenas brasileiros é antigo, e, conforme a pesquisadora Lucy Seki (2000), ao longo desses 500 anos de colonização “cerca de mil línguas se perderam devido ao desaparecimento físico dos falantes” que se deve segundo a autora, a fatores como “decorrência de epidemias, extermínio direto, escravização, redução de territórios, destruição das condições de sobrevivência e aculturação forçada” (p. 238).

A existência dos povos indígenas é historicamente silenciada e a presença de Meriná, uma das poucas falantes da língua de seu povo, é um disparador para a tecitura de reflexões acerca dos elementos culturais constituidores das identidades locais e de seus movimentos de (re)-existência. Lapoujad (2017, p 93) nos ajuda a pensar sobre isso quando abre conversa sobre o processo de instauração das existências, para o autor, “Duvidar de sua existência não é apenas suspender provisoriamente a realidade de um ser, é questionar a legitimidade dessa existência. Duvidar é questionar um direito.”. Os povos indígenas têm suas realidades suspensas e necessitam cotidianamente lutar pelo seu direito de existir. Para isso reinventam-se constantemente circulando por entre as brechas deixadas por nós (não-índios). Seus movimentos me aguçam pensar os processos interculturais na educação e na minha própria formação, onde o embranquecimento e ocidentalização cultural imperam e silenciam as outras vozes que julgam ter menor importância.

São por meio das trocas de experiências com os não-índios e principalmente pelo exercício antropofágico de reapropriação dos conhecimentos deste “mundo do branco” que os povos indígenas resistem e (re)-existem. Pesquisas realizadas por estudantes indígenas no estado de Roraima demonstram a preocupação dos povos em não deixar se perder sua língua, bem como, os conhecimentos ancestrais contidos nos mitos, cantos, histórias e rituais. A maioria destas são desenvolvidas no Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (INSIKIRAN/UFRR), se estendendo a outros centros da universidade tanto no âmbito da formação inicial como na pós-graduação. Com a crescente perda da prática da oralidade - como forma de transmissão de conhecimento dentro das comunidades, os indígenas registram em suas pesquisas de Conclusão de Curso e Dissertações de Mestrado seus saberes, apropriando-se e utilizando-se de sistemas de conhecimento dos não índios. Eles reinventam sua educação, sua arte e suas lutas, construindo outras formas de existência dentro de um mundo que lhes exigem reconfigurações e que, ao mesmo tempo, também lhes atraem e lhes pertencem. Buscam dessa forma, defender sua existência e o direito que têm de existir, pois, conforme Lapoujad (2017, p. 94-95):

Uma alma nunca existe sozinha, ela existe porque faz existirem outras. E essas outras porque fazem existir correlativamente a primeira. Só existimos sendo advogados de outras almas – inclusive da nossa, concebido como o crescimento de si ao qual aspiramos. Só nos tornamos reais, ao tornar reais outras existências.

A identidade indígena, representada na figura de vovó Bernaldina, é uma necessidade do não índio, como afirma Jaider Esbell (2018). Fomos nós – os não-índios - que dissemos como o índio tem que ser e viver ao criarmos as mais diversas narrativas sobre seus modos de vida. Modos de narrar tão fortes e tão bem trabalhados ao longo da história, que até os dias de hoje nos trazem uma visão estereotipada e romantizada do indígena. Uma afirmação identitária que, segundo Esbell, serve mais para o Estado do que para os próprios indígenas, impondo-lhes uma auto-identidade de ser “cada vez mais indígena, ou menos índio, como se fala, para equilibrar o peso social e equilibrar nossos papeis” (ESBELL, 2018, p.26).

Os povos indígenas só foram capazes de atravessarem séculos de silenciamento e perseguição por terem sido capazes de recriarem a sua existência de acordo com os contextos e desafios locais e atuais ao longo da história. A proposição 'Delicadezas e (Re)- existências' vivenciada em Boa Vista-RR disparou reflexões em torno das lutas existenciais dos povos indígenas, provocada pelos saberes de vovó Bernaldina e também pelo próprio ambiente em que se deu a ação: uma “galeria de arte indígena contemporânea” que pretende guardar a memória e a arte de um povo, ou, arrisco a dizer, a memória e arte dos povos originários desta terra saqueada por homens brancos vindos de além-mar. As questões indígenas aqui tratadas são reflexões decorrentes da proposição educativa vivenciada na Terra de Makunaima. Terra que possui em sua geografia cultural traços, corres, cheiros, sabores e saberes desses povos esquecidos dos Brasis, que delicadamente resistem assumindo “uma opção ética e política” conforme sugere Denilson Lopes (2007, p. 18). O gesto de delicadeza presente na existência desses povos pode nos ensinar outras práticas de estar no mundo e de aprender nele, como por exemplo, o exercício de “Saber flutuar, posicionar-se em meio à deriva, uma meta. Insistir uma vez mais diante da sedução do peso do êxtase do naufrágio. Levantar os olhos quando toda a realidade parece ser o fundo, a queda” (LOPES, 2007, p. 78).

'Delicadezas e (Re)-existências na Terra de Makunaima' sinalizou possibilidades para pensar a educação e o fazer pedagógico, abrindo um campo de possibilidades para o exercício da escuta do(s) outro(s) que compõem conosco o ambiente educativo. Também nos provocou para o fato de que nos educamos permanentemente por meio de nossas imersões no mundo, como já nos anunciava Paulo Freire, e que escola e universidade podem estar fora de seus muros.

'Delicadezas e (Re)-existências' levou a escola/universidade para dentro de outros lugares e fez de outros lugares escola/universidade. A 'Galeria de Arte Indígena Contemporânea Jaider Esbell' ampliou o espaço de aprendizagem da universidade, possibilitando não apenas a divulgação da produção de conhecimento nela desenvolvida para a sociedade, mas permitiu com que a sociedade, representada aqui pelos moradores da cidade e pela mestra indígena Makuxi Bernaldina José Pedro - Meriná, fosse também produtoras desse conhecimento.

O encontro possibilitou despertar alguns sentidos e tocar em questões que deixamos à margem da existência, como, por exemplo, a importância do gesto da delicadeza que se manifesta sutilmente e requer de nós distração para senti-la: “O sublime é a base de uma educação dos sentidos a partir do precário, do fugaz, do contingente, de tudo o que esvanece rápido, mas que brilha inesperada e sutilmente. Um tesouro para ser guardado”. (LOPES, 2007, p.46). Guardamos, então, o sublime, nos entreguemos aos brilhos inesperados e ao prazer de senti-los. A educação necessita ser sentida e vivida de corpo inteiro, cabe a nós reinventá-la e para tal penso que seja preciso recorrer aos saberes locais e ver o que eles têm a nos oferecer. Cabe salientar que, quando me refiro a saberes locais, quero dizer dos saberes que circulam no espaço educativo, pois eles são certamente diversos e oriundos de culturas diferentes. O gesto da delicadeza só cabe em um espaço respeitoso que busque criar diálogos com os diferentes saberes e fazeres, um espaço que se proponha ir na “contramão da estética da violência” (LOPES, 2007, p. 46).

Na tecitura das percepções e das reflexões decorrente da proposição educativa 'Delicadezas e (Re)-existências na Terra de Makunaima' não abandono o bordado, o tear, as linhas e as agulhas, ao contrário, elas assumem metaforicamente a costura feita ao longo da conversa aqui apresentada. Foram essas artes (artes menores, artes delicadas e resistentes ao tempo) que possibilitaram pensar uma proposição educativa para além da universidade e da escola, que buscou privilegiar o diálogo intercultural representado pelos elementos culturais encontrados a partir da narrativa de seus moradores e também de minhas memórias afetivas. A partir delas, pode-se propor caminhadas coletivas onde os indivíduos e suas aprendizagens se des-in-visibilize, pois suas experiências passam a ter espaço de existência e (re)-existência. Pretendeu-se dessa forma, construir um espaço propositor para a participação do espectador, como sugere Hélio Oiticica, em que o público - ao entrar em contato com as artes lá expostas e com os saberes trazidos pela mestra indígena -, foi provocado a pensar a constituição cultural e identitária do estado em que habita e a sua própria identidade.

A delicadeza e a (re)-existência, apresentadas nesta pesquisa e vivenciadas na proposição educativa aqui tratada nos movimenta a olhar para as experiências, para as marcas que carregamos, que nos foram imprimidas e que imprimimos no mundo. A delicadeza nos possibilita experienciar o vivido, (re)-experienciar, sentir com o corpo inteiro e de outra forma. Revisitar as memórias, refazer as narrativas, (re)-existir. A presença de Meriná não só (re)-constrói narrativas construídas e mantidas por nós durante séculos, mas por meio da força da sua memória nos apresenta outras possibilidades de existência, de diálogo e de convivência. Manter vivo e potente o exercício da delicadeza e da (re)- existência, depende apenas de nós de não as ver desaparecer e saber encontrar as brechas que nos possibilitam voar mesmo em meio à turbulência.

2Para aqueles e aquelas que por ventura gostarem da proposta aqui apresentada e tenham ficado com vontade de saber um pouco mais recomendo o artigo 'Entre linhas, memórias e delicadezas: proposições educativas e performativas para pensar a educação e a arte', onde apresento mais uma face da pesquisa, disponível em: http://brajets.com/index.php/brajets/article/view/686

3Tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM), intitulada “Antropofagia Cultural Brasileira e as práticas inventivas de Hélio Oiticica, Paulo Freire e Augusto Boal: contribuições ecologistas e interculturais para a formação de professores(as)”.

4“bem ali” é uma expressão usual pelos roraimenses e tem a intenção de indicar tanto distância espacial ou quanto temporal.

6Roraima é conhecida como “Terra de Makunaima” devido a lenda indígena de origem Makuxi denomina Makunaima. Lenda essa que deu origem ao nome do livro de Mário de Andrade Macunaíma: um herói sem nenhum caráter.

7Objetos criados na primeira etapa da pesquisa a partir do entrelaçamento entre os saberes do norte e do sul e minhas memórias afetivas.

8Comida tradicional indígena das etnias Makuxi e Whapchana, feita com carne de caça, tucupi e pimentas.

9Jaider Esbell está se referindo aos fazendeiros que disputaram as terras do estado de Roraima. De forma mais particular, o artista refere-se a atual Terra Indígena Raposa Serra do Sol, região a qual pertencia e viveu sua infância.

Revisão gramatical realizada por: Bruno Pedroso Lima Silva

E-mail: brunoplsilva@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS

ESBELL, Jaider. “The Giant Steps - As pegadas gigantes”. Sitio do artista. 11 de Agosto de 2017. Disponível em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2017/08/11/the-giant-spets- makuxi-e-suico-se-unem-em-arte-global/. Acesso em: 20 de março de 2019. [ Links ]

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Recebido: 02 de Junho de 2020; Aceito: 03 de Novembro de 2020

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