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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.2 Campinas mayo 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i2.8660026 

Relato de Experiência

CONTROLE SOCIAL E ENSINO EM SAÚDE: POR UMA PRÁXIS PSICOLÓGICA DECOLONIAL

SOCIAL CONTROL AND HEALTH TEACHING: FOR A DECOLONIAL PSYCHOLOGICAL PRACTICE

CONTROL SOCIAL Y ENSEÑANZA DE LA SALUD: POR UNA PRÁCTICA PSICOLÓGICA DECOLONIAL

Conrado Neves Sathler1 

Esmael Alves de Oliveira2 

1Doutor em Linguística Aplicada - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP - Brasil. Docente - Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) - Dourados, MS -Brasil.E-mail: conradosathler@ufgd.edu.br

2Doutor em Antropologia Social - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Florianópolis, SC - Brasil. Docente - Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) - Dourados, MS - Brasil. E-mail: esmael_oliveira@live.com


RESUMO

Contextualização:

A 16ª Conferência Nacional de Saúde propiciou a participação qualificada de 12 estudantes de um curso de Psicologia da região Centro-Oeste do País matriculados no Projeto Políticas Públicas desenvolvido em Estágio do Núcleo Comum. Foram acompanhadas, simultaneamente, reuniões de Conselhos Municipais dessa área e outras conferências. O objetivo do Estágio foi integrar habilidades para atuação nos desafios enfrentados pelo Sistema Único de Saúde.

Descrição da Experiência:

Os estudos preparatórios dos eixos dessa Conferência - Financiamento, Princípios e Direitos - iniciaram-se em março e permaneceram até setembro de 2019 com as reuniões dos Órgãos de Controle Social. Este estudo é descritivo, tipo Relato de Experiência e apresenta parte das análises de enunciados problematizados pelo grupo. O método de trabalho em supervisão foi a roda de conversa e as teorias que fundamentaram as análises foram discursivas e decoloniais.

Resultados e Impactos:

Esse Estágio propiciou o desenvolvimento de competências teóricas, técnicas e sociais por meio do desenvolvimento do protagonismo estudantil na busca de reflexão constante e de autonomia política.

Considerações Finais:

A participação social como atividade de Ensino em Saúde mostra- se potente no desenvolvimento de competências para atuação no Sistema Único de Saúde apesar dos entraves presentes nos espaços de Controle Social. Concluímos que a supervisão de Estágio continua a ser um componente valioso para a formação em Psicologia.

PALAVRAS-CHAVE Ensino em saúd; Estágio curricular; Políticas públicas; Psicologia social

ABSTRACT

Background:

The 16th National Health Conference provided the qualified participation of 12 students from a Psychology course of the Midwest region of the Country enrolled in the Public Policies Project developed in the Common Core Internship. Simultaneously, meetings of Municipal Councils in that area and other conferences were followed. The objective of the Internship was to integrate skills to act in the challenges faced by the Unified Health System.

Description of the Experience:

The preparatory studies of the axes of this Conference - Financing, Principles and Rights - started in March and remained until September 2019 with the meetings of the Social Control Bodies. This study is descriptive, like Experience Report and presents part of the analysis of statements problematized by the group. The supervisory method of work was the conversation wheel and the theories that supported the analyzes were discursive and decolonial.

Results and Impacts:

This Internship provided the development of theoretical, technical and social skills through the development of student leadership in the search for constant reflection and political autonomy.

Final Considerations:

The Social participation as a Teaching Activity in Health is shows itself in the development of skills to work in the Unified Health System despite the obstacles present in the spaces of Social Control. We conclude that Internship supervision continues to be a valuable component for the training in Psychology.

KEYWORDS Health education; Curricular stage; Public policy; Social Psychology

RESUMEN

Contextualización:

La 16ª Conferencia Nacional de Salud proporcionó la participación calificada de 12 estudiantes de un curso de Psicología en la región del Medio Oeste del país, inscritos en el Proyecto de Políticas Públicas desarrollado en la Pasantía de políticas públicas. Al mismo tiempo, se siguieron las reuniones de los Consejos Municipales en esa área y otras conferencias. El objetivo de la pasantía era integrar habilidades para actuar en los desafíos que enfrenta el Sistema Único de Salud.

Descripción de la experiencia:

Los estudios preparatorios de los ejes de esta Conferencia - Financiación, Principios y Derechos - comenzaron en marzo y permanecieron hasta septiembre de 2019 con las reuniones de los Organismos de Control Social. Este estudio es descriptivo, como el Informe de experiencia y presenta parte del análisis de las declaraciones problematizadas por el grupo. El método de trabajo de supervisión fue la rueda de conversación y las teorías que respaldaron los análisis fueron discursivas y descoloniales.

Resultados e Impactos:

Esta pasantía permitió el desarrollo de habilidades teóricas, técnicas y sociales a través del desarrollo del liderazgo estudiantil en la búsqueda de la reflexión constante y la autonomía política.

Consideraciones finales:

La participación social como actividad docente en salud se muestra potente en el desarrollo de habilidades para trabajar en el Sistema Único de Salud, a pesar de los obstáculos presentes en los espacios de Control Social. Llegamos a la conclusión de que la supervisión de pasantías sigue siendo un componente valioso para la formación en psicología.

PALAVRAS-CLAVE Educación para la salud; Supervisión de pasantías; Políticas públicas; Psicología social

1 INTRODUÇÃO

Os Estágios Curriculares em Psicologia passaram por alterações significativas com a implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais em 2004, como afirmam Cury e Ferreira Neto,

os estágios deixaram de ser pensados como espaços de aplicação de conhecimentos e ganharam autonomia própria, passando a ser reconhecidos como integradores das competências com base no enfrentamento de problemas concretos dos campos de atuação do psicólogo no Brasil

(2014, p. 494).

Há bom número de artigos, ensaios teóricos e relatos de experiências publicados sobre os Estágios Curriculares em cursos de Psicologia. Para ilustrar essa produção, apontamos que, no cruzamento dos termos “Psicologia” e “Estágio” na plataforma Scielo Brasil, encontramos 23 artigos nos últimos cinco anos. Seus temas prevalentes são inserção no mercado de trabalho e as práticas e representações de supervisores, de estagiários e de seus campos. Frequentemente os estágios relativos à Formação de Professores, Psicologia Escolar, Educacional, Hospitalar, Saúde Mental, Saúde e Trabalho são comtemplados. No entanto, apenas um desses trabalhos trata de Estágio Básico ou do Núcleo Comum, mesmo assim o Estágio é introdutório a um campo específico de atuação profissional, o que difere de nossa proposta que se vincula às Políticas Públicas diversas e, por isso, não se delimita em um campo específico, como orientam as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia para a integração dos conhecimentos básicos da profissão, em seu Artigo 22 (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2011)

Comparada a esses achados bibliográficos, nossa proposta apresenta duas distinções: 1- acompanha Políticas Públicas de diferentes segmentos e segue as agendas nacionais conciliando os interesses de acadêmicos e as possibilidades de participação ativa nos Órgãos de Controle Social. Dessa forma, ocorre oferta de atuação em segmentos distintos como Políticas sobre Drogas, Pessoas com Deficiência, Crianças e Adolescentes, População LGBTT+, Controladoria, Saúde e Assistência Social, entre outras, e apresenta diferentes tipos de Políticas Públicas como Defesa de Direitos, Inclusão Social e Promoção de Igualdade. 2- desenvolve-se em Estágio do Núcleo Comum. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) (BRASIL, 2011) recomendam que a formação em Psicologia seja feita em dois momentos: núcleo comum e específico. O Núcleo Comum é o nível responsável pela identidade da Psicologia no País e, por essa razão, um conjunto de habilidades, competências e conhecimentos são trabalhados nele. O nível específico é desenvolvido por ênfases e deve desenvolver habilidades e competências para intervir sobre uma demanda social atual ou potencial do território no qual o curso se insere.

Como tendência formativa, destacamos que essas DCN apontam para um tipo de formação generalista e voltada para construção e integração de saberes da própria Psicologia, mas também de áreas afins. Assim, o conhecimento de Políticas Públicas, o reconhecimento da complexidade dos eventos humanos e sociais e a atuação interdisciplinar são valorizadas. É, então, nesse ponto que este projeto de Estágio se insere.

Naturalmente, há algumas resistências a este projeto. A busca de domínio precoce de uma técnica que garanta um lugar no mercado de trabalho seduz acadêmicos e a superação de modelos conteudistas e de práticas fragmentárias impõem dificuldades. Ainda sobre essas resistências, observamos que a concepção dos Estágios no processo formativo também carrega marcas da educação tecnicista, no entanto, além das competências profissionais, a formação em Psicologia propõe o desenvolvimento da cidadania e para isso se volta ao reconhecimento das realidades políticas, econômicas e históricas do sujeito em formação e das competências sociais que permitem sua integração e suas intervenções profissionais de forma colaborativa. Ressaltamos que essas dificuldades estão presentes em muitas instituições formativas (FAM; FERREIRA NETO, 2019).

Nesse contexto, os Estágios podem se constituir como um ponto de integração do tripé da formação universitária - Ensino, Pesquisa e Extensão - rompendo com as imagens de espaço de aplicação de conhecimentos e de limitação de práticas específicas de uma abordagem teórica ou de um campo profissional. Além disso, ao possibilitar contato prévio dos acadêmicos com espaços e realidades que constituirão os futuros territórios que comporão sua atuação profissional, permitem não apenas a conexão entre teoria e prática dos anos de formação, mas, principalmente, o desenvolvimento de capacidades para análise, crítica e intervenção criativa de forma humanizada e colaborativa.

O objetivo deste texto é apresentar um componente curricular que integre Ensino, Pesquisa e Extensão na direção apontada pelas DCN atuais. A construção proposta pelo Estágio busca uma compreensão crítica das relações de poder inscritas nas instituições políticas, econômicas e culturais do País, trazendo para o centro da proposta as políticas sociais tantas vezes relegadas a um segundo plano, como apontam Silva e Yamamoto (2013).

Apresentaremos análises produzidas sobre enunciados registrados em Atas de reuniões de Órgãos de Controle Social publicadas em Diário Oficial local. Em termos de procedimentos metodológicos nos pautamos no relato de experiência. Esta entendida como “narrativa que legitima a experiência enquanto fenômeno científico” (DALTRO; FARIA, 2019, p. 223) e que torna possível que processos e produções subjetivas bem como singularidades tornem-se reflexivamente inteligíveis ao mesmo tempo em que se reconhecem as “subjetividades como irredutíveis a fórmulas universais” (DALTRO; FARIA, 2019, p. 225). Como complemento, recorreremos a registros postos em um diário no qual o supervisor do

Estágio registra os tópicos refletidos e as indicações de leituras. Seguindo a análise arqueológica foucaultiana (FOUCAULT, 2002), consideramos haver uma exterioridade nos enunciados o que implica em uma não autoria, pois o que é dito naquele ponto, por aquele enunciador, é um já-dito, uma dispersão de algo recuperado de outro lugar. Com isso, nos desprendemos de nomes ou funções dos enunciadores e afirmamos o compromisso ético com o sigilo dos sujeitos do cenário enunciativo.

2 DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA

2.1 Preâmbulo

Os primeiros encontros do grupo de Estágio ocorreram no início de 2019 e a apresentação de cada estagiário foi seguida de um pedido de levantamento de dados do orçamento da Saúde de um município que fizesse parte de sua história pessoal. Esse levantamento, ao ser apresentado no grupo, foi discutido e comparado buscando as relações entre financiamento e índices de Saúde em cada território e, a partir dessas discussões, os princípios de Universalidade, Integralidade e Equidade passaram a ser focos de atenção e de investigação. Perpassaram essa introdução os modelos de assistência com problematização da administração hierarquizada e descentralizada. A Gestão da Saúde nos permitiu uma espécie de operação de generalização comparativa, pois, a partir dela, a Educação e a Assistência Social foram tocadas e problematizadas considerando seus respectivos contextos e complexidades.

Nessa altura houve a Convocação da 16ª Conferência Nacional de Saúde (16ª CNS). Os acadêmicos, segundo escolha pessoal, se dividiram para estudar os eixos da Conferência: Financiamento, Consolidação dos Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde como Direito.

Essas Conferências ocorrem nos níveis administrativos municipais, estaduais e federal, formulando diretrizes para as políticas públicas e avaliando assistência e gestão em cada território. A convocação da Conferência é nacional e estabelece a agenda das fases municipais, estaduais e federal com temática e eixos organizadores dos debates. Os participantes se dividem em fóruns de gestores, trabalhadores e usuários. Os usuários correspondem à metade dos participantes e a outra metade se divide entre gestores e trabalhadores. Dessa forma, se busca garantir distribuição democrática dos segmentos sociais na eleição das propostas que, uma vez escolhidas, seguem dos municípios para os estados onde, endossadas ou reelaboradas, passam por novo pleito para chegar à fase federal (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2019).

A 8ª CNS, ocorrida em 1986, foi histórica por fornecer as bases para a formação do SUS e seus eixos foram retomados em 2019. Essa retomada gerou o mote da 16ª CNS: 8 + 8. Assim, seu objetivo foi reavaliar o SUS em busca da consolidação de seus princípios. Nosso estágio se deu na fase municipal com estudantes inscritos como usuários e distribuídos nos três eixos, em meio a mais de seiscentos participantes. Três desses estagiários foram eleitos delegados para a fase estadual. Representaram o município e compartilharam com o grupo suas vivências políticas. A participação da comunidade na gestão do SUS é um de seus pilares, conforme Art. 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e é efetivada nas Conferências e nos Conselhos de Saúde.

Nas semanas seguintes, foram realizadas rodas de conversa nas quais o conceito de Saúde, o acesso às redes, a participação social, a efetividade da assistência, a integralidade e a diferença foram debatidos para tratar do tema da Saúde como Direito. O debate sobre o Financiamento deu oportunidade à compreensão e à crítica aos modelos de descentralização, dimensionamento de equipes, repasses e relatórios. A Consolidação dos princípios da Saúde proporcionou análises de temas como Gênero e Saúde, Racismo de Estado e Saúde na fronteira.

Além da participação na 16ª CNS, houve também a participação em reuniões de conselhos municipais, destacando-se uma reunião do Conselho Municipal de Saúde que foi analisada mais atentamente e nos servirá de suporte para ilustrar nosso relato.

2.2 Observação Participante e apontamentos de análises

Retiramos alguns enunciados das atas das reuniões em que participamos. Recorremos, também, ao diário de supervisão e aos registros de alunos e professores para compor a descrição do cenário.

O primeiro enunciado se deu ao final da discussão do ponto de pauta acerca do Plano Municipal de Contingenciamento da Tríplice Epidemia: Zika, Dengue e Chicungunya. Uma mulher pertencente a uma etnia indígena, representante de Agentes Comunitários de Saúde, indaga sobre a existência de alguma estratégia para prevenção da saúde de sua população. A resposta foi dada por um representante do Fórum Governamental, branco, profissional de nível superior e não componente da equipe da Vigilância Epidemiológica, “Aqui só trabalhamos com o que é científico [...]”.

Esse enunciado trouxe algum incômodo ao grupo de estagiários que, impactado, percebeu o caráter colonialista expresso. Em breve análise, o grupo percebeu que o advérbio “aqui” produz, nesse contexto, muitos efeitos. Ao afirmar “aqui” opera-se uma separação: aqui estamos no centro, lá estão os marginais. Essa forma de iniciar o período marca uma separação e, consequentemente, uma hierarquização (nós/eles) que produz exclusão. A exclusão deixa marcas no território, nos componentes identitários e valorativos dos sujeitos e coletivos que o constitui, o que resulta (no caso específico do Mato Grosso do Sul) na sobreposição do valor econômico no uso da terra e na sua história, em detrimento de outros valores.

A sequência da fala traz o verbo “trabalhar” (trabalhamos) acompanhado do adjetivo “só”. Dessa forma expressa, aqui (nós, nesse lugar, no Conselho Municipal de Saúde, os brancos, os profissionais universitários, os técnicos/entendidos, deste lado...) só trabalhamos com o que é científico. O adjetivo “só” assume o sentido de apenas, unicamente. Aqui “não fazemos outra coisa!”. Um dos sentidos associados pode ser dito da seguinte forma: aqui, diferentemente de lá onde só há confusão e “erros” (como sinônimo de crenças, valores, senso comum), trabalhamos unicamente com o que é científico (como sinônimo de “certo”, “verdadeiro”, “inquestionável”).

Para abreviarmos as análises, apontamos os parâmetros conceituais que Quijano (2009) propõe à análise da colonialidade do poder, quais sejam, imposição das práticas capitalistas, racistas e centradas na racionalidade eurocentrada. Esses elementos estão presentes no enunciado em foco. Mas não somente eles, o gênero também pode ser notado. A questão foi levantada por uma mulher etnicorracialmente marcada e a resposta dada por um homem. A ferramenta da interseccionalidade nos permite observar o gênero, a raça, a classe social, a escolaridade e a religião incidindo sobre essa forma de expressão (PISCITELLI, 2008).

Para elucidar a citação da religião, talvez menos evidente no enunciado, alertamos o aspecto da separação ciência versus religião na modernidade eurocentrada. Afirmar que trabalhamos com o que é científico tem também o sentido de ataque à comunidade de origem da Agente Comunitária cujo itinerário mais típico da Saúde inclui as benzedeiras com suas rezas e remédios caseiros, uma ação religiosa e uma medicina indissociáveis, mas desprezadas pelo poder colonizador.

Esses atravessamentos discursivos produzem, nesse ambiente, subjetividades dominantes e subalternas. A legitimação do lugar de poder se constitui pela identificação com o discurso do colonizador que também subalterniza o discurso do sujeito colonizado pela via da desvalorização. Mas a pior consequência dessas performances é que ao excluir e desqualificar uma comunidade tradicional dos discursos a exclui também da gestão e das ações de assistência, invisibilizando sua população. Pelo discurso, o racismo de Estado se manifesta também no seio do Órgão de Controle Social que deveria denunciá-lo e enfrentá- lo.

O segundo enunciado emerge ao se tratar de uma transferência do Sistema de Regulação local para um Sistema Unificado do Estado. As falas não são do mesmo enunciador, mas são subsequentes e argumentam a favor dessa transferência. “[...] Não podemos ser a Ovelha Negra do Estado!” e “[...] eu sou de pleno acordo de não trabalhar na contra mão do poder maior [...]”.

A expressão “Ovelha Negra” carrega uma memória linguística ampla, vamos, no entanto, destacar alguns sentidos. Ao recuperamos da sequência enunciativa: todos os municípios da região [...] já aceitaram, não podemos ser a Ovelha Negra do Estado, temos um efeito de sentido de padronização, de comparação. Todos já aceitaram, não podemos ser diferentes ou não podemos sair do padrão. Esse argumento, até aqui, não discute a lógica da escolha, mas ataca o sujeito da escolha. Ou o sujeito faz parte do padrão, ou é “Ovelha Negra”.

Que tipo de sujeito é, então, a “Ovelha Negra”? O que constitui a memória linguística de “ovelha” é encontrado no discurso religioso. A ovelha segue para o matadouro de forma pacífica, mansa, sem revolta. Mais ainda, a ovelha a ser sacrificada é sem mácula, pura. Pura e sem mácula tem o significado de ovelha alva, branca. Essa é a figuração do Cristo. O oposto é a Ovelha Negra, ovelha desgarrada do rebanho, a que não segue o pastor, ovelha perdida. Assim, uma ovelha negra é o representante do sujeito rebelde, fora do padrão, perdido, sujo. Além disso, cabe destacar o tom racialmente marcado da expressão que aponta para o modo como na sociedade brasileira imagens e termos relacionados ao negro estão associados, geralmente, ao que é ruim, obscuro, perigoso, aversivo, revelando dessa forma o racismo estrutural existente no Brasil (EVARISTO, 2009; GONZALEZ, 2019).

O período sequencial enunciativo foi: “[...] eu sou de pleno acordo de não trabalhar na contra mão do poder maior [...]”. E por que não opor-se? O medo/pavor talvez seja o de ocupar o lugar de abjeção destinado apenas à “ovelha negra”. Portanto, nesse contexto, essa sequência tem como função uma oposição simbólico-política. O momento político polarizado pode ser tocado ao associarmos esses períodos, sendo o segundo a explicação do primeiro.

A oração que consta em ata é esta: “[...] eu sou de pleno acordo de não trabalhar na contra mão do poder maior [...]”. Inicia-se com um pronome singular: “eu”. O efeito de sentido é da singularidade, da singularidade que não poder ser posta em xeque e que no limite se indispõe deliberadamente a um outro. O sentido apreendido é: “Eu” penso assim, esse é o meu pensamento, é o que vale. O verbo empregado poderia ser o “estar”: eu estou de pleno acordo, porém a fala é “eu sou de pleno acordo”, dando um peso constitutivo a esse “eu sou”. Logo, essa não é uma opinião, uma posição política, mas sim uma constituição singular que deve prevalecer em detrimento das outras opiniões.

“Não trabalhar na contra mão do poder maior” é o final da oração. Iniciamos nossa análise pelos sentidos de “poder maior”. Dispensando os aspectos históricos do conceito de Poder Maior, vamos nos ater aos aspectos linguísticos dessa categoria de análise. Primeiramente, o Poder é tratado como um objeto, um bloco monolítico, algo que se possui. O Poder Maior também pressupõe a existência de poderes menores. Poderes menores poderiam ser entendidos como oposições ou poderes complementares, subordinados ao Poder Maior. Não trabalhar na contramão do poder maior pode significar também que o Poder Maior dita uma direção. Um poder qualquer influência uma direção, o poder maior pode significar haver uma direção única, não influenciável, sem resistência, um poder que dita uma direção única e a ser seguida indiscutivelmente por todos.

O Poder Maior contém também componentes jurídicos e religiosos. A exterioridade jurídica se dá pela associação do dito “todo poder emana do povo”, e a religiosa associa-se do “todo poderoso”, a figura de “Deus”. Assim, o poder maior é uma fórmula atravessada pela suposta delegação popular e unção divina. Aquele que se opõe ao Poder Maior, a suposta “Ovelha Negra”, estaria se opondo à vontade do povo e aos desígnios de “Deus”.

Esses componentes jurídicos e religiosos são traduzidos na visão totalitária de gestão pública, visão tributária da concepção colonialista e autoritária de governo. Há, portanto, subjetividades colonizadas, identificadas ao colonizador e desejosas de serem reconhecidas pela metrópole e pelo poder estabelecido e que expressam um racismo como sintoma (GONZALEZ, 2019). De acordo com Gonzalez,

Vale lembrar que tal processo [colonialismo europeu] se desenvolveu no terreno fértil de toda uma tradição etnocêntrico pré-colonialista (século XV – século XIX), que considerava absurdas, supersticiosas ou exóticas as manifestações culturais dos povos “selvagens”, daí a “naturalidade” com que a violência etnocida e destruidora das forças do pré-colonialismo europeu se fez abater sobre esses povos. No decurso da segunda metade do séxulo XIX, a Europa transformaria tudo isso em uma tarefa de explicação racional dos (a partir de então) “costumes primitivos”, em uma questão de racionalidade administrativa de suas colônias. Agora, diante da resistência dos colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados; chegando, às vezes, a não parecer violência, mas “verdadeira superioridade”

(2019, p. 343-344 – grifo nosso).

3 RESULTADOS E IMPACTOS

As políticas públicas de Saúde, Assistência Social, Defesa de Direitos das Crianças, Adolescentes, População LGBTT+, Minorias Étnicorraciais e Pessoas com Deficiência, entre outras, têm enfrentado grandes dificuldades. As dificuldades se manifestam nos meios político-administrativos como financiamento, planejamento, execução, avaliação e controle e, também, na dimensão democrática da concepção de participação social, que é o meio de produção de cidadania e de promoção de compromissos dos segmentos sociais com suas próprias demandas. Nesse sentido, essa experiência relata uma observação/ação na Saúde e a compreende como uma possibilidade de inserção na lógica das políticas públicas e, portanto, generalizável aos demais segmentos. Ao mesmo tempo, apresenta alguns limites e impasses para a efetivação de políticas públicas inclusivas e democráticas cujos obstáculos estão relacionados a um regime de colonialidade de pensamento que atravessa corpos e subjetividades.

Entre as possíveis dimensões formativas, compreendemos que houve um impacto positivo para o grupo de estagiários. A primeira dimensão que apontamos é a ético-política, na qual a formação profissional se funda na cidadania e nos compromissos que a própria profissão assume para o desenvolvimento do País. Estamos, neste ponto, de acordo com Pitombeira, Xavier, Barroso e Oliveira (2016) que manifestam o valor da aproximação dos saberes com as práticas, unindo as experiências formativas com as vivências acadêmicas.

As dimensões teóricas e técnicas são postas em avaliação de pertinência e aplicabilidade diretamente no campo para o qual foram endereçadas. As habilidades e competências relativas à observação, análise de contexto, avaliação de propostas e de políticas, participação em debates, construção de texto e intervenções grupais, entre outras, são desenvolvidas nos planos mais protegidos da supervisão de Estágio e no plano público das reuniões de Conselhos Municipais e das esferas municipal e estadual de Conferências. As habilidades de construção de vínculos e de atuação multiprofissional são privilegiadas nessa experiência participativa.

A dimensão social que buscamos se reflete nas identificações promovidas pelas leituras, participações e exposições pessoais. Em especial, a identificação dos mecanismos que põem em marcha o racismo estrutural em nossa sociedade pode promover a produção de argumentos e posturas para uma atitude antirracista, como vista em Ribeiro (2019).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das experiências acima descritas e analisadas, compreende-se não apenas a importância dos Estágios Curriculares em Psicologia, mas também a necessidade de que sejam pensados e aplicados em diferentes contextos. Além disso, que sejam conduzidos de forma a estimular o compromisso dos estagiários com uma prática crítica e libertadora. As análises empreendidas a partir de um espaço de Controle Social, tomando os discursos como objetos privilegiados de análise institucional e política, apresentaram-se como ferramenta importante na produção de saberes, reflexão e construção coletiva. Acreditamos que os dispositivos de saber-poder encontrados em campo e por nós problematizados, aliados à capacidade de produção de dados locais associados aos conceitos/ferramentas de análise para enfrentamento das iniquidades e dos privilégios, precisam ser continuamente destacados a fim de que resultem em ferramentas para a produção de uma psicologia crítica e decolonial. Nesse sentido, uma práxis psicológica comprometida com a denúncia e o enfrentamento dos mecanismos de opressão e desigualdade tem muito a contribuir.

Revisão gramatical realizada por: Nilzira Aparecida Nabuco

E-mail: nilzira@gmail.com

REFERÊNCIAS

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Recebido: 12 de Junho de 2020; Aceito: 19 de Fevereiro de 2021

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