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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.3 Campinas jul./set 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i3.8663714 

ARTIGO

POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE TRABALHO COLETIVO EM FREINET E FREIRE

POSSIBLE APPROACHES TO THE CONCEPT OF COLLECTIVE WORK IN FREINET AND FREIRE

POSIBLES ENFOQUES SOBRE EL CONCEPTO DE TRABAJO COLECTIVO EN FREINET Y FREIRE

Afonso Barbosa de Lima Júnior1 

Lebiam Tamar Gomes Silva2 

1Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Professora Doutora - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: avarani@unicamp.br

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP - Brasil. Pósdoutora - Universidade de Coimbra. Coimbra, PT. Professora adjunta - Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro (UFRRJ). Seropédica, RJ - Brasil. E-mail: profa.adriana@hotmail.com


RESUMO

O objetivo deste artigo é investigar a presença do conceito “trabalho coletivo docente” nas obras “Pedagogia do Oprimido” e “Pedagogia da Esperança” de Paulo Freire, “Para uma escola do Povo” e “Educação do Trabalho” de Celestin Freinet. A expressão trabalho coletivo docente ipsis literis não foi encontrada nas obras originais dos autores, entretanto conceitos semelhantes podem ser identificados. Os conceitos de solidariedade, dialogicidade, diálogo, reflexão, liberdade, colaboração, comunhão e trabalho como ideias que guiam o entendimento de trabalho coletivo estão no centro das obras de Freire. Freinet explora os princípios do trabalho coletivo por meio dos seguintes temas: educação do trabalho, cooperação, auto-organização. Ambos os educadores compreendem o conceito de trabalho coletivo docente em consonância com um projeto de educação para e com o povo. Enquanto Freire releva princípios de uma filosofia de projetos coletivos para um processo de humanização, Freinet trabalha estes conceitos no campo da organização do trabalho pedagógico e nos conduz a refletir e estabelecer uma proposta concreta de trabalho cooperativo entre estudantes e professores. São leituras que retratam a importância de uma educação para os excluídos, para e com as vozes oprimidas da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE Trabalho coletivo docente; Formação Humana; Formação de professores

ABSTRACT

The aim of this article is to investigate the presence of the concept "teachers’ collective work" in the works "Pedagogy of the Oppressed" and "Pedagogy of Hope" by Paulo Freire, "For a people's school" and "Education through work" by Celestin Freinet. The expression “teachers’ collective work” wasn´t found ipsis literis in both authors' original texts, however close concepts can be identified. The concepts of solidarity, dialogicality, reflection, freedom, collaboration, communion and labor as ideas that drive the understanding of collective work are in the very heart of Freire's work. Freinet explores the principles of the collective work by the following themes: education of labor, cooperation, self-organization. Both educators comprehend the concept teachers’ collective work in line with an education project done for and with the people. While Freire revealed principles for a philosophy of the collective projects for a humanization process, Freinet developed these concepts in the area of the organization of pedagogical work and conduct us to reflect and to establish a concrete proposal for cooperative work with students and teachers. These are readings that retrieve the importance of a education for the excluded, for and with the oppressed voices of society.

KEYWORDS Teachers’ collective work; Human formation; Teacher education

RESUMEN

Em 2018, nos desafiamos a ampliar nosso estudo sobre trabalho coletivo docente a partir do reconhecimento de como a defesa dele na formação de professores e na condução do trabalho pedagógico tem raízes também no pensamento de importantes educadores, os quais discursaram e praticaram uma educação mais humana, mais sensível, mais comprometida com a emancipação de homens e mulheres. Dentre tantos, nos desafiamos a estudar dois educadores com os quais já vínhamos trabalhando de diferentes formas. Paulo Freire e Celestin Freinet foram os escolhidos para colaborar com a ampliação do espectro da compreensão do conceito trabalho coletivo docente, nos levando para reflexões que extrapolam as interpretações sobre o tema preconizado em propostas políticas de formação de professores. Exercício semelhante de aproximação entre esses autores já foi construído por Boleiz Júnior (2010, 2015), porém com outros objetivos de identificações/relações conceituais. Ressaltamos que a singularidade do nosso trabalho se relaciona justamente ao campo da docência, especialmente à dimensão coletiva do trabalho docente no pensamento dos autores, ou seja, como os autores concebem ou não a necessidade de trabalho coletivo no interior da práxis pedagógica. Entendemos o trabalho coletivo como o trabalho que ocorre entre os professores, mediados e constituído pela linguagem e que resulta em diferentes ações, em especial aquelas que implicam em aprendizagens no cotidiano escolar. Ele mantém forte vinculação com a perspectiva de que é resultado das interações vividas pelos e entre os sujeitos (COSTA; VARANI, 2017) e traz no seu bojo a dimensão de trabalho enquanto produção humana.

PALAVRAS-CLAVE Trabajo colectivo de los maestros; Formacion humana; Formacion del profesorado

1 INTRODUÇÃO

Em 2018, nos desafiamos a ampliar nosso estudo sobre trabalho coletivo docente a partir do reconhecimento de como a defesa dele na formação de professores e na condução do trabalho pedagógico tem raízes também no pensamento de importantes educadores, os quais discursaram e praticaram uma educação mais humana, mais sensível, mais comprometida com a emancipação de homens e mulheres. Dentre tantos, nos desafiamos a estudar dois educadores com os quais já vínhamos trabalhando de diferentes formas. Paulo Freire e Celestin Freinet foram os escolhidos para colaborar com a ampliação do espectro da compreensão do conceito trabalho coletivo docente, nos levando para reflexões que extrapolam as interpretações sobre o tema preconizado em propostas políticas de formação de professores. Exercício semelhante de aproximação entre esses autores já foi construído por Boleiz Júnior (2010, 2015), porém com outros objetivos de identificações/relações conceituais. Ressaltamos que a singularidade do nosso trabalho se relaciona justamente ao campo da docência, especialmente à dimensão coletiva do trabalho docente no pensamento dos autores, ou seja, como os autores concebem ou não a necessidade de trabalho coletivo no interior da práxis pedagógica. Entendemos o trabalho coletivo como o trabalho que ocorre entre os professores, mediados e constituído pela linguagem e que resulta em diferentes ações, em especial aquelas que implicam em aprendizagens no cotidiano escolar. Ele mantém forte vinculação com a perspectiva de que é resultado das interações vividas pelos e entre os sujeitos (COSTA; VARANI, 2017) e traz no seu bojo a dimensão de trabalho enquanto produção humana.

Nesse âmbito, para além da defesa do trabalho coletivo em políticas educacionais, em especial nas décadas de 1990 e 2000, também vale referenciar que defendê-lo está diretamente associado a uma luta histórica por uma educação mais cooperativa, mais solidária, mais dialógica. Portanto, o tema (nos) é muito caro: enquanto autoras, cada uma, em sua formação e atuação, vem desenvolvendo e intensificando a discussão da formação no encontro, da formação com o outro, da formação fortalecida no coletivo. Assim, o interesse e inserção no tema trabalho coletivo docente se desenvolveu de modo processual e é de longa data, desde o mestrado de uma das autoras (VICENTINI, 2006) e do doutorado produzido pela outra (VARANI, 2005). Tal confluência também possibilitou a elaboração sistemática de revisita ao conceito (COSTA; VARANI, 2017) e de diálogo com as produções tecidas; por conseguinte, totalizamos mais de uma década de relação com o tema no campo da pesquisa e na ação com docentes em duas universidades públicas, sempre com vínculos traçados por intermédio de ações educativas no interior da escola pública e com coletivos de professores e professoras.

O trabalho de análise desenvolvido por nós, ao longo do ano de 2018, se voltou para as seguintes obras:

QUADRO 1 Obras escolhidas 

Paulo Freire Pedagogia do Oprimido (1987)

Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992)
Célestin Freinet Educação para o trabalho (1988)

Para uma Escola do Povo: guia prático para a organização material, técnica e pedagógica da escola popular (1996)

Fonte: As autoras (2020)

O exercício analítico procedeu à identificação do modo como Freire e Freinet escreveram e inscreveram sobre trabalho coletivo ou o tipo de aproximação com esse conceito. Iniciamos com a leitura de uma obra específica de cada um dos educadores, procurando nos termos, conceitos e ideias uma ocorrência que pudesse nos remeter ao trabalho coletivo docente. Foi um movimento de busca de indícios, com base em Ginzburg (2006), que nos direcionou à ideia inicialmente formulada sobre o conceito. Tanto Freire (1987 e 1992) quanto Freinet (1988 e 1996) não mencionam ipsis litteris tal expressão em sua forma composta, entretanto, as produções se revelam íntimas ao tema. O primeiro discute os conceitos solidariedade, dialogicidade, diálogo, reflexão, libertação, colaboração, comunhão e trabalho como ideias que corroboram as leituras balizadoras no processo de compreensão sobre o trabalho coletivo; o segundo também não faz menção ao referido conceito, contudo, explora princípios que o cotejam por intermédio dos temas: educação pelo trabalho, cooperação, auto-organização.

Face aos conceitos encontrados, reconhecemos que os escritos eram férteis para a aproximação e identificação de elementos muito importantes da nossa reflexão. Demos continuidade com a outra obra de cada autor. Ao final da segunda leitura, produzimos uma reflexão mais qualitativa sobre o conceito, que será apresentada na segunda parte deste artigo. Vale ainda ressaltar que este trabalho analítico se fez criteriosamente tanto no que diz respeito à cronologia das referidas publicações quanto ao exame, seleção e sistematização de palavras/expressões e fragmentos textuais que constituíam, a nosso ver, relações mais diretas/íntimas com o conceito por nós investigado.

Com vistas à rigorosidade do estudo, preservamos como critério a localização de palavras-conceitos que, diretamente, se apresentavam de modo aproximado à ideia de trabalho coletivo, mas também à sua oposição. Essas palavras-conceitos são expressões-ideias que, no interior das obras, se referiam ao individualismo, sendo este tratado de forma contraposta. No final de 2018, promovemos um encontro público em que apresentamos nossos achados nessas duas obras e nele pudemos aproximar as leituras e trocar elementos com um grupo de pessoas que estiveram presentes. A partir de então, surgiram algumas sínteses que apresentaremos na última parte deste texto.

Todo esse processo de trabalho narrado nos permitiu compreender que o nosso objetivo inicial foi sendo redimensionado: já não encontrávamos uma preocupação restrita com o trabalho coletivo docente em si, mas um trabalho coletivo educativo, uma coletividade que defendia que homens e mulheres em comunhão, no contexto da escola, também se formam com a relação entre as próprias crianças, jovens, adultos e professores. A dimensão da coletividade foi se expandindo: da busca restrita entre professores para uma discussão do coletivo na educação, ou seja, para o trabalho coletivo educativo.

2 APROXIMAÇÕES DO TRABALHO COLETIVO DOCENTE EM FREIRE

O movimento de analisar os conceitos que nos remetem à ideia de trabalho coletivo docente se fez no interior de duas obras de Freire, as quais nos parecem essenciais à compreensão dos fundamentos de seu pensamento: a “Pedagogia do Oprimido” (1987), produzida na/com a experiência do exílio entre os anos de 1967 e 1968, e a “Pedagogia da Esperança” (1992), que compõe um diálogo, “um reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, subtítulo que indica um movimento reflexivo. São pedagogias em posição de diálogo que espelham um movimento de reflexão sobre o pensamento produzido. A linguagem mais narrativa é indubitavelmente identificada na “Pedagogia da Esperança”, quando é possível conhecer as memórias contadas por Freire. Em ambos os escritos, os sentidos do coletivo estão presentes tanto na tessitura dos conteúdos (consistentemente estruturados e relacionados) quanto nas experiências do vivido exploradas pelo autor. Esse movimento denota aproximações entre o que foi elaborado, refletido, vivido e publicado, portanto apontam para práxis entendida como “reflexão e ação verdadeiramente transformadoras da realidade, fonte de conhecimento e criação” (FREIRE, 1987, p.92).

Antes de anunciar os conceitos propriamente dito, nos detemos um pouco em Paulo Freire: um educador brasileiro nordestino, que viveu entre os anos 1921 e 1997, produziu uma importante teoria do conhecimento voltada à problematização das formas de existir de homens e mulheres na sociedade. Suas bases de pensamento foram construídas no diálogo e no interior do vivido com diferentes segmentos sociais, com múltiplos sujeitos e em distintos espaços e tempos: ora em várias regiões brasileiras e/ou ora em diversos países em que residiu, seja na condição de exilado ou quando desenvolveu alguma outra atividade. Freire pensou a relação das pessoas com o mundo, refletiu sobre possibilidades mais humanas e justas de existências, construiu referenciais fundantes em plurais cenários sócio- históricos e experienciou uma grave conjuntura brasileira de crise, sendo reconhecido mundialmente (FREITAS; FOSTER, 2016).

Identificamos os seguintes conceitos na “Pedagogia do Oprimido” (1987): solidariedade, libertação, diálogo e dialogicidade, concepção de reflexão e ação, colaboração, comunhão, dimensão coletiva da ação e da reflexão e crítica ao individualismo como fundamento que se remete ao seu oposto; já no que se refere à “Pedagogia da Esperança” (1992), localizamos: homens e mulheres como seres sociais, estar com educadoras e educadores, utopia, o trabalho docente com famílias, diálogo como constitutivo da identidade docente e esperança. Em virtude da natureza e teor da escrita de cada obra, é possível afirmar que, na primeira, os conceitos são trabalhados de forma relacional, sendo apresentados no interior da abordagem temática, isto é, os conceitos estão mais clarificados/identificáveis; já na “Pedagogia da Esperança” (1992), a captura de palavras-conceitos que expressam a ideia do trabalho coletivo docente está contida nas narrativas contadas por Freire (1992), pois trata-se de um retorno à “Pedagogia do Oprimido” (1987), sendo as experiências explanadas como contextuais à reflexão do vivido e do que foi construído pelo autor.

Como já afirmamos, em ambos os livros não identificamos a presença do trabalho coletivo docente enquanto expressão literal, mas como fundamento que perpassa todo o pensamento do autor. Portanto, é necessário construir um movimento de articulação entre os conceitos que selecionamos e buscar uma aproximação que consideramos legítima do ponto de vista estrutural da abordagem freireana.

Em “Pedagogia do Oprimido” (1987), o conceito de solidariedade é compreendido como posição radical, “exigindo de quem se solidariza, que assuma a situação de com quem se solidarizou” (FREIRE, 1987, p. 20). Essa ideia aparece relacionada com a dialogicidade, entendida como “essência da educação” (p. 39), sendo a colaboração uma “característica da ação dialógica” (p. 96): solidariedade, dialogicidade e colaboração se inter-relacionam como práxis. Nessa tríade, é possível identificar uma intencionalidade do movimento do sujeito, já que este, para assim ser, não agiria de modo espontaneísta. Ainda nessa perspectiva, localizamos a comunhão como conceito que provocaria a colaboração identificada no contexto da ação revolucionária humana, orientada à libertação dos oprimidos (FREIRE, 1987). O sentido de comunhão, portanto, pode ser interpretado não unicamente como aspecto relacional, mas essencialmente como partilha de algo comum, isto é, o compartilhamento de uma luta orientadora à libertação dos oprimidos.

Já o individualismo aparece representado na obra como a negação de um princípio do trabalho coletivo, pois envolve a busca pelo “ser mais”, que não se realizaria no “isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos.” (FREIRE, 1987, p. 43). Por sua vez, a ação e a reflexão também são constituídas por um fundamento coletivo de agir e pensar, compreendidas de modo não dicotomizado, pois “ação e reflexão, não pode dar-se sem ação e reflexão dos outros, se o seu compromisso é o da libertação.” (FREIRE, 1987, p. 70).

Os sentidos do coletivo na “Pedagogia do Oprimido” (1987) estão entrecruzados com os sentidos de libertação em comunhão, sendo os homens concebidos enquanto seres de práxis. Freire destaca esse pensamento embasado em ideais democráticos de construção de uma sociedade outra, mais justa e humanizadora. Assim, a ação do educador não se constituiria de modo isolado em relação a um projeto de sociedade, nem de maneira imposta e hierárquica de uns pensando pelos outros, mas através da interpretação coletiva crítica do mundo, uma leitura de mundo coletivizada que se dá na tensão entre quem oprime e quem é oprimido.

Já na “Pedagogia da Esperança” (1992), homens e mulheres são referenciados enquanto seres sociais carregados de culturas, histórias e memórias, estas constituídas em diferentes tempos e espaços de vida. A dimensão do coletivo é expressa, predominantemente, pelo ato de rememorar as situações em que Freire viveu com educadores e educadoras, com educandos e educandas, com famílias e em viagens, espaços diversos e no exílio:

Aprendi fazendo parte, ao lado dos educadores e educadoras chilenas, de cursos de formação para quem, nas bases, nos assentamentos da reforma agrária, trabalharia com camponeses e camponesas, a questão fundamental da leitura da palavra, sempre precedida pela leitura do mundo

(FREIRE, 1992, p. 44).

Portanto, é clarificada a ideia de um coletivo histórico, que atravessa os tempos e se apoia na utopia enquanto “denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens” (FREIRE, 1992, p. 91). Portanto, a preocupação de Freire se volta a um coletivo social e a um coletivo construído (também) no interior da escola, que é envolvido por toda a comunidade. Essa dimensão pode ser compreendida quando ele narra a lida com as famílias, ao recordar sua atuação no SESI (Serviço Social da Indústria):

preocupado com as relações entre escolas e famílias, vinha experimentando caminhos que melhor possibilitassem o seu encontro [...] ir aumentando a conotação política daquela presença no sentido de abrir canais de participação democrática a pais e mães na própria política educacional vivida na escola

(FREIRE, 1992, p. 20).

Nesse processo de relação no coletivo, o diálogo é abordado como elemento constitutivo da identidade docente, sendo esta construída na relação com o outro. Por conseguinte, a esperança somente teria sentido se “partejada na inquietação criadora do combate na medida em que, só assim, ela também pode partejar novas lutas em outros níveis” (FREIRE, 1992, p. 198). Com isso, os modos de ser e estar no mundo são travados.

Ao pensarmos sobre ambas as Pedagogias, do Oprimido e da Esperança, podemos afirmar que o tema trabalho é caro em Freire, pois é referenciado como elemento libertador dos homens e mulheres em suas condições de oprimidos e oprimidas, e, se assim não se configurar, tende a objetificar os seres humanos:

É que, somente na medida em que os homens criam o seu mundo, que é mundo humano, e o criam com seu trabalho transformador, eles se realizam. A realização dos homens, enquanto homens, está pois, na realização deste mundo. Desta maneira, estar no mundo do trabalho é um estar de dependência total, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhe pertence, não podem realizar-se. O trabalho não-livre deixa de ser um quefazer realizador de sua pessoa, para um meio eficaz de sua “reificação”.

(FREIRE, 1987, p. 142).

Nesse sentido, a emancipação se faz com o outro: “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52). Observamos um princípio que se faz na tensão entre opressores e oprimidos, e que se caracteriza como luta humana, não neutra, não dada, processual, implicada e intencionada, já que sem reflexão se constituiria como essencialmente ativismo. Não sendo um movimento espontâneo, ele expressaria uma ação/reflexão coletiva que se faz pelo exercício no e com o coletivo, sendo esse aspecto frisado por Freire (1987, p. 53): “não é libertação de uns, feita por outros”, mas um processo contínuo de emancipação e que pressupõe o inacabamento humano em seus modos de existir.

Ao nos reportarmos ao sentido educativo do coletivo, este ocorrido em diversos espaços da vida e não unicamente na escola, a concepção de educação bancária também se manifesta orientada por um princípio da valorização das relações hierarquizadas, sendo conivente ao antidiálogo e inclinada às necessidades dos opressores, caracterizando-se como contrária à ideia do trabalho coletivo.

3 O TRABALHO COLETIVO EM FREINET

As duas obras de Freinet escolhidas para leitura carregam marcas de suas datações. “Para uma Escola do Povo: guia prático para a organização material, técnica e pedagógica da escola popular” foi lançada em 1946 com o título “l´École moderne Francaise”. A obra se pretende um guia prático da escola popular, mas, conforme nos é advertido no início do texto, ele também se configura como um manifesto pela educação do povo. O segundo livro, “Educação pelo Trabalho”, data de 1949. É uma obra que apresenta, num diálogo entre um camponês e um professor, problematizações essenciais à compreensão de uma proposta de ensino baseada no trabalho. Assim como no estudo das obras de Freire, nos livros de Freinet também não há a expressão ipsis literis “trabalho coletivo docente”. Entretanto, há princípios que nos remetem à coletividade. Lembremos que as obras datam da primeira metade do século XX, o que pode indicar a razão da não presença do termo. Percebemos no discurso de Freinet marcas linguísticas de seus tempos históricos. Diferentemente de Freire, Freinet não escreveu conceitualmente. Logo, ao trazer algumas terminologias para esse contexto, o fazemos no contexto descritivo ou ficcional onde se encontram.

Vale também explicitar que Célestin Freinet foi professor de escola primária, membro do Partido Comunista Francês (PCF), militante dos movimentos docentes. Participa da segunda Guerra Mundial. Oliveira (1996) nos lembra que ele viveu entre duas guerras e que, tendo se dedicado meio século de sua vida à educação, sofreu alterações em sua forma de ver a escola. Os livros que tomamos para análise são escritos após sua volta da Segunda Guerra Mundial, numa fase em que sistematiza seu pensamento, e tem por objetivos “consignar o corpo de doutrinas de toda uma proposta pedagógica que aparece, então como um todo orgânico” (p. 91). Para a autora, Freinet defende uma "escola que participe da luta por uma mudança radical das estruturas sociais." (p. 97)

No gênero discursivo ficcional da obra “Educação pelo trabalho” os personagens envolvidos travam um diálogo filosófico acerca da educação das crianças. Na figura do camponês chamado Mathieu, é encarnado um crítico feroz à estrutura escolar tradicional. Nessa crítica, ele desenvolve algumas ideias sobre a defesa do trabalho na escola. Podemos fazer uma inferência de que a opção pela escrita do livro já é por si uma ação do trabalho. Essa opção poderia estar relacionada com a defesa de Freinet sobre a formação que o diálogo nos oferece. Ele potencializa a formação do sujeito na medida em que linguagem também é trabalho. Quando falamos com o outro, produzimos formas de ser e pensar no mundo.

Sobre a linguagem como trabalho, há uma passagem no livro “Para uma escola do Povo” em que ele defende seu papel na constituição do sujeito:

Mas há outro gênero de ferramentas, mais sutis, decerto, e mais imateriais, cujo exaltante emprego não poderíamos desprezar. São os que permitem à criança entrar em contato com seus semelhantes, externar e formular suas necessidades, desenvolver e aprofundar a consciência que tem das relações entre os elementos e suas manifestações, dominar progressivamente a natureza pela linguagem – que, depois das mãos, é a primeira e mais eminente das ferramentas – pelo desenho, a escrita, a imprensa e a leitura.

(FREINET, 1996, p. 33)

Neste momento, estabelece-se o elemento do relacional e do ser social, pois há o reconhecimento de que a formação ocorre nas relações sociais, neste caso, mediada pela linguagem. E já que nos remetemos ao termo trabalho, vale lembrar que “Pedagogia do Trabalho” é a designação da proposta de Celestin Freinet. Subjaz à esta proposta uma compreensão de que o ato educativo ocorre pela capacidade humana de agenciar o processo de autoformação e de formação da humanidade. A humanização se encontra na capacidade de ser sujeito histórico, de ser produtor de cultura. O contexto escolar nesta proposta toma como princípio a potencialidade da criança de se produzir e produzir o mundo.

Nesse sentido, a escola é espaço de vida, de diálogo frequente com a vida. Veremos essa dimensão refletindo em suas palavras ao longo das obras lidas e analisadas. Não é em vão que é construída uma crítica contundente à escolástica. A título de complementaridade, vale lembrar que a proposta de Freinet se pauta em quatro pilares: trabalho, cooperação, livre expressão e autonomia.

A proposição do trabalho como princípio pedagógico compreende o humano como potência de transformação, pois carrega características fundamentais para a sua efetivação, como a capacidade de projetar o mundo, de transformá-lo e de produzi-lo. É uma compreensão de trabalho que não se dissocia da vida, uma compreensão de que a ação humana e a ação material são colocadas em movimento e refletidas.

Na obra “Uma escola para o povo”, o papel do trabalho na escola é definido da seguinte forma:

O trabalho será o grande princípio, o motor e a filosofia da pedagogia popular, a atividade de que decorrerão todas as aquisições. Na sociedade do trabalho, a escola assim regenerada e corrigida estará perfeitamente integrada ao processo geral da vida ambiente, uma engrenagem do grande mecanismo de que, hoje, ela está demasiado arbitrariamente desconectada.

(FREINET, 1996, p. 11)

Na obra “Escola pelo trabalho”, Freinet inicia com duras críticas à escola tradicional.

Dentre tantas outras passagens, nesta ele a critica a partir do distanciamento da vida.

Foi essa, porém, a louca operação que a escola contemporânea tentou realizar. Acreditou-se que se podia impunemente, e com proveito, arrancar a criança de sua família, de seu meio, da tradição que a formou, da atmosfera natal que a banhou, do pensamento e do amor que a alimentaram, dos trabalhos e dos jogos que foram suas preciosas experiências, para transportá-la autoritariamente para esse meio tão diferente que a escola é, racional, forma e frio, como a ciência da qual queria ser o templo.

(FREINET, 1988, p. 85)

É a partir da reflexão sobre o distanciamento da vida que se encontra a defesa de uma das principais ideias para este momento, que é o conceito de trabalho e a sua centralidade na organização escolar. Daí depreende-se a educação pelo trabalho:

Pode-se dizer que, apesar da aderência tenaz de uma tradição secular, a escolástica encerrou seu reinado. Isso não quer dizer que não haja perigo em prolongar sua agonia. Vocês devem substituí-la logo por uma formação que tire do povo, de suas necessidades, de seus modos de vida, de seus hábitos de agir, de trabalhar e de pensar, as raízes vivazes que assegurarão a potência de sua seiva. Ao mesmo tempo, vincularão essa formação ao grande pensamento humano, a tudo o que o progresso nos trouxe de positivo e de definitivo, bem como as grandes correntes da civilização que, através dos séculos, por intermédio da religião e da tradição, iniciaram esse movimento progressivo que temos a missão de fortalecer e de prosseguir.

O que estimula e orienta o pensamento humano, o que justifica seu comportamento individual e social é o trabalho em tudo o que hoje tem de complexo e de socialmente organizado, o trabalho. Motor essencial, elemento do progresso e da dignidade, símbolo de paz e de fraternidade.

Só que, atenção: não me contentarei em ligar essa escola ao trabalho pelo intermédio falacioso das palavras e dos livros. Não repetirei essa traição, mas colocarei efetivamente o trabalho na base de toda a nossa educação.

(FREINET, 1988, p. 167-168).

Em continuidade, ele explicita que o trabalho não será o instrumental, não será o praticismo, não será a formação técnica. Sobre isso, ele afirma:

Aqui não se trata de aprendizagem e nem sequer de pré-aprendizagem. Constatamos que o trabalho, que os ofícios estão, queiramos ou não, no centro da vida das crianças, constituem o substrato comprovado sobre o qual vamos construir todo o nosso edifício cultural. Já lhe disse: é preciso primeiro ver o que existe para depois construir sobre o sólido e o real.

(FREINET, 1988, p. 168)

A partir de algumas das considerações feitas acima sobre o conceito de trabalho, percebemos o elemento do cooperativo pela implicação social e relacional sobre a qual o tema está posto. Em sua obra, é frequente o uso do termo cooperação. Esse termo carrega uma carga conceitual que se aproxima do que procuramos na obra como coletivo.

Podemos afirmar que há duas dimensões de trabalho cooperativo em Freinet: uma refere-se ao encontro entre professores e instalação da cooperativa de escola laica; a outra é o trabalho cooperativo entre estudantes. Tais dimensões são coerentemente articuladas.

Sobre a dimensão do trabalho entre professores, na obra “Educação pelo trabalho”, Freinet faz a seguinte consideração:

Outra característica de meu espírito ou de minhas tendências me impeliu para fora dos caminhos rotineiros: uma necessidade como que fisiológica e moral de aderir a uma classe social e, sobretudo, à cooperação de ensino que refletia maciçamente os dados do meio social em que me inseria. Meu problema se configurava por si mesmo: encontrar o meio de trabalhar melhor sem me isolar de meus colegas.

Quando descobri a impressora escolar, poderia ter patenteado a minha inovação [...]. Mas, fazendo isto ter-me-ia afastado desde o início da massa dos educadores [...] Tomei imediatamente outra direção: em vez de guardar segredo sobre minha descoberta, eu a verti deliberadamente no cadinho cooperativo.

(FREINET, 1988, p. XXVI).

As ações pedagógicas, utilizando-se da imprensa escolar, foram o tema inicial na comunicação entre professores de diferentes escolas de vilas francesas. Ao longo de 1926 e 1927, esses professores trocaram correspondências (naquele contexto as chamavam de circulares) sobre como estavam a dinamizar o trabalho docente com essa técnica. Em 1928, foi fundada a cooperativa de ensino laico, que tinha como perspectiva divulgar e produzir materiais didáticos entre professores. Depois, em 1947, a recriação da cooperativa resultou no Instituto Cooperativo da Escola Moderna (ICEM).

Na obra “Para uma escola do povo”, que se caracteriza como um manual da escola moderna, o autor, ao explorar como deve ser a escola, nos leva a pensar sobre o princípio da cooperação, bem como sobre o lugar do trabalho na escola. Neste caso, é a segunda dimensão da cooperação, que se configura como o trabalho entre as crianças.

Dentre tantas passagens, nesta Freinet nos fala sobre oficina do trabalho, que deverá ser comunitária, sendo levada a cabo pelo grupo, e especializada, porque levará os estudantes a um processo formativo intencional, o qual desloca as crianças para contextos de conhecimentos específicos: “Nossa escola será uma oficina de trabalho, integrada à vida do ambiente. Essa destinação específica requer uma nova estrutura. A escola será uma oficina de trabalho ao mesmo tempo comunitária e especializada.” (FREINET, 1996, p. 53).

Além de orientar como devem ser configurados os espaços e dinâmicas do dia a dia, Freinet pontua sobre as responsabilidades de todos:

Seguindo uma ordem registrada num quadro especial, os compositores são designados, cada um com o papel exato que lhe cabe. Num canto do quadro, pusemos as tarefas cotidianas específicas, com seus titulares, tais como resultaram de nossa exploração consecutiva ao texto.

(FREINET, 1996, p. 95)

Essa reflexão sobre cooperação em Freinet não poderia ser finalizada sem referência a um instrumento utilizado por ele. Ele propõe vários instrumentos de trabalho no cotidiano escolar, os quais podem colaborar para a implementação dos seus princípios. Dentre os vários propostos, destacamos o jornal de parede. Ele pode ser compreendido como instrumento primordial para a produção de relações mais autênticas entre as crianças e entre estas e os adultos. Há trabalho na produção de uma oficina que lida com determinado conhecimento, e há também trabalho destinado a resolver problemas de convívio – há trabalho num jornal de parede. O jornal de parede é o espaço destinado para que o grupo converse, dialogue sobre os problemas enfrentados coletivamente a partir de suas críticas, de suas proposições e de seus elogios.

As crianças escrevem sobre esses aspectos do trabalho, o qual é conduzido ao longo de um tempo, e, em rodas, estabelecem o diálogo.

Quando sua leitura crítica termina, o presidente pergunta se algum aluno tem mais alguma coisa a dizer. Os mais tímidos, encorajados por essa atmosfera familiar de autocrítica coletiva, dizem o que acham. É preciso abreviar, exortando os interpeladores a escreverem suas críticas ou sugestões no próximo jornal. Nada é tão moral e tão proveitoso quanto esse exame comum, ao mesmo tempo crítico e construtivo, da vida da classe. As próprias condições desse exame coletivo excluem quaisquer tendências à maledicência, à calúnia, à maldade mesquinha. Porque a má intenção logo seria desmascarada e ridicularizada. Após uma curta prática – que durará, naturalmente, o tempo de purgar a classe dos hábitos.

O grupo, ao compor um espaço de diálogo e resolução de conflitos, fortalece, além da autonomia, as relações no coletivo. O exame coletivo realizado fortalece o grupo à medida que elimina tendências aos conflitos inócuos e potencializa o diálogo, que é tão caro na produção do trabalho coletivo.

4 CONTRIBUIÇÕES DAS REFLEXÕES SOBRE OS CONCEITOS RELACIONADOS AO TRABALHO COLETIVO DOCENTE NAS OBRAS LIDAS

A partir da leitura que realizamos de ambos os autores, identificamos pontos de contato interpretados como possíveis encontros de compreensões que podem ser tecidos dialogicamente. No que diz respeito às características textuais, foi possível identificar a escrita de Freire, em a “Pedagogia do Oprimido”, como sendo a mais próxima de um exercício profundamente filosófico sobre educação em sua amplitude. Essa identificação nos leva a compreender conceitos que colaboram para uma argumentação de cunho emancipador, enquanto que, na “Pedagogia da Esperança”, os escritos são marcadamente narrativos, com traços de visitas às memórias de um passado tencionado no presente. Já a escrita de Celestin Freinet, nas obras escolhidas, apresenta um caráter mais descritivo e prescritivo do que projeta como uma escola para o povo e escola do trabalho.

Nessas distintas escritas, produzidas em contextos históricos também distintos, encontramos o que estamos nomeando como pontos de contato, especialmente no que se refere à defesa pela formação no coletivo, preservando os contextos e a natureza da produção de ambos.

Semelhante movimento interpretativo foi possível identificar quanto ao conceito de colaboração: Freire e Freinet, enredados pelas singularidades de seus tempos e espaços, expressam o outro como sendo fundamental para o fazer/pensar do ato educativo. Destacamos, ainda, que se trata de um outro vivo e que se faz humano em processos relacionais de existência, portanto, um outro carregado de cultura e de história, que tensiona formas de viver/existir em sociedade.

O conceito de trabalho também passa pelos dois autores. Em Freire, a compreensão, como dito anteriormente, o referencia como elemento libertador de homens e mulheres, uma atividade não objetificadora de seres humanos quando intenciona e tensiona a transformação da sociedade em que se vive. Logo, o trabalho possibilita humanizar as pessoas num movimento dialético de relações: do ser humano-natureza, natureza-ser humano e humano-humano. Caráter semelhante aparece em Freinet, para quem o trabalho está no centro da vida das crianças e constitui substrato para a construção de toda a cultura humana, sendo também humanizador. Para ele, o trabalho precisa estar vinculado à vida, por isso faz duras críticas à escola tradicional e se fundamenta numa visão que articula o vivido ao estudo, articula a vida no interior da escola.

Os princípios que norteiam a construção e desenvolvimento do pensamento de Freire e Freinet parecem se encontrar quando se reportam à uma educação para o povo, quando valorizam o diálogo, a cooperação, o coletivo, o trabalho, a libertação no interior do ato educativo, em seu sentido mais genuíno, configurado como o que nos humaniza, e nos convoca e pensar formas de viver em sociedade mais justas, mais sensíveis à igualdade.

Um aspecto diferencial das obras dos dois autores está diretamente relacionado à perspectiva com que os temas são abordados, especialmente as referências que consideramos se aproximar dos trabalhos coletivos. Parece haver uma predominância do “como fazer” mais em Freinet do que em Freire, considerando em particular essas duas obras que analisamos. O discurso predominante de Freinet é materialista. Ele está preocupado em construir formas de organização do trabalho prático, do fazer cotidiano da escola, sem dissociá-lo de uma reflexão teórica. O pensar e fazer estão marcadamente estabelecidos nos seus textos pelas frequentes proposições de instrumentos, sobre como organizar o tempo e o espaço. Por outro lado, Freire é mais reflexivo, está no campo da reflexão filosófica, do questionamento crítico sobre o mundo e da compreensão da educação na constituição do humano, embora a práxis se constitua elemento fundante em seu pensamento rumo à construção do “ser mais”. Ambos têm um olhar crítico sobre a construção da forma escolar, mas o tratamento nos textos lidos nos leva a refletir sobre essa diferença. É uma marca que os distingue ainda que tenham princípios semelhantes.

4 PALAVRAS QUE NÃO FINALIZAM

Consideramos que a leitura e a análise desenvolvida neste texto não constituem unanimidade em termos de localização de conceitos e reflexões tecidas, isso porque a consistência e abertura das obras analisadas não permitiriam tal homogeneidade, uma vez que as bases de pensamento dos autores impelem pluralidade interpretativa. Entretanto, as aproximações desenvolvidas a partir do trabalho por nós realizado nos possibilita a compreensão da tessitura de um conjunto de conceitos que nos permitem ler a presença de um trabalho coletivo, o qual se revela educativo.

Nossa intenção inicial era encontrar elementos que se revelassem promissores para a discussão do trabalho coletivo docente. E fomos conduzidos, pelas reflexões estabelecidas ao longo do texto, a trazer, ao final, o termo “trabalho coletivo educativo”. As marcas dos autores nesse movimento de dizer sobre um ato educativo que extrapola a dimensão da escola, entre professores e/ou entre estudantes, está em constante diálogo com o mundo e com a vida, especialmente em Freire, levando-nos a assumir que encontramos esse outro conceito.

Reafirmamos o que já anunciamos em Costa e Varani (2017), em especial no que diz respeito ao vínculo da proposição do trabalho coletivo com uma educação emancipadora: o trabalho coletivo educativo não é a defesa de uma técnica de trabalho que promova um melhor desempenho de alunos ou que incrementa um produtivismo docente. É a defesa pelo fortalecimento de vínculos mais humanos, solidários, cooperativos, dialógicos e, por esse status, se constituem educativos.

A leitura desses autores, cotejada com as experiências que temos tido no campo educacional, reafirma princípios, os quais nos sãos caros e nos foram ensinados historicamente. O primeiro diz respeito à recuperação da formação humana integral. Trabalhar com as concepções de Freire e Freinet potencializa a compreensão do ser inteiro que chega às escolas, sujeito de conhecimento, de linguagem, sujeito formado na relação com outros, na dimensão ética e estética. O segundo está relacionado à necessidade de reforçar os vínculos humanos e solidários no trabalho docente. Tal movimento também nos leva à compreensão de que precisamos nos deslocar de nossos lugares rígidos e que nos levam à intolerância. É preciso fazer o exercício da escuta e da fala, sem produção de intolerâncias. Não podemos deixar de anunciar que essas defesas estão se forjando na defesa de uma sociedade mais igualitária, mais justa, com menos desigualdade social, menos exclusão.

Sobre as fronteiras e recomendações deste estudo, entendemos que as obras selecionadas não espelham a amplitude das construções de Freire e Freinet, mas sim uma análise que preservou o recorte das obras examinadas. Por esse motivo, entendemos pertinente indicar a continuidade do movimento interpretativo desenvolvido, pois favorece uma melhor compreensão sobre as possíveis configurações do tema em relação ao pensamento dos autores. Esse exame poderia colaborar não unicamente com a revisita de fundamentos que orientam o campo da educação, em especial a formação de professores, mas também favoreceria compreensões de distintas naturezas sobre a sociedade, já que, no limite, espelham interpretações sobre o ser humano como ser de relações que constrói culturas e história.

Ressaltamos, ainda, que escrevemos este texto em tempos de pandemia da COVID- 19 e sob um contexto de políticas educacionais que desconstroem conquistas históricas, como a defesa de uma educação plural, democrática, participativa, temas caros a Freire e Freinet. Manifestações como as propostas do movimento escola sem partido e ataques voltados às ideias de Paulo Freire espelham insuficiente conhecimento sobre sua obra e contestam fundamentos socioeducacionais cultivados historicamente no âmbito de uma construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Esse contexto nos convida a pensar sobre como e em qual mundo desejamos existir. Freire e Freinet expressaram, através de seus escritos e suas biografias, os posicionamentos que lhe são importantes. Por fim, entendemos que ler Paulo Freire e Celestin Freinet e tomar seus princípios no momento de uma pandemia nos leva a refletir sobre como ponderar e reiterar a importância do encontro e do trabalho coletivo em contexto de distanciamento. Estamos reinventando a escola e um dos tantos desafios é reinventar o encontro e o coletivo.

Revisão gramatical realizada por: Juliana Campos Lobo

E-mail:julianaclobo@gmail.com

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Recebido: 21 de Dezembro de 2020; Aceito: 23 de Agosto de 2021

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