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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.3 Campinas jul./set 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i3.8661964 

Relato de Experiência

NARRATIVAS DE PROFESSORES DE UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA

NARRATIVAS DE PROFESORES DE UNA ESCUELA DEMOCRÁTICA

Beatris Cristina Possato1 

Maria Aparecida Guedes Monção2 

1Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Campinas, SP - Brasil. Professora Titular - Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais (IF SUDESTE MG). Juiz de Fora, MG - Brasil. E-mail: biapossato@hotmail.com

2Doutora em Educação - Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, SP - Brasil. Professora e Coordenadora do Mestrado Profissional - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: maguedes@unicamp.br


RESUMO

Este relato de experiência apresenta parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada no Instituto Pandavas, escola comunitária de ensino fundamental que iniciou seu trabalho na década de 1970, baseada na antroposofia. Em 2013, passou a ser uma das escolas democráticas brasileiras, utilizando a pedagogia de projetos, na tentativa de diluir a separação dos alunos por séries/idades, bem como os horários fixos das aulas. Para isso, a escola delineou uma organização pedagógica em que os alunos definem os rumos de seu desenvolvimento, com base na autonomia, na emancipação de cada indivíduo e na gestão democrática. Para compreender esse contexto, realizou-se uma pesquisa narrativa com os professores e a coordenadora pedagógica dessa instituição. O objetivo deste relato é compreender as percepções de professores e coordenadora pedagógica sobre suas experiências na escola comunitária Pandavas. As narrativas mostraram que, por meio das assembleias, do diálogo, da “Educação para pensar, sentir e agir” e das práticas participativas, é possível aos alunos assumir seu papel de sujeitos sociais, coletivos, expandindo sua capacidade de ler o mundo, problematizando-o por meio de uma práxis transformadora. O relato dos professores foi possível permitiu observar que a educação para a humanização não é algo somente para os alunos, pois os professores igualmente são formados nessa perspectiva e podem se autorrealizar, expressando seus sentimentos, ao mesmo tempo em que consideram o lado emocional dos alunos no cotidiano escolar, em um processo dialógico que vislumbra uma educação para a transformação social.

PALAVRAS-CHAVE Educação democrática; Narrativas de professores; Práticas pedagógicas participativas

RESUMEN

Este informe de experiência presenta parte de una investigación postdoctoral realizada en el Instituto Pandavas, una escuela primaria comunitaria que comenzó su trabajo en la década de 1970, basada en la antroposofía. En 2013, se convirtió en una de las escuelas democráticas brasileñas, utilizando la pedagogía del proyecto, en un intento por diluir la separación de estudiantes por grado y edad, así como horarios fijos de clase. Para esto, la escuela describió una organización pedagógica en que los estudiantes podían definir la dirección de su desarrollo, creyendo en la autonomía, la emancipación de cada individuo y en la gestión participativa. Para comprender este contexto, se realizó una investigación narrativa con los docentes y el coordinador pedagógico de esta institución. El objetivo principal de este informe es comprender las percepciones de los maestros y el coordinador pedagógico sobre la escuela democrática a partir de la experiencia en la escuela de la comunidad de Pandavas. Las narrativas mostraran que, a través de asambleas, diálogos, "Educación para pensar, sentir y actuar" y prácticas participativas, es posible que los estudiantes asuman su papel como sujetos sociales, colectivos, ampliando su capacidad de leer el mundo, problematizándolo a través de una praxis transformadora. En el informe de los docentes se observó que la educación para la humanización no es solo para los estudiantes, sino que los docentes también están capacitados en esta perspectiva y pueden darse cuenta de sí mismos, expresando sus sentimientos, mientras consideran el lado emocional de los estudiantes en la vida escolar diaria, en un proceso dialógico que contempla una educación para la transformación social.

PALAVRAS-CLAVE Educación democrática; Narrativas de profesores; Prácticas pedagógicas participativas

ABSTRACT

This experience report presents part of a postdoctoral research conducted at the Pandavas Institute, a community elementary school which began its work in the 1970s, based on anthroposophy. In 2013, it became one of the Brazilian democratic schools, using project pedagogy, in an attempt to dilute the separation of students by grade and age, as well as fixed class schedules. For this, the school outlined a pedagogical organization in which students could define the direction of their development, believing in the autonomy, emancipation of each individual and in the participative management. To understand this context, a narrative research was conducted with the teachers and the pedagogical coordinator of this institution. The main objective of this report is to understand the perceptions of teachers and pedagogical coordinator about democratic school from the experience in Pandavas community school. The narratives showed that, through assemblies, dialogue, “Education to think, feel and act” and participatory practices, it is possible for students to assume their role a social, collective subjects, expanding their ability to read the world, problematizing it through a transformative praxis. In the teachers’ report it was observed that education for humanization is not only for students, for teachers are also trained in this perspective and can self-realize, expressing their feelings, while considering the emotional side of the students in daily school life, in a dialogical process that envisions an education for social transformation.

KEYWORDS Democratic education; Teacher narratives; Participatory pedagogical practices

1 EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições precise de falar a ele [...] até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário ao aluno, em uma fala com ele.

(FREIRE, 1996, p. 127-128)

O debate a respeito dos desafios e empecilhos para a efetivação de uma educação democrática em nosso país é recorrente nos estudos da área educacional, que buscam garantir o que foi proclamado na Constituição Federal de 1988 (CF-1988), ao preconizar a educação como direito social em seu artigo 6º e determinar, no artigo 205, que a educação como “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2001).

O direito à educação como premissa de cidadania associa-se a um dos princípios constitucionais, disposto também no artigo 206 da CF-1988, que determina “Gestão democrática no ensino público, na forma de lei”. Tal prerrogativa é reafirmada no artigo 9º do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, Lei nº 13.005/2014, que prevê a aprovação de “[...] leis específicas para os seus sistemas de ensino, disciplinando a Gestão Democrática da educação pública [...]” (BRASIL, 2014).

Entretanto, apesar da legislação em vigor e dos inúmeros estudos sobre a importância da perspectiva democrática na educação, sua efetivação ainda ocorre de forma vagarosa em um cenário tomado pela visão mercantil, expressa por meio dos preceitos neoliberais que se consubstanciam nas propostas de privatização do ensino e na constante desvalorização e precarização do ensino público e do trabalho docente.

O processo democrático de construção é complexo e envolve muitas disputas, interesses e contradições; é preciso ter clareza dos limites, reconhecer as fragilidades sem desconsiderar as conquistas, compreendendo que a educação democrática não se encerra em uma lei, um projeto ou uma escola, mas é um processo permanente, que se transforma à medida que as pessoas envolvidas e a sociedade também mudam.

Adotaremos neste texto o conceito de democracia em seu sentido amplo, como “mediação para construção e exercício da liberdade social, englobando todos os meios e esforços que se utilizam para concretizar o entendimento entre grupos e pessoas, a partir de valores construídos historicamente [...]” (PARO, 2001, p. 34). Assim, a relação democrática envolve relações entre grupos e indivíduos e se dá na forma da “convivência entre sujeitos que se afirmam como tais” (PARO, 2008, p. 42).

Paulo Freire chama a nossa atenção para a perspectiva autoritária que marca a história da sociedade brasileira, com bases no colonialismo e na escravidão, promotora da nossa “inexperiência democrática” e da dissociação da escola com a vida. Ele propõe uma educação integrada à realidade local e global, em contraposição à educação bancária, que prima pela “[...] antiparticipação do nosso educando com sua realidade. Antiparticipação do nosso educando no processo de sua educação. Antirresponsabilidade a que se relega o nosso educando na realização de sua própria vida. De seu próprio destino” (FREIRE, 2002a, p. 13). O caráter antidemocrático da sociedade materializa-se na educação por meio da formação de cidadãos passivos, sem criticidade, com pouco estímulo e gosto pelo conhecimento e pela democracia.

Freire desvela a dimensão humana da prática educativa ao considerar que a educação promove, para além do acesso aos bens culturais historicamente construídos pela humanidade, a formação do ser humano. Em suas obras, propõe que a educação proporcione a formação de seres humanos mais solidários que busquem a justiça social para que todas as pessoas tenham condições dignas de vida. Sugere uma pedagogia democrática, uma educação pela e para a democracia, por meio do diálogo, do debate e da participação: “uma educação para a decisão, para a responsabilização social e política” (FREIRE, 2011, p. 88). Nessa mesma direção, ao analisar a contribuição de Freire para a educação, Licínio Lima (2009, p. 33) destaca que a visão democrática adotada pelo autor é “[...] radical, contra todas as formas de populismo e sectarismo, pelo activismo crítico e militante através do qual se aprende, se vive e se cria a própria democracia, da escola à empresa, das associações à comunidade local [...]”.

Na visão de Freire, a educação deve ser democrática e emancipatória, e a função da escola é a formação integral do ser humano, nas dimensões individual e social. Nesse sentido, o projeto político-pedagógico das escolas deve pautar-se na educação para e pela democracia e subsidiar o processo de democratização das relações internas das escolas e dos sistemas de ensino, com vistas a contribuir com a solidificação de uma sociedade democrática com equidade.

O conteúdo escolar, nesta concepção, é a cultura humana em sua integralidade, é a produção histórica do ser humano, que não se restringe a informações e conhecimentos, mas contempla valores de convivência democrática por meio de relações dialógicas, as quais servem como instrumento para uma convivência humana em que a subjetividade é considerada em sua plenitude, rejeitando qualquer relação de dominação que possa negar a condição de sujeito dotado de vontades e liberdade de escolha (PARO, 2008).

A democracia é um requisito para o bem comum, contrapondo-se à perspectiva individualista, ancorada na competição e em interesses pessoais, que representam os objetivos dos grupos mais abastados, detentores dos meios de produção. De acordo com Michael Apple e James Beane (2001, p. 23):

[...] a democracia não é apenas uma teoria de interesse pessoal que dá às pessoas permissão para tentar realizar suas próprias metas a expensas dos outros; o bem comum é uma característica central da democracia. Por esse motivo, as comunidades de alunos das escolas democráticas são marcadas pela ênfase na cooperação e na colaboração, e não na competição. As pessoas veem seus interesses nos outros e são tomadas providências no sentido de encorajar os jovens a melhorarem a vida da comunidade ajudando os outros.

A competição e a valorização de capacidades individuais em contextos sociais desiguais, sem garantir a igualdade de oportunidades, favorece o uso do termo “democracia” para fins não democráticos, como, por exemplo, dando visibilidade à meritocracia, que se ampara no pressuposto de que depende apenas de cada pessoa atingir o sucesso escolar, desconsiderando as condições sociais do país e as condições concretas das escolas e dos professores para efetivar a formação.

O respeito às liberdades e às capacidades individuais deve associar-se à garantia dos direitos sociais. Maria Victoria Benevides Soares (2004) alerta para a necessidade de se combater a naturalização da ideia de que apenas o direito ao voto exime as desigualdades econômicas. Atualmente, não é possível que as sociedades que não se sustentem pela prática da solidariedade garantam liberdade e igualdade. A solidariedade é um atributo político da cidadania: “a solidariedade que naturalmente deve derivar de um novo regime político, um novo sistema econômico – bases para a criação da democracia radical [...]” (SOARES, 2004, p. 64-65).

O exercício da solidariedade com vistas a constituir novas formas de relação que promovam uma sociedade com equidade e justiça deve ser um dos objetivos da educação. Portanto, a concepção de educação que embasa este texto apoia-se nos conceitos de democracia e cidadania. Trata-se da visão de educação emancipatória, oposta à concepção de educação do senso comum, que considera a escola apenas como transmissora de conhecimentos e informações, sem nenhuma preocupação com a subjetividade do educando ou do professor e suas reais condições de vida, ao ver o professor como um transmissor de conhecimentos e informações e o aluno, como um receptor. É uma perspectiva de educação que não contribui para a emancipação intelectual, como bem afirmava Joseph Jacotot3, pois, vendo o professor como o “mestre explicador”, não possibilita a compreensão, mas apenas embrutece a mente, atrofiando a capacidade de pensamento autônomo do aluno e levando- o à falsa crença de sua incapacidade (RANCIÈRE, 2005).

Apple e Beane (2001, p. 24) alertam-nos para os riscos que assumimos ao buscar uma educação democrática, uma vez que

[...] o trabalho necessário para organizar e manter viva uma escola democrática é exaustivo e cheio de conflitos. Afinal de contas, apesar da retórica de democracia em nossa sociedade e da ideia comum de que o modo de vida democrático é aprendido com experiências democráticas, as escolas têm sido instituições notavelmente antidemocráticas [...].

Para Helena Singer (2010), as escolas democráticas representam uma resistência aos dispositivos disciplinares e se constituem em espaços onde os saberes ainda não foram contidos pelo poder. “Resistência ao controle da vida por meio da reivindicação da autonomia das crianças sobre seus próprios corpos, suas necessidades e sua felicidade, recusando a aplicação de mecanismos dominantes de sujeição” (SINGER, 2010, p. 39). Ainda de acordo com Singer (2010), ao provocarem uma ruptura com os currículos enrijecidos, com o autoritarismo e com o conservadorismo, as escolas democráticas promovem experiências de práticas de liberdade aos estudantes. São escolas que há séculos têm baseado seus estudos na consciência crítica em detrimento da memorização de conteúdos, na relação respeitosa e democrática entre os sujeitos, nos princípios éticos e na educação para a humanização. Assim, vemos a urgência de realizarmos pesquisas nessas escolas e colocá-las em evidência.

De acordo com a obra de Freire, é possível definirmos a humanização como um processo ontológico do ser que ocorre por meio de uma educação libertadora. Esta humaniza ao possibilitar aos seres humanos deixarem de ser coisas para se tornarem sujeitos plenos, conscientes de si e de seu papel histórico na sociedade, detentores de sua própria voz e de sua própria história em construção. Para o autor, o ser humano é inacabado, sempre na busca de ser mais, em um constante processo de humanização (FREIRE, 1992, 1996, 2011).

Com base na obra de Freire, é possível afirmar que uma escola que possibilita a formação de cidadãos críticos e autônomos e que estabelece o diálogo e a participação para uma prática educativa transformadora é uma escola que humaniza. Somente por meio de práticas pedagógicas críticas, transformadoras, é possível construir uma sociedade justa, ética e humanizada. Nessa perspectiva, de acordo com Apple e Beane (2001), os educadores assumem papel fundamental para a materialização de um currículo democrático que represente as diferentes vozes dos sujeitos das escolas, reafirmando, por meio das práticas pedagógicas, o compromisso ético com a sociedade.

Os educadores comprometidos com a democracia entendem que as fontes de desigualdades na escola provavelmente serão encontradas também na comunidade [...]. Em resumo, querem democracia em larga escala; a escola é apenas um dos espaços por eles focalizados. Este é um ponto crucial. A paisagem educacional é poluída pelos resíduos de reformas escolares fracassadas, muitas das quais não deram certo por causa das condições sociais em torno das escolas. Somente as reformas que reconhecem essas condições e as combatem ativamente têm possibilidade de êxito duradouro na vida das crianças, educadores e comunidades servidas pelas escolas.

(APPLE; BEANE, 2001, p. 23)

Considerando, de modo geral, os aspectos da educação democrática apresentados nesta introdução, podemos afirmar que as bases de uma escola democrática se apoiam na participação de todos os envolvidos no contexto escolar e na articulação permanente com os movimentos e com as lutas sociais por justiça, em torno da diminuição das desigualdades sociais. Nessa direção, este texto tem como objetivo compreender as percepções dos professores e coordenadora pedagógica sobre suas experiências no Instituto Pandavas.

2 O PERCURSO DE PESQUISA EM UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA

Este texto apresenta parte de um estudo de pós-doutorado cuja pesquisa empírica foi realizada no Instituto Pandavas, uma escola comunitária de ensino fundamental localizada na área rural do município de Monteiro Lobato, no Estado de São Paulo. A escolha do campo de pesquisa ocorreu após rigorosa busca por escolas democráticas.

Por se tratar de uma escola comunitária, os processos decisórios no Instituto Pandavas efetivam-se por meio de assembleias e reuniões com a comunidade. A escola possui uma gestão democrática em que alunos, pais, professores, funcionários, ex-alunos e comunidade decidem sobre a organização do trabalho pedagógico e sobre questões do cotidiano, como alimentação, infraestrutura, orçamento, convívio coletivo entre os estudantes, entre outras questões que surgirem.

Situada na Serra da Mantiqueira, a escola nasceu na década de 1970, por meio da organização de mutirões para a construção do espaço escolar. Inicialmente, a proposta pedagógica pautava-se na antroposofia4 e em práticas pedagógicas participativas e era mantida pelas Associação Palas Athena. Em 2011, após a saída da associação, a escola ficou sem financiamento e, por decisão dos profissionais, alunos, ex-alunos e comunidade local, passou a ser financiada pela comunidade.

No ano de 2013, a partir de encontros com a rede de escolas democráticas brasileiras, os professores e a coordenadora pedagógica optaram por mudar a proposta pedagógica e inseriram a pedagogia de projetos, diluindo a separação dos alunos por séries e idades e flexibilizando os horários das aulas. como intuito de tais alterações foi valorizar a individualidade dos alunos, ao mesmo tempo em que se estimulava o trabalho coletivo. Para que isso acontecesse, a escola delineou uma organização pedagógica em que os alunos definiam os rumos de seu próprio percurso formativo, acreditando na autonomia e na emancipação de cada indivíduo.

Os alunos escolhem uma temática que define o “módulo de investigação do mês” (ou meses); a partir de então, recebem um roteiro de pesquisa, que pode ser desenvolvido individualmente, em duplas, trios ou grupos maiores, usualmente compostos por alunos de idades diversas. Estes têm autonomia para realizar as pesquisas ao seu tempo, definindo o momento certo do aprendizado. Cada módulo é finalizado com a apresentação de um trabalho individual ou coletivo, sobre um tema escolhido pelo aluno, que se relacione com a temática do módulo.

Na maioria das vezes, os alunos buscam temáticas que se aproximam de suas experiências de vida ou de seus interesses pessoais. As avaliações são constantes, sendo realizadas nas assembleias, nas autoavaliações individuais e em grupo ou por meio de outros instrumentos avaliativos.

Outro mecanismo potente para efetivar a participação são as assembleias, que são conduzidas pelos alunos, configurando-se em espaços de avaliação do andamento da escola, inclusive do percurso pedagógico implementado na instituição. Nesse espaço, os professores buscam manter uma relação horizontal, não hierarquizada, possibilitando que os próprios alunos assumam o protagonismo de organizar e mediar as reuniões. As assembleias são muito respeitadas, tanto por alunos como pelos professores, e se tornaram um espaço decisório de fato.

A pesquisa de campo nessa escola durou um semestre escolar do ano de 2016. Foram realizadas observações participantes e entrevistas com cinco professores e com a coordenadora pedagógica, que igualmente desempenhava o papel de professora. Pela proximidade que tivemos durante a pesquisa, os professores optaram por utilizar seus nomes reais: Daniella Souza de Mendonça, Mara Novello Gerbelli, Nilton Almeida Silva, Silvio Marcello Aquino e Thiago Guerra Duarte. Para as entrevistas, foram utilizados roteiros semiestruturados elaborados a partir dos dados obtidos ao longo da observação participante. Os depoimentos foram registrados em áudio, com o consentimento dos entrevistados e, posteriormente, foram transcritos. Depois de realizada a transcrição, as entrevistas escritas foram enviadas aos entrevistados para que pudessem modificá-las, caso achassem necessário. Após a aprovação dos entrevistados, partimos para a sua análise.

Optamos pela pesquisa narrativa, que, de acordo com D. Jean Clandinin e F. Michael Connelly (2011), pretende compreender e interpretar as dimensões humanas por meio das narrativas das experiências dos sujeitos da pesquisa, para além de dados puramente quantificáveis. É uma pesquisa que envolve vidas e histórias em movimento, tanto dos pesquisados como do pesquisador, e que são expressas narrativamente, cabendo ao pesquisador que a utiliza (re)construir seus significados. Portanto, para a análise dos dados é necessário “pensar narrativamente” para compreender as experiências narradas, sem reduzi-las. Alessandro Portelli (1997) salienta que as narrativas possuem valor não apenas com relação ao seu conteúdo, mas igualmente são ricas em matizes, entonações, silêncios, entre outros aspectos existentes nas falas dos narradores. É importante perceber essas nuances, pois as fontes orais diferem das escritas por possuírem os aspectos expressivos de quem fala. Segundo o mesmo autor, as fontes orais trazem a subjetividade do narrador, seus anseios, seus sentimentos, suas intenções. Desse modo, Portelli (1997) orientou a transcrição das narrativas, que se deu da maneira mais respeitosa possível, mantendo os aspectos subjetivos presentes durante a entrevista.

Walter Benjamin (1987), por sua vez, esclarece que narrar seria a arte de não reduzir os acontecimentos a uma única versão, preservando os múltiplos sentidos. A narrativa possibilita que se crie outra significação nascida de uma narrativa incompleta. A memória, princípio da narrativa, provoca o surgimento não de lembranças conduzidas por uma temporalidade única, linear, mas de reminiscências, que quebram a sucessão cronológica dos eventos e não os ordenam de modo a lhes dar um único sentido. Durante a entrevista, o colaborador recorre a sua memória para trazer à tona suas narrativas. Essa memória não é passiva, não é apenas um depósito de fatos, mas é composta de ressignificações.

Áurea Maria Guimarães (2000) explicita que, para Benjamin, criar outra memória que não seja a dos poderosos é rememorar o passado. Essa memória é imaginativa, brotando da descontinuidade da vida, que reabre nosso passado e nos faz encontrar os vestígios sufocados pelo tempo. É possível recuperar o sentido original das histórias que não puderam ser narradas e eliminar a continuidade linear que a história oficial nos impõe. As memórias nascem de um terreno artesanal, o terreno das experiências vividas, diferindo, deste modo, da marca historiográfica construída no tempo de saber acadêmico.

A historiografia descreve o espetáculo da história universal, oficial, não questionando e não discernindo as tentativas de histórias que fracassaram, que se encontram por baixo da “história dos vencedores”. Para José Carlos Sebe Bom Meihy (2007), a história oral não é neutra, tampouco distante; seu papel é dar visibilidade aos grupos que não podem ser ouvidos e permitir, que suas falas sejam expressas, que sirvam de alerta, que apresentem reivindicações e que sejam instrumentos de mudança. Deste modo, a intenção de utilizar a pesquisa narrativa é conhecer a “história dos vencidos” (BENJAMIN, 1987) ou a “história vista de baixo” (MEIHY, 2007) por meio de suas narrativas que ainda estão ocultas, aguardando para serem contadas.

3 AS PERCEPÇÕES DOS PROFESSORES SOBRE A ESCOLA DEMOCRÁTICA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NO INSTITUTO PANDAVAS

Os professores do Instituto Pandavas são formados em diferentes áreas: Geografia, Pedagogia, Engenharia Civil, Direito e Letras. Uma professora é mestre em Geografia e os demais professores participaram de diversos cursos na área de Educação e na de Filosofia. Os professores, em sua maioria, haviam deixado suas cidades natais para trabalhar no Instituto Pandavas e, no ano em que a pesquisa foi realizada, residiam nas proximidades da escola, na área rural de Monteiro Lobato – SP. Suas idades variam entre 27 e 64 anos. Os docentes constantemente participam de atividades de formação continuada. Semanalmente, ocorrem reuniões e estudo dirigido para discutir os principais problemas da escola, a aprendizagem dos alunos, aprimorar a metodologia utilizada, bem como discutir os principais referenciais teóricos que amparam a proposta pedagógica da escola. Anualmente, a escola organiza o “Seminário Pedagógico Rumos Abertos”, com cursos e palestras com expoentes da área da Educação. Esse evento é promovido de acordo com as necessidades e indagações que surgem no cotidiano escolar do Instituto Pandavas. Igualmente, busca-se o fortalecimento dos vínculos da instituição com os profissionais da Educação da região, pesquisando, junto às escolas municipais e estaduais, temas que correspondam aos interesses, anseios e necessidades da comunidade local.

Alguns professores entrevistados trabalharam em escolas tradicionais públicas e privadas antes da experiência no Instituto Pandavas e narraram o desgaste gerado por esse tipo de estrutura. Para eles, não poder desenvolver novas metodologias com suas turmas, ter de aplicar avaliações padronizadas, ensinar por meio de apostilas e não poder ter um vínculo afetivo com os alunos foram os motivos que levaram os profissionais a repensar a profissão e a pedir demissão/exoneração de seus cargos.

Dava, por exemplo, muita aula do lado de fora, aí os outros professores reclamavam que “fica muita bagunça depois da sua aula”. Eu precisava fazer uma roda no pátio para fazer brincadeiras, músicas, então eu não era muito bem visto pelos próprios colegas. A direção até que não implicava. Pelo contrário, da direção da escola até recebi um bom apoio. Mas, via professores torcendo para não ter aula, o próprio professor torcendo para acabar luz, torcendo para que não venha nenhum aluno tal dia, porque é véspera de feriado. Ouvia muito esse discurso de que “tem aluno que não aprende mesmo”. Ouvi muito isso. “Não tem jeito, esse aí não tem jeito”. Então, você conviver num ambiente em que as pessoas não acreditam desanima muito. Convivi muito com isso. São esses os motivos que me afastaram.

(SILVA, 2016)

De acordo com os depoimentos, no Instituto Pandavas os educadores encontraram um espaço para (re)construir a docência, sob novos olhares e novas práticas pedagógicas. “É um lugar que todo mundo se respeita muito, o diálogo é presente, as pessoas conversam baixo, as relações têm um carinho muito grande” (MENDONÇA, 2016). Alguns professores narraram que, ao ingressarem nessa escola democrática, passaram a perceber que foram autoritários no passado e que enfraqueciam a autonomia do aluno com suas imposições. Somente perante essa nova realidade deixaram de reproduzir os modelos docentes tradicionais, aprendidos na formação inicial, em outras escolas ou em sua trajetória escolar, que não favoreciam a participação dos estudantes no processo de aprendizagem.

Para Maurice Tardif e Danielle Raymond (2000), a constituição do “ser professor” inicia-se na trajetória pré-profissional. É na infância, na socialização que ocorre quando esses professores foram alunos, que os saberes sobre o ensino, sobre os papéis dos professores e sobre como ensinar são construídos. Para o autor, os professores são profissionais que estiveram imersos no ambiente de trabalho durante praticamente 16 anos antes de iniciarem seu laboro. Tal imersão torna expressiva a bagagem de conhecimentos prévios, representações, crenças e práticas de como ser professor.

Deste modo, no Instituto Pandavas alguns professores tiveram uma ruptura com modelos tradicionais, sobretudo a partir de 2013, quando a escola adotou a pedagogia de projetos e os professores passaram a ser chamados de “tutores”, no sentido de mediar o processo formativo dos alunos.

Como já informamos anteriormente, na rotina da pedagogia de projetos os alunos de 6º ao 9º ano recebem o roteiro de estudo de um tema, que é denominado módulo, e desenvolvem pesquisas para encontrar as respostas referentes aos problemas apresentados, englobando diversas áreas de conhecimento. Os alunos podem optar por desenvolver essas pesquisas em grupo, trio, dupla ou individualmente, embora haja muito incentivo para que trabalhem coletivamente. Para Freire (1996, p. 32), “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino” e essas pesquisas são desenvolvidas pelos alunos na biblioteca, em

computadores e até mesmo em seus celulares. De acordo com Apple e Beane (2001, p. 20), as escolas democráticas,

[...] como a própria democracia, não surgem por acaso. Resultam de tentativas explícitas de educadores colocarem em prática os acordos e oportunidades que darão vida à democracia [...]. Esses acordos e oportunidades envolvem duas linhas de trabalho. Uma é criar estruturas e processos democráticos por meio dos quais a vida escolar se realize. A outra é criar um currículo que ofereça experiências democráticas aos jovens.

As narrativas dos professores apresentam a preocupação de que as pesquisas desenvolvidas pelos alunos os aproximem das reflexões sobre a sociedade atual e a comunidade em que vivem, estimulando sua criticidade e a ruptura com os preconceitos. Foi possível perceber que os alunos têm participado ativamente do processo de aprendizagem, interferindo e atuando diretamente na forma de ensino. “Se a programação educativa é dialógica, isso significa o direito que também têm os educadores-estudantes de participar dela incluindo temas não sugeridos” (FREIRE, 1988, p. 116-117). Essa concepção de educação, muito diferente da educação bancária – em que se acredita que é possível um sujeito depositar seu conhecimento e o outro passivamente recebê-lo –, permite ao aluno ser sujeito de seu próprio processo formativo e do ato de conhecer. “Conhecimento se cria, se inventa, reinventa, se aprende. Conhecimento se faz. O estudante conhece na medida em que, apreendendo a compreensão profunda do conteúdo ensinado, o aprende. Aprender o conteúdo passa pela apreensão do mesmo.” (FREIRE, 2001, p. 120)

Para os professores, a escola possui uma função social muito importante e por isso otimizam essa função por meio das assembleias, que são os espaços decisórios de toda a comunidade escolar e dos alunos com relação a diversos aspectos do cotidiano da escola e de seu próprio desenvolvimento.

Percebi que a escola tem uma função social importante. Importante no sentido de formar cidadãos atuantes, que possam mudar não a sociedade inteira, mas o meio em que ele vive, influenciar pessoas, os próprios pais, às vezes, os familiares, os vizinhos, com valores, com atitudes. Acho que a escola é muito importante nisso. Então, eu vejo o currículo hoje não como um currículo de conteúdo, mas também como um currículo de atitudes. Saber se expressar, saber a vez de calar, saber quando ceder. As assembleias otimizam e propiciam bastante esse exercício. [...] Acho que o exemplo também é importante. Quando eles veem os professores e pais participando dos mutirões, pintando as paredes, entrando nas escalas de limpeza, eles valorizam bem mais... Ou seja, não tem um trabalho que seja mais digno ou menos digno. Acho que isso é um valor que se aprende e isso faz parte do currículo. O currículo eu não vejo só como português, matemática, geografia. Não, o currículo também é feito de atitudes, valores. Isso faz diferença e pode fazer as pessoas mudarem a visão de mundo e como se inserem na sociedade.

(SILVA, 2016)

Na narrativa do professor Nilton Silva vemos claramente aspectos de uma educação democrática, em que ocorre a passagem da consciência ingênua para uma consciência crítica (FREIRE, 2011), possibilitando ao sujeito que está inserido no processo educativo não apenas o desenvolvimento de seus aspectos cognitivos, mas a construção de sua própria história. E essa participação constituída de fato, essa educação libertadora, não é exercida somente pelos alunos. Os professores mais jovens revelaram que, pela primeira vez em sua trajetória profissional, haviam colaborado com a construção conjunta de um projeto que se efetivou. “Algumas propostas, algumas posições, algumas coisas que eu ajudei na elaboração, vi que realmente foram efetivadas. Então esse processo de você se identificar com a escola: uma reunião pode ou te afastar completamente do que é o grupo escolar ou te incluir” (MENDONÇA, 2016). Infelizmente, não é uma prática comum em nossas escolas brasileiras o estímulo à criticidade e à participação dos sujeitos escolares. O professor, tanto quanto o aluno, não pode ser reduzido a mero espectador passivo de sua realidade, sendo transformado em “homem-objeto”. A práxis cotidiana de ação e reflexão deve conduzir homens e mulheres à realização pessoal, à libertação e ao nascimento do “homem-sujeito” que busca a transformação da realidade (FREIRE, 1969).

Para isso, há 40 anos a escola desenvolve o projeto chamado “Educação do pensar, sentir e agir” (EPSA), que de acordo com a coordenadora baseia-se na filosofia, na espiritualidade e trata de temas como direitos humanos, respeito às diferenças, cultura da não violência,

[...] questões religiosas, filosóficas, questões do desenvolvimento das crianças, os temas transversais, a diversidade, a sexualidade. Acho que a EPSA busca a formação do aluno como ser humano, não simplesmente a parte intelectual. Isso está envolvido com todas as outras coisas que fazemos e também está nos professores.

(GERBELLI, 2016)

Para Freire (1992), uma educação libertadora, baseada em uma visão humanista crítica, é aquela que vê o ser humano integral e não se limita à dimensão cognitiva. O ser humano é composto de sentimentos, crenças, espiritualidade, desejos, pensamentos, ações que precisam ser considerados na prática educativa. As narrativas dos professores revelam que em outras escolas os aspectos emocionais dos alunos eram “algo que não deveria aflorar no ambiente escolar” (MENDONÇA, 2016). Para eles, o Instituto Pandavas faz o caminho oposto e estimula a manifestação das várias dimensões do ser humano.

Eu acho que o que trabalhamos muito aqui é a questão do afeto. Além disso, sinto que as crianças daqui precisam escutar menos de um adulto o que elas realmente precisam saber. Têm mais autonomia do que eu tive, do que a forma como eu fui educado dentro de uma escola. Na minha época foi total castração, tinha que fazer a escola para tentar entrar no politécnico ou para tentar passar no vestibular. Foi basicamente isso, e tantos outros lados meus em nenhum momento foram olhados. Eu acho que aqui fazemos isso.

(DUARTE, 2016)

Da mesma maneira que o lado emocional dos alunos é considerado, os professores têm igualmente a possibilidade de expressar seus sentimentos e emoções. “Acho que a primeira grande alegria que eu senti aqui foi poder ser amorosa. Amorosa, poder olhar o aluno no olho. Poder perguntar, antes de qualquer coisa, módulo, conteúdo, poder dar um abraço nele e perguntar: ‘está tudo bem?’.” (MENDONÇA, 2016) O clima pedagógico que se estabelece entre professor e aluno deve ser marcado pelo diálogo, pela amorosidade, pelo afeto e pelo respeito, em todos os espaços escolares. Do mesmo modo, alunos e professores devem ser considerados seres que estão em processo de constante devir, em sua vocação ontológica de serem mais.

E como eu posso olhar o aluno dessa forma, eu posso me olhar dessa forma também. Porque não tem uma divisão, como era nas outras escolas. Não é um muro e o professor está ali em cima. E aqui não tem esse muro. Então, a partir do momento que eu pude olhar para o aluno, com mais carinho, com mais calma, com mais serenidade, foi um espelho. Porque eu pude me ver como professora, como docente dessa forma também. De uma forma mais serena, sem pressão, prestando atenção a outros detalhes, que em uma sala lotada com 40, 45 alunos e aquela coisa louca de conteúdo, simplesmente focada no conteúdo, não conseguia. Então, eu me tornei – tenho me tornado, não é? Porque é um processo constante... – uma pessoa muito melhor. Aí eu não sei se é a pessoa que está interferindo no ser professor, no ser docente, ou se é o ser docente, mais leve, que está interferindo no ser humano, na pessoa. Mas, foi a primeira grande coisa. Esse ambiente leve, sabe? De amor. Eu me senti livre, uma liberdade! Eu sinto prazer em acordar e trabalhar. Eu sei que não vou ter que só fazer uma coisa porque eu preciso cumprir e não faz sentido nenhum aquilo, sabe? Deu outro sentido para minha vida, ou melhor, deu sentido à vida.

(MENDONÇA, 2016)

Para Freire (2002b), o diálogo é a base para a prática pedagógica que acontece entre docentes e discentes. Diálogo compreendido como o encontro amoroso entre homens e mulheres que, ao mesmo tempo em que são mediatizados pelo mundo, o transformam e o humanizam. E nessa relação com o mundo, que não é apenas de existir nele, mas de transformá-lo, os seres humanos vão adquirindo a consciência de si mesmos e do mundo em que vivem. “Enquanto que o ser que simplesmente vive não é capaz de refletir sobre si mesmo e saber-se vivendo no mundo, o sujeito existente reflete sobre sua vida, no domínio mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com o mundo.” (FREIRE, 1982, p. 66) O excerto da narrativa do professor Thiago Duarte expressa esse aspecto:

Eu acho que a coisa é realmente trabalhar a humanização dessas crianças. Tentar não entender cada uma, mas dar segurança para cada uma delas conseguirem ser o que elas quiserem ser, sem sofrimento, com segurança, com autonomia, entendendo suas responsabilidades também. Eu acho que enquanto não olharmos para esse ser humano que está ali, não adianta usar construtivismo ou qualquer pessoa que fale em nome delas, vai ter alguma coisa de errado. Então a prática vai sair torta.

(DUARTE, 2016)

De tal modo, vemos nas narrativas dos professores não apenas a busca do reconhecimento da importância da participação dos estudantes, mas o conhecimento de seu próprio mundo, de sua condição docente e a consciência de si mesmos. E, como os professores estão em processo de desenvolvimento profissional e de suas subjetividades, buscam conduzir a prática pedagógica de maneira coerente, atentando para a educação integral dos alunos, que leve o ser humano a “dosar adequadamente seu protagonismo no enorme leque de relações que a vida lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas, de gênero, de etnia e de produção” (CALADO, 2001, p. 52).

4 REFLEXÕES FINAIS

A compreensão de professores e coordenadora pedagógica sobre a experiência no Instituto Pandavas permite perceber a potência de uma escola construída por todos os sujeitos. A escola democrática tem impactos na prática pedagógica do professor, ao possibilitar o sentir-se autor e construtor de sua ação, promovendo nele um sentimento de satisfação profissional e pessoal e, ao mesmo tempo, a percepção dos efeitos positivos na formação dos alunos e na relação com a comunidade.

Por meio das narrativas dos professores foi possível também conhecer uma escola que encontrou, nas assembleias, no diálogo, na “Educação para pensar, sentir e agir” e nas práticas participativas, instrumentos para favorecer a autonomia dos estudantes, de modo a agirem e refletirem coletivamente sobre o mundo em que vivem, problematizando-o. Além disso, há a preocupação dessa escola com o despertar da curiosidade por meio da pesquisa e o desenvolvimento integral do ser humano em seus aspectos cognitivo, espiritual, estético, ético, cultural, emocional, entre outros, que o conduzam a sua libertação e realização. Essa é uma educação para a humanização de alunos e igualmente para professores, que buscam sua realização ao desenvolverem práticas inovadoras, ao participarem ativamente das decisões escolares, ao expressarem seus sentimentos e ao considerarem os alunos como seres integrais.

Acreditamos que essa experiência narrada pelos professores fornece as pistas necessárias para alcançarmos uma educação que transforma. Ao romper com o conservadorismo, com o autoritarismo, com a visão de um currículo inflexível, o Instituto Pandavas nos indica a necessidade urgente de nossas escolas desenvolverem o ato de pensar criticamente, em detrimento da memorização de conteúdos, de se considerarem as diferenças e de se estabelecer uma relação respeitosa e democrática em que professores, alunos, pais e comunidade possam participar ativamente de uma educação que seja libertadora.

Assim, esses professores inspiram-nos a conhecer uma educação que, ao invés de reforçar a competição, reafirma a coletividade, pelas atividades em grupo que são desenvolvidas, pelas assembleias, pelos jogos cooperativos em detrimento dos jogos competitivos, entre diversas outras ações que ali são desenvolvidas. É uma educação que busca a equidade e não reforça as diferenças como algo negativo, mas vê nelas um elemento propulsor para o novo. Mostra-nos como é possível, por meio das práticas participativas, formar alunos que assumem seu papel de sujeitos sociais, de sujeitos coletivos, expandindo sua capacidade de ler o mundo, problematizando-o em uma práxis transformadora. Igualmente, mostra-nos como é possível formar os alunos para serem cidadãos capacitados a participar da vida pública e política, desempenhando sua “vocação para o ser mais, enquanto expressão da natureza humana, fazendo-se na História” (FREIRE, 1996, p. 11).

3Educador francês que viveu entre 1770 e 1840 e realizou críticas ao ensino tradicional. O livro O mestre ignorante, de Jacques Rancière (2005), apresenta Jacotot e suas ideias sobre a relação mestre-aluno, a igualdade de inteligências e a emancipação intelectual.

4Segundo Rosely Aparecida Romanelli (2015, p. 50), a “Antroposofia surgiu como uma forma de observar e entender o mundo e o homem, desenvolvida por Rudolf Steiner a partir de 1886 até 1925”. Como método de conhecimento do ser humano, da natureza e do universo, a antroposofia é uma doutrina filosófica e mística que pretendia ampliar o conhecimento em quase todas as áreas da vida humana. Na Educação, a Pedagogia Waldorf é uma abordagem pedagógica pautada na antroposofia.

Revisão gramatical realizada por: Estela Carvalho.

E-mail:cantodaestela@yahoo.com.br

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Recebido: 06 de Novembro de 2020; Aceito: 02 de Março de 2021

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