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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.3 Campinas jul./set 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i3.8667680 

RESENHA

DOS SABERES QUE QUEREMOS (DES)CONSTRUIR

ON THE TYPES OF KNOWLEDGE, WE WANT TO (DE)CONSTRUCT

DE LOS SABERES QUE QUEREMOS DECONSTRUIR

Eleonora das Neves Simões1 

Ana Lúcia Goulart Faria2 

1Mestre em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Pelotas, RS - Brasil. Professora de Educação Infantil - Prefeitura Municipal de Rio Grande. Pelotas, RS - Brasil. E-mail: nora_simoes@hotmail.com

2Doutorado em Educação - Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, SP - Brasil. Professora permanente colaboradora voluntária - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: cripeq@unicamp.br

OLIVEIRA JR, Wenceslao; WUNDER, Alik. Casa dos Saberes Ancestrais:, diálogos com sabedorias indígenas (recurso eletrônico). Campinas, SP: BCCL/UNICAMP, 2020. 218 p.p.


RESUMO

Trata-se de uma resenha crítica do livro “Casa dos saberes ancestrais: diálogos com sabedorias indígenas”.

PALAVRAS-CHAVE Saberes ancestrais; Saberes indígenas; Diálogos

ABSTRACT

It is a critical review of the book “Casa dos saberes ancestrais: diálogos com sabedorias indígenas”.

KEYWORDS Ancestral Knowledge; Indigenous Knowledge; Dialogues

RESUMEN

Es uma revisión critica del libro “Casa dos saberes ancestrais: diálogos com sabedorias indígenas”.

PALAVRAS-CLAVE Conocimiento ancestral; Conocimiento indígena; Diálogos

A oralidade é considerada algo tão irrelevante que o aplicativo de mensagens instantâneas whatsapp criou uma ferramenta que acelera os áudios recebidos. Não importam os silêncios, as pausas, o movimento do pensamento, somente o fast food informativo. Somos dessas racionalidades que separam as coisas: corpo e mente, natureza e cultura, humanos e natureza, tempo e oralidade. Bifurcados, como o coelho de Alice no País das Maravilhas (CARROLL, 2007), sempre atrasados (e sozinhos). Mas atrasados para o quê, exatamente?

A Casa dos Saberes Ancestrais, com seus grafismos e suas composições imagéticas e textuais, vem nos convidar (e, por que não, lembrar) para aquilo que em nós ressoa e cotidianamente apagamos: os saberes ancestrais. No grau de importâncias que, equivocadamente, medimos com réguas e rankings, tais saberes são fossilizados para que deem lugar a outros, mais doutos, mais cultos, mais científicos, mais neutros. Dizem.

O livro ora resenhado é dividido em quatro partes: Apresentação, Relatos de um sonho ancestral (com um conjunto de seis escritos), Conversas para seguir sonhando (quatro escritas) e Posfácio.

Logo na Apresentação, “Sonhos em rede: encontros com uma Universidade porvir”, Wenceslao Oliveira Jr. nos arrebata com suas palavras certeiras e poéticas ao mesmo tempo. Desenha a sequência do livro e nos maravilha e desacomoda os pensamentos tidos como verdadeiros. Insere-nos, com corpo e pensamento em uníssono, na problematização do apagamento de certos saberes em detrimento de outros.

A primeira parte do livro, “Relatos de um sonho ancestral” (e de um projeto coletivo), é composta de seis escritos: “Semente”, de Verônica Fabrini; “Da Kari-óca à Oca e a Casa dos Saberes Ancestrais”, de Renata Marangoni; “O decolar de um sonho: da oca à Casa dos Saberes Ancestrais”, de Carmen Arruda; “Cotas indígenas na Unicamp: sonhos de outro roteiro de encontro”, de Alik Wunder; “Unicamp, terra indígena: uma conversa em torno de um mural”, de Artionka Capiberibe e Denilson Baniwa; e “Epistemologias não standart: diálogos utópicos”, de Cláudia Wanderley.

Na segunda parte há dois escritos de Ailton Krenak: “Casa como um corpo vivo” e “Arte para suspender o céu”. O texto em sequência “Nunca vai ser só uma edificação! Colaboração e hibridação intercultural em projetos arquitetônicos para povos indígenas” é de autoria de Viviane Martins. Wilmar D’Angelis finaliza essa seção com o artigo “A casa na ponta da língua: pensando na expressão linguística do espaço de viver”. O posfácio é escrito por Daniel Munduruku, e se intitula “O que vem ser uma Casa dos Saberes Ancestrais?”.

No primeiro capítulo, em tom de relato, a autora Verônica Fabrini inicia abordando e lembrando de uma visita que fez a uma exposição cultural Mapuche, em que o curador apontou a centralidade do sonho em seu processo criativo. Seguindo esta linha, Verônica conta um de seus sonhos: ao chegar ao trabalho, no lugar do Instituto de Artes via uma Oca. Ela havia sido nomeada, em 2017, para diretoria de cultura, e, com tal sonho, percebeu que poderia plantar essa semente (daí talvez o título de sua escrita). A Oca percebida e significada como uma arquitetura que conglutina corpo, casa e cosmo, e propõe outras relações, outros olhares, fazeres e pensares com o mundo. Gestava-se ali a Casa dos Saberes Ancestrais, a muitas mãos, olhares, corpos, saberes.

No segundo capítulo, Renata Marangoni, arquiteta, desliza nesse sonho. Relata o percurso e as inspirações para construir um lugar que dê espaço “aos indígenas na Unicamp e aos saberes que não sabemos” (p. 51). Aborda de modo mais detalhado a inspiração inicial: a Kari-Oca, um evento que tinha como propósito debater o futuro da humanidade. Traça o caminho desde a busca pelo local, o modo de construção, os valores, as premissas, a organização e o desenvolvimento dos encontros-saberes na Aldeia Kari-Oca. Do Projeto Oca à Casa dos Saberes Ancestrais, esse é o percurso e o sonho coletivo abordado.

No terceiro capítulo, Carmen Arruda detalha o caminho de abertura para escuta aos indígenas e às pessoas conectadas com a questão indígena. Perseguindo a noção do sonho, traça “sonhos que foram sendo somados aos sonhos de outros” (p. 81). Aborda os projetos, as disciplinas, os encontros, o vestibular indígena e como essas presenças e participações forjaram caminhos.

“Cotas indígenas na Unicamp: sonhos de outro roteiro de encontro” é o quarto capítulo, de autoria de Alik Wunder. A professora aborda as cotas como uma política com indígenas. Destaca esta estratégia como “possibilidade de encontro com e entre povos” (p. 92), além de enfatizar a importância do Vestibular Indígena. A autora destaca que a UNICAMP, ao longo de dois anos, recebeu mais de trinta diferentes povos. Ainda, aponta como as cotas indígenas ampliam a conexão com a multiplicidade étnica e linguística, o que permite, dentre outros aspectos, desconstruir a imagem indígena que temos no imaginário social.

No quinto capítulo, entre memória, diálogo, escrita e arte, Artionka Capiberibe e Denilson Baniwa nos conduzem aos interstícios da proposição de um grafite artístico em um prédio da universidade. Abordam as ideias, as dificuldades, as escolhas e o modo como a Cobra-grande, símbolo amazônico, significa e acolhe diversidades e fluxos. Denilson Baniwa é o artista plástico indígena responsável pela execução de mais este sonho sonhado junto, o grafite em um prédio da universidade, como mencionado no início deste parágrafo.

No sexto capítulo, Cláudia Wanderley, que inicia sua escrita agradecendo, nos conduz à reflexão e problematização da construção de um tipo de atitude, um ethos: a disponibilidade de ouvir e o (des)centramento. A partir da pergunta de um estudante indígena, analisa as questões da produção e validação do conhecimento e como nos relacionamos com a verdade. Finaliza apontando que somos formados para falar, e que a disponibilidade de ouvir é nosso desafio, bem como é a proposta da Casa dos Saberes Ancestrais e do ciclo de conversas promovido.

A segunda parte do livro inicia com dois capítulos escritos por Ailton Krenak: “Casa como um corpo vivo” e “Arte para suspender o céu”. O ambientalista, líder indígena, filósofo, poeta e escritor brasileiro, traça uma crítica à questão de que somos nomeados pelos outros. A essas linhas que nos dividem, tal como o individual e coletivo. Aponta uma crítica ao modo como Boaventura de Sousa Santos desenvolve a noção de linha abissal. Além disso, elabora sua análise de que aprendemos e temos a ideia da terra como algo ou um objeto a ser usado até seu esgotamento. Com essa noção, desapercebemo-nos como sendo o universo. Vivemos nessas linhas, a terra lá e nós aqui, como se não fôssemos uníssonos. A partir daí, também nos conduz a um ritual indígena que trata de suspender o céu, abordando a dança e a arte como uma narrativa, uma potência e uma cura.

No capítulo de autoria da arquiteta Viviane Martins, “Nunca vai ser só uma edificação! Colaboração e hibridação intercultural em projetos arquitetônicos para povos indígenas”, aproximamo-nos do olhar/exercício da construção. A autora discorre a respeito da atitude de esboçar-traçar-realizar projetos para um Outro, colocando a arquitetura como “palco da vida” (p. 179), e como um modo de projetar não para, mas com o outro. Aborda, assim, um projeto desenvolvido junto ao grupo indígena Mebendokré (mais conhecido por Kayapó). Tal projeto intitulou-se Kikré, e chegou ao grupo a partir de um recurso decorrente de uma compensação ambiental.

“A casa na ponta da língua: pensando na expressão linguística do espaço de viver”, de Wilmar D’Angelis, é o último capítulo, e discorre acerca da temática da linguagem. Mais do que “etiquetas”, a língua e a cultura são abordadas como um modo de construir o mundo em meio à negociação de sentidos e significações. A língua é da ordem da disputa, de modo que “a língua expressa um mundo organizado pela cultura” (p. 202). O autor problematiza a construção do que o termo casa significa/vai significar no projeto da Casa dos Saberes Ancestrais, enquanto vocabulário de um espaço social.

Finalizando, Daniel Munduruku, escritor e doutor em Educação, intitula o posfácio: “O que vem a ser uma Casa dos Saberes Ancestrais?”. Retoma e amarra os escritos ao sonho, e usa o termo “a gente somos” a partir da compreensão cósmica, ou seja, na ideia de que talvez, quem sabe, de repente, aprendamos com os indígenas na significação de si como “parte de um universo” e “irmãos de todos os viventes” (p.216), e não a parte do universo ou apenas como um indivíduo. Finaliza sua escrita correlacionando passado (memória) e presente, convidando a nos desvencilhar das amarras do futuro, que faz com que esperemos pela salvação do “um dia será”.

De modo geral, como já apontado nas linhas iniciais deste texto, o livro se constitui por linguagens (quiçá, línguas). Os capítulos correlacionam-se entre si, produzindo uma leitura fluida e convidativa. Além disso, conta com a presença de escritos de lideranças indígenas que têm povoado as redes sociais e os debates acadêmicos: Daniel Munduruku e Ailton Krenak. Contudo, apontam e trazem à cena outras vozes, lideranças e povos.

Os textos do livro nos levam e nos conduzem pelos interstícios de um sonho, um sonho sonhado junto. Um sonho coletivo.

Trata-se de escritos e uma obra que nos convida a sonhar junto aos/as autores/as modos não só de acolhimento, mas modos de fazer com que a presença dos/as indígenas nos espaços sociais ditos “brancos” interrogue os currículos, o imaginário social, as relações. Em um contexto em que nas escolas brasileiras ainda existe a tradição pedagógica de comemoração do dia do índio, analisar e problematizar a presença indígena desde a perspectiva do encontro e da multiplicidade coloca modos outros de conduzir a história.

Dentre os grafismos, a memória, a oralidade, a escrita, as imagens e as fotografias, os textos fluem colocando o sonho como uma possibilidade e um modo de existir. Coloca o/a leitor/a lado a lado com as culturas indígenas, convidando ao descentramento branco, caucasiano, europeu. Faz-nos lembrar de nossa ancestralidade. Ou mesmo perguntar-nos a respeito de nossa ancestralidade, para quem a desconhece ou esquece. Coloca-nos lado a lado com nossas verdades a respeito dos povos indígenas, desconstruindo-as. Mostra-nos que é possível pensar e sonhar com a pluriversidade (plural, coletiva), como menciona o texto, ao invés da universidade (uno, único) no seio dos contextos institucionais, nesse caso, acadêmicos.

Finalizando, é um escrito que nos desacomoda, incomoda e movimenta o pensamento.

Revisão gramatical realizada por: Wilma Rigolon

E-mail:wilma.rigolon@gmail.com

REFERÊNCIAS

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Martin Claret, 2007. Título original em inglês: Alice’s Adventures in Wonderland (1866). [ Links ]

Recebido: 25 de Novembro de 2021; Aceito: 21 de Julho de 2022

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