SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 issue4EDUCAÇÃO BILÍNGUE DE SURDOS: RETROSPECTIVAS, PRÁTICAS E PERSPECTIVASBILINGUAL DEAF EDUCATION AT LDB: A NEW CONQUEST OF THE DEAF MOVEMENT author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.24 no.4 Campinas Oct./Dec 2022

https://doi.org/10.20396/etd.v24i4.8669320 

DOSSIÊ

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO DE SURDOS EM NOSSA CONTEMPORANEIDADE: A LIBRAS COMO LÍNGUA DA ESCOLA

REFLECTIONS ON DEAF EDUCATION IN OUR CONTEMPORANEITY: LIBRAS AS THE LANGUAGE OF THE SCHOOL

REFLEXIONES SOBRE LA EDUCACIÓN SORDA EN NUESTRA CONTEMPORÁNEA: EL LIBRAS COMO LENGUA ESCOLAR

Lucyenne Matos da Costa Vieira-Machado1 

José Raimundo Rodrigues2 

Daniel Junqueira Carvalho3 

1Doutora em Educação - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES - Brasil. Estágio pósdoutoral, em Educação - Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) . São Leopoldo, RS - Brasil. Professora Associada I - Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES - Brasil. E-mail: profaluvieiramachado@gmail.com

2Doutor em Teologia - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte. Doutorando em Educação - Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES - Brasil. Coordenador de Turno da Prefeitura Municipal de Vitória. Vitória, ES - Brasil. E-mail. educandor@gmail.com

3Doutorando - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES - Brasil. Docente do Departamento de Educação e Ciências Humanas - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES - Brasil. E-mail: danieljc.libras@gmail.com


RESUMO

Em nossa atualidade estamos lidando com muitas mudanças na educação dos surdos e uma delas é a educação bilíngue para surdos ser definida como modalidade na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) ao lado da educação especial não sendo mais parte dessa. Tal modalidade é defendida pelos sujeitos e pesquisadores surdos a partir da aposta de que estes apresentam uma diferença linguística que escapa do modelo da deficiência na definição de seu público alvo. Este artigo tem como objetivo pensar sobre o lugar das línguas na educação bilíngue para surdos e, para isso, partimos da seguinte pergunta: “como pensarmos então a Libras como língua da escola?” Para fazermos estas reflexões, discutiremos a educação bilíngue como “desejo de realidade”, como nos aponta Larrosa (2008), bem como nos perguntamos se a Libras como língua da escola é alienante ou emancipadora, a partir de Masschelein e Simons (2017). Por fim, defendemos uma linguagem educacional na educação dos surdos com Biesta (2013), a partir de três noções: confiança sem fundamento, violência transcendental e responsabilidade sem conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE Educação de surdos; Educação bilíngue; Libras

ABSTRACT

Currently we are dealing with many changes in the education of the deaf and one of them is bilingual education for the deaf being defined as a modality in the Law of Directives and Bases (LDB) alongside special education no longer part of it. This modality is defended by deaf subjects and researchers based on the bet that the deaf have a linguistic difference, thus escaping the model of disability in the definition of their target audience. This article aims to think about the place of languages in bilingual education for the deaf and for that we start from the following question “how do we think of Libras as a school language?” In order to make these reflections, we will discuss bilingual education as a “desire for reality” as pointed out by Larrosa (2008) as well as we ask ourselves if Libras as a school language is alienating or emancipating from Masschelein and Simons (2017). Finally, we defend an educational language in the education of the deaf with Biesta (2013) based on three notions: unfounded trust, transcendental violence and responsibility without knowledge.

KEYWORDS Deaf education; Bilingual education; Libras

RESUMEN

Actualmente nos enfrentamos a muchos cambios en la educación de sordos y uno de ellos es la educación bilingüe para sordos siendo definida como una modalidad en la Ley de Directrices y Bases (LDB) junto a la educación especial que ya no forma parte de ella. Esta modalidad es defendida por sujetos e investigadores sordos a partir de la apuesta de que los sordos tienen una diferencia lingüística, escapando así al modelo de la discapacidad en la definición de su público objetivo. Este artículo tiene como objetivo pensar el lugar de las lenguas en la educación bilingüe para sordos y para ello partimos de la siguiente pregunta “¿cómo pensamos Libras como lengua escolar?” Para hacer estas reflexiones, discutiremos la educación bilingüe como un “deseo de realidad” como lo señala Larrosa (2008) y nos preguntaremos si Libras como lengua escolar es alienante o emancipadora de Masschelein y Simons (2017). Finalmente, defendemos un lenguaje educativo en la educación de sordos con Biesta (2013) basado en tres nociones: confianza infundada, violencia trascendental y responsabilidad sin saber.

PALAVRAS-CLAVE Educación para sordos; Educación bilingüe; Libras

1 POR UMA INTRODUÇÃO: QUESTÕES ATUAIS E MOVIMENTOS DA EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS EM NOSSO TEMPO

A educação especial a partir do conceito de deficiência abrigava na sua lista os surdos e os deficientes auditivos como parte daqueles que precisam de suporte e, posteriormente, passou a compor a educação especial como modalidade a partir da Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB 9394/96).

Com os movimentos surdos, no Brasil, principalmente no final do século XX e início do século XXI, na defesa de que os surdos deveriam ser vistos por meio das políticas linguísticas, o estranhamento com a educação especial sempre foi existente.

Em 2021, em plena pandemia global de Covid-19 (causada pelo vírus Sars-Cov2), convivemos com um acontecimento que mexeu com a comunidade surda brasileira: a promulgação da Lei 14.191/2021 que definiu a educação bilíngue para surdos como modalidade de educação na LDB 9.394/96.

A proposta, historicamente debatida nas comunidades surdas, era de que não queriam mais ser listados como público-alvo da educação especial para lidarem diretamente com os surdos por meio de políticas linguísticas. O objetivo era deslocar a ‘questão surda’ da deficiência para uma questão linguística. A Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS), sempre esteve muito presente nos movimentos de luta pela inclusão dos direitos educacionais de/para/por surdos defendendo a inclusão da Educação Bilíngue (Libras como língua de instrução e português escrito como segunda língua) no documento do Plano Nacional de Educação (PNE).

Na Conferência Nacional de Educação (CONAE) em 2010, a proposta não avançou. Ela foi retirada ‘democraticamente’ por uma maioria não surda, mantendo a educação de surdos na modalidade da Educação Especial, apesar dos esforços e participação massiva dos militantes e ativistas surdos (que não eram maioria votante). Após recursos e lutas travadas em audiências no Senado Nacional, os surdos conseguiram incluir a proposta de educação bilíngue dentro do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) por meio da Lei 13.005, de 25 de junho de 2014.

Ainda numa breve retrospectiva, é preciso recordar como o empenho de pesquisadores acadêmicos contribuíram para deflagrar um desejo de formação. Um dos elementos desses movimentos políticos de lutas emergentes com participações de militantes e ativistas surdos, com presenças de colaboradores intérpretes de Libras, foi o crescente empenho de pesquisadores universitários, aumentando a produção de conhecimentos acadêmicos sobre a educação de surdos e a Língua de Sinais.

A partir de diferentes abordagens teórico-metodológicas, desenvolveu-se no Brasil a formação de profissionais para atuarem na Educação de Surdos. Em um primeiro momento, ainda sem formação acadêmica específica, surgiram cursos para formar ‘Instrutores Surdos’ e ‘Intérpretes de Libras’. Com a criação de políticas públicas com garantia de direitos como a Lei 10.436/02 e o Decreto 5.626/05 garante-se assim a inclusão da Libras nas grades curriculares em cursos superiores, principalmente àqueles de Licenciatura.

Houve também a criação de cursos superiores de Licenciaturas e Bacharelados de Letras Libras; concursos para docentes de Libras e/ou disciplinas em áreas de Letras Libras; inserção e aumento de mestres e doutores surdos, dentre outros, produzindo assim um avanço na pesquisa sobre educação bilíngue para surdos, o que garantiu mais força na defesa da educação bilíngue como modalidade educativa. Desta forma, ocorre um desejo por uma pretensa divisão com a educação especial, pois a mesma exerceu por muitos anos domínio e controle sobre o que deveria ser pensado pedagogicamente na educação de surdos, permitindo o uso da Libras como língua de instrução e do Português escrito como ferramentas de aprendizagem em momentos específicos, principalmente em atendimentos educacionais especializados no contraturno escolar, não coadunando com o desejo dos surdos.

Assim, em 2021, a partir de um amadurecimento das lutas dos surdos e amplo debate e disputas com militantes e ativistas da educação especial no âmbito da Câmara dos Deputados e no Senado Federal, a educação bilíngue como modalidade é aprovada e com isso há entre os militantes e ativistas surdos uma euforia enorme e, logo nas redes sociais, são proliferados vídeos com comemorações pela vitória do que tanto foi almejado pelos surdos.

Destarte, o desejo dos militantes e ativistas surdos (e ouvintes) é de uma língua viva na escola, local onde os surdos possam ser livres para se comunicarem em comunidade e que todas as disciplinas sejam dadas em Libras diretamente. O desejo dos surdos sempre foi de liberdade do uso de sua língua de sinais.

Não nos aprofundaremos na historiografia sobre o contexto da educação dos surdos porque desejamos neste texto problematizar algumas questões do presente. Sabemos que fazer a história do presente é um desafio, pois não temos tantas referências documentais, já que escrevemos enquanto o acontecimento está sendo experienciado. Porém, por vivermos em uma sociedade que adota oposições binárias e lê a realidade desde esse horizonte que separa e distingue, achamos muito necessário contribuir com a área fazendo reflexões e utilizando noções teóricas não habituais para pensar a educação bilíngue dos surdos.

Podemos aqui elencar as metanarrativas produzidas e posicionadas politicamente a partir das oposições binárias como dominador x dominado, opressor x oprimido, colonizador x colonizado, dentre outros conceitos semelhantes. Estes olhares, expressados nas muitas lutas surdas, das comunidades surdas, da população surda, em narrativas surdas divulgadas e pesquisadas, palestras em circulação dos surdos e de muitas pesquisas acadêmicas dos surdos são, em grande parte, apontados em aspectos culturais como oposição entre Surdos x Ouvintes, Sinais x Oralismo, Educação Especial x Educação Bilíngue, Educação de Surdos x Educação Inclusiva e etc.

Para além dos contrastes binários habituais, este artigo intenciona dois movimentos complementares. Um primeiro, a partir de Larrosa (2008), que pretende fazer uma reflexão teórica sobre os desdobramentos dos acontecimentos do presente sobre a educação bilíngue como desejo de realidade; e um segundo, desde as contribuições de Masschelein e Simons (2017), compreender as (im)possibilidades de se ter a Libras como língua da escola. E nos propomos a fechar com Gert Biesta (2014) para refletirmos sobre algumas impraticabilidades educativas, sem arriscarmos dar uma resposta definitiva às questões que fazemos ao longo do texto.

2 EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS COMO DESEJO DE REALIDADE

O desejo, ou a vontade de realidade, tem relação, então, com a suspeita de que falta algo ao que nos é apresentado como real.

[...] E buscamos, portanto, algo como uma realidade da realidade, esse ingrediente,

ou essa dimensão, que faz com que algo ou alguém seja validado como real, que nos dê certa sensação de

realidade

(Larrosa, 2008, p. 185).

A educação bilíngue para surdos em nosso tempo, ganha esta configuração e nome a partir das lutas pelo uso das línguas de sinais como língua nacional. A cada passo legal, iniciado há vinte anos com a conhecida “Lei de Libras” (Lei 10.436/2002), a educação bilíngue passa a se tornar realidade nas práticas institucionais.

Problematizamos com Larrosa (2008) sobre este desejo de realidade que é da ordem da pulsão de vida. Este desejo aqui se conecta com aquilo que mais queremos, como uma vontade de viver. As lutas surdas partem de um anseio comum: ter a língua de sinais como a língua da vida, como a língua primeira, libertando-os de uma vida em tradução interlingual. Entendemos com Steiner (2005):

[...] que a tradução está formal e pragmaticamente implícita em cada ato de comunicação, na emissão e na recepção de cada um e de todos os modos de significar. [...] Contudo, embora estejamos “traduzindo” em todos os momentos em que falamos ou recebemos signos em nossa língua, é evidente que a tradução no sentindo mais comum emerge quando se dá o encontro de duas línguas

(STEINER, 2005, p. 14).

Todos temos uma vida em tradução na linguagem. Porém, as vidas surdas vivem em tradução porque, apesar da Libras ser considerada uma língua nacional, ela está presente nestas vidas em conjunto com a Língua Portuguesa em suas diferentes modalidades (vocalizada e escrita). Os sujeitos surdos a vivenciam nos espaços escolares como uma língua de tradução de conteúdos apresentados desde a língua portuguesa, ou seja, desde uma língua oral auditiva, tornando os surdos eternamente tradutores, e se tradutores da língua, claramente tradutores da vida.

Toda a realidade de vida produzida por esses sujeitos surdos parte, desde a tenra idade, da tradução de signos não verbais como expressões faciais, bem como no sentido em que as coisas se posicionam, as pessoas se colocam etc. E esses signos não verbais, que são capazes de traduzir a existência desde a infância, vão possibilitando que esses sujeitos surdos construam a vida a partir de um quebra cabeça que se apresenta sempre com ausência de peças, ou seja, partes que a linguagem oral se encarrega de completar, forjando uma linguagem que esses sujeitos não acessam.

Por isso, o desejo de que a língua de sinais seja a língua que traga e complete com as peças faltantes o quebra cabeça da vida, torna-os sujeitos agentes da luta pelo acesso a esta língua desde a infância, liberando-os da angústia da tradução. Ricoeur (2011), em sua palestra sobre o desafio e a felicidade da tradução, realizada em 1997, afirma que é uma questão difícil: “Colocar-se à prova, como se diz, de um projeto, de um desejo, mesmo de uma pulsão: a pulsão de traduzir” (RICOUER, 2011, p.22). “Seguimos o tradutor desde a angústia que o retém antes de começar e através da luta com o texto ao longo de todo o seu trabalho: nós o abandonamos no estado de insatisfação em que o deixa [...]” (RICOUER, 2011, p.27).

Aqui queremos esclarecer que a tradução não se trata apenas do trabalho consciente de tradução de uma língua para outra, mas ampliamos seu conceito para a tradução como experiência a partir de uma linguagem que constitui os sujeitos. Passamos a vida traduzindo signos e produzindo nossas subjetividades. Junto com Masschelein e Simons (2014), a capacidade de traduzir faz parte da tríplice potência que constrói a experiência-infância (não a infância cronológica):

[…] a potência da palavra, isto é, a potência de tradução, ou inteligência - pois é preciso entender a inteligência como potência de tradução. A inteligência tem a ver com compreender, mas é preciso saber o que isso significa: “É preciso entender e compreender em seu verdadeiro sentido: não o derrisório poder de suspender os véus das coisas, mas a potência de tradução que confronta um falante com outro falante”

(MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 35).

Ampliando assim o conceito de tradução e ato de traduzir, podemos analisar a surdez como experiência perpassada pela tradução das diferentes formas comunicativas e, caso sejam trabalhadas para a compreensão da forma oral à linguagem, a tradução é uma espécie de simulacro de linguagem oral, revelada apenas por movimentos labiais. Pensar sobre a experiência da surdez é compreender as diferentes modulações de vidas possibilitadas aos sujeitos surdos.

Não nos compete enumerar aqui que sujeitos surdos são possíveis (é da ordem do impossível, pois subjetivamente cada um é singular), mas mostrar como o desejo de traduzir o mundo pela língua de sinais, visual, corporal, se dá no sentido de pensar sujeitos surdos outros, forjados na própria língua, sendo este um potente desejo de realidade. Mas como produzir essa realidade se as vidas desses sujeitos, muitas vezes, são limitadas a conhecer a língua de sinais na idade adulta ou mesmo na escola por meio de intérpretes ou outros profissionais que atuam com a Libras? E quando há a possibilidade de encontro com outro surdo ou mesmo um professor surdo?

Por isso, retomando Larrosa (2008), perguntamos-nos: quando “buscamos, portanto, algo como uma realidade da realidade, esse ingrediente, ou essa dimensão, que faz com que algo ou alguém seja validado como real, que nos dê certa sensação de realidade”? (LARROSA, 2008, p. 185). Como sentir essa sensação de realidade? O que nos faz experimentar esse desejo de realidade?

Junto com Larrosa (2008) nos propomos a pensar como o desejo de realidade da educação bilíngue vibra a partir das práticas e discursos proliferados. “Porque talvez esse desejo de realidade nos impulsione a problematizar as nossas formas de ver, de dizer e de pensar o ‘educativo’(LARROSA, 2008, p. 186). E também refletir a partir dessas problematizações sobre como podemos produzir outros modos de ver a experiência da língua nesta escola bilíngue desejada. Afinal, a experiência é a nossa relação com o outro e com o mundo. Ela nos passa e nos acontece, ela nos per-passa, nos retira da sedimentação de nós mesmos, provoca-nos um movimento, permitindo-nos romper com a mesmidade. Assim, com Larrosa (2018, p. 186), entendemos que “o desejo de realidade está ligado à experiência, no sentido de que o real só acontece se experimentado: o real é o que nos passa e nos acontece na experiência”. E quando nos relacionamos com o real por meio da experiência produzimos assim realidades e essas realidades ganham força, validação e presença.

Olhar agora para a educação bilíngue para surdos, como da ordem do real, é difícil. Como ela se dá para as comunidades surdas plurais? É fato que a educação bilíngue como modalidade é produzida por meio de um desejo de um grupo de surdos, principalmente surdos que utilizam a Língua de Sinais e que estão na academia. Este grupo deseja muito que as crianças surdas cresçam usufruindo do direito linguístico de utilizar a Libras desde tenra idade.

Diante das notícias de votação da alteração da LDB, tornando a educação bilíngue para surdos uma modalidade, proliferam-se nas redes sociais vídeos4 de surdos e surdas emocionados/as, reafirmando a alegria de que agora as crianças teriam uma escola, um lugar onde pudessem viver a surdez-experiência em sua plenitude linguística. Esse real ainda não dado, aparece-nos ainda na ordem do desejo, do esperado, do também idealizado, do conspirado.

Porém, entendendo que o desejo de realidade é um ‘desejo de acontecimento’, em um primeiro momento, a realidade não é objeto (LARROSA, 2008), e por isso, o sujeito da experiência, que está ex-posto, aberto, “[...] não constrói objetos, mas se deixa afetar por acontecimentos” (LARROSA, 2008, p. 187). Assim, nos perguntamos: como esse desejo de realidade pode sair do campo de um grupo pequeno de surdos para ganhar outros tantos surdos e não surdos pelo Brasil afora? Este pequeno grupo está se deixando afetar pelo acontecimento ou produzindo algum objeto para que outros que estão na ponta do ensino básico dem conta dessa realidade? Os surdos que estão na universidade irão trabalhar nestas escolas? De que educação bilíngue falamos todos? Como a compreendemos e a empreendemos desde diferentes esforços? Como se construirá a realidade desejada e, permanentemente, fadada, felizmente, a continuar ser desejo de realidade?

E ainda seguimos com Larrosa (2008) na problematização dessa realidade, pois o real não é representação. Quando nos constituímos como sujeitos de saber e poder nós mesmos fabricamos realidades. Podemos problematizar a discussão da educação bilíngue para surdos a partir de algumas perguntas: a quem ela representa? Que tipos de vidas surdas serão atendidas por essa modalidade? Para Larrosa (2008), o desejo de realidade é um ‘desejo de presença’ e estar presente no presente é prestar muita atenção aos desdobramentos das decisões tomadas por algum grupo específico.

Outro grave problema é produzir estranhamentos em atitudes como dizer: “nós surdos pensamos assim”. Nós quem? E se o outro não pensar assim? Deixou de ser surdo? Estar contra ou a favor não é um bom posicionamento, pois o desejo de realidade sendo também um ‘desejo de alteridade’, anuncia que saber lidar com as perspectivas e formas de olhar podem ser mais potentes.

Ainda seguindo com Larrosa (2008) em nossas problematizações, poderíamos dizer também que as intenções construídas sobre a realidade ou mesmo as boas ou melhores intenções “[...] nos separam do real, também o desrealizam e o desperdiçam, posto que o fabricam de acordo com nossos objetivos[...]” (LARROSA, 2008, p. 188). A partir dessa afirmação, nos perguntamos sobre os objetivos e as intenções, mesmo as boas, para aprovar a lei em tempos de recessão terríveis como os que estamos vivendo. Que experiências vividas em nossas escolas nos últimos anos seriam já práticas de educação bilíngue?

Vivemos atualmente tempos difíceis, pois a necropolítica praticada pelo atual governo, de destruição da vida, não é compatível com as lutas pelos direitos linguísticos dos surdos, pois vivemos épocas de massacre das minorias e negação de direitos básicos como a saúde e a vida. Como podemos avaliar as “boas” intenções institucionais de defesa do projeto da educação bilíngue para surdos quando há lutas surdas antigas com este objetivo? Quantas vezes engolimos o que acreditamos para fabricar uma realidade de acordo com o que objetivamos? Quanto vai custar esta realidade fabricada de que foi apenas agora e neste tempo presente que as lutas surdas lograram êxito? A possibilidade de realidade de uma educação bilíngue no atual contexto é consolidação de um direito dos surdos? Por que neste atual momento tal parcela da população é contemplada? Seria tal educação bilíngue também sinal de um possível aprisionamento a que jamais o desejo de realidade se coadunaria?

Para Larrosa (2008), devemos substituir o sujeito da intenção pelo sujeito da atenção. “Quanto mais intenção, menos atenção e vice-versa. [...] O sujeito da experiência não é um sujeito intencional, [...] nem jurídico, mas um sujeito atento” (LARROSA, 2008, p. 189).

A atenção se refere a estar presente no presente e se relaciona com o cuidado. O sujeito atento é um sujeito realista, que pratica a escuta (ou a atenção) e também está associado com a espera. O importante para que a educação bilíngue como desejo de realidade seja produzida como pulsão de vida é prestar muita atenção sobre como ela está acontecendo e o que está sendo produzido, pois podemos nos tornar sujeitos que enjaulam a experiência:

Será que não somos nós que estamos enjaulados junto à experiência e damos voltas e mais voltas sobre nós mesmos, sem real algum, sem nenhum outro, sem exterior algum, sem acontecimento algum, sem surpresa alguma, sem nada diferente a nós mesmos (ou às nossas projeções, ou a nossos desejos, ou ao que já sabemos, ao que já pensamos, ao que já queremos…), que nos toque, ou que nos passe, ou que nos aconteça, ou que nos faça frente?

(LARROSA, 2008, p. 192).

A partir dessas reflexões, nos perguntamos sobre como podemos produzir uma educação bilíngue para surdos como desejo de realidade uma vez que esse desejo nos coloca em outra posição? Se é um desejo do acontecimento ou mesmo da alteridade, como paramos de dar voltas ao nosso próprio redor e ampliamos nossos debates acerca de uma vida surda livre que tenha possibilidades inúmeras para seguir a vida que quiser com liberdade, inclusive, de traduzir a vida por meio de sua língua corporal? A educação bilíngue enquanto desejo de realidade é fomento para se acolher as diversas formas de se pensar, sentir, experienciar as vidas surdas? E se toda educação age sobre o corpo e tendo que, para os surdos, a língua é corporal, que corpos são desejados por uma educação bilíngue?

2 PENSAR A LIBRAS COMO LÍNGUA DA ESCOLA

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) tem sido um objeto de estratégia de governamentalidade a partir de práticas disciplinares e de biopolíticas, produzindo modos de governar os corpos dos indivíduos surdos tornando-os corpo da população surda. Para governar o corpo dos surdos, seja no indivíduo surdo ou na população surda, a Libras tornou- se um objeto crucial nas políticas, nos investimentos do Estado e das instituições. Governando Libras, governa-se corpos surdos e, governando corpos surdos, governa-se a Libras.

Enquanto as práticas de governamento vão se atualizando, modificando, restaurando, tornando-se cada vez mais potentes, a Libras torna-se também possibilidade de um objeto de lutas, de resistências, de contracondutas e de militâncias-ativistas.

Enfim, a Libras torna-se um objeto de investigação, de disciplina, de ensino, de estudo, de comunicação, de cultura, de linguagem, de linguística, de comunidade, de inclusão, de acessibilidade, de direito, de identidade, de propriedade, de investimento, de aquisição (ou apropriação) e, de muitas outras conexões que constituíram uma rede de relações múltiplas bastante complexas e difusas que se ramificam.

A partir da leitura do texto “A língua da escola: alienante ou emancipadora?”, dos autores Jan Masschelein e Maarten Simons (2017), queremos nos deter sobre a Libras na escola, neste lugar que denominamos de bilíngue. O que significa a Libras ser uma língua da escola? O que é a escola? Como a língua praticada na escola pode nos ajudar a pensar o próprio status da Libras em uma educação bilíngue?

E aqui nos deslocamos para pensar, falar sobre a Libras como língua da escola a partir da escola mesma. Professam Masschelein e Simons (2017, p. 23) que “a escola é em primeiro lugar e primordialmente um arranjo particular de tempo, espaço e matéria em que os jovens são colocados em companhia de (alguma coisa de) um mundo de um modo específico”.

Queremos olhar a escola, junto a Masschelein e Simons (2017), como “forma pedagógica” a partir de experiências escolares e não pelas “experiências institucionalizadas”5 que com frequência são mobilizadas para atacar a escola” (p. 20). Vamos junto com os autores olhar a escola a partir de um ponto de vista educacional, “em termos das operações efetivas e reais realizadas por um arranjo particular de pessoas, tempo, espaço e matéria” (MASSCHELEIN E SIMONS, 2017, p. 21).

A escola, no sentido da forma(ção) pedagógica, bem como das operações efetivas e reais que fazem da escola um lugar que se faz em experiências educacionais normativas, considera o sujeito antes de entrar no mundo da língua da escola como estudante ou aluno, suspendendo (não destruindo) os laços da família, do Estado ou de qualquer comunidade fechada ou definida, também daqueles que têm algo em comum (identidade).

É afirmar que na escola se pratica uma língua que não é a língua doméstica. É praticar uma língua que forma os recém-chegados. É praticar uma língua que, mesmo conhecida, tem sentido de oficialidade e diz respeito a um debruçar reverencial sobre a língua fora e dentro da escola. É praticar uma língua que se articula com o poder de enriquecer o sujeito/usuário, tornando-o gente de repertório, capaz do diálogo dentro desse espaço, mas, de modo peculiar, fora dela.

Essa suspensão serve para temporariamente colocar para fora do efeito da ordem (social) ou do uso habitual de coisas; e criar ou inventar o tempo livre (ócio) que é a materialização ou espacialização rica de scholé para tempo de estudo-exercício-prática (filosofia, autoconhecimento e cuidado de si); fazer os conhecimentos e práticas, tornando-os públicos e colocando o mundo (por mais caótico que seja) sobre a mesa (profanação); tornar atento e formar uma atenção que se apoie em duplo amor: pelo mundo como pelas novas gerações e pela matéria que se coloca em prática de formação (MASSCHELEIN E SIMONS, 2017, p. 21).

A partir dessa definição de escola, é importante pensarmos a Libras neste lugar que queremos denominar de bilíngue. O que significa a Libras ser uma língua da escola? Materna (língua(s) de casa) ou paterna (língua(s) oficial(ais) produzida(s) institucionalmente)6? Avançar nesta questão da língua é antes de tudo uma questão política. O desafio que devemos enfrentar é olhar para a língua da escola pela perspectiva pedagógica. Partimos então da seguinte hipótese: a língua da escola é sempre uma língua artificial, uma vez que deve abordar as questões do mundo em assuntos escolares. A educação escolar ‘exige’ uma língua particular na questão pedagógica (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017). A língua da escola é algo que não é praticado fora daquele espaço, concernindo num dispositivo específico que faz com que a escola seja também escola.

Mas o que é a língua da escola? Segundo Masschelein e Simons (2017) podemos aqui imaginar duas possibilidades. A primeira é que a língua da escola seria a língua utilizada para instrução e comunicação em que as matérias são transmitidas e pela qual os estudantes aprendem. E a segunda possibilidade é a de que se trata da língua ou línguas frequentemente utilizadas pelos estudantes na aprendizagem do que falar, do que escrever na escola, ou seja, está presente em todo o tempo escolar. Junto com os autores, vamos nos ater a primeira definição para pensarmos sobre a Libras como uma língua escolar.

Esta língua da escola não é ‘natural’ (não vernácula ou nativa). Ela é artificial porque ninguém fala em casa ou no dia a dia (a não ser o professor). “Nem um tipo de língua sagrada que é conservada ou protegida por uma autoridade qualquer” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 29). Quando o estudante chega na escola ele é confrontado por essa língua que é diferente da falada em casa, afinal, sendo a escola esse espaço de suspensão, a língua também é suspensa. A questão é: a língua da escola, a língua falada na escola é diferente. É própria. Tem conexões com outras línguas, mas é modificada.

Duas operações pedagógicas se fazem com a língua da escola. A primeira é que a escola é o lugar em que a matéria (assunto) deixa uma marca na língua. Tome o exemplo do professor de física, história ou matemática. Uma língua específica [...] é necessária para que o mundo (da física, da história, da matemática) se torne objeto de estudo. [...]. A segunda razão para o caráter artificial da língua das escolas é que nas escolas [...] fala-se à nova geração e ela é convidada a deixar o mundo da vida. Consiste na exposição e na reunião de jovens em torno de uma matéria (assunto) de preocupação

(MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 30-31).

A partir desses operadores pedagógicos, como pensarmos então a Libras como língua da escola? Como pensarmos a Libras como a língua comum a todos, na perspectiva pedagógica? Como língua de instrução e comunicação? O que estamos fazendo politicamente em relação à educação bilíngue no momento em que precarizamos a contratação de profissionais envolvidos com a escolarização dos sujeitos surdos? E quando os surdos estão sozinhos, nas escolas regulares, sem o outro surdo, contando apenas com os profissionais da área de Libras como intérpretes, professores surdos ou até mesmo os professore bilíngues, como acontece o processo de comunicação? E quando o próprio intérprete de Libras, bem como os outros profissionais não conseguem se comunicar fluentemente nesta língua?

Como seria a Libras nesse processo? Os sujeitos surdos estão compartilhando sua própria língua nos espaços educacionais? Quando, hipoteticamente, a língua de sinais se transforma na língua da escola, os surdos teriam acesso? Qual Libras tem se tornado a língua da escola? Ou ainda: a Libras tem se tornado a língua da escola bilíngue? A lista de perguntas é infinita e por isso escolhemos fazer essa reflexão. A língua da escola é um tipo de língua que permite uma geração a nomear o mundo e se tornar a nova geração. A Libras usada na escola tem possibilitado isso aos surdos?

A questão das gerações, em nossa visão pedagógica, não se refere a uma questão de idade ou de tempo que implica a pressuposição de que as gerações são dadas e evoluem (como um tipo de lei da natureza). As gerações são sempre feitas, e elas vêm à existência como resultado do ato de colocar algo sobre a mesa e libertá-lo. Elas não preexistem a esse ato escolar. O ato escolar torna possível uma nova geração, e isso implica que a língua da escola seja artificial, e de fato nunca possa ser possuída, mas aberta para uso livre

(MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 33).

Os autores propõem, a partir das reflexões, uma hipótese: que não importa qual língua é falada na escola, a escola opera sobre essa língua transformando-a em uma linguagem escolar. Quase poética porque possibilita o jovem vir ao mundo e nomeá-lo, por isso produz uma nova geração (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017). A Libras que hoje é operada nas escolas denominadas bilíngues, ou nos espaços escolares denominados inclusivos, possibilita aos surdos virem ao mundo como uma nova geração? Possibilita aos surdos nomearem o mundo tornando-o assim realidade? Como profissionais, que compromisso temos para operar com essa língua na relação com esses sujeitos?

A partir da hipótese lançada pelos autores, podemos analisar os desdobramentos dela (as consequências). Como primeira consequência: a língua da escola sempre vem de algum lugar, é arbitrária, e para oferecer a educação escolar, ela deve suspender a língua tanto de casa/mãe ou ainda da nação/pai. É uma escolha que impõe responsabilidades pedagógicas específicas (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017).

Elemento adicional aqui: de fato, uma vez que a escola tem a ver com a possibilidade de se relacionar com aquilo que define a vida de alguém (isto é, tem a ver com emancipação) e não apenas com estar imerso ou cercado por isso, a escola sempre deveria, pelo menos, incluir a profanação da língua materna (ou língua da família)

(MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 35)

A grande maioria dos surdos não usa a Libras em casa. Ela não é para a grande maioria dos surdos uma língua materna no sentido de ser de casa. Uma vez que a Libras é legalizada como forma de comunicação e expressão7, poderíamos dizer que a Libras é paterna? Língua nacional? E como língua paterna ela se torna institucionalizada e assim, além de tradutores e intérpretes de Libras, garante outros profissionais, como professores surdos, professores bilíngues8, a atuarem na escola como operadores pedagógicos dessa língua. Mas ainda nos perguntamos: porque os sujeitos surdos ainda sofrem com a falta da língua de forma educacional ou de forma livre e familiar? A Libras tem emancipado ou alienado os sujeitos surdos?

“A segunda consequência é que uma vez que a língua da escola é uma língua que não é (ainda) falada pelos estudantes (em graus variáveis), é responsabilidade da escola ensinar e fazê-los aprender a língua da escola” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 35). Mais do que isso, fazer essa nova geração ter amor à matéria. As perguntas que nos fazemos: a Libras usada na escola produz esse amor e permite às gerações de surdos virem ao mundo? Como uma geração pode ser produzida quando o ato escolar é proporcionado ao sujeito surdo isolado sem seus pares? A escola bilíngue conseguirá garantir a produção de novas gerações de surdos? Uma educação bilíngue se servirá da língua, no caso Libras, apenas para reprodução do conhecimento historicamente acumulado ou será uma língua da escola enquanto potência de conhecimento outro?

“Terceira consequência talvez seja a de que na educação escolar a língua paterna ou materna é a um só tempo transformada em matéria” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 36). E assim se torna uma língua que é analisada, invertida, recomposta, recriada. A importância de gramaticalizar essa língua é porque assim ela produz objetos de estudo que podem ser retomados, revisitados, arquivados ou abandonados na escrita. Como a Libras pode ser transformada em matéria? Ela em si é uma matéria? Ou a matéria também pode ser estudada em Libras? Como gramaticalizar a Libras quando a mesma possui outro funcionamento em que a escrita talvez não dê conta? Enquanto língua corporal e cujo escrita torna-se complexa, que tipo de escrita se deseja, se espera? É possível pensar uma língua da escola que prescinda da escrita e credite a outras formas também visuais a possibilidade de sua “contenção”, registro e fixação? O necessário aprendizado do português escrito em uma educação bilíngue estará a serviço de que? Deseja-se com ele abrir as portas de um vasto mundo de conhecimento em registro escrito ou tão somente um trânsito lacunar numa língua eminentemente oral e com muitas marcas de oralidade?

Já na quarta consequência, os autores defendem que a escola deve oferecer mais do que uma língua a ser aprendida e estudada como matéria. Afinal “esta é de fato uma maneira poderosa (a única?) de contribuir para a profanação da comunicação, ou seja, permitir aos jovens a experiência/habilidade/potencialidade de comunicar e traduzir” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 36). A escola bilíngue para surdos já parte da premissa de que a Libras e a Língua Portuguesa escrita sejam gramaticalizadas e sejam estudadas também como matéria. Efetivamente, os sujeitos surdos têm tido essas línguas em sua formação? Que profissionais e qual a formação desses para que esta seja a realidade escolar dos sujeitos surdos? Como experienciar formações que escapem ao doutrinamento e à simples redundância do repetir o já consolidado historicamente? Como prover tempos e espaços em uma educação bilíngue que gere desde o “ócio” da escola outras formas de se comunicar e saber?

E por fim, como última consequência: domesticar a língua da escola seja uma forma efetiva de domesticar a escola. A tentativa de “fazer a língua da escola como a língua oficial (a língua do Estado ou de qualquer autoridade) sempre implica transformar a escola em um modo de socialização (e portanto, de reprodução)” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 39).

Que compromissos como educadores podemos assumir a partir das duas línguas da escola bilíngue: Libras e Língua Portuguesa escrita? Como gramaticalizaremos essas línguas? Onde as localizaremos? Ambas se relacionam hierarquicamente? Qual o perigo de uma língua subalternizar a outra? Como a Libras pode também ser uma língua pedagógica, ou seja, ser usada não apenas como matéria, mas ser também a língua das matérias? A Libras tem condições de habitar esse lugar arbitrário e se especializar? Ou ela ocuparia apenas um espaço de língua no processo de resistência e de minorias? Até que ponto o desejo da Libras na educação bilíngue pode ser uma ameaça à liberdade que essa língua suscita ao evanescer diante dos olhos e trabalhar com outros pressupostos que não os tradicionais das línguas orais? E sendo língua da escola, a Libras seria dominada e domesticada pela oficialidade ou pelos seus usuários?

Considerando-se as infinitas possibilidades do ser surdo, ao se oficializar uma língua na escola não estaremos gerando possibilidades outras de subverter a própria Libras? O que não cabe na Libras, mas cabe nos corpos surdos e suas inventividades constantes? Não estará na própria Libras a centelha de ser fomentadora de contracondutas a questionar a educação bilíngue enquanto desejo de realidade? Ser a língua de uma minoria, agora oficializada, não seria suprimir dessa língua seu viço e sabor de experiência? Tornar a Libras língua da escola não seria usurpar do lugar de língua da escola como aquele que põe tudo em suspensão?

3 E ENTÃO... COMO PENSAR AS RELAÇÕES EDUCATIVAS?

Sem a pretensão de dar uma resposta ou respostas às nossas provocações, a partir das discussões e reflexões sobre a educação bilíngue como desejo de realidade e sobre a Libras como língua da escola, como podemos pensar a educação, neste caso, a educação dos surdos? Aqui, finalizando este artigo, convocamos o autor Gert Biesta (2013) como intercessor para exercitarmos o pensamento.

Segundo o autor, “pensar na educação como uma transação econômica, como um processo de satisfação das necessidades de aprendente [...] é, portanto, antes de mais nada problemático” (BIESTA, 2013, p. 41). Mesmo parecendo ser uma afirmação óbvia, a linguagem da aprendizagem em nosso tempo possibilita compreender mal o papel do aprendente e do profissional da educação na relação educativa.

A ideia de que a educação deve consistir em satisfazer o aprendente ou pelo menos o que é pré-definido como o que o aprendente deve saber também é problemático. Afinal, o que desfaz a relação educativa (como uma relação) e coloca a aprendizagem no centro, é a necessidade de se ter professores bem “treinados” a partir de uma formação baseada em técnicas e métodos que o profissional da educação “deve saber” para produzir o melhor resultado de aprendizagem.

Biesta (2013) aborda pelo menos duas objeções para que se continue trilhando a linguagem da aprendizagem. A primeira, é que a compreensão econômica do processo educativo parte de uma relação em que o aprendente define o que deseja aprender e o professor apenas é o provedor desse desejo e se torna dedicado a satisfazer o ‘cliente’. E a segunda objeção é que assim fica muito difícil propor questões sobre conteúdo e objetivos educacionais desde fora da lógica de que devem ser definidos pelo “cliente” ou pelo “mercado”.

Assim, o autor se dispõe a ignorar essa linguagem, convocando uma outra linguagem para a educação. Sabemos bem que ao provocarmos a linguagem, produzimos assim outra realidade e, neste caso, uma realidade educacional. Precisamos reivindicar, recriar, reinventar uma linguagem da educação. Destarte, nesta aventura de pensar uma outra linguagem para a educação, Biesta (2013) oferece três conceitos que se entrelaçam: a confiança sem fundamento, a violência transcendental (ou aprendizagem como resposta) e a responsabilidade sem conhecimento.

Onde começa a educação? Talvez por um aprendente que está com desejo de aprender algo e vai buscar um lugar para apreender alguma qualificação, habilidades ou competências específicas ou até mesmo com quem aprender alguma coisa. “O aprendente sabe o que deseja aprender, assim o provedor deve assegurar -se de que é precisamente isso - e nada mais e nada menos - o que o aprendente aprenderá” (BIESTA, 2013, p. 44). A partir dessa relação, surgem os contratos, a inspeção, o controle sobre o que deve ou não deve ser ensinado.

Entretanto, mesmo com as formas mais organizadas de aprendizagem formatadas, qualquer relação educacional incorre em um risco. O risco existe na relação educacional apesar de acharmos de antemão que já foi previsto tudo. E é da ordem do incalculável. Não somente o risco de não aprender o que acha que deve ser aprendido, mas o risco de aprender aquilo que não queria aprender, ou que não esperava aprender. E em que o risco e a confiança se relacionam? “Basicamente porque a confiança gira em torno daquelas situações em que não se sabe e não se pode saber o que vai acontecer” (BIESTA, 2013, p. 45). Se for previsto, a confiança não será mais necessária. Ela gira em torno do incalculável.

Se olhamos para a educação bilíngue como desejo de realidade, podemos confiar que o sujeito surdo, ao entrar na escola bilíngue, logo será afetado como sujeito no encontro com seus pares? A Libras será aprendida se for uma língua pedagógica? E os surdos que não tem em casa a Libras e encontra na escola o único lugar de uso dessa língua, ele pode confiar em como ela será operada? Podemos prever que a escola bilíngue fará esse papel?

A educação consiste em propor questões difíceis, o que a torna as relações nem sempre divertidas e leves, pois temos o dever de desafiar os estudantes a virem ao mundo, ou seja, que eles possam sempre se reposicionar a partir da aprendizagem como resposta, o que violaria a soberania do aprendente. “Derrida se refere a essa violação como ‘violência transcendental’" (BIESTA, 2013, p. 49). A aprendizagem como resposta foge da ideia de que a aprendizagem é apenas aquisição de algo exterior ao aprendente e que o ato de aprender agora é de posse dele. Em vez de vermos a aprendizagem como adquirir, dominar, internalizar, reter, apreender ou qualquer outro termo que indique posse, podemos ver a aprendizagem como reação a um distúrbio, como tentativa de reorganização, como uma resposta a algo que é diferente, que nos perturbe, que nos irrite. A aprendizagem como resposta consiste em mostrar quem é você e em que posição está” (BIESTA, 2013, p. 47).

A aprendizagem como resposta permite ao outro “vir ao mundo” e, para essa ação, é necessário o outro, e não é algo que se faz ou se decide sozinho. Ao vir ao mundo, é necessário ter um mundo, pois a linguagem que cria este mundo já existe (BIESTA, 2013). Os professores e os outros profissionais da educação têm a tarefa fundamental de criar as oportunidades para que os aprendentes venham ao mundo, ou seja, sejam capazes de responder às questões educacionais. A escola bilíngue para surdos ou qualquer outro espaço educacional que atenda os surdos têm propiciado que esses sujeitos venham ao mundo? Eles têm tido o direito de responder em sua língua? E como podem responder por si sem acesso a Libras como língua da escola?

E, por fim, “se a educação consiste em criar oportunidades para que os estudantes venham ao mundo, e se consiste em propor questões difíceis que tornam isso possível, fica claro que a primeira responsabilidade do educador é pela subjetividade do estudante” (BIESTA, 2013, p. 50). Envolver-se em relações educacionais, ser um professor ou ser um educador, implica, portanto, a responsabilidade por alguma coisa (ou melhor, por alguém) que não conhecemos e que não podemos conhecer e é por isso que a responsabilidade sem conhecimento é vista como a terceira dimensão da relação educativa proposta aqui pelo autor.

Temos assumido a responsabilidade pela educação dos sujeitos surdos? Como temos assumido a língua desse sujeito? Em que medida a educação bilíngue como modalidade vai assumir a responsabilidade pela subjetividade desses sujeitos? Só por meio dela que os surdos podem ser subjetivamente surdos?

Assim, para ter uma educação bilíngue como desejo de realidade sendo implantada, necessitamos de pensar seriamente sobre o lugar das línguas Libras e Língua Portuguesa como línguas da escola e como ambas, muitas vezes, mais alienam (pois da forma utilitarista que ela vem sendo usada, despem os surdos da realidade das lutas surdas históricas) do que emancipam quando não pensamos nas relações educacionais para além da redução da escola bilíngue como um lugar de duas línguas.

4 CONSIDERAÇÕES... FINAIS OU PROVISÓRIAS?

Queremos começar as considerações (mais provisórias do que finais), elucidando que, como pesquisadores, assumimos um compromisso ético com a promoção e o desejo de uma educação bilíngue de qualidade para os sujeitos surdos, para as crianças surdas, com escolas onde eles possam sinalizar, conversar com seus pares e serem felizes com profissionais qualificados. Este é o nosso desejo. Porém, ser o nosso desejo, não nos inviabiliza de fazermos a crítica necessária, pois acreditamos que a legislação é o primeiro passo de uma longa caminhada para o sucesso dessa empreitada. E nosso trabalho como pesquisadores é criar ferramentas teóricas para diferentes reflexões sobre este projeto.

Este artigo teve como objetivo produzir ferramentas teóricas a fim de provocar reflexões sobre a educação bilíngue para surdos em nossa atualidade no Brasil. Para esta empreitada, após uma exposição histórica breve sobre as lutas surdas e os marcos legais na introdução, lançamos mão da noção de ‘desejo de realidade’ de Larrosa (2004) para provocar questões sobre o que estamos entendendo da educação bilíngue em nosso tempo.

Também usamos Masschelein e Simons (2017) como interlocutores para discutirmos a Libras como língua da escola (e desta escola bilíngue) e finalizamos com Gert Biesta (2013), não para respondermos sobre o que seria uma educação ideal, mas refletir sobre a própria noção de relação educativa, objetivando sair da ideia minimizadora de que a escola bilíngue seria apenas um lugar com duas línguas, mas sim um espaço de uma relação educativa que faça com que os sujeitos surdos sejam capazes de vir ao mundo.

4Citamos estes relatos a partir de vídeos principalmente no Facebook, Instagram e lives no Youtube. Citamos aqui estas informações como exemplo, pois não há uma pesquisa aprofundada que tomem estes vídeos como objeto de pesquisa. Temos canais do Youtube, como do IEEL (Instituto de Educação e Ensino de Libras), que disseminam a cultura surda e tudo que for relacionado às conquistas que os surdos vão adquirindo.

5Segundo Masschelein e Simons (2017, p. 19), a escola é considerada (e utilizada) como um tipo de mecanismo manipulador e institucionalizante, que a torna como um maquinário, normalizador, colonizador, alienante, bancário, opressivo, prisão e dentre outros, “que impõe, estabelece e reproduz mais ou menos violentamente certa ordem social”.

6Estes conceitos podem ter diferentes abordagens porém os autores Masschelein e Simons (2017) as tomam da seguinte forma: a língua (ou línguas) falada em casa como maternas e a língua oficial (ou línguas oficiais) como paternas.

7Lei 10.436/2002

8Garantidos pelo Decreto 5.626/2005

Revisão gramatical realizada por: Cibele Verrangia.

E-mail: cvrrangia@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Desejo de realidade-experiência e alteridade na investigação educativa. In: BORBA, Siomara; KOHAN, Walter (Org.). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2008. [ Links ]

MASSCHELEIN, Jan; SIMON, Maarten. Pedagogia, democracia e a escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. [ Links ]

MASSCHELEIN, Jan; SIMON, Maarten. A língua da escola: alienante ou emancipadora? In: LARROSA, Jorge. Elogio da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. [ Links ]

RICOUER, Paul. Sobre a tradução. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. [ Links ]

RODRIGUES, José Raimundo. As seções de surdos e de ouvintes no Congresso de Paris (1900): problematizações sobre o pastorado e a biopolítica na educação de surdos Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 2018. 202 f. [ Links ]

STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. 3.ed. Tradução de Alberto Faraco. Curitiba: Editora da UFPR, (2005). [ Links ]

Recebido: 17 de Maio de 2022; Aceito: 20 de Outubro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution Non-Commercial No Derivative, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais, sem alterações e que o trabalho original seja corretamente citado.