1 INTRODUÇÃO
Com este artigo, nos inscrevemos no escopo de pesquisas mais recentes do campo da Educação Ambiental que têm adotado como foco de suas investigações o modo como a mídia brasileira aborda a problemática ambiental. Na perspectiva dos chamados Estudos Culturais em Educação, referencial teórico que orienta este trabalho, entendemos que a mídia tem assumido, cada vez mais, a função de um importante dispositivo pedagógico (FISCHER, 2012). Admitimos que jornais, revistas, programas televisivos, músicas, entre outros, põem em circulação em nossa cultura significados, os quais participam na constituição dos sujeitos e de subjetividades. Sublinhamos que os resultados aqui apresentados podem ser entendidos como uma modesta contribuição ao campo para refletir sobre as operações e os processos que estão implicados na formulação de narrativas tomadas como verdade acerca do modo de vida contemporâneo e sua relação como o meio ambiente.
Nossa expectativa é a de que este diagnóstico da atualidade, como nos ensinou Michel Foucault (2006), potencialize o exercício crítico sobre nós mesmos. E que possamos nos interrogar também sobre as relações econômicas, sociais e políticas que nos trouxeram até aqui. Com esse exercício que ora apresentamos, talvez, possamos potencializar nossas práticas na Educação Ambiental – quer seja no ensino, quer seja na pesquisa, quer seja na extensão. Por meio dele, podemos fazer a crítica política dos materiais midiáticos que circulam em nosso cotidiano e que narram as catástrofes ambientais mais recentes da nossa história.
O objetivo da investigação que origina esse texto é mapear os ditos postos em circulação no jornal gaúcho Zero Hora acerca da natureza, em especial, por ocasião do rompimento de uma barragem de contenção de rejeitos da mineradora Vale, na região de Brumadinho, a 60 km de Belo Horizonte, em 25 de janeiro de 2019. Os rejeitos, resultantes da atividade de extração e beneficiamento mineral, ocupavam uma área de 249,5 mil m2 e o volume disposto era de 11,7 milhões de m3. O desabamento resultou em 257 pessoas mortas; muitas construções – moradias, pontos de comércio, estradas e pontes – acabaram ficando totalmente encobertas pela lama tóxica; e a poluição por rejeitos atingiu o Rio Paraopeba em direção ao São Francisco. O caso foi noticiado como tema de capa e/ou destaque no referido jornal ao longo de toda a semana subsequente ao ocorrido.
Por esta razão, no que diz respeito aos materiais e métodos da investigação, procedemos um mapeamento das enunciações relativas ao rompimento em seis edições do jornal Zero Hora – edições nº 19.306 (26 e 27/01/2019), 19.307 (28/01/2019), 19.308 (29/01/2019), 19.309 (30/01/2019), 19.310 (31/01/2019) e 19.312 (2 e 3/2/2019). Ou seja, selecionamos todas as edições publicadas ao longo daquela fatídica semana em que se deu o rompimento da barragem, de modo a acompanhar a repercussão que o jornal conferiu ao caso. Ao todo, foram identificados 174 excertos nos quais se enunciava o rompimento da barragem, postos em circulação em editoriais, charges, artigos de opinião, mapas e ilustrações4. Esses registros evidenciam as disputas discursivas em torno da problemática ambiental em um dos maiores jornais de circulação diária em nosso País, editado em Porto Alegre e controlado pelo Grupo RBS, afiliado local da TV GLOBO.
Os resultados da investigação indicaram que a mídia jornalística em questão enuncia o Brasil como um país que não aprende com as experiências de outras tragédias ambientais do passado, bem como anuncia os impactos sociais decorrentes da catástrofe ambiental, nomeada como tragédia humana.
A partir do exercício analítico, foi possível a composição desse texto. Para sua apresentação, dividimo-lo em três partes. Essa primeira, que chega a seu ocaso, busca anunciar os contornos da investigação, demarcando os traçados epistemológicos que lhe dão sustentação. A segunda seção trata de demarcar os delineamentos metodológicos, definindo o caminho investigativo e os traçados da Análise Cultural empreendida. A seguir, tratamos de demarcar as enunciações recorrentes no material empírico para dar visibilidade às análises que seguirão o caminho do artigo. Trata-se, enfim, de problematizar o material à luz dos autores que dão o tom teórico do texto, discutindo sobre catástrofes ambientais, a sociedade de risco que nos produz na atualidade e o refugo da modernidade, abandonado quando o que mais importa é a exploração dos recursos naturais.
2 DE ESCOLHAS METODOLÓGICAS E CAMINHOS TRILHADOS
A metodologia adotada nessa pesquisa é a da Análise Cultural e os procedimentos que serão realizados levarão em conta sua filiação aos chamados Estudos Culturais em Educação. Trabalhos nessa linha de investigação se caracterizam por se centrarem no exame da produtividade de determinados produtos da cultura implicados na construção das identidades e subjetividades. Em geral, se pode dizer que uma característica comum a todos esses pesquisadores é o princípio, admitido por eles em suas pesquisas, acerca do caráter de “invenção” daquilo que se entende como verdade quase que universalmente. Kirchof, Wortmann e Bonin (2011) ajudam-nos a esclarecer melhor a questão. Segundo esses autores:
(...) o termo ‘invenção’ (...) é utilizado neste estudo para marcar o distanciamento das análises que conduzimos de outras abordagens que tomam como verdadeiros e incontestáveis certos enunciados, sem considerar o caráter histórico, contingente e (quase sempre) arbitrário das verdades que se insinuam em nosso viver (p. 119).
Em outras palavras, buscamos mapear os diferentes modos como a cultura inventa e faz circular determinadas verdades sobre a relação humano x natureza, fabricando identidades e forjando subjetividades, especialmente no campo da educação ambiental. Dito de outra maneira, nos rastros do que nos ensina Ana Luisa Coiro Moraes (2016), empreendemos:
uma análise cultural comprometida com as conjunturas dadas pelas próprias práticas sociais de dado objeto de estudo [o que] passa por um tipo de reflexão que inclui as inter-relações de todas essas práticas, buscando suas regularidades, isto é, os padrões que nelas se repetem e, também, o que representa rupturas desses padrões (p. 33).
Os procedimentos envolvidos nesse tipo de análise cultural, quando de inspiração foucaultiana, implica operarmos com conceitos como discurso, enunciado e enunciação. O pressuposto fundamental que nos autoriza problematizar as “verdades” sobre natureza e suas relações com a Educação Ambiental, a partir da cultura, foi explicitado por Paul Veyne (2011) ao afirmar “como não podemos pensar qualquer coisa em qualquer momento, pensamos apenas nas fronteiras do discurso do momento. Tudo que acreditamos saber se limita a despeito de nós, não vemos os limites e até mesmo ignoramos que eles existem” (p. 49).
Os diferentes períodos da história, em diferentes lugares, são marcados por discursos de ordens distintas. O trabalho do pesquisador seria identificar e descrever as transformações nos modelos de discurso vigentes. Especialmente porque “a ordem de um discurso própria de um período particular possui (...) uma função normativa e reguladora e estabelece mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias, de práticas” (REVEL, 2011, p. 41).
De modo mais simples, podemos dizer que nos interessamos aqui pelas enunciações, pois o recorte temporal dos materiais empíricos é limitado, cabendo-nos, inicialmente, prescrutar a proliferação de ditos sobre uma importante tragédia ambiental, para que, por meio deles, possamos refletir “de que modo (eles) existem, o que significa (...) o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para (eles) o fato de terem aparecido – e (nenhum) outro em seu lugar” (FOUCAULT, 2008, p. 124). A contingência do aparecimento dessas enunciações e não de outras é o que nos interessa mais aqui. Ainda mais porque nossos estudos admitem o caráter formativo do conteúdo posto em circulação nas mídias.
Do ponto de vista operacional, alinhamo-nos à Marluce Alves Paraiso (2012) procedendo a uma descrição exaustiva dos ditos, pois “a descrição é extremamente importante em nossos modos de pesquisar, (...) é por meio dela que estabelecemos relações dos textos, dos discursos, dos enunciados em suas múltiplas ramificações” (p. 37-38). E analisamos os resultados obtidos para refletir sobre o modo como, uma vez que assume um estatuto pedagógico, a mídia ensina verdades sobre a natureza, no interior da relação saber-poder por ela tornada possível. Afinal, “se a descrição que fazemos dos textos e discursos é sempre analítica, a análise que fazemos das relações de poder é sempre descritiva” (PARAISO, 2012, p. 38). E é nesse sentido que interessa a nós, educadores ambientais, pensar nos modos como os materiais midiáticos no ensinam verdades e fabricam maneiras de nos relacionar com o mundo e a cultura. Trata-se de examinar tais materiais e potencializar nossas críticas às catástrofes ambientais que vivemos, ensinando-nos sobre nossas relações – enquanto humanos – com o mundo em que habitamos.
3 O CASO DE BRUMADINHO E SUAS PRODUÇÕES MIDIÁTICAS
Sugerimos que os resultados encontrados por nós nesta pesquisa indicam a reverberação do discurso acerca da crise ambiental (GARRÉ e HENNING, 2017), sendo atualizado anúncios sobre a iminência de novas catástrofes, uma vez que o Brasil é um país que não aprende com as experiências de outras tragédias ambientais do passado. Mas, ao mesmo tempo, as enunciações também se afastam da perspectiva mais individualizante característica do discurso mapeado pelas autoras (IDEM), e apontam para a responsabilização do Estado e de empresas privadas.
Proliferaram-se, nos materiais analisados, enunciações que nomeavam o sucedido em Brumadinho como repetição de outras tragédias ambientais ocorridas no Brasil, o que seria evidência de que não aprendemos, como agentes públicos e privados, com os erros do passado. A começar pela capa do jornal na manhã do dia seguinte ao rompimento da barragem, como se vê abaixo (Figura 1): ocupando o espaço total da página, vemos a fotografia de um helicóptero da Polícia Civil a sobrevoar a lama que desceu pela barragem engolindo tudo. Não se avista, do ângulo em que a fotografia foi feita, nenhuma construção, tampouco plantações, apenas lama, montanhas de lama. No centro da imagem, vemos um animal, com lama até a altura do pescoço, quase soterrado, esperando por socorro. Do helicóptero, vemos um socorrista com roupas na cor laranja, que estica o braço apontando em direção ao animal. A chamada que acompanha essa imagem alerta sobre um “pesadelo revivido” (ZH, CAPA, 2019). No centro da página, na margem inferior dela, a colunista do jornal Rosane de Oliveira opina: “A repetição mostra que nada se aprendeu com Mariana” (ZH, CAPA, 2019).
Em uma matéria que ocupa duas páginas do jornal, nesta mesma edição, vemos a chamada “Tragédia Repetida”, em que se tem acesso às primeiras informações sobre o desabamento da barragem (Figuras 2 e 3). Nela, há fotografias do cenário do desastre. Apenas telhados de casas aparentes, porque foram inundadas pela lama. Helicópteros sobrevoando a lama. Muitos galhos retorcidos e partes de construções, na superfície dos locais soterrados. Um quadro comparativo chama a atenção para a situação de Mariana (MG) e informa que o rompimento da Barragem do Fundão, em 2015, matou 19 pessoas, afetou 39 municípios e comprometeu o abastecimento de água de, pelo menos, 9 cidades. E, agora, “outra tragédia ambiental que se repete” (TRAGÉDIA REPETIDA..., 2019, p. 8).
Ainda nesta mesma edição, na Coluna RBS Brasília, os correspondentes do jornal dão conta dos impactos políticos da tragédia na Capital Federal. Ela destaca que o governo Bolsonaro demonstrou agilidade na formação de um gabinete de crise para lidar com o rompimento da barragem, mas alerta para o fato de que:
Em um segundo momento, será necessário apurar as causas, punir os responsáveis e entender quais foram as falhas que levaram à repetição de uma tragédia, em um intervalo de pouco mais de três anos. A sensação é de que nada foi aprendido de lá para cá. (...) Temos que parar de correr atrás dos prejuízos e trabalhar com prevenção
(NOVA..., 2019, p. 12)
E a coluna Política +, assinada por Rosane Oliveira (2019), apresenta mais uma fotografia do local do rompimento da barragem, desta vez, vemos sobre os escombros de casas e árvores, pisando sobre a lama, uma dezena de socorristas e populares trabalhando no resgate dos feridos. A legenda da fotografia nos alerta “as imagens do rio de lama correndo em Brumadinho lembram o desastre de Mariana, em 2015, pelo qual ninguém foi responsabilizado” (OLIVEIRA, 2019, p. 11). Elas preveem em seu artigo de opinião que, “pelo roteiro conhecido, veremos repetir-se o jogo de empurra, as desculpas esfarrapadas, as promessas de ajuda à população atingida, os anúncios de uma investigação rigorosa e de medidas para evitar que outras barragens se rompam” (IDEM). E, novamente, vemos a enunciação de que “O Brasil nada aprendeu com o desastre ambiental de Mariana” (IDEM).
Merece destaque, ainda, o editorial do jornal nesta mesma edição, em que se reforça a ideia de que Brumadinho foi uma “tragédia anunciada”, na qual se pode ver a “repetição de fatos” e “imprevidência” do Estado e de empresas privadas. Lemos que “o rompimento de uma nova barragem deixa evidente que o país precisa agir com mais rigor de forma preventiva, sem se limitar apenas a reparar danos de fatos previsíveis” (TRAGÉDIA ANUNCIADA... 2019, p. 24).
Lançamos foco sobre as enunciações que remetem à ideia de que a repetição de desastres ambientais – e decorrente impunidade dos envolvidos – evidencia a ausência de aprendizado por parte das autoridades, das instituições públicas e das privadas, pois elas foram muito recorrentes no material analisado. Na edição de 28 de janeiro de 2019, na qual se anuncia na capa a cobertura especial do ocorrido, lemos no editorial do jornal Zero Hora:
O segundo rompimento de barragem de resíduos de mineração em pouco mais de três anos, desta vez em Brumadinho e com número superior de perdas humanas ao de Mariana, é a comprovação de que o país segue sem aprender com os erros. Os dois fatos não podem ser vistos isoladamente, como obra do acaso
(O PAÍS..., 2019, p. 20).
Ao longo do editorial, e das demais páginas dedicas à cobertura do desastre, vemos enunciações que destacam a ausência de medidas preventivas, a negligência dos órgãos fiscalizadores, e os pedidos de justiça para o que se nomeia no jornal como tragédia evitável. Na seção de artigos especiais, lemos o texto produzido por um juiz federal e professor de Direto Gabriel Wedy, que afirma sobre o tema:
Três anos se passaram da Tragédia de Mariana e parece que pouco ou quase nada se aprendeu em matéria de gestão de riscos ou de educação ambiental em relação à atividade de mineração, em especial, a observância estrita dos princípios constitucionais da precaução e prevenção, consagrados em nosso sistema jurídico
(2019, p. 21)
Em um novo editorial, no dia 29 de janeiro, é reforçada a enunciação de que “O Brasil precisa aprender com as tragédias (...)” (O FATOR..., 2019, p. 24). O argumento ao longo do texto aponta para o fato de que “O Brasil não pode se conformar em ter sua imagem associada à impunidade e ao descaso com os seres humanos e os recursos naturais” (IDEM).
E, ao longo da edição em questão, lemos em um artigo do biólogo Lídio Nunes a seguinte provocação:
Passados três anos do episódio da Samarco, o que foi feito para que não mais ocorressem outras tragédias como essas? Ocorreu, não ali no mesmo local, mas em outro na mesma Minas Gerais. Não aprenderam? Esqueceram ou viraram as costas para o sofrimento das famílias que perderam seus familiares nessas duas tragédias
(2019, p. 25).
E, nas palavras da correspondente do jornal em Brasília à época – Carolina Bahia, vemos a questão da impunidade ser atrelada aos erros do passado que voltam a ocorrer no tempo presente, o que indicaria, nas palavras do colunista, “uma praga” (BAHIA, 2019, p. 25).
No editorial de 31 de janeiro, o jornal toma a seguinte posição quanto aos fatos ocorridos: “No Brasil, flerta-se com a irresponsabilidade desde sempre” (O PAIS..., 2019, p. 24). No texto, são citados os exemplos do incêndio dos edifícios Andraus e Joelma em São Paulo, ocorrido nos anos 70; dois acidentes aéreos que enlutaram muitas famílias nos anos 2000; e o incêndio da Boate Kiss em Santa Maria, que matou centenas de jovens nos anos 2013 e, finalmente, os rompimentos das barragens da Samarco e da Vale.
À da questão da impunidade somam-se, nas narrativas, o descaso com a legislação e a necessidade de responsabilização, ambos enunciados de diferentes modos ao longo das edições do jornal aqui analisadas. Como, por exemplo, por meio da afirmação: “Em um país que trata as preocupações ambientais como ‘mimimi’, coisa de ‘xiitas’ e ‘ecochatos’ contrários ao desenvolvimento, a dúvida é onde e quando ocorrerá o próximo desastre” (OLIVEIRA, 2019, p. 11). E, por meio das questões levantadas ao final do texto, tais como: “(...) o órgão estadual que deu a licença cumpriu todos os protocolos? A fiscalização foi adequada? A Vale fez a sua parte? Quem falhou?” (idem).
Em artigo de 28 de janeiro, intitulado O Brasil pede justiça, o jurista Gabriel Wedy, afirma:
O povo brasileiro espera que, após apuradas as responsabilidades dessa tragédia perfeitamente evitável, observado o devido processo legal, sejam procedidas as referidas responsabilizações das pessoas físicas e jurídicas nas esferas administrativa, civil e penal com a indenização das vítimas e de suas famílias, punição dos culpados e a reparação do meio ambiente compatível com um direto fundamental de terceira geração ou de novíssima dimensão como, aliás, já consagrou a jurisprudência do egrégio Tribunal Federal no interesse das presentes e futuras gerações
(2019, p. 21)
Evoca-se a questão da legislação como fator de proteção de direitos, ao se afirmar: “É preciso que se compreenda que a aplicação das leis já existentes é o melhor caminho para que haja prevenção e controle das áreas e empreendimentos de risco (NUNES, 2019, p. 25). Nessa mesma direção, lemos “A tragédia de Brumadinho reafirma a necessidade urgente de uma revolução cultural no país, na qual a lei maior deva ser apenas que a segurança vem antes de qualquer outra consideração” (O PAÍS..., 2019, p. 24).
Finalmente, no que diz respeito à relação da tragédia e ao campo da legislação e do judiciário brasileiro, lemos:
(...) a segurança de barragens como as de Brumadinho e Mariana, em Minas, é atestada por laudos produzidos pelas próprias mineradoras ou por auditorias contratadas. A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela fiscalização, tem apenas 35 agentes capacitados para atuar em 790 barragens de rejeitos de minérios em todo o país. O número é considerado insuficiente
(LEI , 2019, p. 16)
Chamou-nos a atenção que, na notícia em questão, somos informados de que o presidente do Supremo Tribunal Federal e a Procuradora Geral da República, à época, anunciou a criação de um observatório para acompanhar processos sobre grandes tragédias. E lemos que “Toffoli reconheceu que o Judiciário falhou ao não dar respostas céleres nos casos que apuram as responsabilidades de recentes catástrofes ocorridas no Brasil e pediu desculpas à população” (IDEM).
Os impactos ambientais do rompimento da barragem foram muito explorados pelo jornal Zero Hora. Apresentam fotografias de parte da cidade encoberta pela lama; de animais sendo resgatados; do rio Paraopeba poluído na cor avermelhada por conta dos rejeitos; foto panorâmica na qual se pode ver o rastro de destruição das árvores e vegetação nativa às margens do “rio” de rejeitos despejados pela barragem rompida. Mas chamou-nos atenção também o modo como os impactos sociais e psicológicos foram enunciados pelo periódico.
As notícias do dia seguinte ao ocorrido davam conta de que, pelo menos, 150 pessoas já haviam sido declaradas desaparecidas por familiares. É apresentado o testemunho de uma moradora da região, a qual afirma ao repórter enviado especial da ZH para Brumadinho “– A cidade está um pandemônio. As pessoas estão muito assustadas” (TRAGÉDIA REPETIDA 2019, p. 8). Também foi ouvido o presidente da Vale Mineradora, Fábio Schvartsman, que afirmou naquele primeiro momento pós-rompimento:
(O acidente) nos pegou totalmente de surpresa. Estou dilacerado. Não sabemos o que aconteceu. Tomaremos as medidas necessárias para resolver o problema. Desta vez é uma tragédia humana. Estamos falando de uma quantidade provavelmente grande de vítimas. Não sabemos quantas, mas sabemos que será um grande número
(IDEM, p. 9)
Uma charge (Figura 4) também representa esse tipo de enunciação. Vemos a imagem de uma barragem. De um lado, a imagem é preenchida até o limite do muro de contenção, com um sombreado e muitos pequenos pedaços do que parecem pedras. Vemos grafado em letras de destaque o termo LUCRO sobre esse espaço todo sombreado, a indicar a montanha de rejeitos. O muro que divide a imagem e faz divisa com a outra parte dela está nomeado com letras de destaque DESCASO e, noutro lado dele, na parte mais inferior e plana do desenho, vemos pequenas planícies, vegetação, casas, e a torre de uma igreja, representando a cidade.
O muro foi desenhando com ranhuras e está levemente inclinado para a direção da representação da cidade, o que indica a iminência de desabamento. No alto da imagem, seu título nos interroga “Quanto Vale a vida? (IOTTI, 2019, p. 21).
O início do trabalho dos socorristas do Corpo de Bombeiros envolvidos no resgate de sobreviventes e dos corpos das vítimas foi muito explorado na publicação. Há fotografias deles avançando de joelhos, paramentados com cordas, luvas, capacetes e roupas de Neoprene – que busca oferecer alguma proteção contra a toxidade da lama, que está por todos os lados e sobre seus corpos também. Na legenda de um conjunto de três imagens de socorristas, lemos: “Após ação, homens surgem exaustos e com o corpo tomado de rejeito que pode conter elementos cancerígenos” (A DIFÍCIL..., 2019, p. 18). Em seguida, a matéria vai narrando as dificuldades que o trabalho de resgate deste tipo implica, sempre observado a distância e com muita ansiedade pelos familiares dos desaparecidos:
O trabalho dos bombeiros prosseguiu por mais duas horas. De repente um cheiro forte chamou a atenção dos mineiros. Não tardou até que localizassem a perna de uma vítima, que mais tarde seria encaminhada para o Instituto Médico Legal, para exame de DNA. Tem sido comum, nas vistorias, a localização de membros avulsos, dada a força da enxurrada marrom que engoliu a região
(IDEM, p. 19).
Impressiona, ainda, a triste comparação feita por um comerciante morador de Brumadinho que contribuía voluntariamente com o resgate. Ele afirma “– Geralmente estão presas à vegetação. Meu trabalho é observar e avisar o pessoal. É como um garimpo, só que, infelizmente, de corpos” (IDEM).
Em 30 de janeiro, a imagem que abre uma matéria intitulada Uma cidade que definha mostra a visão aérea do Parque das Rosas, um pequeno cemitério da cidade que abriu, às pressas, dezenas de novas covas para receber os caixões com os corpos das vítimas. E seguem relatos de familiares que estão enterrando os seus parentes ali, sendo amparados por psicólogas para desabafarem sobre sua dor.
Não há registro – no conjunto de publicações do jornal analisado – de condolências de autoridades do executivo em relação aos familiares das vítimas, mas encontramos um pequeno excerto no qual se lê que o site oficial da família real britânica publicou uma mensagem assinada pela Rainha Elizabeth II que teria manifestado estar “profundamente triste ao saber da sobre a devastação e as vidas perdidas pela ruptura da barragem” na cidade brasileira (LEI SOBRE..., 2019, p. 16). O que seria sintomático, uma vez que a Rainha da Inglaterra é conhecida na mídia internacional como alguém que pouco manifesta suas emoções.
Pensar sobre tal tragédia pode nos levar a multiplicar as educações ambientais que se produzem no nosso cotidiano. Discutir junto à comunidade escolar a respeito dos desdobramentos éticos e políticos que se produzem em catástrofes ambientais como essa que vimos ser narradas aqui é pensar nos modos como nos produzimos enquanto sujeitos em meio a aspectos sociais, políticos e econômicos. O que a educação ambiental tem a ver com isso? Para nós, esse campo de saber pode mobilizar nosso pensamento, buscando compreender, com uma ácida crítica à modernidade, como nos produzimos a partir de tragédias ambientais que se ocorrem por equívocos humanos e pelo Capitalismo desenfreado que temos vivido atualmente. Daí por que vale a nossa provocação: as vidas humanas são um refugo da modernidade? Como podemos tencionar essa produção discursiva midiática e possibilitar outros modos de nos relacionarmos com o planeta? Talvez daí emerjam outras educações ambientais que tenham, na crítica ao instituído, seu instrumento de resistência.
4 TRAGÉDIA AMBIENTAL, SOCIEDADE DE RISCO E A QUESTÃO DO REFUGO NA MODERNIDADE
O ano de 2019, no Brasil, foi marcado por grandes tragédias envolvendo o meio ambiente. Assistimos atônitos, em fins de janeiro, a imagens de câmeras de segurança que mostravam o momento exato em que se dava o rompimento da barragem em Brumadinho, e a lama tóxica carregando consigo tudo o que encontrava pela frente; em meados de agosto, os noticiários davam conta de que estávamos vivendo o pior ano para as queimadas e desmatamentos desde 20105, em seguida, fomos surpreendidos com imagens de manchas de óleo cru que se espalharam ao logo de nosso litoral atingindo biomas em Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Espírito Santo e Rio de Janeiro6; isso apenas para mencionar as catástrofes de maior abrangência e que foram mais amplamente divulgadas pela mídia.
Tal cenário acentua e reforça a necessidade de nos envolvermos, na condição de pesquisadores atuantes na formação de professores, no processo que vem ocorrendo nas últimas décadas, com vistas à valorização da educação ambiental, como campo do saber e como prática educativa. Especialmente porque, como apontam estudos recentes, o papel da Educação Ambiental na política curricular nacional vem se enfraquecendo na Política Curricular, como, no caso, por exemplo, da Base Nacional Comum Curricular que, em seus diferentes níveis, faz prevalecer um aparente reducionismo das problemáticas ambientais relacionadas à sustentabilidade7. Acreditamos que a problematização dos conteúdos midiáticos, de forte efeito pedagógico entre os diferentes segmentos de público envolvidos, é um recurso potente para trazermos ao centro as questões que envolvem o meio ambiente e os educadores ambientais em nossos dias (HENNING, 2019; HENNING, 2017; GUIMARÃES e WORTMANN, 2010; GUIMARÃES e SAMPAIO, 2014).
Em parte, as enunciações que pudemos mapear aqui se aproximam do discurso que aponta para os efeitos do Neoliberalismo global sobre o meio ambiente e as comunidades locais – no qual se evidenciam as contradições da gestão política dos riscos (GIDDENS, 2010). As matérias, artigos de opinião, notícias, capas e charges com que trabalhamos nesse artigo, deram ênfase ao sofrimento e à morte dos brasileiros que vivam próximo à mina de ferro Córrego do Feijão – classificada, à época, como de baixo risco pelas agências fiscalizadoras, e que foram soterrados por lama tóxica, bem como, dos pescadores e demais trabalhadores que dependiam do rio Paraopeba para viver, e que foram, igualmente, afetados pela morte do rio decorrente dos rejeitos tóxicos.
Nesse sentido, aquelas enunciações problematizadas por Garré e Henning (2017) a respeito de uma certa culpabilização individual frente à crise ambiental que assola o planeta parece ter perdido força nos materiais aqui analisados. Nessas reportagens, o que toma acento é uma espécie de Neoliberalismo como condição de vida, para além de um campo eminentemente econômico (HENNING, 2019). O que se enuncia são desdobramentos éticos de um Capitalismo desenfreado que desconsidera as questões ecológicas a favor de um estilo de vida, preocupado com a exploração dos recursos naturais a qualquer custo. Daí por que as vidas humanas são tomadas como refugo moderno, patrolando aquilo que se torna empecilho à exploração e ao crescimento econômico. Trata-se menos de culpabilização individual, como nos sinalizaram as autoras (GARRÉ e HENNING, 2017), e mais de uma responsabilização do Estado e de empresas privadas frente à exploração acima de qualquer coisa.
Essas questões tornam-se especiais para o escopo teórico deste artigo, principalmente, porque “os saberes, mobilizados pelos discursos nos quais está imerso o sujeito, ao mesmo tempo [o] produzem” (VEIGA-NETO, 2010, p. 12). Assim, esperamos – com os resultados obtidos nessa investigação – fornecer elementos para se problematizar o tipo de sujeito que se está produzindo no interior do discurso sobre a tragédia ambiental de Brumadinho pelas lentes do jornal Zero Hora/RS.
Podemos refletir sobre a própria noção de tragédia humana, enunciada nos materiais empíricos. Essa é uma das formas mais recorrentes a que se referem ao incidente nas edições analisadas. Tomamos emprestada aqui a análise realizada por Meira-Cartea sobre uma tragédia ambiental ocorrida em 2002 na Espanha. O autor afirma que “uma catástrofe ambiental (...) é uma experiência total e totalizadora para a comunidade que a padece. Altera traumaticamente o decorrer normal da vida cotidiana e introduz ao corpo social uma sensação de desproteção, insegurança e vulnerabilidade, cuja natureza é difícil de explicar” (2005, p. 150).
É importante lembrar que, no cenário nacional, o estado de Minas Gerais é conhecido pela atividade de mineração e garimpo. Principalmente a região denominada quadrilátero ferrífero, a qual é conhecida, mundialmente, pela extração e pelo beneficiamento do minério de ferro.
Segundo dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas – ANA, existiam no Brasil, até o último levantamento referente ao ano de 2015, aproximadamente 263 (duzentos e sessenta e três) barragens classificadas como exclusivamente de rejeitos de minérios, sendo que 114 (cento e quatorze) encontram-se em território mineiro (...)
(SILVA, 2017, p. 106)
Diante dessas condições, se pode imaginar o impacto sobre a sensação de (in)segurança das comunidades que vivem, atualmente, aos arredores dessas barragens:
A primeira delas é a ruptura da barragem de rejeitos de minério de ferro do empreendimento Rio Verde (MG). Em junho de 2001, no município de Nova Lima/MG, região metropolitana de Belo Horizonte (...) O acidente vitimou fatalmente 5 (cinco) trabalhadores da mineração (...) O segundo caso fatídico e exemplificativo diz respeito ao rompimento da Barragem do Fundão, pertencente a Samarco Mineração S/A (...) em Mariana (MG) (...) ocorreu o vazamento de aproximadamente 34 (trinta e quatro) milhões de metros cúbicos de lama (...) ceifou a vida de 18 pessoas (...)
(SILVA, 2017, p. 45-46)
Com isso, desejamos identificar as condições materiais que fizeram com que discursivamente o impacto humano que a tragédia ambiental de Brumadinho ocasionou merecesse tamanha visibilidade na mídia analisada neste artigo. Isso nos remete à noção de Sociedade de Risco, explicitada por Beck (2011), afinal “na modernidade tardia, a produção social da riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos” (p. 23, grifos do autor). O caso da mineração é emblemático para se pensar a sociedade de risco. E a repetição das tragédias aponta para um risco maior ainda, afinal: “Riscos não se esgotam, contudo, em feitos e danos já ocorridos. Neles, exprime-se sobretudo um componente futuro. Este baseia-se em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda geral da confiança (...)” (IDEM, p. 39, grifo do autor). E, no caso dessa catástrofe, torna-se emblemática também a perspectiva de natureza que marca o fim do século XX. Segundo Beck, em nossos dias:
Problemas ambientais não são problemas do meio ambiente, mas problemas completamente – na origem e nos resultados – sociais, problemas do ser humano, de sua história, suas condições de vida, de sua relação com o mundo e com a realidade, de sua constituição econômica, cultural e política
(p. 99, grifos do autor).
Arriscamo-nos a afirmar, alinhadas com Meira-Cartea, que os rompimentos de barragens de mineração no Brasil “materializa localmente os riscos ecológicos globais produzidos pela modernidade” (2005, p. 155) e intensificados no estágio mais atual do Liberalismo Econômico. Não podemos esquecer que:
Desde o calcário utilizado na correção da acidez do solo de um pequeno produtor subsistente, até as naves espaciais ou os submarinos atômicos, trespassando pela automação industrial, o fecho de uma calça, a estrutura de uma simples cadeira, combustíveis ou plásticos, utilizam grande quantidade de elementos minerais extraídos por meio da atividade mineradora
(SILVA, 2017, p. 37).
O sociólogo Zymunt Bauman analisou, em diferentes obras, as marcas do contemporâneo – que nomeou com o uso da metáfora Modernidade Líquida. Ao discorrer sobre a cultura do consumo, do descarte e da criação no novo, afirmou em relação ao que estamos tematizando aqui:
A mineração (...) é o epítome da ruptura e da descontinuidade. O novo não pode nascer a menos que algo seja descartado, jogado fora ou destruído. O novo é criado no curso de uma meticulosa e impiedosa dissociação entre o produto-alvo e tudo mais que se coloque no caminho de sua chegada. Preciosos ou de pouco valor, metais puros podem ser obtidos apenas removendo-se a escória e o borralho do minério. E só se pode chegar ao minério removendo-se e depositando-se camada após camada do solo que impede o acesso ao veio – tendo-se primeiro cortado ou queimado a floresta que impedia o acesso ao solo. (...) A crônica da mineração é um túmulo de veios e poços repudiados e abandonados. A mineração é inconcebível sem o refugo
(BAUMAN, 2005, p. 31, grifo do autor).
Com isso, concluímos nossa análise acerca das enunciações postas em circulação no jornal Zero Hora que narram o rompimento da Barragem de Brumadinho apontando para as considerações que Bauman (2005) faz sobre o refugo e seu papel na modernidade. Ele afirma “o refugo é o segredo sombrio e vergonhoso de toda produção. De preferência permaneceria como segredo” (p. 38).
O segredo veio à tona em Minas Gerais. Os danos colaterais do acúmulo de rejeitos na região foram expostos na imagem dos corpos sem vida ou de membros humanos retirados da lama tóxica que escorreu pela cidade abaixo. Se “(...) os processos mais sérios que se estabelecem contra a Natureza provêm do próprio conhecimento científico da Natureza e das suas aplicações” (KESSELRING, 2000, p. 155), então, nós – os cientistas, envolvidos com a Educação e, em especial, a Educação Ambiental, precisamos dar visibilidade, em nossos campos de atuação, às disputas discursivas em torno das catástrofes ambientais e humanas que ocorrem, ocorreram e ainda podem vir a ocorrer em função da atividade mineradora. Tal processo pode potencializar nossas ações educativas nas diferentes posições de sujeito que ocupamos em nossa sociedade.