1 INTRODUÇÃO
O texto aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa3 maior que versa sobre o bem e o mal-estar docente. Uma das vertentes dessa pesquisa trata sobre as necessidades psicológicas básicas (NPB), foco do presente texto, no qual objetiva-se analisar os posicionamentos dos docentes que atuam na educação básica frente as NPB e, com isso, busca-se compreender que definições os mesmos atribuem aos sensos de pertencimento, competência e autonomia e sua relação com o bem-estar no exercício da docência.
Diante desse objetivo, problematiza-se, frente as NPB, como se posicionam os docentes que atuam no contexto da educação básica e que definições os mesmos atribuem para os sensos de pertencimento, competência e autonomia e sua relação com o bem-estar no exercício da docência? De antemão, parte-se da hipótese, que as definições atribuídas as NPB podem variar de pessoa para pessoa, dependendo de inúmeros fatores, dentre os quais: contexto de trabalho, de formação, tempo de profissão e tempo de vida, período em que a coleta de dados é realizada (início, meio ou fim do ano letivo, férias), sendo que, muitas vezes, quando satisfeitos os sensos de pertencimento, competência e/ou autonomia, seus motivos estão atrelados a questões relacionadas ao bem-estar na profissão.
A pesquisa de caráter quali-quantitativa, foi desenvolvida com professoras/es que atuam no contexto da educação básica, da rede municipal de ensino, de uma cidade situada na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa teve/tem aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)4 e todo material aqui apresentado, foi precedido de consentimento livre e esclarecido pelas/os participantes.
Na sequência, apresenta-se um breve referencial sobre as NPB e algumas definições para pertencimento, competência e autonomia no exercício da docência. E, em seguida, é apresentada a análise dos dados da pesquisa junto aos professores municipais. Desse modo, espera-se demonstrar que o bem-estar dos profissionais da educação relaciona-se diretamente com a possibilidade de perceber-se pertencendo ao contexto da escola, bem como sentindo-se capaz de realizar as tarefas com a eficácia esperada, e, ainda, tendo autonomia nos processos decisórios, especialmente no que tange ao fazer pedagógico.
2 PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa teve caráter quali-quantitativa por ser uma investigação que analisa fenômenos, identifica estruturas e esclarece relações com variáveis. Essa opção metodológica considera a “[...] objetividade e precisão que caracterizam o problema a ser investigado, a qual se pautou, também, pela necessidade de obter resultados consistentes frente a uma significativa amostragem de participantes” (GUTERRES, 2011, p. 49-50).
Conforme Guterres (2011, p. 50), “o estudo, dentro de uma abordagem qualitativa, possibilita uma visão frente às diferentes concepções da realidade”. Já, o estudo dentro de uma abordagem quantitativa, de acordo com Gil (2007, p. 17), é “[...] o procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos”. A pesquisa desenvolve-se por um processo constituído de várias fases, desde a formulação do problema até a apresentação e discussão dos resultados. Segundo Pinheiro (2011), ambos os métodos não são opostos, mas, sim, complementares.
Foram convidados a participar do estudo professores da rede pública municipal de ensino de uma específica cidade situada no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, de todas as etapas da Educação Básica, por meio de preenchimento de questionário. Em virtude da pandemia, os questionários foram enviados via Google Forms, a partir dos endereços de e- mail fornecidos pela Secretaria Municipal da Educação e Esporte (SEMEDE) do referido município. Dos cento e oitenta e seis professores, obteve-se retorno de oitenta e três docentes, o que equivale a 44,62%. A coleta iniciou no dia 15/12/2020 e se encerrou no dia 01/04/2021. No mês de janeiro e meados do mês de fevereiro não se obteve respondentes, por motivo de férias da rede municipal de ensino5.
O questionário foi subdividido em três eixos, sendo aqui apresentado dados relativos ao recorte do primeiro e do terceiro deles. O primeiro eixo compreende questões de caráter sociodemográficas, possibilitando levantamento de dados relativos a gênero, faixa etária, estado civil, número de filhos, bem como a titulação, os anos de docência, os níveis e os turnos de atuação, e, ainda o número de escolas em que trabalham os(as) educadores(as). O terceiro eixo, compreende cinco questões, das quais, três possuem relação com as Necessidades Psicológicas Básicas e, portanto, aqui adotadas para análise e discussão. Os dados coletados foram analisados pelo viés da análise de conteúdo (BARDIN, 2016).
3 NECESSIDADES PSICOLÓGICAS BÁSICAS: DEFINIÇÕES E PERSPECTIVAS
Com base em Davoglio, Timm, Santos e Conzatti (2017) compreende-se que entre os pressupostos fundantes da Self-Determination Theory (SDT) sustenta-se que o estudo sobre motivação autodeterminada demanda pela consideração às necessidades psicológicas básicas (NPB), definidas como necessidades inatas e universais, cuja satisfação é essencial para o bem-estar e o desenvolvimento saudável (DECI; RYAN, 2000). Ryan e Deci (2002) postulam a existência de três NPB, agrupadas em sensos de autonomia, de competência e de pertencimento.
O senso de autonomia se refere à flexibilidade e sensação de independência para agir de acordo com os próprios princípios, diante da integração de valores contextuais ao self, aprovados internamente. O senso de competência diz respeito à necessidade de se sentir eficaz em causar ou obter resultados desejáveis e evitar resultados indesejáveis em ações que envolvem diferentes níveis de dificuldade, evidenciando o reconhecimento pelo sujeito das próprias capacidades e recursos. O senso de pertencimento/afiliação, por sua vez, tem seu foco na necessidade do sujeito se sentir conectado e apoiado por outras pessoas com quem convive, tendo a percepção de estar integrado e pertencente aquele contexto (RYAN; DECI, 2002). Na sequência do texto aprofunda-se a conceituação de cada uma das Necessidades aqui postas.
Davoglio et al (2017) mencionam estudos, na tentativa de conceituar e especificar a motivação docente. Em tais estudos, percebe-se que cada vez mais é valorizada a qualidade motivacional relacionada à autodeterminação do sujeito frente ao contexto. A motivação é tratada como um processo, em que os professores motivados na sua carreira docente potencializam sua prática educativa e seu engajamento profissional, ao mesmo tempo em que promovem em seus educandos a motivação autônoma para a aprendizagem.
3.1 Autonomia
Refletindo sobre a autonomia, Freire (1996, p. 107) considera que este atributo é construído pelo amadurecimento do ser para si, no processo de vir a ser. Para tanto, são imprescindíveis experiências que estimulem a tomada de decisão e a assunção da responsabilidade. Freire (2000, p. 33-34) sugere que o professor aproveite toda oportunidade para testemunhar o seu compromisso com a realização de um mundo melhor, mais justo, menos feio, mais substantivamente democrático. E, ao mesmo tempo, esclarecer às crianças e jovens sobre os limites da participação e do uso da liberdade, bem como desafiá-los a ocupar seu lugar, expressando suas opiniões.
Na perspectiva freiriana, observa-se que, na relação pedagógica, a construção da autonomia relaciona-se, principalmente, ao conhecimento, enquanto apropriação ativa e crítica dos conceitos apreendidos e utilização dos mesmos na condição de autor dos próprios pensamentos. Os educadores precisam buscar garantir que a relação se paute no afeto e no respeito, a fim de formar indivíduos que sejam também capazes de assumir seus compromissos com o mundo.
Freire (1994, p. 72) afirma ser necessária uma formação rigorosa, que promova o desenvolvimento da autonomia, da autoria e da responsabilidade, em um clima de seriedade e de alegria. O processo educativo precisa ser constituído pela articulação da seriedade e da alegria, em que o professor é o mediador de experiências significativas de construção do conhecimento, de convivência amistosa, de mútuo entendimento e de prazer em partilhar informações e compreender a realidade. Para Cortella (2014, p. 123-124), seriedade não é sinônimo de tristeza. A escola é uma instituição capaz de promover o essencial: a amorosidade, a convivência e a felicidade, precisa lidar com a capacidade de ir em busca desses elementos essenciais. Conforme o autor, “a educação tem que ser cheia de graça. Sua função é tornar a vida mais engraçada”.
O educador tem sua autoridade sustentada na coerência exemplar. “O educador que diz uma coisa e faz outra, eticamente irresponsável, não é só ineficaz: é prejudicial. Desserve mais do que o autoritário coerente” (FREIRE, 1994, p. 72-73). Os exemplos do professor se materializam em suas práticas e em suas palavras, no seu discurso. Conforme Freire (1993, p. 75), o testemunho é a melhor maneira de chamar a atenção do educando para a validade do que se propõe, para o acerto do que se valora, para a firmeza na luta, na busca da superação das dificuldades. A relação coerente entre as palavras e os atos do educador é um dos fatores que confere sustentação à prática educativa.
A autonomia do educador também se faz importante no sentido de assegurar ao profissional a sensação de liberdade no exercício profissional. De acordo com Reinhold (apud MENDES, 2006, p. 4), os indivíduos que exercem profissões sociais, em geral, possuem um alto grau de idealismo, têm como meta à ajuda aos outros e esperam exercer sua profissão com grau de autonomia e liberdade pessoal no trabalho. Na prática docente, isso supõe ter liberdade pedagógica, aliada ao reconhecimento do seu engajamento.
Possuir liberdade no exercício profissional e ter autonomia para planejar e executar suas tarefas contribui para a manutenção do bem-estar, evitando o adoecimento como nos casos da síndrome de burnout. Portanto, autonomia não significa independência total, pois, na educação, os distintos segmentos da comunidade escolar mantêm entre si relações de interdependência, precisando agir em conjunto. Autonomia supõe ter liberdade para expressar seus posicionamentos e cumprir a missão de educar em consonância com seus valores e seus saberes, respeitando os demais.
3.2 Competência
No que tange à competência, cumpre destacar que este atributo é fundamental na docência, inclusive sendo um dos pilares da autoridade do professor diante dos educandos. A competência do educador é construída por uma multiplicidade de elementos, que, interligados, asseguram o domínio de conhecimentos e práticas, a responsabilidade e a amorosidade indispensáveis a seu fazer profissional.
Na obra “Professora Sim, Tia Não – Cartas a quem ousa ensinar”, Freire descreve as qualidades necessárias ao educador: amorosidade, competência, responsabilidade, coragem, tolerância, decisão, segurança, a tensão entre paciência e impaciência, humildade, amorosidade, coragem, tolerância, a segurança, a ética, a justiça, a tensão entre paciência e impaciência, a parcimônia verbal, afetividade e alegria.
É vivendo, não importa se com deslizes, com incoerências, mas disposto a superá- los, a humildade, a amorosidade, a coragem, a tolerância, segurança, a eticidade, a justiça, a tensão entre paciência e impaciência, a parcimônia verbal, que contribuo para criar, para forjar a escola feliz, a escola alegre. A escola que é aventura, que marcha, que não tem medo do risco, por isso que recusa o imobilismo. A escola em que se pensa, em que se atua, em que se cria, em que se fala, em que se ama, se adivinha, a escola que apaixonadamente diz sim à vida. E não a escola que emudece e me emudece
(FREIRE, 1993, p. 63).
A articulação desses elementos configura uma docência que vai além do mero cumprimento de compromissos protocolares. Ao demonstrar esses atributos na prática pedagógica cotidiana, o professor releva estar vinculado a um projeto formativo que abrange os aspectos cognitivos, psicomotores, culturais e socioafetivos de seus alunos, compreendendo-os como um todo. Daí decorre a relevância da formação científica séria e da clareza política. Isso porque, para promover a efetiva aprendizagem por parte dos alunos, paralelamente à formação de valores e à humanização, os educadores necessitam demonstrar o domínio de conteúdos e de metodologias de ensino, bem como a capacidade de ser um testemunho diante das novas gerações, de posições ético-políticas coerentes com os princípios da justiça social, da equidade e da solidariedade.
Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como uma experiência fria, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Nem tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual
(FREIRE, 1996, p. 143).
Ao defender que os educadores demonstrem tais atributos no exercício da docência, não se está afirmando que o professor seja o único responsável pelo processo educativo, nem reforçar ideias estigmatizadas. Como argumenta Azanha (2006, p. 60-63), ao criticar a noção de um perfil idealizado do “bom professor”, segundo a qual o educador deve possuir certas competências cognitivas e docentes. Segundo o autor, o quadro institucional da escola deve ser o centro das preocupações teóricas e das atividades práticas em cursos de formação de professores. Na formação de professores, deve-se enfatizar o caráter coletivo do trabalho escolar e as responsabilidades sociais decorrentes da função pública assumida pela escola contemporânea, superando a concepção de tarefa escolar como mera soma de desempenhos individuais.
[...] o aperfeiçoamento do professor precisa ocorrer no quadro institucional em que ele trabalha, já que as dificuldades do seu trabalho de ensino apenas eventualmente são metodológicas ou didáticas. Não fosse assim, não se compreenderia o bom professor numa escola seja mau numa outra e vice-versa. No entanto, isso é frequente. Enfim, a melhoria do ensino é sempre uma questão institucional e uma instituição social, como é a escola, é mais do que a simples reunião de professores, diretor e outros profissionais. A escola, ou melhor, o mundo escolar é uma entidade coletiva, situada num certo contexto, com práticas, convicções, saberes que se entrelaçam numa história própria em permanente mudança. Esse mundo é o conjunto de vínculos sociais frutos da aceitação ou da rejeição a uma multiplicidade de valores pessoais e sociais
(AZANHA, 2006, p. 103).
No decorrer do processo formativo, é necessário que os profissionais construam conhecimentos amplos e aprofundados, bem como conheçam metodologias de ensino, capazes de mobilizar as potencialidades dos educandos. Carvalho (2013, p. 55) reforça a importância dos exemplos do educador diante dos estudantes, lembrando da importância de cultivar esses princípios – caros à prática docente e cientifica, mas também constitutivos de uma sociedade que se quer democrática, tornando-os presentes nas palavras e as ações dos professores e demais profissionais da educação. Para o autor:
[...] é sendo um professor justo que ensinamos a nossos alunos o valor e o princípio da justiça; sendo respeitosos e exigindo que eles também o sejam, ensinamos o respeito não como um conceito, mas como um princípio que gera disposições e se manifesta em ações. Mas é preciso ainda ressaltar que o contrário também é verdadeiro, pois, se virtudes como o respeito, a tolerância e a justiça são ensináveis, também o são os vícios como o desrespeito, a intolerância e a injustiça. E pelas mesmas formas
(CARVALHO, 2013, p. 55).
A partir deste alerta (de que assim como se ensinam os princípios da justiça, da tolerância e do respeito, também é possível ensinar o contrário), corrobora-se os riscos de um professor indiferente, que não se posiciona e não se reconcilia com o mundo, ou seja, não supera o moderno estranhamento do mundo, tão prejudicial às relações de ensino e de aprendizagem.
3.3 Pertencimento
No que concerne ao sentimento de pertencimento, Rebolo e Bueno (2014) esclarecem que o bem-estar docente requer o estabelecimento de relações que priorizem a sinceridade, que proporcionem a expressão de pontos de vista divergentes, que estimulem a solidariedade e o apoio mútuo, que valorizem e oferecem feedback do trabalho realizado, que sejam isentas de preconceitos, discriminações e competitividade.
Jesus (1998), ao escrever sobre o bem-estar dos professores, salienta a importância do trabalho em equipe, para prevenir e superar o mal-estar docente e também para o desenvolvimento e realização profissional dos professores. No entanto, esse trabalho nem sempre é realizado de modo a permitir [...] a partilha de experiências profissionais, a redução do isolamento, o fornecimento de apoio ou de suporte social, a convergência nas estratégias utilizadas para a resolução de problemas (JESUS, 1998, p. 79).
Rausch e Dubiella (2013), ao analisarem as percepções sobre bem-estar docente dos profissionais em fase final de carreira, também mencionam o sentimento de pertencimento como fator essencial para a satisfação do indivíduo com a tarefa executada. Segundo as autoras, a identidade profissional é composta por diferentes dimensões e relações que devem ser integradas: a experiência pessoal, o sentimento de pertencimento a uma comunidade, a trajetória de aprendizagem e os diversos pertencimentos a grupos diferenciados. Confiança e autoestima, juntamente relacionadas, estabelecem o núcleo básico da identidade profissional. Marchesi (2008) destaca que manter colegas e amigos para compartilhar e inovar, bem como ter um distanciamento suficiente, assumindo os compromissos com paixão, auxilia esse processo. Portanto, emoção, compromisso, vida afetiva e atitude ética estão intimamente relacionados.
Com base nesses pressupostos, observa-se que o exercício da docência demanda permitir ao educador o direito à liberdade, à fala, a melhores condições de trabalho pedagógico, a tempo livre e remunerado para dedicar-se à formação permanente. O ambiente institucional precisa ser permeado pelo respeito e pela amorosidade, oportunizando ao profissional sentir-se pertencente ao grupo e com um papel importante. A partir de Freire, a amorosidade precisa ser concebida como:
[...] sem esquecer as perspectivas da inteligência, da razão, da corporeidade, da ética e da política, para a existência pessoal e coletiva, enfatiza também o papel das emoções, dos sentimentos, dos desejos, da vontade, da decisão, da resistência, da escolha, da curiosidade, da criatividade, da intuição, da esteticidade, da boniteza da vida, do mundo, do conhecimento. No que tange às emoções, reafirma a amorosidade e a afetividade, como fatores básicos da vida humana e da educação
(FREIRE, 2000, p. 22).
Dessa maneira, a educação é vivenciada como interação entre seres humanos que se respeitam e se estimam, que se comprometem com o mundo que partilham, almejando que esse seja um espaço de convivência amistosa e humanizadora. Assim, a relação educativa contempla a corporeidade, a sensibilidade, a cultura, o conhecimento, enfim, as múltiplas dimensões do humano. Todos os envolvidos educam e são educados para a existência ética e solidária. Com esses contornos, é possível que a escola garanta a o bem-estar e a qualidade de vida não apenas dos educadores, mas também dos demais segmentos da comunidade escolar.
4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A pesquisa foi realizada com professoras/es6da rede pública municipal da referida cidade situada no noroeste do Estado, de todas as etapas da Educação Básica. Segundo informações obtidas pela SEMEDE e conforme os critérios de inclusão previamente estabelecidos, cento e oitenta e seis docentes foram convidados para realizar a pesquisa, conforme os critérios citados anteriormente, dos quais obteve-se o retorno de oitenta e três, o que equivale a 44,6%. A coleta iniciou no dia 15/12/2020 e foi encerrada no dia 01/04/2021.
Nesse sentido, duas considerações pertinentes precisam ser feitas, as quais estão relacionadas ao contexto espaço-temporal. Sobre o contexto temporal, vale ressaltar que a participação na pesquisa ocorreu no período de férias ou logo no início do ano letivo, o que pode ter causado influência nas respostas, tendo em vista o distanciamento da escola e das demandas da mesma. Possivelmente poderiam ocorrer variações na forma como responderiam se o questionário fosse aplicado na metade ou no final do ano letivo. O mesmo ocorre em relação ao contexto espacial, tendo em vista que a participação na pesquisa compreendia estar atuando nas escolas públicas urbanas de uma determinada cidade da região sul do País, o que poderia também acarretar em variações nas respostas, caso envolvessem profissionais de escolas privadas ou de escolas rurais ou de outros munícipios e estados. Portanto, as respostas foram analisadas compreendendo esse período de espaço e de tempo.
Com base nos dados apurados, pôde-se traçar o perfil sociodemográfico predominante entre as/os participantes da pesquisa. A maioria é composta por mulheres (95,2%), na faixa etária dos 41 aos 50 anos (44,5%), casadas (54,2%), possuindo um ou dois filhos (76%), atuando na zona urbana (94%), junto a turmas de Educação Infantil (60%), estando no magistério por um período de onze a vinte e cinco anos (42%), com titulação de pós-graduação/especialização em diferentes áreas da educação (77%), trabalhando 40 horas semanais (64%), especialmente nos turnos da manhã e da tarde (39%), em apenas uma escola (65%).
Em relação as percepções sobre as necessidades psicológicas básicas, percebe-se que o desenvolvimento e a manutenção do bem-estar docente articulam-se com as condições de satisfação das NPB – autonomia, competência e pertencimento. A compreensão das∕os participantes da pesquisa acerca das NPB, expressa na seção discursiva do questionário aplicado, é descrita a seguir7.
As/os docentes consideraram a autonomia equivalente à liberdade, à possibilidade de tomar decisões e de realizar as tarefas, sem interferências externas, sendo estas as respostas mais recorrentes. Em seguida, apareceu o respeito por parte de gestores e colegas de trabalho, bem como por parte dos educandos e familiares. Outros equipararam autonomia com a criatividade e a iniciativa na criação e desenvolvimento de projetos pedagógicos.
Merecem destaque as respostas dissonantes: de um lado, há professoras/es que afirmaram ter sempre autonomia por contarem com a gestão democrática; por outro lado, há docentes que afirmaram não possuir autonomia porque necessitam seguir determinações de órgãos como MEC, Conselhos e UNDIME e dos gestores, e um participante comentou sobre autoritarismo na gestão. Uma/um das/os profissionais declarou possuir autonomia, durante o contexto da pandemia, na entrega de materiais para os alunos desenvolverem as atividades. Essa/e profissional disse se sentir autônoma/o “Quando saio nas casas distribuindo atividades que os pais deveriam retirar na escola”. Tal autonomia é percebida pela/o mesma/o não apena no sentido do material preparado, mas também na entrega, na forma como esse material chegaria até seus alunos. Nota-se certa preocupação e certo incomodo, alguns pais não podiam ou não tinham como ir buscar as atividades, outros tinham certo desinteresse, no entanto, essa/e profissional se sentiu com autonomia para ir além de sua função e tentar efetivar o processo educacional mesmo durante o período em que a escola estava impossibilitada de receber seu quadro discente.
A NPB da competência foi equiparada pelas/os docentes, em primeiro lugar, com os resultados obtidos, sendo que a maioria das respostas apontou para o alcance de objetivos e resultados esperados. Em segundo lugar, apareceram as respostas relacionadas à questão da valorização, uma vez que as/os docentes afirmaram sentir-se competentes ao serem valorizadas∕os, reconhecidas/os e ao receberem carinho e elogios da gestão, dos colegas, dos alunos e dos familiares.
Outros apontaram a relevância do retorno ou feedback, para que possam ter avaliações quanto à qualidade de seu trabalho. Algumas/alguns respondentes indicaram que a competência é observada a partir da aprendizagem dos alunos e da participação das turmas. Em menor grau, apareceram respostas relacionadas à felicidade ou alegria de professoras/es e alunos no decorrer do processo de ensino e aprendizagem. Também foi apontada a sensação de dever cumprida.
Cabe destacar uma afirmação interessante: “Executo as tarefas que estão condizentes com minha capacidade”. Sentir-se competente requer perceber-se capaz de desenvolver as atividades, tendo as habilidades compatíveis com as tarefas e responsabilidades, mas também reconhecendo suas limitações. Outra questão mencionada nesta seção diz respeito à realidade vivenciada na pandemia, uma vez que as/os educadoras/es precisaram ressignificar a forma de planejar e ministrar aulas, o que demandou novas competências.
Quanto ao pertencimento, ficou evidente que as/os docentes se percebem pertencentes quando: são reconhecidas/os e valorizadas/os; participam dos processos decisórios; trabalham em equipe, em regime de cooperação e ajuda mútua; recebem feedback pelo trabalho desenvolvido, a partir do acompanhamento pelos gestores e equipes pedagógicas; sentem-se úteis e capazes de colaborar com a instituição e a comunidade escolar; há retorno e engajamento por parte dos alunos e seus familiares; o diálogo flui na escola e as pessoas ouvem e são ouvidas; o planejamento é posto em prática, permitindo atingir os resultados esperados, em especial na aprendizagem por parte dos alunos; há clareza e transparência nos assuntos institucionais; e, a educação é valorizada.
Ainda em relação ao senso de pertencimento, algumas/alguns respondentes mencionaram a questão da presença física, enfatizando o desejo do retorno à presencialidade na escola. Sendo este um dos fatores emergentes do contexto educacional no período pandêmico, como anteriormente mencionado. Inclusive, existe, entre as/os participantes, o entendimento dessa presencialidade como indispensável para sentirem-se pertencentes. Ainda, nesse quesito, considera-se que também poderiam ocorrer variações nas respostas, caso a pesquisa fosse realizada em contexto não pandêmico, ou mesmo se comparando período pré, durante e pós-pandemia.
Na sequência apresenta-se a Figura 1, na qual estão descritas, resumidamente, as considerações das/os participantes da pesquisa quanto às NPB. Nessa figura os dados estão resumidos e apresentados em formato de categorias como forma de dar visibilidade ao que foi encontrado na análise dos dados e, posterior a apresentação da figura, discute-se de forma isolada cada uma das categorias e subcategorias aqui expostas.

Fonte: Elaborado pela autoria, 2021.
Figura 1 Esquema das NPB na ótica das/os docentes participantes da pesquisa
Esses dados são complementados pelas opiniões das/os educadoras∕es sobre os fatores que contribuem para o bem-estar docente. Ao enumerar os fatores que contribuem para o bem-estar no exercício da docência, as/os participantes mencionaram com grande frequência o amor pela profissão, a realização, a autonomia na realização das tarefas, a paciência e o otimismo diante dos obstáculos. Uma/um das/os participantes mencionou a necessidade de vocação, afirmando que há professoras/es que estão na profissão por falta de outra opção, e, portanto, estão estressadas∕os por não gostar do que fazem. Nas palavras dessa/e participante sentir-se bem na profissão “Inclui você gostar do que faz, ter a vocação. Vejo tanto professor que dá aula por falta de opção, pois não conseguiu nada e foi para o magistério. Daí são aqueles professores amargos, estressados etc.”
As opiniões ressaltaram a necessidade de profissionalismo e de atenção à formação, bem como a identificação com a faixa etária dos estudantes com os quais atuam, para manter níveis de satisfação com a prática docente. Nesse sentido, apareceram também o tempo para desempenhar as tarefas com tranquilidade e a alegria de ver os alunos aprendendo.
Um fator bastante enfatizado pelas/os participantes foi a questão da aceitação pelo grupo de colegas e pelos gestores, mantendo bom relacionamento na escola. As/os docentes declararam ser relevante dialogar com os colegas e estabelecer parcerias, com trocas e ajuda mútua. Algumas/alguns docentes indicaram a relevância da constituição de um espaço acolhedor, permeado pelo incentivo, respeito e cooperação, bem como contando com o apoio institucional e superando o individualismo e a competitividade no interior da escola. Outras/os professoras/es comentaram sobre a necessidade de cuidar da saúde como um todo, realizando atividades físicas, mantendo hábitos saudáveis e cuidando dos demais. Em virtude da pandemia, algumas∕alguns respondentes salientaram a relação com a família e a possibilidade de estar em casa com os filhos como geradores de sentimentos positivos com relação à profissão exercida.
A análise das respostas dadas frente as necessidades psicológicas básicas (NPB) oportunizou a compreensão das percepções das/os docentes possuem em relação ao senso de autonomia, de competência e de pertencimento frente à atuação no contexto da docência. No concernente à autonomia, as∕os professoras∕es referem perceber-se como autônomas∕os quando possuem liberdade para tomar decisões e para desenvolver seu trabalho sem interferências externas. A autonomia também consta atrelada ao respeito pelos diferentes segmentos da comunidade escolar, principalmente pela gestão, pelos alunos e seus familiares. As∕os docentes perceberam-se autônomos, ainda, quando puderam utilizar a criatividade ao elaborar seus planejamentos e a ministrar suas aulas. Ao operacionalizar seus projetos e ações didáticas de modo criativo, as∕os educadoras∕es acreditaram exercitar a autonomia pedagógica.
Nesse quesito, vale salientar o paradoxo encontrado nas respostas obtidas no estudo: por um lado é ressaltada a gestão democrática como capaz de fomentar a autonomia docente. Por outro lado, são indicadas instâncias limitadoras dessa autonomia, dentre as quais as determinações do MEC, dos Conselhos e da UNDIME. É evidente que normas mínimas são importantes para assegurar um padrão de educação no País. Todavia, tais determinações não podem cercear a liberdade para que a∕o docente exerça sua atividade a partir de seus conhecimentos, metodologias e convicções.
Em relação a gestão democrática, categoria emergente nas respostas das/dos professoras/es, ela é amparada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), n. 9.394/96. Seu Artigo 14, determina que os sistemas de ensino ficarão encarregados de definir as normas para que ela ocorra, de acordo com suas peculiaridades e seguindo dois princípios, respaldados pelos incisos I e II, sendo o primeiro indicando que os profissionais da educação fiquem responsáveis pela elaboração do projeto pedagógico da escola; e, o segundo, prevendo e garantindo a “participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”. (BRASIL, 1996, Art. 14, Inciso II). Nesse sentido, Sudbrack, Jung e Weyh (2016, p. 71), entendendo a escola como espaço democrático e de decisões, defendem:
Para que a escola pública seja verdadeiramente um espaço de gestão democrática, é necessário que se permita ao cidadão que este participe e que tome seu lugar enquanto membro da comunidade escolar. Paradoxalmente, muitas pesquisas apontam que há grande resistência por parte dos gestores e professores em flexibilizar esta participação, sendo um dos entraves o preconceito com relação ao baixo nível sócio-econômico-cultural. A escola deve cumprir sua função de aportar conteúdo técnico, o que é de sua natureza, mas à comunidade deve ser dado espaço político para exercer pressão junto ao Estado no sentido de ter uma escola de qualidade, o que é seu direito. Para que os cidadãos cumpram seu papel é necessário que consigam, de fato, exercer a cidadania [...]. Desta forma, amplia-se o papel da comunidade, já que todos são considerados no momento da tomada de decisões e não somente os representantes, evitando-se assim que o espaço democrático se torne lugar da hegemonia de pequenos grupos
Ou seja, é preciso ter cuidado para que o discurso a respeito da gestão democrática não seja vazio. Compreende-se assim que, no sentido de validar o senso de autonomia como interligado aos princípios da gestão democrática, precisa valer-se da tríade que envolve a educação escolar: determinantes legais, comunidade educacional e docência. Cada qual com seu papel e com suas funções. Nesse sentido, a professora/o professor pode se sentir autônomo diante de uma gestão democrática que articule a tríade e as funções de cada um nesse espaço, concedendo à docência, liberdade e autonomia, desde que respeitado os princípios previstos para que o caráter democrático não se perca e nem se esvazie de sentido.
Ainda no tocante às NPB, a competência foi abordada pelas∕os participantes como vinculada aos resultados obtidos no exercício profissional, seja em termos de aprendizagem por parte dos alunos, seja na execução das tarefas no tempo adequado. A valorização e o reconhecimento são elencados pelas∕os professoras∕es, as∕os quais afirmaram sentir-se competentes ao serem elogiadas∕os pelos gestores, pelos colegas, pelos educandos e pelas famílias.
As∕os respondentes apontaram o feedback como parâmetro para avaliar a competência. Isso porque, o retorno por parte dos gestores é considerado como uma forma de avaliar o próprio desempenho na docência. Alguns∕algumas indicaram a felicidade ou alegria de professoras∕es e alunos nas aulas como uma comprovação de que o∕a educador(a) é competente. Nesse sentido, cabe mencionar a adequação das tarefas às habilidades das∕os profissionais, respeitando suas potencialidades e suas limitações.
O instrumento utilizado na pesquisa permitiu associar a competência com a percepção de auto eficácia. Os dados obtidos propiciaram a constatação de que as∕os professoras∕es municipais de uma específica cidade situada no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, no geral, possuem a sensação de auto eficácia, porque se sentem capazes de decidir (95% dos participantes), demonstram satisfação com o trabalho (90,3%) e estão contentes com os resultados atingidos (94%). Além disso, a maioria das∕os docentes referiram satisfação com a participação na escola (92,8%) e com a criatividade utilizada nas atividades cotidianas (85,5%).
A sensação de pertencimento é indispensável para que as∕os educadoras∕es se sintam bem no espaço laboral. As∕os participantes da pesquisa afirmaram perceber-se pertencendo às escolas ou ao contexto educacional quando são reconhecidos e valorizados e têm liberdade para participar dos processos de tomada de decisão. Além disso, o trabalho em equipe adquire grande relevância, posto que os indivíduos demonstram maior bem-estar ao contarem com a cooperação e apoio mútuos.
Outro fator imprescindível para o pertencimento é que a gestão seja competente e comprometida, mantendo relações dialógicas, transparência na gestão dos assuntos institucionais, planejamento participativo e feedback quanto às tarefas realizadas, trazendo parâmetros avaliativos justos e coerentes. A partir disso, as∕os docentes passam a sentir-se úteis, e, consequentemente, pertencentes ao grupo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto apresentado é um recorte de uma pesquisa maior que versa sobre o bem e o mal-estar docente. A ênfase nas NPB permitiu compreender que o bem-estar docente precisa ser um propósito de toda a comunidade escolar, articulando os distintos segmentos na organização das instituições e sistemas educacionais, de modo a propiciar a vivência do senso de autonomia, de competência e de pertencimento no contexto da docência.
A autonomia demanda uma gestão democrática e participativa, que permita às/aos educadoras/es atuarem nos processos decisórios e a tomar iniciativas, principalmente no que tange ao planejamento e operacionalização de projetos pedagógicos. A autonomia pedagógica, além de ser princípio garantido pela legislação educacional vigente, precisa ser uma realidade prática.
A competência, por seu turno, requer que a formação inicial e continuada tenha qualidade, capacitando as/os docentes a atuar eficientemente nas dimensões ético-políticas, estéticas e técnico-científicas da educação. Implica, ainda, na oportunidade de atualizar-se constantemente, acompanhando o processo de avanço científico e tecnológico, que marca a contemporaneidade. A partir da formação e da permanente atualização, as/os profissionais poderão sentir-se competentes o suficiente para lecionarem num momento sócio histórico tão complexo como o atual.
O pertencimento relaciona-se com a constituição de um coletivo unido e articulado nas escolas. As instituições escolares precisam ser espaços de diálogo, de troca e de auxílio mútuo, em que predominem o respeito e a solidariedade entre os diferentes segmentos da comunidade escolar – gestores(as), professores(as), estudantes, familiares e sociedade em geral. Nesse quesito, destaca-se a necessidade de uma relação harmoniosa entre os integrantes do grupo de profissionais, criando um clima organizacional favorável e amistoso.
Por fim, pensando na docência como um todo, para que seja possível discutir a questão do bem-estar na profissão, é interessante refletir, entre outros fatores, no entendimento que as/os professoras/es possuem sobre as NPB e se as mesmas estão atendidas de forma positiva no âmbito do trabalho. Ressalta-se, ainda, que, embora a pesquisa tenha sido realizada com um número bastante representativo do contexto em que está inserida, os resultados aqui apresentados ainda são incipientes. A pesquisa atingiu o objetivo de ser desenvolvida com os professores da rede municipal de um determinado município, no entanto, como perspectiva futura poderia ser desenvolvida com professoras/es da rede estadual e da rede privada, bem como poderia ser ampliada para outros municípios e/ou regiões