1 INTRODUÇÃO
O termo gentrificação escolar vem sendo utilizado, mais frequentemente, por um conjunto de pesquisas no contexto internacional que buscam analisar mudanças recentes em unidades escolares em diferentes partes do mundo. No entanto, no contexto brasileiro, ainda são escassos os estudos que utilizam tal conceito, apesar de o termo gentrificação estar amplamente difundido em pesquisas no campo das ciências humanas, com destaque, na Sociologia e Geografia Urbana.
De maneira geral, como demonstra a literatura na área, o termo gentrificação “caracteriza-se normalmente pela ocupação dos centros das cidades por uma parte da classe média, de elevada remuneração, que desloca os habitantes da classe baixa, de menor remuneração, que viviam no centro urbano” (BATALLER, 2012, p.10). No caso da gentrificação escolar, esta mudança se refere ao perfil dos estudantes matriculados em determinada unidade educacional. Em diferentes estudos, a mudança do perfil socioeconômico está também relacionada a mudança do perfil étnico-racial, diminuindo a população autodeclarada negra.
Desde 2016, temos estudado o processo de implementação do Programa Ensino Integral (PEI) na rede estadual de educação de São Paulo. Criado em 2012, atualmente o Programa está presente em mais de 1000 escolas por todo estado de São Paulo, oferecendo jornadas ampliadas para milhares de estudantes. Nas pesquisas até aqui realizadas, é possível verificar que esta política educacional tem produzido mudanças significativas na rede estadual de educação de São Paulo, sendo uma delas a alteração no perfil socioeconômico dos estudantes nas escolas participantes do Programa.
Desse modo, este artigo tem como objetivo analisar a pertinência do uso do conceito de gentrificação escolar na análise dos efeitos do Programa Ensino Integral na cidade de São Paulo, identificando as variáveis que intensificam este processo entre as unidades participantes. Para tanto, realizamos um estudo de caso selecionando 18 escolas PEI, distribuídas em diferentes regiões do município, utilizando dados educacionais para demonstrar as principais mudanças no perfil discente após o ingresso das escolas ao Programa.
Para o desenvolvimento da discussão, organizamos o texto da seguinte forma: em um primeiro momento, discutimos como o conceito de gentrificação tem sido pensado e utilizado em pesquisas nos campos da Sociologia e da Geografia Urbana e quais têm sido os seus desdobramentos nas análises educacionais a partir da ideia de gentrificação escolar. Após isso, apresentamos o estudo de caso desenvolvido entre as escolas PEI na cidade de São Paulo, verificando como os dados obtidos podem ser interpretados à luz do conceito de gentrificação escolar. Por fim, nas considerações, apontamos possíveis agendas de pesquisas, com destaque para o campo da Geografia da Educação, que envolvam as análises de política educacional e o conceito de gentrificação escolar no contexto brasileiro.
2 O FENÔMENO DA GENTRIFICAÇÃO E A GENTRIFICAÇÃO ESCOLAR: BREVE REVISÃO DA LITERATURA
O conceito de gentrificação foi utilizado, primeiramente, pela socióloga Ruth Glass (1964) no início da década de 1960, para descrever o fenômeno do retorno da classe média ao centro de Londres, levando à expulsão dos moradores da classe operária que habitavam aquele local (SMITH, 1996, p. 31).
Durante as duas décadas seguintes, um amplo debate ocorreu sobre o tema, ganhando destaque as considerações dos geógrafos David Ley e Neil Smith. Enquanto Ley (1980, 1994) enfatizou a questão cultural no entendimento do processo da gentrificação, verificando que há o aparecimento de uma nova classe social, com novos padrões de consumo – a substituição dos operários de colarinho azul para os trabalhadores de colarinho branco –; Neil Smith (1979, 2007) fundamentou sua análise a partir da perspectiva marxista, desenvolvendo a teoria do rent-gap. Para este, o processo de gentrificação se dá quando há uma diferença entre o valor do imóvel desvalorizado e o valor do terreno não desvalorizado, permitindo com que empreendedores adquiram imóveis (prédios, casas, galpões) a preços módicos e invistam na sua revitalização para, assim, comercializar por preços altamente lucrativos. Para Smith, portanto, o fenômeno é uma expressão da dinâmica de reprodução capitalista, que redefine novas frentes de expansão do capital na cidade, evidenciando a centralidade da produção do espaço neste processo. Segundo o autor,
A produção atual do espaço ou do desenvolvimento geográfico é, portanto, um processo acentuadamente desigual. A gentrificação, a renovação urbana e o mais amplo e complexo processo de reestruturação urbana são todos parte da diferenciação do espaço geográfico na escala urbana; e, embora estes processos tenham sua origem em um período anterior à atual crise econômica mundial, sua função hoje é reservar uma pequena parte do substrato geográfico para um futuro período de expansão
(SMITH, 2007, p. 17-18)
Tal posição dialoga diretamente com os escritos de David Harvey (2006, 2014), que estabeleceu o espaço urbano como uma mercadoria, entendido, então, como resultado da necessidade de expansão das fronteiras de valorização do capital diante de suas crises cíclicas. Neste sentido, a compreensão de que o espaço urbano é apropriado para garantir o processo de reprodução capitalista faz reconhecer como este é condição para acumulação, assim como, para que os agentes do capital possam resolver, mesmo que provisoriamente, as contradições inerentes ao capitalismo. Esta frente de valorização vai se reproduzindo de maneira geograficamente desigual (HARVEY, 2015) e em diferentes escalas (SMITH, 2002), sendo a gentrificação expressão dessa desigualdade geográfica da valorização do espaço urbano.
Isto posto, o núcleo do conjunto de pesquisas sobre gentrificação realizadas, predominantemente, no campo da Geografia Urbana e da Sociologia, identificam que o fenômeno corresponde a mudanças no perfil socioeconômico dos habitantes de uma determinada área da cidade (não apenas na região central), associado a intervenções físicas. Trata-se, de áreas localizadas, principalmente, nas porções centrais das cidades que, em alguns casos, foram habitadas, inicialmente por moradores de renda mais elevada, mas que passaram por processos de popularização no perfil de seus habitantes. Recentemente, a partir de novas transformações no espaço urbano, induzidas por investimentos públicos e/ou privados, levaram a uma nova mudança no perfil da população residente, estimulando a chegada de novos habitantes com maior poder aquisitivo e expulsão das populações mais pobres. Os trabalhos apontam que, em diferentes lugares do mundo, a mudança do padrão de renda da população também está atrelada a mudança no perfil étnico-racial, com a saída das populações autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, além de imigrantes, e a predominância da população branca nestas áreas.
Para o caso da cidade de São Paulo, pesquisas recentes têm identificado processos que poderiam ser interpretados a partir do conceito de gentrificação. Como exemplo, podemos citar o trabalho de Reina e Comarú (2015) que discutem o conceito a partir do estudo da dinâmica imobiliária do bairro da Mooca, localizado na região do centro expandido da cidade de São Paulo. Nas análises, os autores consideram a quantidade de lançamentos imobiliários ocorridos entre 1990 e 2010, levando em consideração a qual perfil socioeconômico tais empreendimentos se direcionavam. Comparando os perfis dos futuros habitantes com aqueles dos residentes no bairro foi possível identificar aspectos da dinâmica espacial e social que possibilitam entender o fenômeno a partir do conceito de gentrificação.
Estudos semelhantes foram produzidos analisando diferentes bairros da cidade de São Paulo (ALCÂNTARA, 2018; VIANA, 2018), bem como outras cidades e regiões metropolitanas no país (GEVEHER e BERTI, 2017; RIBEIRO, 2018; NOVAES, 2018; SAKATA, MEDEIROS & GONÇALVES, 2018), indicando que o conceito de gentrificação possui uso recorrente nestes campos de investigação. Entretanto, o mesmo não pode ser dito acerca do uso de gentrificação escolar. Não encontramos, na revisão da literatura nacional, estudos que façam uso deste conceito, fato que contrasta com o amplo conjunto de investigações encontradas em outras línguas.
No contexto internacional, em especial, nos Estado Unidos (EUA), as pesquisas sobre gentrificação escolar apresentam uma diversidade de temas e abordagens, principalmente no que se refere a articulação entre a gentrificação como um processo urbano-social e a gentrificação como conceito explicativo das mudanças no perfil social/racial no interior das escolas. Alguns estudos indicam que o processo de gentrificação urbana antecede o processo de gentrificação escolar, apontando para um segundo momento no qual a gentrificação escolar reforça processos de gentrificação urbana. Em um destes estudos, Freidus (2019) discute como as famílias gentrificadas (termo utilizado na literatura para se referir as famílias de maior poder aquisitivo que se mudam para áreas historicamente habitadas por populações pobres) participam diretamente do processo de gentrificação das unidades escolares, concebendo-as como um ponto de valorização econômica do bairro. A autora analisa a gentrificação considerando um longo tempo de observação do fenômeno, associando mudanças demográficas e urbanas com mudanças sobre a dinâmica educacional.
Desena e Ansalone (2009), em outra perspectiva, analisam como o processo de gentrificação urbana modifica tanto as dinâmicas escolares como a própria relação dos moradores no bairro. No caso da análise desenvolvida pelas autoras, os alunos oriundos das famílias gentrificadas muitas vezes não frequentam as escolas do bairro, considerando-as com qualidade aquém daquela esperada. Com isso, direcionam seus filhos para escolas em outros bairros, o que acaba por reforçar a segregação entre o perfil socioeconômico dos residentes do bairro e o perfil dos estudantes das escolas ali estabelecidas.
Outro conjunto de estudos, como os realizados por Jordan e Gallagher (2015), indicam os vínculos existentes entre os processos de gentrificação escolar e as políticas de escolha escolar (school choice) que possuem diferentes formas de regulação nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. De forma geral, as políticas de escolha escolar buscam criar as condições para que as famílias optem pelas modalidades de educação que considerem mais adequadas para os seus filhos. As análises construídas pelos autores apontam que tais políticas têm direta relação com o aumento das desigualdades no sistema educacional, com ampliação da segregação social intra e interescolares, aumentando também os processos de segregação racial, bem como estão diretamente relacionadas ao avanço da iniciativa privada sobre a gestão das unidades escolares. Segundo os autores, no contexto estadunidense, a população branca e de classe média alta tem sido aquela que, efetivamente, exerce a escolha escolar. As populações mais pobres, em decorrência de diferentes limitações (econômicas, de acesso à informação, de mobilidade urbana etc.) pouco utilizam dessa política, matriculando seus filhos nas escolas mais próximas da residência, sendo essa a variável mais significativa no processo de tomada de decisão.
Outro aspecto apontado pelos autores é que as famílias gentrificadas tendem a matricular os seus filhos em escolas com outras famílias também gentrificadas, contribuindo para a segregação e a gentrificação escolar. Isso colabora, para o aumento do controle das famílias gentrificadas sobre as tomadas de decisões nas unidades escolares e ampliação da exclusão/marginalização das famílias mais pobres do bairro. Além disso, as pesquisas apontam que o processo de gentrificação tende a produzir uma demanda por políticas de escolha escolar, anteriormente inexistentes nos bairros pré-gentrificação, o que indica uma correlação de retroalimentação entre gentrificação e política de escolha escolar, como mostra a pesquisa de Perman II e Swain (2017).
Desse modo, as diferentes pesquisas sinalizam um conjunto amplo de investigações que articulam a gentrificação como um fenômeno urbano e como um fenômeno educacional. Para o desenvolvimento do nosso estudo de caso, partiremos do conceito de gentrificação escolar proposto Posey-Maddox et al. (2012). Segundo as autoras, tal conceito se refere as seguintes alterações na dinâmica escolar:
i) aumento do número de famílias de classe média; (ii) atualizações de materiais e físicas (por exemplo, novos programas, recursos educacionais e melhorias de infraestrutura); (iii) formas de exclusão e / ou marginalização de alunos e famílias de baixa renda (por exemplo, nas matrículas e nas relações sociais); e (iv) mudanças na cultura e no clima da escola (por exemplo, tradições, expectativas e dinâmica social)
(POSEY-MADDOX et al., 2012, p. 454)
No caso das escolas PEI no município de São Paulo, é possível verificar a existência de todas estas alterações indicadas pelas autoras. No que diz respeito aos itens II e IV, é possível verificar mudanças na dinâmica curricular, com a inclusão de novas disciplinas, como o projeto de vida, analisado por Fodra e Nogueira (2017), bem como o desenvolvimento de um modelo de gestão escolar diretamente associado à perspectiva empresarial, como indicado nas análises de Girotto & Jacomini (2019). O mesmo se verifica nos itens I e III: as pesquisas produzidas até aqui indicam mudanças no perfil socioeconômico dos estudantes, com a diminuição dos estudantes mais pobres na composição demográfica das unidades escolares, bem como a existência de mecanismos implícitos3 de seleção de estudantes como tratados nas pesquisas de Cássio & Girotto (2018), Oliveira (2020), Girotto, Oliveira & Graton (2019).
Diante deste quadro de evidências já produzidas sobre as escolas PEI, é possível assumir que sua implementação tem produzido um processo de gentrificação escolar nas escolas da rede estadual de São Paulo. Tal gentrificação tem como consequência a ampliação das desigualdades educacionais na própria rede. Assumindo, dessa forma, a possibilidade de compreensão dos efeitos da PEI sobre a rede estadual a partir deste conceito, o estudo de caso que discutiremos na próxima seção deste artigo visa avaliar se, no conjunto de escolas estudadas, verifica-se mudança do perfil socioeconômico e étnico- racial dos estudantes, bem como identificar em quais contextos/unidades escolares as mudanças são mais intensas, visando, assim, compreender quais são as variáveis que têm maior impactam no processo de gentrificação escolar. Em nossa perspectiva, a compreensão destas variáveis é fundamental no entendimento da dinâmica própria do fenômeno e sua relação com as possíveis induções realizadas a partir da elaboração e implementação da política educacional.
3 ESTUDO DE CASO: A GENTRIFICAÇÃO ESCOLAR COMO RESULTADO DO PROGRAMA ENSINO INTEGRAL
Como pontuamos na introdução, o Programa Ensino Integral (PEI) teve início em 2012 como parte de uma nova política de Educação Integral na rede estadual de São Paulo, compondo o programa Educação Compromisso de São Paulo (ECSP)4. Este previa que parte das escolas da rede estadual de ensino se tornassem unidades de tempo integral, com jornadas de até 9 horas diária. A partir de 2019, a política educacional das PEIs sofreu uma readequação, permitindo que as escolas optassem entre dois modelos de carga horária: um de 9 horas ou duas jornadas de 7 horas. Atualmente, são 1077 escolas PEI em todo o estado e 155 somente na cidade de São Paulo.
O PEI tem sido apresentado pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEDUC-SP) como responsável pela melhoria nos resultados educacionais das unidades participantes, com elevação no Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP)5. Segundo a SEDUC-SP, o novo modelo de gestão escolar, com foco nos resultados, no cumprimento dos currículos padronizados e com dedicação exclusiva dos docentes seria o principal responsável por esta melhora. No entanto, o conjunto de pesquisas desenvolvidas desde 2016 apontam que, entre os efeitos do Programa, está uma ampla mudança no perfil dos estudantes após a inserção das unidades no Programa.
Com o intuito de identificar tal mudança à luz do conceito de gentrificação escolar discutido anteriormente, analisamos o perfil socioeconômico e étnico-racial dos estudantes em 18 escolas PEIs distribuídas pelo município de São Paulo, conforme mapa 1:
As escolas foram selecionadas considerando os seguintes critérios: ano de adesão ao Programa, etapas de atendimento e localização. No que se refere ao ano de adesão, selecionamos escolas que ingressaram no primeiro ano de implementação do Programa (2012) até aqueles que aderiram ao PEI no ano limite do nosso recorte temporal de investigação (2019). Em relação às etapas, focamos nosso recorte nas escolas que ofertavam, pelo menos um dos ciclos: Ensino Fundamental - Anos Finais (EF-AF) e Ensino Médio (EM), etapas que, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei nº 9.394) são de responsabilidade do governo estadual. Por fim, em relação à distribuição pelo município, foram escolhidas unidades em áreas com diferentes graus de vulnerabilidade social, de acordo com o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS)6, nas diversas regiões do município de São Paulo. Com base nestes critérios, aproximamos o conjunto de escolas selecionadas com as características das demais unidades participantes do Programa.
Para analisar a mudança do perfil dos estudantes, adotamos duas variáveis: a declaração racial dos estudantes, disponível nos dados do Censo Escolar publicado anualmente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a quantidade de estudantes por escola, participantes do Programa Bolsa Família (PBF)7, informação autodeclarada e sistematizada pela SEDUC-SP. Para complementar a análise, apresentamos também dados referentes a variação de turmas e matrículas, com o intuito de construir possíveis correlações entre as mudanças na dinâmica escolar e as mudanças no perfil dos estudantes. O recorte temporal correspondeu a comparação das informações entre o ano de adesão ao Programa com o momento imediatamente anterior.
Na tabela 1, é possível verificar que, exceto em uma das escolas investigadas, todas as demais tiveram diminuição de matrículas e turmas, sendo na maior parte uma redução maior do que 50%, encontrando em 3 destas unidades uma variação superior a 80%.
Tabela 1 Variação8 de matrículas e turmas nas unidades PEIs analisadas.
Escola | Distrito | Ano de Adesão |
Etapas | Variação de Matrícula |
Variação de Turmas |
---|---|---|---|---|---|
EE Profa. Adelaide Rosa Fernandes Machado de Souza | Grajaú | 2018 | EM | -90% | -77% |
EE São Paulo | Sé | 2018 | EM | -83% | -64% |
EE Prof. Octacílio de Carvalho Lopes | Artur Alvim | 2018 | EM | -82% | -67% |
EE Yervant Kissajikian | Jose Bonifácio | 2018 | EM | -75% | -70% |
EE Oswaldo Aranha | Itaim Bibi | 2014 | EF-AF, EM | -70% | -50% |
EE Alexandre von Humboldt | Lapa | 2012 | EM | -68% | -67% |
EE Costa Manso | Itaim Bibi | 2014 | EM | -58% | -33% |
EE COHAB Inácio Monteiro III | Cidade Tiradentes | 2018 | EF-AF, EM, EJA | -54% | -40% |
EE Eng. Pedro Viriato Parigot de Souza | Vila Curuçá | 2019 | EF-AF | -52% | -52% |
EE Buenos Aires | Santana | 2016 | EF-AF, EM | -52% | -56% |
EE José Marques da Cruz | Vila Formosa | 2018 | EM, EJA | -42% | -34% |
EE Isaí Lerner | Água Rasa | 2016 | EM, EJA | -42% | -37% |
EE Dep. Manoel De Nobrega | São Miguel Paulista | 2015 | EF-AF | -40% | -56% |
EE Carlos Maximiliano Pereira dos Santos | Pinheiros | 2013 | EF-AF | -21% | -23% |
EE Prof. Ayres de Moura | Jaguará | 2013 | EF-AF, EJA | -15% | -18% |
EE Olga Benatti | Vila Prudente | 2014 | EF-AF, EM | -13% | 0% |
EE Prof. Odon Cavalcanti | Ipiranga | 2016 | EF-AF | -8% | 0% |
EE Frontino Guimarães | Santana | 2015 | EF-AF | 34% | 0% |
Fonte: Censo Escolar (INEP, 2011 a 2019). Organizado pelos autores.
Quando analisado o perfil dos estudantes antes e após o ingresso ao Programa, em 88,8% dos estabelecimentos de ensino apresentaram diminuição dos estudantes negros (pretos e pardos), sendo que em metades destas unidades a diminuição ultrapassou 50% (Tabela 2).
Tabela 2 Variação de estudantes negros nas unidades PEI analisadas.
Escola | Variação de negros |
---|---|
EE Profa. Adelaide Rosa Fernandes Machado de Souza | -87% |
EE Prof. Octacílio de Carvalho Lopes | -83% |
EE São Paulo | -78% |
EE Yervant Kissajikian | -77% |
EE Alexandre von Humboldt | -70% |
EE Oswaldo Aranha | -68% |
EE COHAB Inácio Monteiro III | -49% |
EE Eng. Pedro Viriato Parigot de Souza | -49% |
EE Buenos Aires | -43% |
EE Isaí Lerner | -41% |
EE José Marques da Cruz | -37% |
EE Prof. Odon Cavalcanti | -37% |
EE Costa Manso | -31% |
EE Dep. Manoel De Nobrega | -29% |
EE Prof. Ayres de Moura | -28% |
EE Carlos Maximiliano Pereira dos Santos | -24% |
EE Olga Benatti | 3% |
EE Frontino Guimarães | 27% |
Média | -45% |
Fonte: Censo Escolar (INEP, 2011 a 2019). Organizado pelos autores.
Situação semelhante é encontrada quando verificada a variação de estudantes que recebiam Bolsa Família. Em 77,7% das PEIs selecionadas se observou uma diminuição dos estudantes nesta condição, sendo que em ¾ das unidades a diminuição foi maior do que 50%.
Tabela 3 Variação de estudantes que recebem Bolsa Família (BF) nas unidades PEI analisadas.
Escola | Variação BF |
---|---|
EE São Paulo | -86% |
EE Profa. Adelaide Rosa Fernandes Machado de Souza | -86% |
EE Prof. Octacílio de Carvalho Lopes | -85% |
EE Yervant Kissajikian | -84% |
EE Dep. Manoel De Nobrega | -76% |
EE COHAB Inácio Monteiro III | -62% |
EE Alexandre von Humboldt | -59% |
EE Isaí Lerner | -55% |
EE Buenos Aires | -54% |
EE José Marques da Cruz | -51% |
EE Eng. Pedro Viriato Parigot de Souza | -45% |
EE Oswaldo Aranha | -35% |
EE Prof. Odon Cavalcanti | -33% |
EE Costa Manso | -6% |
EE Olga Benatti | 8% |
EE Prof. Ayres de Moura | 12% |
EE Carlos Maximiliano Pereira dos Santos | 40% |
EE Frontino Guimarães | 40% |
Média | -40% |
Fonte: SEDUC (2020). Organizado pelos autores.
É importante ressaltar que em relação aos dados de beneficiários do Bolsa Família, a diminuição verificada nestas escolas PEI vai na direção contrária das demais escolas estaduais encontradas tanto na escala estadual quanto municipal, conforme mostra a tabela 4. Enquanto as escolas PEI tiveram uma queda média de 40%, no número de estudantes que participantes do Bolsa Família, nas demais escolas do município e do estado de São Paulo as variações foram positivas, de 13% e de 131%, respectivamente.
Tabela 4 Estudantes da rede estadual participantes do Programa Bolsa Família e variação, no estado e no município de São Paulo em 2011 e 2019.
2011 | 2019 | Variação | |
---|---|---|---|
Estado | 1.300.935 | 1.470.943 | 13% |
Município | 208.406 | 480.378 | 131% |
Fonte: SEDUC (2020). Organizado pelos autores.
Ao cruzarmos as informações socioeconômicas apresentadas anteriormente, é possível perceber que 4 escolas PEI revezam, entre si, as primeiras posições.
Tabela 5 Escolas PEI com maiores variações no perfil socioeconômico dos estudantes.
Escola | Ano de adesão |
Etapas oferecidas |
Distrito | Variação de matrículas (%) |
Variação de negros (%) |
Variação PBF (%) |
---|---|---|---|---|---|---|
EE Profa. Adelaide Rosa Fernandes Machado de Souza |
2018 | EM | Grajaú | -90% | -87% | -86% |
EE Prof. Octacílio de Carvalho Lopes |
2018 | EM | Artur Alvim | -82% | -83% | -85% |
EE São Paulo | 2018 | EM | Sé | -83% | -78% | -86% |
EE Yervant Kissajikian |
2018 | EM | Jose Bonifácio |
-75% | -77% | -84% |
Fonte: Censo Escolar (INEP, 2011 a 2019) e SEDUC (2020). Organizado pelos autores.
Os dados apontam que as escolas com maiores reduções de matrículas, são também as que diminuíram, significativamente: o número de estudantes negros, de participantes no Bolsa Família e na quantidade de etapas oferecidas, atendendo somente o Ensino Médio. Em relação a localização, três das quatro unidades estão em distritos periféricos da cidade de São Paulo (Grajaú, Artur Alvim e José Bonifácio); além disso, todas estas aderiram ao Programa em 2018. No outro extremo, encontramos as quatro escolas PEI com as menores mudanças no perfil socioeconômico dos estudantes, conforme a seguir.
Tabela 6 Escolas PEI com menores variações no perfil socioeconômico dos estudantes.
Escola | Ano de adesão |
Etapas oferecidas |
Distrito | Variação de matrículas (%) |
Variação de negros (%) |
Variação PBF (%) |
---|---|---|---|---|---|---|
EE Prof. Ayres de Moura |
2013 | EF-AF, EJA | Jaguara | -15% | -28% | 12% |
EE Carlos Maximiliano Pereira dos Santos |
2013 | EF-AF | Pinheiros | -21% | -24% | 40% |
EE Olga Benatti | 2014 | EF-AF, EM | Vila Prudente |
-13% | 3% | 8% |
EE Frontino Guimarães |
2015 | EF-AF | Santana | 34% | 27% | 40% |
Fonte: Censo Escolar (INEP, 2011 a 2019) e SEDUC (2020). Organizado pelos autores.
É possível perceber que destas unidades, predomina o oferecimento de classes dos Anos Finais do Fundamental, com baixa variação no número de matrículas. Dentre estas, três (EE Carlos Maximiliano, EE Olga Benatti, EE Frontino Guimarães) estão situadas em distritos correspondentes ao centro expandido da cidade, menos vulneráveis e marcados por recentes processos de gentrificação urbana (Pinheiros, Vila Prudente e Santana). Destaca-se, ainda, que aderiram ao Programa nos três primeiros anos de sua implantação.
Dessa forma, o estudo de caso indica ser possível utilizar o conceito de gentrificação escolar, no termos propostos por Posey-Maddox et al. (2012), em especial, no que se refere a existência de formas de exclusão e/ou marginalização de alunos e famílias de baixa renda (por exemplo, nas matrículas e nas relações sociais. Além disso, os dados no possibilitaram identificar em quais escolas a mudança do perfil socioeconômico dos estudantes (representado pela saída dos mais pobres e autodeclarados negros) tende a ocorrer com maior intensidade. Trata-se das escolas PEI que:
Oferecem, prioritariamente, o Ensino Médio;
Tiveram a maior redução de matrículas;
Estão localizadas em áreas de maior vulnerabilidade social;
Aderiram recentemente ao Programa.
Algumas hipóteses podem ser levantadas para o entendimento destas variáveis. Em primeiro lugar, sobre as escolas de Ensino Médio apresentarem maior intensidade na gentrificação escolar: isto pode estar relacionado com o fato de que, nesta etapa da vida, muitos discentes terem que conciliar estudo com o trabalho, inviabilizando uma jornada escolar estendida. A ausência de auxílios de permanência aos estudantes empobrecidos acentua o processo de saída destes das escolas. Além disso, é fundamental mencionar que tais reduções implicaram no fechamento de turmas, especialmente aquelas do período noturno, onde predominavam estudantes-trabalhadores, sendo algumas mulheres que realizam mais de uma jornada-dia, alunos com trajetórias escolares distintas e com diferentes expectativas em relação ao futuro (SOUZA; OLIVEIRA; LOPES, 2006; SIGNORI; MELO, 2014).
Importante considerar também que 75% das escolas deste grupo estão em regiões de maior vulnerabilidade social, segundo IPVS. Tal informação, associada a diminuição na diversidade étnico-racial dos estudantes e a redução no número de participantes do Programa Bolsa Família, indicam que a política educacional de Ensino Integral possuí um caráter segregacionista, principalmente por estar dissociada de ações que garantam a permanência dos estudantes mais pauperizados. Nestas áreas mais periféricas, onde os estudantes necessitam, muitas vezes, contribuir na renda da família, torna-se impossível a permanência por um tempo longo na escola sem a contrapartida de algum tipo de auxílio financeiro.
Por fim, o fato das escolas com maior gentrificação serem aquelas que aderiram recentemente ao Programa, aponta para o efeito já sinalizado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) em seu relatório de 2016, em que demonstrava a brusca mudança no perfil dos estudantes quando as unidades se tornavam PEI.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apontado no decorrer do artigo, ainda são escassos os estudos no Brasil que mobilizam o conceito gentrificação escolar com o intuito de compreender efeitos de políticas educacionais que resultem em mudanças na composição do corpo discente das unidades escolares. Este artigo, portanto, buscou apresentar reflexões iniciais sobre a possibilidade de uso desta ideia, analisando uma política educacional específica, sem, no entanto, ter o intuito de produzir generalizações. Ao contrário, interessa-nos analisar a pertinência deste conceito e construir um caminho de diálogo com a comunidade acadêmica com o objetivo de produzir uma possível agenda de pesquisa em torno desta temática.
Em relação ao estudo de caso em questão, os dados apontam que em todas as unidades escolares analisadas ocorreram mudanças no perfil socioeconômico dos estudantes matriculados com a implementação do Programa Ensino Integral, levando a diminuição do número de estudantes autodeclarados negros e que recebiam Bolsa Família. Como vimos, as maiores mudanças ocorreram em escolas que ofertam o Ensino Médio. De maneira geral, tais dados apontam que é possível pensar o efeito do PEI na rede estadual em termo de gentrificação escolar, em consonância com os debates e análises constituídos no âmbito internacional, sem, no entanto, correr o risco de produzir uma transposição ingênua de teorias entre contextos tão diferentes. A pertinência na utilização do conceito não deve significar o uso indiscriminado e descontextualizado, o que se pode ser evitado com a consolidação de uma agenda de pesquisa de longo e médio prazo que contribua para entender os aspectos e dinâmicas da política educacional brasileira que extrapolam os limites do próprio conceito.
Dessa forma, algumas questões emergem deste primeiro exercício de pesquisa e que, em nossa perspectiva, podem configurar ponto de partida para uma possível agenda de outras investigações. Nela, uma das questões centrais se refere a articulação entre gentrificação escolar, gentrificação urbana e política educacional. Como aponta a literatura revisitada na primeira parte do artigo, já existem trabalhos que buscam apresentar evidência desta articulação e que poderiam contribuir para o desdobramento de questões de pesquisa também no contexto das políticas educacionais em São Paulo. Em especial, no contexto das escolas PEI, seria importante aprofundar questões, tais como:
A gentrificação escolar verificada entre as unidades PEIs produz efeito sobre processos de gentrificação urbana no entorno das escolas?
Verifica-se processos de gentrificação urbana anteriores a gentrificação escolar neste conjunto de escolas?
Existe relação entre gentrificação urbana e educacional? Se sim, como isso se dá em diferentes regiões da cidade, levando em consideração a dinâmica urbana de São Paulo?
Quais os efeitos que a possível articulação entre os processos de gentrificação urbana e educacional podem produzir sobre as desigualdades educacionais e socioespaciais?
Diante das mudanças do perfil discente, identificadas no interior das PEIs, estariam estas escolas articulada/impulsionando processos de (re)valorização nos bairros em que estão estabelecidas? Como sugere Freidus (2019) seriam as PEIs uma impulsionadora da gentrificação urbana?
Partindo dos debates de Jordan & Gallagher (2015), estaria a política das PEI no interior de uma ampla política educacional de escolha escolar (school choice)?
O anúncio destas problematizações não visa, de forma alguma, esgotar as possibilidades desta futura agenda de pesquisa. Tem, muito mais, o objetivo de partilhar questões que emergiram deste primeiro contato com o tema, bem como demonstrar as potencialidades do uso deste conceito para o entendimento das problemáticas que envolvem o campo crescente da Geografia da Educação do Brasil. Em nossa perspectiva, o tema da gentrificação escolar tem amplo potencial para fomentar discussões neste campo, intensificando a articulação entre as pesquisas em geografia, educação e política educacional.