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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.1 São Paulo ene./marzo 2019  Epub 05-Ago-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i1p184-203 

Artigos

PROFESSOR (NÃO) É EDUCADOR? EMBATES PELA IDENTIDADE DOCENTE NO CINQUENTENÁRIO DE “PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”

IS (NOT) THE TEACHER AN EDUCATOR? CONFLICTS FOR THE TEACHER IDENTITY IN THE FOURTH CENTURY OF “PEDAGOGY OF THE OPPRESSED”

Andresa Silva da Costa MUTZ1 

Elvis Patrik KATZ2 

1 Doutora em Educação. Professora do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS/ Brasil. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia - GEECAF. E-mail: andresa.mutz@ufrgs.br

2 Mestre em Educação. Coordenador Pedagógico da E.M.E.F. Vereador Armando Taffarel - RS/Brasil. Professor de História para a educação básica no município de Fontoura Xavier - RS/Brazil. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia - GEECAF. E-mail: elviskatz@yahoo.com.br


RESUMO

É quase impossível ignorar a influência do pensamento de Paulo Freire na educação brasileira. Um dos maiores expoentes da crítica ao modelo educacional praticado ainda hoje, Freire tornou-se “leitura obrigatória” nos cursos de licenciatura, em especial a partir de fins dos anos de 1990 e início dos anos 2000, e inspirou muitos professores em suas práticas junto aos alunos da Educação Básica e Ensino Superior. Nos últimos anos, no entanto, parece estar se firmando no Brasil uma resistência bastante forte às proposições freireanas, fenômeno acompanhado por um ressurgimento e fortalecimento do pensamento conservador de modo mais amplo. No presente artigo, objetivamos descrever os embates entre esses dois discursos, nos perguntando acerca de seus efeitos sobre as identidades docentes. Lançamos mão de ferramentas teórico-metodológicas de inspiração foucaultiana para execução da análise. O material empírico selecionado está composto pelas obras Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1987) e Professor não é educador, de Armindo Moreira (2012). Os resultados evidenciaram que persiste e se intensifica, na atualidade, uma divergência significativa na concepção de educação e do papel do professor entre o ideário liberal/neoliberal e a teorização crítica. Nesse sentido, nos colocamos a refletir acerca da função política da educação a fim de problematizarmos a identidade ideal de professor defendida por movimentos como o Escola Sem Partido. Por mais estranho que isso nos pareça, os resultados da pesquisa apontam para o fato de que, para alguns daqueles que combatem Freire, parece possível (e até desejável) ser professor sem educar.

PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire; Pedagogia do Oprimido; Identidade Docente; Escola Sem Partido; Educador

ABSTRACT

It is almost impossible to ignore the influence of the ideas of Paulo Freire in Brazilian education. One of the most important exponents of the critics of the educational model still practiced nowadays, Freire became “required reading” in graduation courses related to teaching, mainly from the late 1990s and early 2000s, inspiring many teachers in their practices with the students of Basic Education and Higher Education. However, in the last years, a strong resistance has been occurring against Freire’s ideals - phenomenon followed by the resurgence and strengthen of a widely conservative thought. In this paper, we aimed to describe the conflicts between these two discourses, asking us about their effects over the teacher identities. For the analysis, we used theoretical-methodological tools of Foucauldian inspiration. The empirical material selected is composed by the books Pedagogy of the oppressed (1987),by Paulo Freire, and “Professor não é educador”, by Armindo Moreira (2012). The results are evidences of a significant divergence in the conception of education and the role of the teacher between the liberal/neoliberal ideology, besides the critical theorization, which are persistent and more intense. This way, we decided to think about the political role of education in order to problematize the ideal teacher identity defended by movements such as Escola Sem Partido. Even though it is strange for us, the results of this research point to the fact that for some of those who oppose Freire, it seems possible (and even desirable) to be a teacher without education.

KEYWORDS: Paulo Freire; Pedagogy of the oppressed; Teacher Identity; Escola Sem Partido; Educator

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo foi escrito com o objetivo de compartilhar ferramentas analíticas e teóricas que possam acrescentar novos elementos a uma discussão que marca fortemente o campo da educação e que em nossos dias tem ocupado, inclusive, espaço na mídia jornalística. Trata-se de uma reflexão acerca das racionalidades que sustentam modelos distintos daquilo que se considera “um bom professor”.

Justificamos a escolha da temática em virtude da entrada em cena - na última década especialmente - de novas forças nos embates de paradigmas que marcam o campo da educação no Brasil. A década de 1960 pode ser considerada como o período de emergência das chamadas Teorias Críticas da Educação que se propunham a fazer oposição aos modelos mais tradicionais de ensino em vigor, como o tecnocrático e o progressista (SILVA, 2015). Foi nesse período que Paulo Freire publicou um de seus livros mais famosos, intitulado Pedagogia do Oprimido. Durante a Ditadura Civil-Militar, o anseio por um modelo educacional crítico encontrou base de sustentação entre os educadores como formato educacional alternativo, estando em contraposição à situação de autoritarismo vigente. Esse momento, que inicia nos anos 1960 e tem seu ápice na década de 1980, foi o período de maior ascensão das teorias educacionais associadas aos projetos políticos da esquerda (GARCIA, 2002). Quando, em meados dos anos 1990, as proposições neoliberais passaram a assediar a escola pública por meio de reformas educacionais que apontavam para a flexibilização do trabalho docente, para as parcerias com o sistema privado, para as avaliações em larga escala, entre outros (BALL et al., 2013), mais uma vez os pensadores críticos assumiram lugar de destaque junto aos educadores brasileiros que se opunham ao ideário neoliberal.

O que surpreende nesse processo histórico que, diga-se de passagem, é muito mais complexo do que fomos capazes de sintetizar aqui, foi o fato de que, a partir dos anos 2000, passamos a ver se incorporarem ao discurso de crítica ao modelo educacional brasileiro novas vozes com insólitos argumentos, entendidos por nós neste artigo como (re)atualizações de alguns pontos já amplamente discutidos e considerados superados pelos pesquisadores em educação. Estamos nos referindo aqui ao ideário do movimento Escola Sem Partido (ESP) que, anacronicamente, apresenta propostas para educação pautadas por um conservadorismo moral e, ao mesmo tempo, alinhadas às práticas de caráter neoliberal mais contemporâneas (SARAIVA; VARGAS, 2017).

Para os fins do presente texto, é importante mencionar que o ESP vem lançando, ao longo dos anos, sucessivas investidas de poder sobre as identidades docentes, no intuito de moldar práticas e posturas dessa categoria profissional por meio da construção de certas subjetividades idealizadas. Conforme demonstrado por Katz e Mutz (2018), nas investidas do Escola Sem Partido sobre os professores:

[...] A produção da identidade docente (in)desejável passa pela definição de um professor que é [considerado] “crítico” e busca “despertar a consciência crítica” dos seus estudantes. “Militante”, esse docente defende principalmente “ideias de esquerda”, “freireanas” ou “marxistas”, dado que pertence a um “monopólio ideológico” que pratica a “doutrinação” com apoio estatal. São docentes predominantemente das áreas das ciências humanas e da educação, em especial da disciplina de História, e pertencentes à rede pública de ensino, nos mais variados níveis [...] (p. 127).

Diagnosticou-se, assim, que grande parte da construção narrativa do ESP se ancora nos ataques a um certo tipo de professor que seria portador de valores e intenções consideradas pelo movimento como inadequadas. No artigo “Combater é preciso: a tradição e figura de Paulo Freire no discurso do movimento Escola Sem Partido”, evidenciou-se que “[...] longe de fazer afirmações neutras ou análises descompromissadas da educação, o movimento está muitíssimo preocupado não apenas com a defesa de suas ideias, mas também com o combate a seus rivais” (KATZ; MUTZ, 2017, p. 85).

Naquele estudo, verificamos que Paulo Freire ocupa lugar central na crítica elaborada pela organização. Sem debater seriamente as ideias propostas pelo autor brasileiro, as enunciações do ESP estão cheias de ataques à figura e à história de Freire, num grau de agressividade que inviabilizaria qualquer resposta que prezasse pela seriedade.

Implicitamente, o que se sugere é que Paulo Freire é tão descartável que não deve nem ser lido, sob pena de acabar convencendo o leitor de suas supostas maluquices. Assim, na impossibilidade de ignorar Freire e seu legado na educação, o Escola Sem Partido parece tentar apagar sua importância, mostrando seus sucessos apenas sob o prisma da vitória da propaganda política (KATZ; MUTZ, 2017, p. 85).

A título de esclarecimento, então, a proposta do presente artigo é a de assumir Paulo Freire como representante do campo crítico da educação brasileira e comparar suas enunciações com as do movimento Escola Sem Partido, entendendo-as como antagônicas. Tomamos a liberdade de eleger, em especial por considerar o cinquentenário da sua publicação, o livro Pedagogia do Oprimido como objeto de análise do pensamento do autor no que diz respeito à forma como ele compreende as identidades docentes. Em contrapartida, a obra antagonista (e que representaria os ideais do ESP) intitula-se Professor não é educador, escrita por Armindo Moreira.

Como se observará, esses dois textos abordam a temática da identidade docente e competem pela formação de subjetividades contemporâneas no sentido de produzir um professor ideal. Assim, com base na análise do discurso, proposta por Michel Foucault, examinamos as enunciações presentes nessas obras com o intuito de evidenciar a disputa pelo controle da categoria docente na atualidade.

2 CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Antes de prosseguirmos, vale delimitar a matriz de inteligibilidade que tomamos ao lançarmos mão do conceito de “identidade” docente, bem como as razões para a escolha do pensamento de Michel Foucault como principal referência metodológica neste artigo. Adotamos a noção de identidade desde o campo de pesquisa, já bastante consolidado, denominado Estudos Culturais. Sobre ele, destacamos que:

De forma talvez mais importante, os Estudos Culturais concebem a cultura como campo de luta em torno da significação social. A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nessa concepção, um campo contestado de significação [...] Os Estudos Culturais são particularmente sensíveis às relações de poder que definem o campo cultural (SILVA, 2015, p. 133-134).

Alinhados a Hall (2006), partimos do pressuposto de que as identidades contemporâneas são múltiplas e dispersas, negando, assim, o caráter unitário capaz de aglutinar os interesses dos diversos sujeitos e grupos sociais, como era o caso das identidades nacionais até a Segunda Guerra Mundial. Na contemporaneidade, admitimos o caráter fluido das identidades, entendendo que funcionam como papéis sociais exercidos pelos sujeitos, e não identidades fixas que nos são destinadas ao nascer ou por imposição externa. Dessa forma, um professor ou professora não possuiria apenas a identidade docente, mas também a de gênero, classe, raça etc. A identidade, que até pouco tempo atrás possuía um viés sociológico bastante marcado na perspectiva pós-moderna, portanto, começa a aparecer de maneira fragmentária, o que contraria a ideia moderna do sujeito unificado (HALL, 2006).

Faz-se necessário perceber, então, que “a” identidade docente é uma categoria difícil de perscrutar, na medida em que a função de professor no Brasil ainda é encarada como um trabalho temporário ou passível de ser realizada por leigos, e não necessariamente por especialistas (BRZEZINSKI, 2002). Ou seja, a semiprofissionalização e a dificuldade de articulação política dos movimentos sindicais reforçam a identidade pouco sólida dos professores no Brasil.

Com isso, desejamos evidenciar que a noção de identidade docente passa a significar muito mais a coletividade de professores e funciona como certa estratégia dos próprios discursos para homogeneizar as inúmeras diferenças no interior da categoria. Na prática, qualquer tentativa de individualizar, separar ou unificar essas identidades é arbitrária, dado que sua principal característica é a heterogeneidade. Gênero, raça, sistemas de ensino, finalidade da escola (privada ou pública), níveis de ensino (infantil, fundamental, médio e superior), características dos estudantes, condições de trabalho, qualificação profissional, interesses; enfim, basta um pequeno exercício de reflexão e observam-se muito mais diferenças do que semelhanças nesse grupo que costumamos denominar como “docentes” no Brasil.

Essa vontade de centralizar um conceito de identidade que remeta a todos ou à maioria dos professores está presente na própria cultura. Ademais, também aparece nos discursos que circundam a educação, como os da mídia (revistas, jornais, a televisão, a internet) e as próprias ferramentas de controle do Estado neoliberal (avaliações em larga escala, estudos voltados à produção de estatísticas e “verdades” acerca da educação etc.). Assim, na atualidade, são produzidos inúmeros discursos que se voltam para identidades específicas e que são, em geral, padronizantes, pois objetivam fabricar identidades dentro de uma normalidade. Acerca dessa normalização das identidades, é possível pensar na transformação que Foucault observa na modernidade, quando o avanço do biopoder levaria a uma espécie de mudança nas leis e, consequentemente, à “[...] formação de uma sociedade normalizadora, longe de provocar o apagamento da lei ou o desaparecimento das instituições da justiça, vai antes a par com uma espantosa proliferação legislativa” (EWALD, 1993, p. 78).

Temos nos interessados, neste artigo, justamente por essa espantosa proliferação discursiva acerca do “bom professor”, marcada especialmente pelos textos de Maria Isabel da Cunha (1989) e Mary Rangel (2001), mas que remete a toda uma tradição acadêmica e midiática que acaba por fabricar identidades docentes tidas por ideais, como mostraram Dalton (1996) e Carossi (2009). De um lado, enunciações que desde muito tempo vêm apontando para o caráter crítico e transformador da educação; de outro, um apelo moralista que vem crescendo nos últimos anos em nosso país na intenção de regular ou normalizar a categoria professoral, estabelecendo-lhe rígidos limites de ação. Por tal razão, nos dispusemos a mapear o que se diz sobre a identidade docente em regimes discursivos que sustentam paradigmas educacionais situados em pólos opostos, a fim de identificar as enunciações que dão forma a esse suposto professor ideal em nossa sociedade. Importante destacar que, alinhados a Michel Foucault, não nos interessa, nesta pesquisa, responder à questão de caráter universal: “qual é mesmo a identidade docente ideal?” Ou ainda, como sugerimos no título deste artigo: “o professor é mesmo educador?”. Mas, antes, nos colocarmos a pensar sobre os discursos sustentados em diferentes paradigmas que se autodeclaram portadores de um modelo ideal de professor.

Com relação ao que se convencionou chamar de método, a necessidade de ser breve nos leva a dizer que nossas escolhas se enquadram na categoria de análise do discurso a partir dos operadores teóricos cunhados por Foucault. Em sua arqueologia, o autor empreende uma descrição de enunciados que visa, em suma, a fazer aparecer as práticas discursivas presentes nos mais diversos ditos e escritos. Nas palavras de Fischer (2001):

[...] é preciso ficar (ou tentar ficar) simplesmente no nível de existência das palavras, das coisas ditas. Isso significa que é preciso trabalhar arduamente com o próprio discurso, deixando-o aparecer na complexidade que lhe é peculiar. E a primeira tarefa para chegar a isso é tentar desprender-se de um longo e eficaz aprendizado que ainda nos faz olhar os discursos apenas como um conjunto de signos, como significantes que se referem a determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado, quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencionalmente deturpado, cheio de “reais” intenções, conteúdos e representações, escondidos nos e pelos textos, não imediatamente visíveis (p. 198).

De forma inovadora, o pensamento de Michel Foucault nos oferece ferramentas interessantes para abordarmos práticas discursivas em meio a práticas não discursivas, observando as imbricações entre saber e poder. E é justamente por essa aproximação, entre saber e poder, que o autor se faz tão útil para a presente análise:

Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 2010, p. 30).

Em resumo, nossa investigação considera que a produção de saberes está diretamente implicada, em nossa sociedade, com a afirmação e o fortalecimento de poderes; que esses poderes estão sustentados por algumas verdades que somente o saber pode lhes oferecer. Nessa relação de dependência, as operações que buscam fundar “verdades” sobre os professores estão ligadas sempre a intencionalidades de poder. Não há, assim, um saber sobre os docentes que não promova a construção de identidades docentes ajustadas com os fins objetivados por um alguém ou um grupo. Qual a necessidade de afirmar ou negar que o professor seja ou não um educador? Que identidades esse embate produz? Eis algumas perguntas que este artigo pretende propor.

3 A IDENTIDADE DOCENTE EM “PEDAGOGIA DO OPRIMIDO”

Nesta seção, pretendemos apresentar algumas enunciações e um quadro síntese daquele que seria um professor ideal ou um “bom professor”, segundo o pensamento de Paulo Freire, em especial a partir da obra Pedagogia do Oprimido. Estamos tomando tal obra como um “monumento”1 da educação crítica do Brasil. Procedemos da mesma maneira em relação ao livro que serve de base teórica ao movimento Escola Sem Partido, intitulado Professor não é educador, o qual analisamos na próxima seção, procurando compreender como ambos definem a identidade docente.

Logo no capítulo 1 de Pedagogia do Oprimido, Freire (1987) apresenta as justificativas para o tipo de educação e educador que nos apresenta como ideal a ser atingido em nossa sociedade. Procura caracterizar a luta entre opressores e oprimidos, bem como despertar nos leitores o desejo de superação dessa condição, principalmente por meio de uma educação nomeada como libertadora. Para tal, passa a apresentar, nos capítulos subsequentes, o que identificou como uma pedagogia do oprimido. Nas palavras do autor,

[...] aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (p. 20).

O caráter libertário do tipo de educação proposta por Freire (1987) é destacado ao longo de toda a obra e em vários trechos é enunciado como o grande objetivo dos educadores críticos. Desse desejo de libertação, decorre um protagonismo por parte dos oprimidos, afinal, como afirma o autor, “A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter, nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos” (p. 26).

Nesse sentido, a identidade docente pensada desde o referencial teórico freireano se fundamenta num descentramento da autoridade do professor, deslocando a tradicional relação de poder (decorrente de seu conhecimento) para propor relações mais dialógicas entre os que ensinam e os que são ensinados, além de admitir que os que ensinam também aprendem.

Seguindo nessa linha de raciocínio, Freire iniciou seu ataque ao que denominou como “concepção bancária” da educação, dedicando um capítulo inteiro de seu livro à caracterização desse tipo de educação (capítulo dois); ou seja, uma educação marcada pela “narração ou dissertação que implica num sujeito - o narrador - e em objetos pacientes, ouvintes - os educandos” (FREIRE, 1987, p. 37). A narração pressupõe, nessa concepção, memorização mecânica e ausência de reflexão por parte dos aprendentes, uma vez que, como “recipientes ou vasilhas”, sua função se resume a apenas receber os conteúdos e “quanto mais se deixem docilmente encher, tanto melhores educandos serão” (idem). Dentro disso, o mais importante: esse tipo de educação concorreria para a dominação e não para a libertação.

O pensar autêntico, na concepção freireana, pressupõe a problematização, a consciência da condição de oprimido. Dessa forma, o professor não deveria pensar a aula para os alunos, mas pensar uma aula com os alunos, pensar com eles os modos de intervenção na realidade opressora. A crítica, então, recai sobre o tipo de educação que doméstica, que pensa modos de ensinar para a aceitação do mundo e da ordem cultural e historicamente dada. Assim, “quanto mais adaptados, para a concepção ‘bancária’, tanto mais ‘educados’, porque adequados ao mundo” (FREIRE, 1987, p. 41, grifo nosso).

Por tudo isso, no que tange ao caráter doutrinário do tipo de educação nomeada como de dominação, o professor vai “mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão” (FREIRE, 1987, p. 43, grifo nosso). Percebam que no interior do pensamento freireano, o contrário da doutrinação não seria a libertação. Ao invés disso, um professor que pauta seu fazer pedagógico pela ausência da crítica política estaria, na verdade, concorrendo para a manutenção da ordem opressiva, acomodando os alunos à condição de oprimidos, por meio das narrativas do mundo que escolhe.

Indoutriná-los, expressão talvez inaugurada por Freire (1987), pressupõe a ausência da problematização, do diálogo, da produção do conhecimento; requer apenas a memorização dócil dos conteúdos por parte dos educandos; reforça a autoridade do professor; elimina o desejo de transformação da realidade dos alunos. Nas palavras do autor: “[...] enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica numa espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de desvelamento da realidade” (p. 45).

Acreditamos que esse seja um ponto central na oposição entre uma educação crítica e aquela proposta por movimentos conservadores como o Escola Sem Partido. Uma suposta neutralidade do professor, na concepção freireana, já indicaria sua parcialidade e seu comprometimento com a dominação no sistema de opressão. Inversamente, no interior do pensamento neoliberal (que orienta as propostas educacionais mais recentemente em pauta no Brasil, como essa adotada por Miguel Nagib e seus apoiadores), prevalece o enunciado da neutralidade e imparcialidade docente como garantia da qualidade do ensino - como se as escolhas de conteúdo e de método realizadas a todo tempo por um professor pudessem de fato ser realizadas isoladamente daquilo que ele acredita.

Finalmente, no capítulo três de Pedagogia do Oprimido, temos conhecimento daquilo que será nomeado como a base de uma prática docente libertadora, o diálogo. No centro da identidade docente ideal, conforme nos propõe Paulo Freire, está a dialogicidade, e já de início o autor nos faz um alerta: ninguém está livre da armadilha de quando se abandona essa característica genuína de uma educação progressista. Até mesmo os que se dizem revolucionários, caso se distanciem das massas e do diálogo com elas, podem incorrer num tipo de educação que não contempla as necessidades do povo, não é pensada com o povo. Sobre isso, ele afirma que:

Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação, “conto” da concepção “bancária”, caem muitas vezes lideranças revolucionárias, no seu empenho de obter a adesão do povo à ação revolucionária. Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do mundo, mas não necessariamente à do povo (FREIRE, 1987, p. 54).

Nesse sentido, o autor é muito claro acerca da função do professor quando afirma que “[...] nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” (Idem, p. 55). Pode-se novamente perceber que, do ponto de vista da identidade docente, na concepção freireana, não há espaço para a ingênua pretensão de neutralidade. Antes, admite-se a posição política do educador, porém, sem desprezar a visão de mundo do educando - “Daí também que o conteúdo programático para a ação, que é de ambos, não possa ser de exclusiva eleição daqueles, mas deles e do povo” (FREIRE, 1987, p. 56).

Admitida a impossibilidade da neutralidade, Freire ensina lições didáticas acerca da seleção e organização temática de conteúdo, as quais devem nortear a prática pedagógica libertadora. Partindo-se de temas geradores, há que se considerar o universo mais amplo no qual assuntos de interesse localizado se relacionam com a realidade da opressão. A justificativa para tal proposição encontramos na afirmação:

Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu conteúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade (FREIRE, 1987, p. 65).

O segundo ponto que desejamos destacar, na oposição entre a concepção freireana e aquela proposta por movimentos como o Escola Sem Partido para a identidade docente, é o do protagonismo dos educandos. Segundo propõe Freire, uma educação libertadora se ocuparia de convocar os educandos a assumirem a posição de “sujeitos de seu pensar”, portanto, admiti-los como participantes ativos na tarefa docente de escolha do conteúdo programático, e não apenas recipientes vazios prontos para se encherem das verdades do professor.

O ESP, como veremos na próxima seção deste artigo, acusa os leitores de Freire de fazerem justamente o contrário. Admite que os alunos são “plateia cativa”, sujeitos que não podem oferecer resistência à autoridade docente e, portanto, estariam em situação de vulnerabilidade diante de professores supostamente doutrinadores de esquerda. Por isso, talvez, o apelo à suposta neutralidade docente como forma de minimizar os efeitos desse tipo de ensino.

Por fim, no último capítulo de Pedagogia do oprimido, em forma de síntese, Freire caracteriza por oposição a educação nomeada como dialógica e a educação anti-dialógica. A fim de evidenciar ainda mais o argumento do autor, organizamos um quadro com tais características, também na intenção de relacioná-lo ao livro de Moreira (2012).

Quadro 1: Educação Dialógica e Anti-Dialógica 

Educação dialógica Educação Anti-dialógica
COLABORAÇÃO Sujeitos se encontram para transformar o mundo, rejeitando a opressão CONQUISTA O objetivo é conquistar o outro, despertando-lhe uma “falsa admiração” pelo mundo do opressor
UNIÃO Faz prevalecer a ação solidária entre os oprimidos DIVISÃO Divide para manter a opressão, pois, ilhando os homens, colocando-os uns contra os outros, não conseguem se unir em torno de um inimigo comum
ORGANIZAÇÃO A autoridade deve fazer ver que a tarefa de libertação é um ideal comum a todos os oprimidos, sem ser autoritário MANIPULAÇÃO Manipula o outro, de variadas formas, evitando que ele pense
SÍNTESE CULTURAL Não nega as diferenças; antes, se funda nelas INVASÃO CULTURAL Promove o desrespeito às potencialidades do outro

Fonte: elaborado pelos autores com base em Freire (1987)

Assim, em linhas gerais, procuramos nesta seção demonstrar como se organiza o pensamento freireano acerca da identidade docente. Destacamos pelo menos dois pontos de maior divergência entre a pedagogia crítica e aquela proposta pelo ESP. O primeiro diz respeito à questão da neutralidade do professor e o segundo concerne ao protagonismo dos alunos. A seguir, buscaremos apresentar as bases teóricas que sustentam o ESP na tentativa de fazer aparecer o antagonismo entre essas duas concepções e alertar para os ataques à concepção freireana, os quais vêm sendo realizados pelo movimento na última década no Brasil.

4 A IDENTIDADE DOCENTE EM “PROFESSOR NÃO É EDUCADOR” E NO DISCURSO DO MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO

Comecemos pelo início: o autor. Diferentemente de Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira que dispensa maiores apresentações, o professor aposentado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) não é uma grande referência quando se trata da temática educativa. Graduado e mestre em Filosofia pela Universidade de Salamanca, na Espanha, Armindo Moreira nasceu em Portugal e lecionou no seu país natal, em Angola e no Brasil. Sua obra inclui a publicação das obras: Equibasismo: nem Socialismo nem Capitalismo Privilegialista (1985), Ideias para um Partido Equibasista (1991) e O Equibasismo Cria Riqueza e Elimina Miséria (2018).

Em 2012, Moreira publicou a obra Professor não é educador, livro composto por uma coletânea de textos relativamente curtos, nos quais o autor aborda temas relativos ao currículo e ao papel do professor e da escola em nossa sociedade. Todavia, o leitor mais crítico poderia se questionar: “por que analisar uma obra de meras 104 páginas e, ainda, querer compará-la à clássica Pedagogia do Oprimido? Não seria injusto e, até mesmo, sem sentido empreender tal empreitada?”. Para responder a tais pontos, é preciso fazer as seguintes colocações.

Em primeiro lugar, a escolha de tal obra acontece principalmente porque ela, de certa forma, representa o fundamento teórico para algumas proposições do movimento Escola Sem Partido. Em seu site, a organização aponta apenas três livros para compor a sua “Biblioteca Politicamente Incorreta”. Dentre esses, apenas Armindo Moreira dedica-se a discutir a função do professor e sua identidade docente, tema que nos interessa neste artigo. Então, mesmo que a literatura educacional especializada ignore os escritos de Moreira, é preciso reconhecer que um forte movimento social envolvido com a educação brasileira, o ESP, atribui a esse texto poderes de desconstruir aquilo que eles acreditam ser um problema do sistema de ensino brasileiro.

Comparar essa obra com Pedagogia do Oprimido, portanto, se justifica na medida em que passamos a entender a força com que o discurso conservador/anti-freireano investe sobre as identidades docentes de hoje. Em resumo: se no contexto dos especialistas essa obra é desprezível, na prática política a qual os professores estão submetidos via Movimento Escola Sem Partido, ela acaba assumindo contornos de verdade para alguns grupos, especialmente aqueles que não são originários (de formação ou profissão) do campo educativo. Por outro lado, temos ainda que reconhecer que o próprio título - Professor não é educador - já é um ataque velado ao modelo crítico de ensino, no qual o professor invariavelmente se depara com a necessidade de educar, seja para a cidadania, o respeito à diversidade, ou mesmo para o combate das injustiças, dentre outros.

Mas, afinal de contas, qual a identidade docente fabricada pela obra de Armindo Moreira? Para responder a essa pergunta, devemos antes explicar uma distinção feita pelo autor: para ele, instruir é diferente de educar. “Educar é promover, na pessoa, sentimentos e hábitos que lhe permitam adaptar-se e ser feliz no meio em que há de viver. Instruir é proporcionar conhecimentos e habilidades que possam permitir à pessoa ganhar seu pão e seu conforto com facilidade” (MOREIRA, 2012, p. 09, grifo nosso). Moreira enfatiza, portanto, que educar e instruir são tarefas diferentes e passíveis de serem separadas. Se Freire ressalta o dever de intervenção do professor para a luta contra a opressão, Moreira enfatiza que a educação deve fazer o indivíduo “adaptar-se” e “ser feliz”. Aqui, encontramos a mais importante divergência entre aquilo que se nomeia como função docente no interior dos dois paradigmas educacionais que temos analisado aqui. Se educar é fazer com que o sujeito se adapte, isso não se confunde em nenhuma medida com a visão freireana, que defende uma educação para transformar a realidade do oprimido. Segundo Moreira, a confusão entre instrução e educação - quando se apregoa que a escola deve educar, por exemplo - serve apenas às ditaduras fascistas, afinal, a educação não deve ser uma função do Estado.

Para justificar sua premissa de que “professor não deve ser educador”, Moreira enumera alguns motivos considerados relevantes por ele:

1) Partindo da ideia de que uma educação de boa qualidade deveria adaptar o aluno ao seu meio, o autor considera que o professor não poderia educar o estudante pelo simples fato de não saber ou conseguir adivinhar em qual meio o aluno irá viver. Não há maiores explicações para essa ignorância do professor, simplesmente se presume que ele não conhece o contexto onde vive e por esse motivo não pode saber os hábitos e sentimentos necessários ao estudante para seguir sua vida.

2) O segundo motivo é que os professores não poderiam “despir-se de si mesmos”, abandonar seus valores e posturas para poder ensinar uma educação “padrão”. Isso porque o autor acredita que as influências de professores tão diferentes (em termos de educação) só fariam com que as crianças ficassem confusas. Nesse ponto, há uma série de exemplos para tentar convencer o leitor para que ele perceba a diversidade como algo negativo, como caos. É interessante como essa ideia contrasta com posturas pluralistas, ao mesmo tempo em que tenta mostrar a ideia de padronizar a “educação” a ser ensinada como espécie de violência contra o professorado: “Não é sensato esperar ou exigir que todos esses professores escondam ou frustrem suas personalidades e eduquem, todos eles, dentro do mesmo padrão” (MOREIRA, 2012, p. 10).

3) O terceiro motivo apresentado como empecilho para que o professor seja também um educador reside na sua posição enquanto profissional. Segundo o teórico, os professores ensinam em troca de um salário, o que não seria o bastante em troca da educação. Moreira afirma que apenas quem ama pode educar e, portanto, essa tarefa é prioritária da família. Apenas a família, por ser a instituição responsável por dar esse suporte afetivo, estaria em condições de ofertar a educação devidamente alinhada com o amor emprestado àquela criança.

4) Muito interessante, também, é o quarto elemento - anunciado como uma barreira para os professores-educadores. A lógica é a seguinte: se a família deve educar, deveria poder escolher entre os professores disponíveis os que melhor se adequem aos seus objetivos e expectativas para seus filhos. Entretanto, a forma como os sistemas de ensino estão organizados resulta na impossibilidade de matricular os futuros estudantes em escolas que atendam aos anseios de uma educação específica. Em geral, as instituições de ensino apresentariam diferentes tipos de educadores, como já mencionado anteriormente.

5) O quinto aspecto confunde-se com o terceiro. Segundo Moreira, há uma “falsa tese” de que os professores devem ser educadores. Ele reforça, então, que além de não possuir o amor necessário para educar, os professores que fazem isso estão interferindo numa função que é dos pais. Essa intromissão teria resultado, segundo o autor, o incentivo à irresponsabilidade dos pais com os filhos, dado que a escola estaria se arvorando no papel de educadora. Os professores não estariam, também, devidamente capacitados para exercer tal função. Se realmente fosse existir uma educação escolar, o autor defende que houvesse um currículo acerca disso, em que o conteúdo programático fosse devidamente explicitado. É notável que, assim como o Escola Sem Partido, Moreira parece não dar a devida importância aos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) das escolas. Como se sabe, esse documento orienta as finalidades escolares, e nele poderiam estar perfeitamente explícitas as orientações sobre a educação que se quer dar aos estudantes daquela instituição.

Paulo Freire chega a ser citado no livro pelo menos quatro vezes, quando Moreira ensaia um diálogo fictício entre dois professores. Na conversa, um dos professores cita Freire sobre o fato de o professor “não educar ninguém”. Há uma reviravolta para mostrar que a afirmativa freireana comprovaria a tese de Moreira. Contudo, o mais importante é perceber que, apesar de alguns preconceitos a comunistas e homossexuais, bem como certa proximidade com a retórica cristã, o livro de Armindo Moreira não é necessariamente uma obra contra a esquerda ou que se dedique a destruir a imagem de Paulo Freire. Apesar do título polêmico e combativo, constitui-se muito mais num desabafo de um professor que vivenciou a sala de aula e, por suas experiências próprias, deduziu as conclusões já descritas.

Mas, afinal de contas, qual então seria o professor produzido pelo texto da obra “Professor não é educador”? Segundo Moreira, esse professor representaria muito bem os docentes adeptos da teoria do currículo nomeada “tradicional”. Isso porque esse professor não estaria inclinado a discutir questões tidas como morais ou políticas em sala de aula. Longe de educar, ele deveria apenas instruir, fornecendo as informações necessárias para que o aluno possa buscar seu próprio caminho. Note-se que essa é uma postura tipicamente liberal de não-intervenção muito bem alinhada aos ditos do movimento Escola Sem Partido, pois ambos concordam que a escola deve “[...] unicamente preparar o cidadão para entrar competente no mercado de trabalho e viver com saúde” (MOREIRA, 2012, p. 83). Nada de modificar seu contexto, lutar contra as opressões ou ainda exercer a cidadania com consciência e crítica: bastaria apenas ser um bom funcionário e viver com mínima dignidade. Em consonância a isso, o melhor ensino seria aquele que ofertasse esse conjunto de conhecimentos e habilidades no menor tempo possível.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise das duas obras apresentadas, podemos destacar alguns pontos interessantes. Em Professor não é educador, não há uma caracterização bem definida de identidades docentes ideais e aquelas a serem evitadas. Supomos que isso ocorra em função das dimensões da obra. Pedagogia do Oprimido dedica muito mais páginas para descrever o caminho a ser negado, marcado por uma educação bancária, e aquele a ser seguido, que nos encaminharia para uma pedagogia libertadora. Moreira, por outro lado, nada mais faz que uma série de notas bastante sumárias sobre como ele enxergava a questão do professor e se ele deveria ou não “educar” seus alunos. São visões antagônicas: para Freire, o professor deve educar porque não há como evitar isso, seria um erro acreditar em uma suposta neutralidade. Quando o professor apenas “instrui”, ele está reforçando as diferenças existentes e deixando de apontar as injustiças do mundo. Ficar inerte, para Freire, é agir em favor dos “opressores”. Moreira vê as coisas por outro ângulo: ele acredita que a impossibilidade de se ter educadores padronizados significaria um ensino nocivo aos estudantes e, por conta disso, os docentes deveriam apenas instruir.

Colocando as referências nos seus devidos lugares, perceberemos que as teorizações críticas se apoiam em Paulo Freire para justificar suas práticas educativas politizadas sob a bandeira da promoção de cidadãos críticos e reflexivos: eis o professor-educador. Armindo Moreira, por sua vez, apesar de constar como referência do Escola Sem Partido, não assume um compromisso tão engajado na (suposta necessidade de) despolitização da escola. Moreira não ataca os professores por educarem, ele quer apenas convencer seus colegas de que, por sua experiência de vida e trabalho, pôde perceber o quanto a educação em sala de aula teria trazido problemas para o ensino escolar. Não se trata de referendar o combate à doutrinação ideológica ou de apresentar Paulo Freire como um falsário (como faz o Escola Sem Partido), mas de relatar sua própria experiência docente no sentido de mostrar como o projeto de educar está destinado ao fracasso.

A partir dos estudos de Michel Foucault, entretanto, podemos dizer que a vontade de verdade seria uma característica comum às duas teorizações apresentadas. Como afirmou Garcia (2002):

É no campo de uma “política da verdade” que docentes e intelectuais educacionais críticos lutam. A verdade, entendida como o conjunto de regras e critérios a que uma série de enunciados tem que obedecer para estar no regime do verdadeiro, é um campo de luta e combate. Isso porque a verdade está posta em funcionamento e está em jogo para ser apropriada, e as regras e os critérios necessários ao verdadeiro podem ser revistos, questionados, modificados (p. 76).

No discurso do Escola Sem Partido, como mostramos em dissertação de mestrado defendida recentemente (KATZ, 2017), há também essa busca pelo verdadeiro - uma tentativa ininterrupta de se apresentar como os guardiões de valores perdidos no passado. Sabemos que “[...] os discursos pedagógicos críticos instituem uma ética de autonegação e renúncia para docentes e intelectuais educacionais críticos em nome de sua tarefa humanizadora, esclarecedora e emancipadora (GARCIA, 2002, p. 76)”. Ao mesmo tempo, organizações como o ESP advogam pela retomada de ideais conservadores esquecidos. Seja pela via progressista (com os críticos) ou, ainda, assumindo valores conservadores (como o Escola Sem Partido ou os movimentos religiosos contra a “ideologia de gênero”), o que se vê é a estratégia de se apresentar como resistência ao status quo, apelando para uma retórica salvacionista do tipo: “a educação bancária é o problema, apenas com professores críticos e engajados poderemos transformar o país” ou “a doutrinação ideológica de esquerda é o mal a ser combatido, portanto, os professores devem ser objetivos e respeitar a moral conservadora/religiosa dos pais dos estudantes”. De um lado ou de outro, os docentes aparecem como centro do processo, dado que são vistos como o principal agente de intervenção na vida desses jovens. No mercado do convencimento e da cooptação política de alunos (o que não é um fato, mas, sobretudo um argumento das duas teorizações), a mercadoria mais valiosa é o professor. Daí a necessidade de moldar, também, as identidades docentes, além, é claro, de disputar o currículo, pois são eles os responsáveis pelo trabalho direto com os estudantes.

Mas, afinal de contas, segundo o material analisado, o professor seria educador ou não? Para Paulo Freire, sim, o professor não pode deixar de educar, esse seria seu compromisso moral: incentivar o pensamento crítico e promover a emancipação dos sujeitos para que esses lutem contra as desigualdades que os oprimem. Para Armindo Moreira, não, pois não se poderia eleger uma educação padrão ou equivalente a todos os alunos, educar seria tarefa da família e, principalmente, porque o professor deve apenas instruir, transmitir conceitos e garantir a aprendizagem destes.

São concepções sobre a escola e sobre a educação escolar muito diferentes: para Freire, não há sentido em uma escola (ou um ensino não formal) que não gere transformação social. Para Moreira e para o Escola Sem Partido, a escola não tem esse papel. Ela deve, como concordariam os (neo)liberais e as velhas teorias do currículo tradicionais (SILVA, 2015), ajustar, adaptar, dar instrumentos para uma vida melhor dentro da sociedade que aí está. Freire quer mudar a sociedade injusta pela educação, Moreira que mudar os estudantes para que busquem seus objetivos dentro do mundo tal como ele existe.

Recentemente, comemoramos o cinquentenário da publicação de Pedagogia do Oprimido e, levando em conta os resultados da análise comparativa entre os enunciados que sustentam a obra de Freire e seu inegável legado para a educação brasileira, juntamente com as bases teóricas do ESP, devemos nos perguntar: por quais razões, afinal, por mais estranho que isso nos pareça, aos que combatem Freire, parece possível ser professor sem educar? Esse tipo de pergunta faz-se pertinente na medida em que objetiva desnaturalizar ou suspender as “verdades” que têm sido proliferadas nas mídias da contemporaneidade, por ação de um movimento crescente no campo político que tem se colocado em oposição ao caráter transformador da educação. Surpreendentemente, com apoio de diversos grupos que se aglutinam em torno de correntes neo-conservadoras, tais “verdades” parecem prosperar a cada dia. Sobre o enunciado “professor não é educador”, precisamos nos perguntar: que urgência histórica essa invenção veio atender? Todavia, essa é uma questão para um próximo estudo. Por ora, nos contentamos em descrever os argumentos que a sustentam, especialmente porque “[...] só descrevendo, e em detalhe, podemos compreender o que somos, o que fizeram de nós [...] enfim, só descrevendo, e em detalhe, podemos encontrar estratégias para nos transformarmos em algo diferente do que nos fizeram ser” (PARAÍSO, 2012, p. 38).

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1 A discussão em torno do uso do termo monumento para se referir a documentos históricos, como os livros selecionados para análise neste artigo, é apresentada pelo historiador francês Jacques Le Goff (1990) e foi considerada por Foucault em suas pesquisas. Faz parte de um conjunto de novas posturas adotadas pelos historiadores ao longo do século XX a partir das reflexões propostas pelos membros da Escola de Annales, na França. Significou a passagem de uma concepção mais tradicional acerca dos monumentos e outras fontes documentais, entendidas como vestígios do passado por meio dos quais se pode “reconstruir” a verdade histórica, para outra, que compreende o documento como monumento construído a partir de relações de poder contingentes e devemos “desconstruir” - pelo exercício inverso da análise até aquele momento adotada pelos pesquisadores - para compreender as condições históricas que condicionaram seu aparecimento.

Recebido: 15 de Outubro de 2018; Aceito: 07 de Fevereiro de 2019

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