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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.1 São Paulo ene./marzo 2019  Epub 05-Ago-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i1p282-303 

Artigos

CINEMA NA ESCOLA: UMA MÁQUINA DE GUERRA CONTRA A VIOLÊNCIA PERFORMÁTICA NARCISISTA?

CINEMA AT SCHOOL: A WAR MACHINE AGAINST NARCISSIST PERFORMANCE VIOLENCE?

Mirele CORRÊA1 

Alexandrina MONTEIRO2 

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (Bolsista Capes), Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau - FURB (2017) e graduada em Pedagogia pela mesma universidade (2012). Integrante e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Políticas de Educação na Contemporaneidade (FURB) e PHALA-Grupo de Pesquisa em Educação, Linguagem e Praticas Culturais (UNICAMP). E-mail: mirele_correa@yahoo.com.br

2 Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1989), mestrado em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992), doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1998), pós-doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas, pelo grupo de pesquisa Phala e Transversal - ambos com enfoque em discussões que atravessam a educação, matemática, subjetividade, na perspectiva da filosofia da diferença. E-mail: alemath@unicamp.br


RESUMO

No contexto atual das políticas de currículo, se vê proliferar nas escolas um novo gerencialismo que sai do setor privado e invade o setor público com vistas a qualificar o processo de gerência e melhorar os resultados. Esse novo gerencialismo, conforme Ball (2006) vai produzindo uma cultura da performatividade, constituindo corpos cada vez mais preocupados com os resultados, o desempenho e a qualificação de si. Mas, para além de um corpo-performático e polivalente, a cultura da performatividade produz uma violência narcisista a nível das pequenas diferenças correlatas à produção e a exclusão do outro no contexto escolar. O que se pretende com esse texto é pensarmos a contingência das violências produzidas pela escola contemporânea através da cultura da performatividade, e no contrafluxo, questionar: pode o cinema se colocar como máquina de guerra na produção de linhas de fuga aos desejos imanentemente agressivos no sentido de potencializar outra ética para a existência que exceda a da lógica neoliberal performática? Chamamos para a discussão e composição desse pensamento alguns teóricos da perspectiva pós-estruturalistas: Foucault (1999, 2008, 2010), Deleuze (1988, 2013), Ball (2003, 2010), Skliar (2016), e outros que se debruçam nos estudos focados em cinema: Miranda (2015, 2016), Migliorin (2015), Oliveira Jr, (2016), Gonçalves (2014). Acreditamos que por meio de algumas experiências desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos Audiovisuais-OLHO, novas pistas podem ser seguidas de forma a construir através do cinema outros corpos, outras éticas, outros modos e estilos de ser e estar na vida.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Cultura da Performatividade; Escola

ABSTRACT

In the current context of curriculum policies, there is a proliferation of new managerialism in schools which leaves the private sector and invades the public sector in order to qualify the management process and improve results. This new managerialism, according to Ball (2006), is producing a culture of performativity, constituting bodies that are increasingly concerned with the results, performance and qualification of oneself. But beyond a performative and multipurpose body, the culture of performativity produces narcissistic violence at the level of small differences related to the production and exclusion of the other in the school context. What we intend with this text is to think about the contingency of the violence produced by the contemporary school through the culture of performativity, and on the counterflow, to question: can the cinema put itself as a war machine in the production of lines of escape to the immanently aggressive desires in the sense of potentiating another ethic for existence that exceeds that of neoliberal performative logic? We call the discussion and composition of this thinking some post-structuralist theorists: Foucault (1999, 2008, 2010), Deleuze (1988, 2013), Ball (2003, 2010), Skliar (2016), and others who studies focused on cinema: Miranda (2015, 2016), Migliorin (2015), Oliveira Jr, (2016), Gonçalves (2014). We believe that through some experiments developed by the Laboratory of Audiovisual Studies-EYE, new clues can be followed in order to build other bodies through the cinema, other ethics, other ways and styles of being and being in life.

KEYWORDS: Cinema; Culture of Performativity; School

1 INTRODUÇÃO

Por meio da cultura performática, conceito este defendido pelo sociólogo inglês Stephan Ball (2003), a escola contemporânea vem produzindo um corpo cada vez mais preocupado com o desempenho, a qualificação, a competitividade e o julgamento. Corpos ocupados, individualizados, padronizados, participativos, polícias de si e dos outros, corpos que regulam a si e aos outros dentro de estratégias avaliativas e classificatórias, corpos performáticos, corpos. Corpos estes, que além de serem afetados pela lógica que impera sobre o mercado neoliberal, também são corpos que produzem e são afetados por uma violência específica: a violência performática narcisista, que não aceita quem não é tão “bom quanto eu”, que se afasta de quem não é tão “qualificado” quanto eu, ou isola quem não se “empenha tanto quanto eu”. Uma violência que distancia ou exclui as diferenças na lógica performática do desempenho. Ela é narcísica porque enaltece o EU e produz uma patologia de si, ao mesmo tempo que é violenta, porque exclui o OUTRO. Uma exclusão tênue, uma vez que lida com as pequenas diferenças, porém, sagaz, porque age na disseminação dos coletivos, na proliferação dos individualismos, e também, porque opera na lógica da biopolítica, ao engendrar populações como estratégia administrativa de governo na regulação do comportamento de cada indivíduo (Foucault, 2008b).

O que queremos propor para este trabalho é deslocar o pensamento, traçando uma possibilidade de fuga, uma nova/outra linha de existência para estes corpos a todo o momento capturados pela máquina aparelho de Estado. Máquina esta que vai solapando as singularidades e esterilizando a potência criativa e criadora de cada estudante que habita o território escolar, transformando cada um em componente análogo que faz funcionar um sistema de mercado. Deslocar-nos a pensar o cinema como essa possibilidade de fuga, operando um fluxo oscilante, através da questão: pode o cinema se colocar como máquina de guerra1 na produção de linhas de fuga aos desejos imanentemente agressivos no sentido de potencializar outra ética para a existência que exceda a da lógica performática neoliberal?

O que nos mobiliza o pensamento parte das produções cinematográficas desenvolvidas pelo “Programa Cinema & Educação: A experiência do cinema na escola de educação básica Municipal", criado pela a Secretaria de Educação do Município de Campinas/SP, num trabalho conjunto com a Faculdade de Educação da UNICAMP, e das experimentações desenvolvidas pelos integrantes/pesquisadores do Grupo de Pesquisa OLHO - Laboratório de estudos audiovisuais, imersos na escola e no desafio de fazer o cinema produzir outras coisas além daquelas previstas pelos programas legais, parâmetros e diretrizes curriculares.

Queremos acreditar, mediante ao que se tem experimentado, que o cinema possa ser uma máquina de guerra potente contra o aparelho de Estado, sobretudo contra ao que ele vem produzindo por meio da instituição escolar. Uma máquina de guerra potente contra a cultura performática e contra a violência narcisista. Uma máquina de guerra potente na criação de outras estéticas da existência e na invenção com a diferença. Assim, nos propomos a discutir nos itens que seguem, como a escola vai se transformando num agente produtor de violências, especialmente desta violência performática narcisista da qual a defendemos, para em seguida, discutir o cinema como uma possibilidade de máquina de guerra, de enfrentamento e resistências.

2 DA ESCOLA PRODUTORA DE VIOLÊNCIAS

“A turma que você fará a pesquisa têm nove alunos”, disse-me o diretor da instituição no primeiro dia em que piso no território escolar. Um sentimento de pavor e ansiedade toma-me o corpo, junto a vozes que ecoam: “você não vai conseguir pesquisar a realidade da escola numa turma tão singular”. Entro em sala, observo o espaço, os rostos, as posturas. Oito meninas e um menino. Sentados enfileirados num espaço menor do que comumente se espera para uma sala de aula, entrementes com a mesma estética desvanecida de todas elas. Logo nos primeiros instantes, os comportamentos se revelam: atentos, participativos, interessados, educados, prestativos, estudiosos. Roubo as palavras de um docente: “o sonho de qualquer professor”. O tempo de pesquisa e imersão no território vai se prolongando, as vivências se intensificam, há algo naquele “sonho” que me incomoda. A perfeição me desassossega, parece esconder um detalhe que força minha atenção, pouso meu olhar a situações que me chegam, me tocam, me estranham: três estudantes não são chamados a decidir questões da camiseta da turma; três estudantes não fazem parte do grupo do WhatsApp; três estudantes almoçam todos os dias numa outra mesa do refeitório; dois estudantes não querem fazer a festa da formatura por não terem “intimidade” com os demais; três estudantes formam sempre os mesmos grupos de trabalho; uma estudante diz ficar afastada por ser mais introspectiva e não gostar de se envolver em discussões; dois estudantes permanecem afastados durante as filmagens da oficina; um estudante quase não fala, não opina, não se expressa durante as aulas; todos os relatos dos professores evidenciam a divisão de grupos no perfil da turma; uma estudante troca de turma por se sentir excluída... Há algo na perfeição que grita...

A cena acima foi montada a partir dos excertos extraídos do diário de campo construído durante o período de pesquisa e construção de uma dissertação . A dissertação que objetivou problematizar as potencialidades do corpo em espaço de escolarização sublinhou o corpo-performático como sendo o mais potente ou potencializado nesse espaço (CORRÊA, 2017). Um corpo que conforme Ball (2003) é constituído por meio de uma cultura na medida em que é uma tecnologia e um modo de regulação dos corpos, empregando formas de julgamento, comparações e exposições, tomados respectivamente como meio de controle, de desgaste e de mudança.

A partir do século XX, vê-se uma crescente preocupação e ampliação das políticas de currículo por parte dos organismos internacionais sobre os Estados. Essa intervenção tem agido no sentido de intensificar a vinculação da escolarização ao emprego e à produtividade, preocupando-se com a redução de custos da educação e controlando os conteúdos do currículo e da avaliação. As determinações do Estado - que são entendidas como parte de um ciclo de produção de políticas -, junto às comunidades epistêmicas2 são capazes de produzir e determinar discursos que são a base da produção de sentidos e significados para uma determinada política que virá refletir na constituição de uma determinada cultura dentro do currículo escolar, carregado de instrumentos de homogeneização e controle.

O que se tem evidenciado na atual sociedade neoliberal é uma cultura que faz crescer um discurso de poder articulado a accountability3 e a competição. Forjando identidades voltadas a uma lógica do desempenho, conferindo ao conhecimento um valor cada vez mais performático a ser visível e medido. Por meio das políticas de currículo, essa lógica mercadológica gerencialista sai do setor privado e invade o setor público, entrando na escola com vistas a desmantelar os regimes organizacionais profissionais-burocráticos e sua substituição por regimes empresariais-mercadológicos (BALL, 2006), não podendo este ser mais visto com qualidades especiais que o distingam de um negócio, de um mercado ou de um modelo comercial. O setor público, desde o século passado, passa a ser reestruturado e reavaliado por discursos de excelência, efetividade e qualidade, transformando valores e culturas, assim como, formando novas subjetividades.

O currículo escolar4 impregnado por essa cultura performática mantêm-se preocupado somente com aquilo de que exige o mercado: competição, adequação, eficiência produção (BALL, 2010). E nesse cenário, vemos se difundir cada vez mais os exames de larga escala que medem a qualificação do estudante. Exames que vão construindo e classificando os homens de ouro, prata, ferro e bronze, conforme Platão (2000). Ao produzir identidades de ouro, o currículo reforça uma ideologia meritocrática articulada ao sistema neoliberal. Ideologia esta que investe na produção de um corpo polivalente, produtivo, competitivo, eficaz, individualista, porém interativo, participativo. Fazendo com que cada indivíduo pense a si próprio como uma empresa, que se vigia, se autoempreende, autoqualifica, autorregula, buscando o melhor desempenho, a melhor performance, o melhor corpo, um corpo-performático. Pois, para Ball (2010, p. 38),

As performances - de sujeitos individuais ou organizações - servem como medidas de produtividade ou resultados, como formas de apresentação da qualidade ou momentos de promoção ou inspeção. Elas significam, encapsulando ou representando um valor, a qualidade ou a valia de um indivíduo ou de uma organização dentro de um campo de julgamento.

A melhor performance garante as melhores vagas no mercado de trabalho. Entrementes, parece-nos fugir algo de relevância singular dessa cultura performática, como aquela que para além de tudo isso, também é produtora de certas violências que nos parecem esquecidas ou mesmo solapadas pelo discurso hegemônico. Esta é a discussão que queremos propor motivados pela cena trazida no início do texto, vivenciada no decorrer da pesquisa de mestrado e articulada à obra de Freud, O mal-estar da civilização (2011).

Na obra, o autor retoma um conceito nomeado por ele de “narcisismo das pequenas diferenças”. Freud dirá que a agressividade é algo inerente ao ser humano, mas que a cultura e o processo civilizatório vão dando conta de escamoteá-la dentro de uma comunidade ou um agrupamento cultural menor. Todavia, o instinto sempre escapa por meio da hostilização dos que não pertencem a esta comunidade. “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restam outras para que se exteriorize a agressividade” (FREUD, 2011, p. 60). Uma agressividade que se configura no menosprezo e na hostilização das pequenas diferenças culturais.

A exemplo de Deleuze, sentimo-nos a vontade para deslocar este conceito freudiano, arrastando-o a outro território e dando a ele outra funcionalidade. “Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 15), é mais um exercício para se pensar diferente e construir outras coisas. Pensar o “narcisismo das pequenas diferenças”, enquanto uma violência produzida pela cultura da performatividade. Uma violência que não é física e nem diz respeito a uma questão de classe social, de gênero, ou outras, mas uma violência que está no nível da exclusão na inclusão, no que concerne a inclusão, enquanto uma política curricular.

Podemos pensar então numa violência performática narcisista, que não aceita quem não é tão “bom quanto eu”, que se afasta de quem não é tão “qualificado” quanto eu, ou isola quem não se “empenha tanto quanto eu”. Uma violência que distancia ou exclui as diferenças na lógica performática do desempenho. Ela é narcísica porque enaltece o EU5, é violenta, porque exclui o OUTRO6. Uma exclusão tênue, porque lida com as pequenas diferenças, porém, sagaz, porque age na disseminação dos coletivos, na proliferação dos individualismos, mas também, porque opera na lógica da biopolítica, ao engendrar populações.

Segundo Foucault (2008b), a população se instaura como o novo sujeito político moderno a partir do século XVIII. Já não interessa mais os indivíduos ou grupos, séries de indivíduos isoladamente, e sim a população enquanto objetivo, instrumento ou meio para se obter algo no nível da população. O que determina a administração da melhor maneira possível da população são os comportamentos dos indivíduos que se inserem como elementos dessa nova estratégia de governo. Esta população é evidentemente feita de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos outros e que depende de toda uma série de variáveis para se identificar o universal e no interior dele ser capaz de agir e modificá-lo.

Temos a escola enquanto uma população e nela o ensino médio, dentro dele o Inovador7, no Inovador temos a turma do 3º ano 1 como uma população e os grupos que se formam dentro dela se configuram numa outra população identitária. Populações dos performáticos e dos não-performáticos, dos qualificados e dos não qualificados, dos incluídos e dos excluídos dentro da lógica do desempenho que impera nessa sociedade contemporânea, identificando todos dentro de um agrupamento e permitindo que se produza um saber possível sobre cada um deles por meio dos binarismos. “É a partir da constituição da população como correlato das técnicas de poder que pudemos ver abrir-se toda uma série de domínios de objetos para saberes possíveis” (FOUCAULT, 2008a, p. 103). Só é possível um controle quando se sabe a quem controlar.

Neste esboço da noção de população enquanto uma economia de poder, o povo se coloca como uma divisória, que de maneira geral, resiste à regulação da população. O povo é aquele que tenta escapar desse dispositivo pelo qual a população existe, ele tenta se colocar de fora, recusando-se a ser população e desajustando o sistema (FOUCAULT, 2008b). Mas o povo não é o que resta da população quando todos estão capturados. O corpo que se faz povo opera nos fluxos mutantes, clandestinos, imperceptíveis. Ele está no entre produzindo oscilações, entrando e saindo da população para se fazer arma de guerra na militância identitária, mas tenciona a identidade quando essa enclausura, fechando-se as outras possibilidades de devir.

À medida que se constituem populações identitárias, nelas se produzem culturas e todas as ações culturais, como afirma Skliar (2016, p. 66), “estão dirigidas a uma violenta construção diferencial do outro”. A perfeição cristalizada no corpo-performático carrega um discurso moral pacifista que absorve artificialmente uma palavra muito disseminada pela instituição escolar eximindo toda distinção e aceitação das diferenças do outro: tolerância. A tolerância opera na constituição e manutenção do Outro. Esta palavra “trazida à tona pela vigente gramática multicultural, tem ressoado com particular rapidez e eficácia [...] para sublinhar uma posição claramente antirracial” (SKLIAR, 2016, p. 69). Entrementes, como assegura Nietzsche (2001), nem todas as palavras convém a todas as bocas.

Presenciou-se na pesquisa que temos citado ao longo do texto muitas falas dos sujeitos de pesquisa em defesa dos direitos humanos, contra o preconceito, feministas, de embates às desigualdades e partidárias de minorias discriminadas. Práticas discursivas pacifistas, de tolerância e de respeito às diferenças, mas que escondem uma virtualidade agressiva que se exterioriza numa produção do outro. Em pesquisa desenvolvida por Skliar (2016), o autor afirma ser a modernidade a época da fabricação do outro. “A alteridade começa a estar ausente, começa a faltar, e resulta ser imperiosamente necessária a produção construtiva do outro como diferença. Mas trata-se de uma construção artificial, que se fundamenta numa erosão das singularidades das culturas” (SKLIAR, 2016, p. 66).

Esta construção do outro pode se apresentar nas pequenas diferenças que o eximem de uma aproximação. Os sujeitos da pesquisa discursavam aquilo que o corpo não dava conta de corresponder. Nas práticas cotidianas, eles se excluíam, constituíam guetos, grupos, dividiam-se, afastavam-se, formavam populações. As palavras não cabiam num corpo que as expeliam.

O que queremos sublinhar neste cenário é a possibilidade de uma violência a ser produzida a partir da construção diferencial de um outro não-performático. A produção de uma violência narcisista das pequenas diferenças que vai sendo maximizada pela cultura performática no contexto escolarizante e que, conforme assegura Skliar (2016, p. 66), este processo pode “levar a produção de uma cultura racista ou, em outras palavras, à produção de: uma cultura autista com aparência de falso altruísmo”.

A tolerância, assim como a liberdade e a democracia, configura-se num dispositivo de segurança8 na atual sociedade gerida por uma biopolítica, descrita por Foucault (2008b). Ela não está ali para normalizar, disciplinar posturas ou resolver um problema por meio de um sistema de legalidade. A tolerância reforça a violência e inferioriza a diferença, num jogo de superiorizar um e diminuir o outro.

A tolerância não inclui a aceitação do valor do outro: pelo contrário, é novamente, talvez de maneira mais sutil e subterrânea, a forma de reafirmar a inferioridade do outro e serve de antessala à intenção de acabar com a sua especificidade - junto com o convite ao outro de cooperar na consumação do inevitável. A tão falada humanidade dos sistemas tolerantes não vai além de concernir o adiamento do conflito final (BAUMAN, 1996, 82).

A tolerância nega a pluralidade e a multiplicidade inominável do outro, “ao fazer do outro um outro parecido, mas um outro parecido e nunca idêntico a nós mesmos” (SKLIAR, 2016, p. 74).

Ademais dessa violência que destacamos para com o outro, é de imprescindível importância sublinharmos, também, que a cultura performática produz uma violência ao próprio corpo-indivíduo performático. Uma violência, esta sim, psicologizante, impedindo a proliferação de um pensamento livre das amarras representativas. No momento que a performatividade cobra do indivíduo alto desempenho e resultados de excelência e eficácia, ela maximiza a insegurança e a rigidez do pensamento frente as exigências da sociedade, gerando diversas patologias que fazem o mercado farmacológico pulular a venda de medicalizações. Aqui podemos pensar a cultura da performatividade como agenciadora de uma “patologia de si” que vem de encontro ao “cuidado de si” proposto por Foucault em seus últimos cursos ministrados no Collège de France, A Hermenêutica do Sujeito (1982). Uma ética que quanto mais enraizada na sociedade neoliberal e preocupada com as exigências da mesma, mais doente se constitui frente a si e mais violenta se produz frente ao outro.

Diante dessa perspectiva, em que a agressividade é imanente ao humano e em que a escola produz e dissemina uma cultura de violência performática narcisista, ao mesmo tempo em que busca escamoteá-la por meio de um discurso artificial de igualdade e tolerância, o que nos resta fazer? Movidos pela provocação nietzschiana: que estão (os outros) e estamos (nós) fazendo de nós mesmos? E pela advertência de Deleuze (2013, p. 224) na qual já “não nos cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”, é que buscamos traçar, na parte a seguir, algumas possibilidades de fuga àquilo que nos constitui enquanto sujeitos e que captura nosso desejo de ser outro. Linhas erráticas que se arriscam na construção de novos mundos e espaços-outros de “dessubjetivação”, para isto apostamos no cinema como essa potência imanente de desconfigurar a ordem, bagunçar as estruturas. Um cinema como máquina de guerra capaz de criar um povo contra a população.

3 DO CINEMA COMO MÁQUINA DE GUERRA

(I) Imagens que conversam com o espaço, produzem texturas, cambiam e combinam luz e sombra. Imagens produzidas por educadores em oficinas inventivas que fazem dançar, movimentar seus corpos no espaço, explorar cada canto, cada detalhe e produzir imagens em confabulação com os ambientes claros e diversos do espaço escolar, treinando o olho para ver outras coisas, construindo um novo olhar para sentir-se outro.

(II) Imagens produzidas pelos próprios estudantes que depositam nelas suas dúvidas, questionamentos e suspeitas. Imagem-problema... que movimenta o pensamento e o corpo na produção de algo que os inquietam e que faz desinquietar toda uma comunidade escolar, com a pergunta: como as regras são construídas? Corpos que documentam seus corpos anônimos, que no anonimato potencializam o enunciado, a fala dita, a palavra lançada e colocam em debate aquilo que só a eles apetece.

(III) É o corpo ou a cidade que dança? Passos automáticos do cotidiano ou passos inventivos do bailarino? É o corpo do protagonista que se movimenta ou a câmera na mão do filmador? Imagens que instigam a pensar seu processo de produção, instigam a pensar a tríade interativa cidade-dança-cinema, instigam a pensar como a dança se alinha a cidade e como a cidade se desalinha com a dança. Imagens-dança que instigam o espectador a pensar e os convidam, também, a bailar.

(IV) Imagens sem rosto que se rostificam9no corpo. Um corpo rostificado na identidade do anônimo. O anonimato que se pretende oculto, ainda que dentro da lógica de uma captura. Máquinas de rostificação que colocam os olhos nas mãos e a face no peito. Que se atualizam e amplificam seu traçado para nada deixar escapar. O que não se identifica já é identificado na lógica da sociedade de controle. Nada escapa, mas e as imagens... será que escapam?

O que trouxemos acima foi um exercício de síntese dos afectos e perceptos10 que algumas experiências desenvolvidas por pesquisadores do Laboratório de Estudos Audiovisuais-OLHO11, da Universidade Estadual de Campinas vieram motivar12. Este grupo, em parceria com o programa “Cinema & Educação: A experiência do cinema na escola de educação básica Municipal”, idealizado pela Secretaria de Educação de Campinas, vem desenvolvendo algumas experimentações envolvendo o cinema na escola por meio de maquinações13, com o objetivo de

(i) Estimular a produção de imagens audiovisuais nos contextos escolares a partir de diversos dispositivos de imagem de cinema;

(ii) Diminuir a distância entre produção artística e a formação humana;

(iii) Estabelecer (re)existência estética no cinema e na educação (MIRANDA, 2016, p. 147).

Seguindo os fluxos do OLHO, partimos na defesa de que o cinema na escola não se reduz a produção e nem a projeção de filmes, principalmente esses distribuídos à grande massa que movimentam o mercado de consumo. O cinema que nos propomos a pensar é aquele que se coloca no ato de desaprender, “que atravessa a estrutura disciplinar da escola, operando na transversalidade de conteúdos, habilidades, capacidades” (MIRANDA; GUIMARÃES, 2015). Para além de um cinema como mero ilustrador de conteúdos ou como ferramenta didática pedagógica saturada de preceitos e julgamentos morais, propor uma produção de imagens capazes de rachar o clichê14, quebrar os estereótipos, explodir as metáforas, fazendo brotar novas experiências e ampliando o olhar estético e sensível dos que ali estão em contato direto com a imagem.

O que está em jogo é a imagem, é aquilo que está no entre, o que acontece entre corpos e a relação com a imagem. Por isso, o cinema na escola preconiza, mais do que a produção de algo ou a concepção de um produto final, o acompanhamento de processos inventivos. É no movimento de produzir, de pensar e criar com o outro, de compartilhar ideias e funções que o cinema pode afetar os corpos de outros jeitos, pode potencializar outras formas de ser e agir no mundo, pois conforme Migliorin (2015), o ato de filmar está sempre atravessado por uma ética, engajando-se num processo subjetivo.

Se Deleuze (2013) nos convida a buscar novas armas, Migliorin (2015) vai defender o cinema como uma arma política, pois ele demanda formas de ver e sentir, novos ordenamentos, novas presenças e pensamentos, que potencializam um engajamento crítico e (cri)ativo no mundo. Assim, “o cinema se insere na escola como potência de invenção, experiência intensificada de fruição estético/política em que a percepção da possibilidade de invenção de mundos é um fim em si” (MIGLIORIN, 2015, p. 46).

“Jamais interprete, experimente...”, dizia Deleuze (2013, p. 114). Este poderia ser o mote do cinema na escola hoje, pois a experiência sendo ela multiplicidade, sempre coletiva (mesmo na individualidade), faz rizoma, conexões com o fora15 o outrem16, pode produzir uma massa amorfa ou disforme, virtualidades e atualidades em conexão com outros elementos, produzindo micro e macros desvios, heterotopias17.

O que se vem tentando fazer com a inserção do cinema na escola (e os excertos dos trabalhos apresentados no início dessa parte são bons exemplos) é derrubar as estruturas universalizantes, hierarquizantes, homogeneizantes, disciplinares, aquilo que endurece o currículo escolar e, por consequência, o pensamento dos escolares. Derrubar por meio da imagem as estratificações que enclausuram o pensamento na malha da representação e da repetição, e que ortopedicamente vão constituindo um corpo dócil politicamente e útil economicamente (FOUCAULT, 2010). Para isso, busca-se a produção de imagens que façam o currículo da escola gaguejar, que façam o currículo escolar se desarticular do que comumente ele vem produzindo enquanto subjetividades alinhadas a uma economia neoliberal.

Fernand Deligny (2015) nos traz uma possibilidade de produção de imagens que pode perverter essa lógica performática de corpo e violência que viemos salientando no decorrer do texto. Se a violência narcísica emana de um campo cultural caótico de saturação performática, como subverter esse campo para dele emanar outras coisas? Apostamos na potência da produção de imagens que Deligny vai chamar de imagem-autista, que não estão condenadas à linguagem, nem submetidas pelos signos e representações.

Por meio de suas experimentações pedagógicas na França, nas décadas de 1930 a 1970, Deligny desenvolveu um trabalho educativo singular com crianças ditas “inadaptadas” - autistas, deficientes, delinquentes, com déficit de aprendizagem - e para tanto valorizou o gesto e o traço, fazendo uso do desenho livre na tentativa de criação de riscos, linhas, mapas, imagens que nada tinham a comunicar, no entanto possibilitavam o agenciamento de um povo por vir. Imagens de crianças que viviam a vacância da linguagem, à deriva da comunicação, que advinham cegantes, catastróficas, que conseguiam criar vacúolos de não-comunicação18, numa tentativa de se esquivar do fascismo da pedagogia interpretativa e dialógica.

Uma tentativa esquiva as ideologias, os imperativos morais, as normas. Uma tentativa só sobrevive se não se fixar num objetivo, mesmo quando inevitavelmente é chamada a realizá-lo. Pois há os fios, a teia, essa maneira de protegê-las, e ao mesmo tempo as inúmeras táticas de esquiva, esquivar-se de tudo o que solicita, tudo o que inclui, que obriga, que amarra, esquivar tudo aquilo que implica numa interação intersubjetiva [...]. (PELBART, 2016, p. 304).

Imagens-autistas exigem uma mudança de olhar, pois se distinguem de qualquer representação, pois seus signos estão desvinculados de qualquer intenção de significar. O autor desaparece no traço, assim como a ideia de arte que é representar (DELIGNY, 2015). É preciso olhar a imagem como diagrama de formas e não como conjuntos de formas.

Gonçalves (2014) vai dizer que com a hibridização do cinema com as artes plásticas contemporâneas, as imagens cinematográficas se tornam “obras sem lugar”, imagens nômades que “parecem pôr em movimento um pensamento oblíquo e transversal, [...] obras que não cessam de produzir linhas de fuga, de propor variações, fissuras, de pensar novos arranjos na paisagem (audiovisual e teórica) contemporânea” (GOLÇANVES, 2014, p. 10). Essas imagens inquietantes, difusas criam um campo aberto e instável para novas experimentações e rearranjos poéticos e estéticos ampliando a produção de novas relações e sensações entre nós e as imagens.

O que Gonçalves (2014) aposta nesse cenário miscigenado entre cinema e arte plástica vem ao encontro das imagens-autistas de Deligny (2015). O autor vai afirmar o aparecimento de imagens, cujas narrativas se tornam fragmentárias e cujo objetivo de sua produção é o investimento em algo a incomunicar, levando o espectador a montar as peças de seu próprio mosaico, uma vez que o intuito não é mais o de interpretar o mundo, mas de experimentá-lo, entrando em jogo modos de saber mais plásticos, sensoriais e contemplativos, de forma a não reduzir as imagens a um roteiro ou discurso prévio que conduzisse nosso olhar. Essas imagens fragmentárias, autistas ou também, chamadas por Gonçalves (2014) de autônomas, recusam a ideia da arte como representação que tem posto em causa formas fixas e estáveis, temporalidades cronológicas e lineares, estruturas orgânicas e bem ordenadas e ensaiam novos processos de subjetivação, apostando na criação de diferentes blocos de sensações ou nomadismos de sentidos.

Para Oliveira Jr. (2016), os “blocos de sensações” excedem a realidade sensível, tirando a centralidade dos personagens humanos, da palavra, dos gestos, da continuidade espacial e temporal. É um exercício de subtração interpretativa, de se desfazer da narrativa e se abster de qualquer julgamento moral.

O que os filmes nos “dão a ver” não estaria naquilo que se vê ou se ouve, mas naquilo que passa entre o visto e ouvido: os blocos de sensações; sendo esses blocos de sensações compostos por aquilo que excede à realidade sensível mas que já a constitui virtualmente e que os filmes nos dão a “sentir”, sentir esse entendido muito mais como um conjunto de sensações a-significantes e a-significadas do que como um sentimento já significado (OLIVEIRA Jr., 2016, p. 71).

Os blocos de sensações são forças que se intensificam por meio do conjunto de “imagens e sons que vibram e ressoam antes, durante e depois das projeções, pois que foram, são e serão vida não só para os espectadores, mas para tudo aquilo que para o filme convergiu pelo (por meio/com o) cinema” (OLIVEIRA Jr. 2016, p. 68). Há todo um investimento na materialidade dessas imagens e na potência de criação de um sistema de sensações que trabalham os afetos, as impercepções, as impressões ínfimas, dadas pela composição de cores, texturas, ritmos vivificados por cada um no encontro e na relação com elas.

Trata-se de uma produção que não inventa ou representa um estado de coisas, mas cria uma fascinação visual sem ter referências histórico-sociais imediatas. São filmes e instalações que nos afetam, em primeiro lugar, como imagem e sensação. [...] Aqui, portanto, as ideias de representação e reconhecimento são subvertidas, deixadas de lado. Tais filmes e instalações nos apresentam um mundo em criação e movimento, um mundo em constante devir (GONÇALVES, 2014, p. 18).

O que se vislumbra com tais produções imagéticas são justamente outras modalidades de apreensão e percepção do mundo real, novas formas de encarrar as ambiguidades, as frenéticas transformações e exigências da sociedade. Vislumbrar um corpo vibrátil como diria Rolnik (2014), capaz de encarar a vida de outras formas, capaz de se movimentar e se deslocar no espaço-tempo de outras maneiras sem deixar se contaminar pela lógica do homo oeconomicus neoliberal (FOUCAULT, 2008a), reduzindo-nos aos comportamentos e demandas do sistema político-econômico do mercado global.

O que Deligny fazia há décadas atrás é o que se tem procurado fazer hoje com o cinema expandido nas suas múltiplas experimentações e possibilidades, levadas para dentro dos muros da escola. A dinâmica da escola contemporânea força que a produção fílmica seja outra, não há espaço, investimento e nem ferramentas adequadas que possibilitam fazer mais do mesmo, e nem é isso que queremos. O que se quer é bagunçar a escola, conferir a ela o seu status primeiro de caos, porque só do caos é possível extrair a criação. Criar cinema sem obrigação nem imposição de um currículo que visa sempre um resultado. Do cinema despretensioso à criação do inesperado. Sobre essa prática Deligny afirmava que é um agir cinema, mais que um fazer:

Fazer é fruto da vontade dirigida a uma finalidade, por exemplo, fazer obra, fazer sentido, fazer comunicação, ao passo que agir [...] é o gesto desinteressado, o movimento não representacional, sem intencionalidade, que consiste eventualmente em tecer, traçar, pintar, no limite, até mesmo em escrever, num mundo onde o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do que o murmúrio dos homens... (PELBART, 2016, p. 299).

Um cinema disperso para um mundo cotidianamente disperso, fazendo emergir da dispersão um acontecimento, que mobiliza nosso pensamento em direção ao novo, puro, diferente. Mais que a defesa da produção de imagens-autistas, a defesa de uma condição-autista19 frente as imagens, pois conforme afirma Deleuze (1990), por mais que se busquem fugas e escapes, a imagem está sempre caindo na conjuntura do clichê, ela própria se organiza e induz seus encadeamentos de forma a nos esconder partes do que há na imagem verdadeira, o clichê nos encobre uma dimensão da imagem que é preciso arrancar, atravessar, exigindo-nos um “agir” sobre elas.

Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torna-la “interessante”. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro (DELEUZE, 1990. p. 32).

Embora acreditando no cinema como potência do pensamento, é preciso sempre estar à espreita, atento, desconfiando, pois, o cinema também se encontra num campo de conflito, num território de disputa de poder, e seu uso no ambiente escolar pode cair nas malhas da representação uma vez que representar, copiar, decalcar, já é prática comum da instituição escolar que se apoia nas metodologias pedagógicas para facilitar seu trabalho e garantir resultados de forma cômoda e segura.

A escola se pauta na representação, pois esta é a forma com que ela consegue medir seus resultados e avaliar suas práticas. Ela conduz o pensamento. Parte de um ponto determinado “x” para chegar num ponto “y” e tudo que foge, que escapa ou percorre outro caminho dessa linha que é dura e direcional, já não corresponde ao que ela espera. Assim, todo desvio é tido como transgressor, pois opera em outra lógica que resiste ao controle da mesma, que escapa a sua condução, fugindo da norma (CORRÊA, 2017, p. 49).

As resistências à captura se fazem a cada dia. É no ato de inventar com a diferença que o cinema se faz máquina de guerra. Um cinema contra a máquina aparelho de Estado, que forja o sujeito homo eoconomicus neoliberal, que engendra escolas-empresas, que produz uma cultura do desempenho, que captura o desejo dos escolares, que os enforma em um corpo performático, que pulveriza uma violência narcisista, que fixa o outro e despotencializa a alteridade.

É porque acreditamos no mundo que queremos “suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ao engendrar novos espaços-tempos, mesmo na superfície ou volume reduzidos. [...] É no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle” (DELEUZE, 2013, p. 222). Nossa tentativa aposta no cinema na escola como uma possibilidade de nos constituirmos como obras de arte diante do caos do mundo. Tirar do caos algo de vida e força que nos move na construção do outrem com a diferença, de forma a eximir a agressividade que brota todo dia nesse solo árido de esgotamentos que fixa o outro numa identidade binária dissipando os coletivos. Tirar do caos uma possibilidade de nos travestir de outro corpo, sem nos reduzir a meros números que contabilizam e somam a produção econômica, sem nos reduzir a uma cultura que nos força à competição. Somos mais que isso, mais que cifras, mais que um corpo inteligente e produtivo. Somos criação e povo!

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ele faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho.

[Gilles Deleuze]

No contexto atual das políticas de currículo que estão alinhadas a um sistema econômico neoliberal, se vê proliferar nas escolas um novo gerencialismo com vistas a qualificar o processo de gerência e melhorar os resultados, que tem como crivo a produção de uma cultura performática, que opera na constituição de corpos cada vez mais preocupados com os resultados, o desempenho e a qualificação de si. Corpos polivalentes, capazes de se ajustar às demandas e às exigências desse sistema, como também, corpos que reverberam uma violência narcisista à nível das pequenas diferenças correlatas à produção e a exclusão do outro, bem como a produção de uma “patologia de si” no contexto escolar.

Diante desse cenário, e acreditando que a escola também é um espaço de produção de outras coisas, um espaço em potencial de criação, nos questionamos: pode o cinema na escola se colocar como máquina de guerra na produção de linhas de fuga aos desejos imanentemente agressivos no sentido de potencializar outra ética para a existência que exceda a da lógica performática neoliberal?

Algumas experimentações do Laboratório de Estudos Audiovisuais-OLHO nos dizem que sim. Ao nos mostrar que na tentativa de trabalhar com a produção de imagens no contexto escolar de forma a desconstruir os paradigmas do cinema como representação da realidade, e dentro de uma perspectiva na qual o cinema se encontra como experimentação de múltiplas sensações. Dessa forma, o cinema se coloca como máquina de guerra na proliferação de um pensar/agir com a diferença, que tem a potencialidade de afetar os corpos escolares de outras maneiras, fazendo emergir outros modos de ser.

O cinema pode ser uma possibilidade na escola ao operar na produção de outros espaços-tempos, outros modos de pensar, ser, agir e estar no mundo, na criação de transmundos, de outrem-corpos, de povos contra a população. Cinema que faz emergir arte no lugar das violências. Cinema máquina contra o cinema massa. Cinema-autista no limite, na fronteira, que se coloca sempre à espreita da captura, daquilo que a todo o momento tenta nos despotencializar, nos esterilizar. Cinema como máquina de guerra, pois, conforme Deleuze e Guattari (2010, p. 202) “trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazer num combate incerto”... as tentativas não se esgotam enquanto houver ao que resistir.

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1 Conforme Deleuze & Guattari (2012b, p. 109 - grifo do original), “dado que a guerra (com ou sem batalha) propõe-se o aniquilamento ou a capitulação de forças inimigas, a máquina de guerra não tem necessariamente por objeto a guerra (por exemplo, a razia, mais do que uma forma particular de guerra, seria um outro objeto). Porém, geralmente, vimos que a máquina de guerra era a invenção nômade, porque era na sua essência, o elemento constituinte do espaço liso, da ocupação desse espaço, do deslocamento nesse espaço e da composição correspondente dos homens; é esse seu único e verdadeiro objeto positivo (nomos). Fazer crescer o deserto, a estepe, não despovoá-los, pelo contrário. Se a guerra decorre necessariamente da máquina de guerra, é porque esta se choca contra os Estados e as cidades, bem como contra as forças (de estriagem) que se opõem ao objeto positivo; por conseguinte, a máquina de guerra tem por inimigo o Estado, a cidade, o fenômeno estatal e urbano, e assume como objetivo aniquilá-los. É aí que ela devem guerra: aniquilar as forças do Estado, destruir a forma-Estado”.

2 As comunidades epistêmicas são compostas por grupos de especialistas que compartilham concepções, valores e regimes de verdade comuns entre si e que operam nas políticas pela posição que ocupam frente ao conhecimento, em relações de poder-saber. O que distingue as comunidades epistêmicas de outros agentes sociais atuantes nas políticas é o fato de serem constituídas por uma rede de profissionais com competência reconhecida em um domínio de conhecimento particular (ANTONIADES, 2003 apud LOPES, 2006).

3 Accountability - termo usado por Stephen Ball, e que na língua portuguesa pode ser traduzido como responsabilidade com ética e que remete à obrigação de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados.

4 Entendemos o currículo, conforme as teorias pós-críticas que o concebem como um campo de embate e de disputas de poder, na produção de verdades e de sujeitos. Um currículo que não é neutro, nem desinteressado, mas que está carregado de intencionalidades e que vai produzindo saberes no seu interior (CERVI, 2013). Conforme Silva (2013, p. 15), o currículo “busca precisamente modificar as pessoas que vão ‘seguir’ aquele currículo”.

5 Este “eu” não está ligado a uma metafísica da filosofia clássica cartesiana, que busca a essência do Ser por meio de uma Ontologia Universal. Nem ao “eu” da psicanálise e na busca de uma produção do inconsciente que enquadra o “eu” numa triangulação edipiana. Este “eu” que nos propomos a pensar está alinhado ao pensamento pós-estruturalista, no qual ele é multiplicidade, polifonia ligado ao mundo presente, atual e virtual. Cujas diferenças se afirmam por si mesmas através do dissenso e do caos. Deleuze & Guattari (2011, p.21) vão afirmar que “é preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída [..]”.

6 O Outro, ao qual nos referimos é aquele transformado, inventado e fabricado exclusivamente como um alvo de todas e cada uma das modalidades de racismo. “O outro é um outro que nós não queremos ser, que odiamos e maltratamos, que separamos e isolamos, que profanamos e ultrajamos, mas que utilizamos para fazer de nossa identidade algo mais confiável, mais estável, mais seguro; é um outro que tende a produzir uma sensação de alívio diante unicamente de sua invocação” (SKLIAR, 2016, p. 75-6). CF. SKLIAR, Y si el otro no estuviera ahí? Notas para uma pedagogia (improbable) de la diferencia (2002).

7 O Ensino Médio Inovador é uma política de currículo que integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), instituída pelo Ministério da Educação do Governo Federal no ano de 2009, pela portaria Nº 971. Ele é citado aqui, juntamente com a turma do 3º ano 1, porque foi nesta turma que se deu a pesquisa da dissertação de mestrado e é tido como exemplo para mostrar como o currículo vai constituindo populações ao se fragmentar.

8 Os dispositivos de segurança ou tecnologias de poder são antagônicos ao sistema jurídico-disciplinar descrito por Foucault no livro Vigiar e Punir (2010). Enquanto que a disciplina é essencialmente centrípeta, funcionando à medida que isola um espaço, determina um segmento, concentra, centra, encerra, circunscreve um espaço no qual seu poder e os mecanismos do seu poder funcionarão plenamente e sem limites, os dispositivos de segurança são o contrário. Eles tendem perpetuamente a ampliar, são centrífugos, integrando o tempo todo novos elementos, ampliando os circuitos. Tem por função, apoiar-se nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou ruins em si, que vão ser tomados como processos necessários, inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai se apoiar nesses detalhes que são o que são, mas que não vão ser considerados pertinentes, para obter algo que, em si, será considerado pertinente por se situar no nível da população (FOUCAULT, 2008a). “Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde - anule, ou limite, ou freie, ou regule” (FOUCAULT, 2008a, p. 61).

9 Cf. “Ano zero - Rostidade” em Deleuze & Guattari, Mil Platôs, vol 3, 2012.

10Afectos e perceptos são conceitos mobilizados por Deleuze e Guattari a partir de Espinosa (2017). Os autores vão dizer que “o que se chama ‘percepção’ não é mais um estado de coisas, mas um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo, e ‘afecção’ é a passagem deste estado a um outro, como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos: nenhum é passivo, mas tudo é interação” (2010, p. 183).

11 O Grupo de Pesquisa: Laboratório de estudos audiovisuais - OLHO, foi fundado em 1994 e está vinculado a linha Linguagem e Arte em Educação, do Programa de Pós-Graduação, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

12 Durante as aulas da disciplina Cinema e Escola, ofertada no primeiro semestre de 2018 pelo Grupo de Pesquisa OLHO, tínhamos como movimento de socialização do que se tem produzido no cenário científico sobre cinema, o CineClub. Nesses momentos, pesquisadores traziam suas produções de imagens, muitas delas ainda não finalizadas, para compartilhar suas experimentações no espaço escolar e juntos discutirmos a potência do cinema a partir do referencial teórico.

13 Conforme Miranda (2016, p. 147), a maquinação se distingue da organização, uma vez que a organização tende a modificar o lugar para que ele seja o mesmo (tornar o lugar mais eficiente ou mais propício para receber uma proposta). Já o conceito de maquinação é fazer de um lugar um outro, dentro do próprio lugar que é o mesmo. Maquinar é lidar com a matéria não formada, e com funções não formais, para atualizar o que já está no lugar, mas ainda não está formado e não tem função.

14 Para Deleuze (1990, p. 31), “um clichê é a imagem sensório-motora da coisa. Nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas experiências psicológicas. Portanto, comumente percebemos apenas clichês. Mas se nossos esquemas sensório-motores se bloqueiam ou se quebram, então pode aparecer outro tipo de imagem: uma imagem ótica sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser ‘justificada’, como bem ou como mal...”.

15 O Fora é a linha exterior em que o pensamento é possível. É só pelo pensamento que podemos acessar a criação ou a recriação de uma nova existência de si. “O pensamento não vem de dentro, mas tampouco espera do mundo exterior a ocasião para acontecer. Ele vem desse Fora, e a ele retorna” (DELEUZE, 2013, p. 141). Todavia, transpor a linha a seu extremo pode destruir todo o pensamento, pois ela “é mortal, violenta demais e demasiado rápida, arrastando-nos para uma atmosfera irrespirável” (DELEUZE, 2013. p. 142). A linha do Fora é um dualismo instaurado entre a vida e a morte. Para conseguirmos acessar a vida “[é] preciso conseguir dobrar a linha, para constituir uma zona vivível onde seja possível alojar-se, enfrentar, apoiar-se, respirar - em suma, pensar. Curvar a linha para conseguir viver sobre ela, com ela: questão de vida ou morte” (DELEUZE, 2013, p. 142).

16 Outrem é um eixo da leitura deleuziana. Segundo Pelbart (2016, p. 312), “outrem não é apenas o outro, é uma estrutura perceptiva que nos garante uma benevolência do mundo e das coisas, de suas possibilidades, transições amigáveis, suavidade das contiguidades e, assim, faz com que as coisas se inclinem umas em direção às outras, torna sabido o não sabido, orienta meu desejo para um objeto. No interior dessa estrutura cada outro é um mundo possível, no sentido em que remete a um mundo que ele expressa e envolve, e que me cabe, eventualmente, decifrar [...]”.

17 Heterotopias são como que contraespaços, espaços absolutamente outros. Cf. FOUCAULT, O corpo utópico, as heterotopias, 2013.

18 Para Deleuze (2013) a sociedade de controle teria dado conta de apodrecer a fala, a comunicação, de forma a penetrá-las pelo dinheiro, não por acidente, mas por natureza. Para ele uma forma de resistência capaz de dar novas oportunidades a um comunismo concebido como organização transversal de indivíduos livres, seria por meio de um desvio da fala. “Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle” (DELEUZE, 2013, p. 221).

19 Essa expressão quer indicar não uma coisa deliberada, mas sim um “estado de vida” que é alcançado por alguma intervenção que corta o fluxo do hábito.

Recebido: 21 de Julho de 2018; Aceito: 18 de Fevereiro de 2019

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