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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.2 São Paulo abr./jun 2019  Epub 08-Ago-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i2p382-401 

Artigos

A CENTRALIDADE DAS COMPETÊNCIAS SOCIOEMOCIONAIS NAS POLÍTICAS CURRICULARES CONTEMPORÂNEAS NO BRASIL

THE CENTRALITY OF SOCIO-EMOTIONAL COMPETENCES IN CONTEMPORARY CURRICULAR POLICIES IN BRAZIL

LA CENTRALIDAD DE LAS COMPETENCIAS SOCIOEMOCIONALES EN LAS POLÍTICAS CURRICULARES CONTEMPORÁNEAS EN BRASIL

Tassia Joana Rodrigues CIERVO1 

Roberto Rafael Dias da SILVA2 

1 Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: tassi.jrodrigues@gmail.com

2 Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Docente do curso de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS. E-mail: robertoddsilva@yahoo.com.br


RESUMO

O presente artigo objetiva mapear as contribuições teóricas sociais contemporâneas dos estudos sobre neoliberalismo e capitalismo emocional para o entendimento das políticas curriculares, especificamente no que se refere à ênfase nas competências socioemocionais. Nesse sentido, a partir de um alinhamento com a perspectiva dos Estudos Curriculares, serão problematizados os elementos instituintes desse cenário contemporâneo em sua interface com as propostas de inovação curricular que engendram a inclusão das emoções no trabalho pedagógico. Através de análise documental, a aproximação com o campo empírico será orientada pelos conceitos de competência e individualização, entendidos como conceitos que, com maior ou menor intensidade, articulam a escola aos imperativos econômicos advindos do mundo do trabalho. A racionalidade econômica vigente ao engendrar modos de subjetivação específicos faz uso da emocionalidade com vistas a intensificar a produtividade dos indivíduos e fomentar a constituição subjetiva de “empresários de si”. Em linhas gerais, pode-se afirmar que os debates acerca da seleção dos conhecimentos escolares são reposicionados no interior dessa gramática formativa.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Competências socioemocionais; Capitalismo emocional; Políticas curriculares

ABSTRACT

The present article aims to map the contemporary social contributions of the studies on neoliberalism and emotional capitalism to the understanding of curricular policies, specifically regarding to the emphasis on socioemotional competences. In this sense, from an alignment in the perspective of Curricular Studies, the instituting elements of this contemporary scenario will be problematized in their interface with the proposals of curricular innovation that engender the inclusion of the emotions in the pedagogical work. Through documentary analysis, the approach to the empirical field will be guided by concepts of competence and individualization understood as concepts that, to a greater or lesser degree, articulate the school to the economic imperatives arising from the world of work. The current economic rationality, when engendering specific modes of subjectivation, makes use of emotionality in order to intensify the productivity of individuals and foster the subjective constitution of "self-entrepreneurs". In general, it can be affirmed that the debates about the selection of the school knowledge are repositioned within this formative grammar.

KEYWORDS: Curriculum; Social-Emotional Competences; Emotional Capitalism; Curricular Policies

RESUMEN

El presente artículo objetiva mapear las contribuciones teóricas sociales contemporáneas de los estudios sobre neoliberalismo y capitalismo emocional para el entendimiento de las políticas curriculares, específicamente en lo que se refiere al énfasis en las competencias socioemocionales. En este sentido, a partir de una alineación en la perspectiva de los estudios curriculares, serán problematizados los elementos instituyentes de este escenario contemporáneo en su interfaz con las propuestas de innovación curricular que engendran la inclusión de las emociones en el trabajo pedagógico. A través del análisis documental, la aproximación con el campo empírico será orientada por los conceptos de competencia e individualización entendidos como conceptos que, con mayor o menor intensidad, articulan la escuela a los imperativos económicos provenientes del mundo del trabajo. La racionalidad económica vigente al engendrar modos de subjetivación específicos hace uso de la emocionalidad con vistas a intensificar la productividad de los individuos y fomentar la constitución subjetiva de "empresarios de sí". En líneas generales, se puede afirmar que los debates sobre la selección de los conocimientos escolares se reposicionan dentro de esta gramática formativa.

PALABRAS CLAVE: Currículo; Competencias socioemocionales; Capitalismo emocional; Políticas curriculares

1 INTRODUÇÃO

Em estudo recente, Silva (2017a) analisou modos de operação dos dispositivos de customização curricular, os quais privilegiam a composição de currículos escolares ajustáveis ao perfil do estudante. O autor aponta que os critérios de seleção dos conhecimentos escolares são posicionados desde novas configurações, engendradas a partir de uma ênfase na emocionalização pedagógica, pela algoritmização subjetiva e pela personalização de itinerários formativos. De acordo com o autor, ocorre uma emocionalização pedagógica quando se dá destaque às emoções no trabalho pedagógico, o que, de certa forma, tende a reposicionar os debates acerca da seleção dos conhecimentos escolares. Sob tais condições, os componentes socioemocionais no currículo passam a ser compreendidos como alavancas para aprendizagens. Segundo o autor, “os dispositivos de customização promovem e intensificam uma emocionalização pedagógica que traça por horizonte formativo as possibilidades de diferenciação que visam a capitalização dos indivíduos” (SILVA, 2017a, p. 710).

Aceitando o pressuposto formulado por Silva (2017a) sobre a ênfase contemporânea na customização curricular e interessados em compreender a centralidade das emoções na escolarização contemporânea, pretendemos levar adiante a seguinte formulação interrogativa: que significados estão presentes e colocados em ação pelos documentos norteadores que defendem a inserção das competências socioemocionais no currículo escolar brasileiro? Fundamentados nos estudos da Sociologia Crítica, em conexão com os Estudos Curriculares, propomos a hipótese de que a implementação das competências socioemocionais na escola é derivada da dinâmica do neoliberalismo atual, o qual necessita de investimentos nas emoções para obter maior produtividade. Assim sendo, no presente artigo, apresentaremos um conjunto de conceitos que possuem por objetivo ampliar o escopo analítico a respeito das políticas curriculares, bem como promover novas ferramentas conceituais para sua compreensão.

Ancorados na perspectiva das racionalidades contextuais (PACHECO, 2003), compreendemos que a produção de políticas curriculares não deve ser entendida como uma técnica pronta a ser implementada na prática escolar, mas percebida como um processo amplo e multifacetado de construção. Tal processo é influenciado por diferentes racionalidades políticas, as quais formam um complexo quebra-cabeças que adquire sentidos pelas fronteiras conquistadas em momentos diferentes. O modelo de racionalidades contextuais possibilita a interpretação das políticas curriculares de uma forma crítica e emancipatória, em que se leva em consideração as diferentes racionalidades políticas que perfazem o currículo, além de questionar criticamente as finalidades da educação.

Pacheco (2003) alega que a política curricular é, ao mesmo tempo, processo e produto, envolvendo tanto a produção de textos quanto a realização de práticas. Isto é, se, na instância administrativa, a política curricular é produzida, é na prática escolar que ela é legitimada. Dessa maneira, não se pode, segundo o autor, considerar a política curricular com base apenas no nível da concepção ou no nível da implementação, pois os dois momentos são cruciais. Atenta o autor que a passagem da concepção para a implementação se dá através de inúmeros filtros, os quais podem acrescentar novos sentidos e entendimentos para as políticas, dependendo do contexto em que estão inseridas. “As políticas curriculares resultam de complexas decisões que derivam tanto do poder político oficialmente instituído quanto dos atores com a capacidade para intervir direta ou indiretamente nos campos de poder em que estão inseridos” (PACHECO, 2003, p. 27-28).

Isso posto, organizamos o presente artigo em cinco seções. Após esta introdução, na segunda seção, em perspectiva sociológica, apresentaremos os conceitos de neoliberalismo e capitalismo emocional para o entendimento das políticas curriculares contemporâneas. A seguir, na terceira seção, abordaremos a ênfase contemporânea no processo de individualização, entendido como um processo necessário para o capitalismo atual, bem como o conceito de competência, buscando compreender a que demandas esse conceito responde nas políticas curriculares contemporâneas. Na quarta seção, buscaremos desenvolver problematizações curriculares a respeito das competências socioemocionais a partir de uma análise documental e, por fim, na quinta seção, faremos nossas considerações finais.

2 NEOLIBERALISMO, CAPITALISMO EMOCIONAL E NOVAS FIGURAS SUBJETIVAS

Para fins desta seção, de caráter contextual, procuraremos estabelecer uma reflexão inicial acerca das possíveis articulações entre neoliberalismo, capitalismo emocional e novas figuras subjetivas. Tal articulação permitirá mapear o contexto de emergência das competências socioemocionais nas políticas curriculares contemporâneas.

Safatle (2016) argumenta que o neoliberalismo contemporâneo não é apenas um modo de regulação dos sistemas econômicos baseado na concorrência e no livre-mercado, como também um regime de gestão social e produção de formas de vida. Pode-se afirmar, na esteira do autor, que está no horizonte do neoliberalismo a produção de um sujeito específico, que faça uso de todas as suas potencialidades como forma de obter lucro. Safatle (2016) pondera que a disciplina neoliberal não pode ser entendida como simples conjunto de condições para a internalização de dinâmicas de repressão. Há hoje, no estágio atual do neoliberalismo, uma nova ordem como dispositivo disciplinar: um “ideal empresário de si”.

Atentam Dardot e Laval (2016) que esse homem empresarial é um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente a ele. Não é somente um comportamento econômico ativo que visa à capacidade de obter lucros, mas uma capacidade de detectar “boas oportunidades”. Assim, a liberdade de ação se torna uma oportunidade de testar suas faculdades, podendo esse sujeito aprender, corrigir e se adaptar caso seja necessário. Vemos, portanto, que o mercado se transforma em um processo de formação de si.

Podemos compreender, com Dardot e Laval (2016), que a novidade desse processo reside no fato de vincular a maneira como o indivíduo se governa e como ele é governado, pois, de certa forma, o sujeito-empresa explora a si próprio. É possível hipotetizar que a grande efervescência dos cursos e aperfeiçoamentos do “eu” com vistas a uma melhoria na produtividade pode estar conectada a essa forma de como o sujeito vem se governando e que, logo, está em estreita relação com as tecnologias neoliberais vigentes. Há hoje uma abundante oferta de coaching para o aperfeiçoamento do “eu”, ou coaching pessoal. Esse coaching (termo em inglês que significa treinamento) nos remete aos treinadores esportivos, dentro de uma lógica competitiva do ganhar ou perder, bem como de se superar frequentemente. “Todos estes exercícios práticos de transformação de si mesmo tendem a jogar o peso da complexidade e da competição exclusivamente sobre o indivíduo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 342).

Dessa maneira, acredita-se que obter prazer no que se faz torna o sujeito mais produtivo: “a subjetividade feita de emoções e desejos, paixões e sentimentos foi vista como a chave para o bom desempenho dentro das empresas” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 359). O prazer e a motivação tornaram-se jargões dentro das empresas, escolas e demais instituições. No entanto, sinaliza Han (2014), as mutações ocorridas no capitalismo contemporâneo o permitiram atuar a partir de uma forma de poder mais sofisticada, sedutora e inteligente, sem coações nem violências, mas através de um poder inteligente, invadindo os pensamentos e gerando dependências, sem nenhuma resistência.

Para Han (2014), o neoliberalismo descobre a psique como força produtiva. Isto é, “esta ênfase na psique e com ela, a psicopolítica, está relacionada com a forma de produção do capitalismo atual, posto que este último está determinado por formas de produção imateriais e incorpóreas” (HAN, 2014, p. 23). A ordem do dia seria, então, otimizar processos mentais e psíquicos dos sujeitos em constante pressão por inovação, havendo agora um rompimento brusco com o passado e uma corrida desenfreada pela novidade, pela criação e pela inovação. Sendo assim, o discurso da empresa passa a ser a norma, comportar-se como uma empresa passa a ser o esperado para o sujeito da contemporaneidade; ele próprio deve trabalhar para sua eficácia e tornar-se uma entidade de competição.

Gorz (2003) descreve que, contemporaneamente, o capital humano valorizado é aquele capital que possui um saber que não é formal, que não é da ordem técnica, e sim um saber da experiência, adquirido no trânsito do cotidiano. Esse saber exige que o indivíduo faça investimentos sobre si, sobre suas experiências, pois, na atualidade, o que é valorizado é seu saber comportamental. Desse modo, parece que o neoliberalismo busca produzir um sujeito que coloque sua energia psíquica, sua “alma” a serviço do capital humano. Nesse sentido, o trabalhador não se apresenta como possuidor de um saber apenas, mas como um produto que continua ele mesmo a se produzir, continuamente.

Illouz (2007) indica, no livro Intimidades Congeladas, que as disposições sociais são também disposições emocionais. Para a autora, as emoções contêm aspectos culturais e aspectos sociais em demasia; as emoções colorem um ato, são um aspecto carregado de energia, implicando cognição, afeto, corpo e motivação.

Illouz (2007) discute que as emoções são aspectos irreflexivos da nossa ação, ou seja, organizamos nossa subjetividade e nossa vida emocional baseados inegavelmente nos aspectos que a cultura e o social em que vivemos exigem. Se, por exemplo, como vimos, os aspectos culturais estão fundamentados no mercado, teremos como consequência aspectos emocionais configurados nesse âmbito. Para Illouz (2007), portanto, não se presume que economia e emoções são separáveis, mas implicadas mutuamente, por estarem conectadas com a teoria psicológica.

Como derivação desse contexto, a psicopolítica (HAN, 2014) faz uso da esfera emocional do sujeito que empreende a si mesmo, a fim de influenciar as ações no plano pré-reflexivo. Ainda, a flexibilidade requerida pelo discurso terapêutico tem uma afinidade com a flexibilidade requerida da assim chamada era pós-fordista, produzindo uma forma de trabalho que tenha múltiplas habilidades em um cenário econômico instável, o qual gera grande carga no sujeito (ILLOUZ, 2010). Acreditamos que esse contexto psicopolítico mantém estreita relação com o ethos terapêutico contemporâneo, o qual compreende os modos como a cultura contemporânea chegou a se preocupar com a vida emocional e a desenvolver técnicas para manejar as emoções.

Em termos pedagógicos, parece-nos que há uma demanda importante do contexto do mundo de trabalho para a ênfase na constituição de subjetividades compatíveis com esse cenário. Dessa maneira, podemos questionar: como essa centralidade nas emoções oriunda das mutações do capitalismo contemporâneo aparece no cenário educacional? Para chegarmos próximo a esse questionamento, traremos, na seção a seguir, do conceito de individualização e competência, noções que possuem estreita conexão com o ethos terapêutico contemporâneo. Os conceitos de individualização e competência serão mobilizados como operadores analíticos para a condução dos estudos das políticas curriculares, ora funcionando como categorias, ora sendo mobilizados como ferramentas de análise.

3 PRESSUPOSTOS ANALÍTICOS PARA AS POLÍTICAS CURRICULARES

3.1 Individualização

O primeiro pressuposto que explicitaremos está interessado na ênfase na individualização contemporânea, bem como no exercício sobre si mesmo, visto como forma de conduzir-se e aperfeiçoar-se permanentemente. Abordaremos, nesta subseção, como nos transformamos em indivíduos de autocontrole, a partir de técnicas de individualização oriundas dos discursos de autoajuda marcadas pela lógica de empresariamento de si, além de buscar entender como essas técnicas se tramam no interior das políticas curriculares.

Sob uma perspectiva foucaultiana, Marín-Diaz (2012) considera os diferentes exercícios e técnicas de individualização que acompanharam as nossas experiências como indivíduos e apresenta a análise de exercícios e “técnicas de si” promovidos pelos discursos de autoajuda, compreendidos pela autora como uma das principais estratégias utilizadas, no último século, na condução de si e dos outros. A pesquisadora aponta que, na Modernidade, as subjetividades se organizaram com base em técnicas disciplinares, práticas de autocondução e individualização. Nesse momento histórico Moderno, as técnicas de instrução, vigilância e controle fizeram parte do processo de individualização; ainda, tais técnicas foram fundamentais para a emergência de novas formas de governo de caráter liberal.

Na sociedade contemporânea, caracterizada por Noguera-Ramirez (2011) como uma “sociedade de aprendizagem”, há um deslocamento de ênfase da instrução para a aprendizagem. Através da educação, vemos aparecer técnicas destinadas à própria condução dos desejos, necessidades e interesses. “Nesse momento de ênfase na educação, vemos aparecer nos discursos pedagógicos o princípio da atividade do próprio indivíduo. Ao centrar o foco da atividade educacional mais na aprendizagem do que no ensino, privilegiou-se a ação do indivíduo sobre si mesmo” (MARÍN-DIAZ, 2012, p. 273).

Dessa maneira, foram potencializadas determinadas técnicas de autocontrole, as quais, segundo Varela (2012), foram as condições de possibilidade do aparecimento das chamadas pedagogias psicológicas, com foco na aprendizagem e na produção de indivíduos que agem sobre si mesmos, não mais para encontrar seu definitivo “eu”, mas para se transformarem permanentemente. Esse destaque para a transformação permanente e a aprendizagem também ocorrem na literatura de autoajuda, o que, de certo modo, permitiu a entrada de tal literatura no cenário educativo.

Para Marín-Diaz (2012), ancorada nos estudos de Illouz (2010), os discursos de autoajuda, pela sua centralidade no “eu”, marcam uma importante ligação com diferentes instituições, como família, empresa e igreja. Não motivam, em princípio, um “eu” anti-institucional; pelo contrário, representam um modo poderoso para institucionalizar esse “eu”. Assim, agora o “eu” bem-conduzido representa o sustento dessas instituições sociais. Porém, essa centralidade no “eu” vem operando na degradação da vida dessas mesmas instituições - questão essa que estaria em estreita ligação com a racionalidade econômica neoliberal vigente.

É possível perceber um conjunto de técnicas que atuam na produção de “eus” responsáveis sobre si, as quais fazem emergir valores como autoestima, competência, autonomia, responsabilidade, etc. Marín-Diaz (2012) aponta que, nesse contexto, aparecem outros modos de pensar a educação. Aqui, noções como necessidades básicas, sociedade de aprendizagem, aprendizado permanente, competências, dentre outras, tornam-se o eixo narrativo das discussões educacionais, somadas aos discursos de autoajuda. Desenha-se, desse modo, o sujeito contemporâneo, oriundo das formas de governo neoliberais em que o propósito das técnicas de si destina-se principalmente a definir certas características individuais e produzir um ser em permanente transformação, flexível, adaptável e ciente de que deve mudar constantemente.

3.2 Competência

O segundo pressuposto abordado refere-se à ênfase na noção de competência nas políticas educacionais contemporâneas. Acredita-se que esse conceito mantém relações com a educação emocional, uma vez que prima por enfatizar um aprendizado utilitário e prático, envolvido com a ação e com a formação exigida pelo mercado de trabalho.

A noção de competência é amplamente difundida no Relatório Delors (DELORS, 1998), no qual temos um exemplo da substituição do conceito de qualificação para o desenvolvimento de competências: “A educação deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados a civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro” (DELORS, 1998, p. 89). O saber fazer está intimamente ligado à noção de competência, pois, conforme Ropé e Tanguy (1997), embora a noção de competência não permita uma definição conclusiva, a ação é uma de suas caraterísticas essenciais. Para as autoras, o uso da noção de competência na área educativa tende a substituir outras prevalentes anteriormente, como saberes e conhecimentos.

Corroborando a posição das autoras, Laval (2004) assinala que competência é lida como uma “noção encruzilhada” devido a seu caráter polissêmico. Presta-se a múltiplos usos sociais que, por sua vez, reforçam uma possível neutralidade do termo. De modo geral, como aponta o autor, o termo competência parece estar inseparável da ação que, portanto, depende de um saber prático que necessita ser avaliado constantemente, com vistas a fixar valores profissionais nos indivíduos. Como consequência, “a escola é intimada a adaptar seus alunos aos comportamentos profissionais que lhes são reclamados mais tarde” (LAVAL, 2004, p. 60), dando, então, mais prioridade às qualidades pessoais empregáveis do que a conhecimentos apropriados.

Deluiz (2001) firma que o conceito de competência começa a ser discutido a partir dos anos 1980, no contexto da crise estrutural do capitalismo. Tal crise se expressou pelo esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista, o qual foi substituído pelo modelo flexível que reconfigurou toda a organização produtiva. Com base nessa reestruturação produtiva, novos trabalhadores necessitam ser formados, os quais, de acordo com Lazzarato e Negri (2001), devem ser mais comprometidos com a produtividade do seu trabalho. Nesse contexto, reconhece-se a centralidade de um trabalho vivo, mais intelectualizado e que gera maior responsabilização. Essa reconfiguração dos processos produtivos traz aspectos de um saber prático essencial ao trabalho flexível, um saber envolvido com uma forma particular de usar seus aspectos subjetivos e que configura, por conseguinte, um saber vivo e intelectualizado que se dispõe afetivamente ao cargo de trabalho ocupado. Assim, os conhecimentos e habilidades adquiridos no processo educacional devem ter um caráter de utilidade e praticidade, assumindo o modelo de competência como orientador.

A seguir, mediante um estudo documental, buscamos tornar inteligível os significados presentes e colocados em ação pelos documentos que versam sobre a inserção das competências socioemocionais no currículo escolar.

4 COMPETÊNCIAS SOCIOEMOCIONAIS: PROBLEMATIZAÇÕES CURRICULARES

Assim como vínhamos explorando na seção anterior, no capitalismo emocional é atribuído um valor monetário para as emoções; não para todas as emoções, mas para determinados estilos emocionais. A ideia de que as emoções sinalizam a competência (social e profissional) se faz muito evidente na noção de “inteligência emocional”, a qual, de acordo com Illouz (2010), tende a conectar explicitamente o manejo social com o êxito social. Segundo essa concepção, a constituição emocional, por mais subjetiva que possa ser, poderia ser objetivamente avaliada, podendo-se compará-la às capacidades emocionais (ILLOUZ, 2010).

Para Illouz (2010), a inteligência emocional é definida como a capacidade para manejar as próprias emoções, de maneira tal que sejam disciplinadas pela compreensão cognitiva. A inteligência emocional deveria ser um constructo bem-vindo em nossas instituições, uma vez que aborda a noção de que a inteligência é múltipla. Porém, essa compreensão tem representado uma nova maneira de classificação social, criando formas atuais de competência e incompetência social. A inteligência emocional, sob essa perspectiva, corresponderia aos requisitos exigidos do “eu” nos formatos de capitalismo contemporâneo, como evidenciamos na seção anterior. Esses discursos afetivos entram em cena nas escolas como promessa de solução aos diversos problemas que afetam o cotidiano escolar.

Entendemos, em consonância com Young (2007), que o papel da escola reside no fato de proporcionar aos alunos conhecimentos poderosos que os possibilitem compreender o mundo, novas formas de pensar e, portanto, ir para além da sua experiência cotidiana. Para o autor, quando se adota o foco da escolarização na resolução de problemas sociais, econômicos e culturais, torna-se menos provável que essas questões sejam resolvidas em suas origens (YOUNG, 2011). Para o autor, os debates, em termos de políticas curriculares na contemporaneidade, enfatizam os processos de aprendizagem em detrimento da própria noção de educação, formulando, desse modo, decisões curriculares pragmáticas centradas no aprender a aprender (YOUNG, 2016).

Corroborando essa afirmativa, Biesta (2013) declara que a ênfase nos processos de aprendizagem ocorre porque houve uma transformação da linguagem da educação para uma linguagem de aprendizagem. Segundo o autor, nas últimas duas décadas, assistimos à ascensão do conceito de aprendizagem. Biesta (2013) pontua que isso atesta o vínculo do processo educativo a uma transação econômica, não dando conta, portanto, de compreender a magnitude da relação educacional. Ou seja, ao tomar a educação em termos econômicos, esquece-se de que a principal tarefa da educação é descobrir o que se deseja, sendo, assim, diferente de uma transação econômica, a qual sugere uma estrutura em que as únicas questões que podem ser propostas são técnicas e utilitárias, em prejuízo de um processo formativo mais amplo.

Nos documentos aqui analisados, o conhecimento escolar possui um caráter utilitário, com vistas a equipar o sujeito para adaptar-se às demandas da atualidade. No documento Competências Socioemocionais: material de discussão (IAS; UNESCO, [2016]), há uma ênfase importante nas novas formas de se relacionar com o conhecimento requeridas pelo mundo contemporâneo. Complementando essas proposições demandadas para a noção de conhecimento, no documento Diretrizes para a Política de Educação Integral: Solução Educacional para o Ensino Médio (SECRETARIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO; IAS, 2014), destaca-se que o conhecimento deve estar a serviço do desenvolvimento de competências, as quais articulam aspectos socioemocionais e cognitivos. “O aprendizado de conteúdo das disciplinas deixa de ser um fim em si mesmo, passando a se articular e a contribuir para o desenvolvimento de competências para a vida” (SECRETARIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO; IAS, 2014, p. 22).

Nesse contexto, o termo competências socioemocionais começa a ser usado para definir um conjunto de práticas pedagógicas que asseguram a configuração de um sujeito que responda às exigências do século XXI, ou seja, um sujeito que aprenda a desenvolver as competências emocionais e sociais necessárias para vencer na vida. Para o Instituto Ayrton Senna (IAS), as competências socioemocionais são definidas como:

Capacidade de mobilizar, articular e colocar em prática conhecimentos, valores, atitudes e habilidades para compreender e gerir emoções, estabelecer e atingir objetivos, sentir e demonstrar respeito e cuidados pelos outros, trabalhar em equipe, tomar decisões autônomas e responsáveis, e enfrentar situações adversas de maneira criativa e construtiva (IAS, 2013, p. 22).

A partir dessa conceituação sobre competência socioemocional produzida pelo Instituto, podemos perceber, além do esmaecimento dado à noção de conhecimento, que há o resgate da noção de competência que há pouco explorávamos; porém, com um alargamento no conceito, abrangendo certo prisma psicológico. Posteriormente, faz-se importante notar a ênfase dada aos processos de individualização, nos quais o indivíduo passa a ser responsável por seu autodesenho. Vemos, portanto, que tal destaque aos processos de individualização não possui um argumento social, mas individual e progressivamente autorreferenciado.

Entendemos que esse debate sobre a implementação das competências socioemocionais no currículo escolar aparece como solução para a superação dos problemas sociais e econômicos que perpassam a escola. Atenta a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (2011) que o desenvolvimento das competências socioemocionais na escola tem por objetivo formar um aluno resiliente. Para o citado documento, “alunos resilientes são aqueles que provém de um ambiente socioeconômico relativamente desfavorável e alcançam altos desempenhos do ponto de vista dos padrões internacionais, quando se toma por consideração seu ambiente” (OCDE, 2011, p. 3). No que se refere ao uso escolar do conceito, Martineau (1999, p. 11-12 apud YUNES; SZYMANSKI, 2001, p. 36) pondera que “O discurso da resiliência impõe normas prescritas de sucesso na escola e sucesso individual daqueles menos privilegiados e identificados ‘em situação de risco’”. A autora e psicóloga educacional ainda argumenta que a ênfase se mantém no indivíduo e, logo, o individualismo é a ideologia dominante do conceito de resiliência.

Com base nessas problematizações iniciais, as quais ajudam a tensionar o assunto, percebemos o quanto as competências socioemocionais vêm sendo debatidas e destacadas como forma de melhorar o desempenho dos alunos frente aos desafios do século XXI. Hoje em dia, o aluno deve saber lidar, com responsabilidade, com a informação cada vez mais disponível, além de ter autonomia e discernimento na tomada de decisões, como aponta a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (MEC, 2017). Dessa forma, as aprendizagens devem estar em sintonia com as necessidades e interesses dos alunos e com os desafios da sociedade.

Mas, anteriormente à BNCC, outros movimentos já vinham sinalizando a ênfase nas habilidades/competências de cunho socioemocional. O relatório Educação: um tesouro a descobrir (DELORS, 1998), corresponde a um estudo elaborado entre 1993 e 1996 por uma comissão internacional, respondendo a demandas da Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), com o objetivo de organizar as bases fundamentadoras da educação do século XXI. No Brasil, o relatório serviu de referência para reformas educacionais posteriores.

Em meados de 2014, o Ministério de Educação brasileiro (MEC) encomendou à UNESCO um estudo intitulado O desenvolvimento das habilidades socioemocionais como caminho para a aprendizagem e o sucesso escolar de alunos da educação básica (ABED, 2014). Este teve por objetivo oferecer subsídios filosóficos e teóricos para a elaboração de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento das habilidades socioemocionais nas instituições escolares. “Conclusão: não há como preparar as crianças e jovens para enfrentar os desafios do século XXI sem investir no desenvolvimento de habilidades para selecionar e processar informações, tomar decisões, trabalhar em equipe, resolver problemas, lidar com as emoções...” (ABED, 2014, p. 6).

Ainda em 2014, a OCDE, em parceria com o Instituto Ayrton Senna (IAS) e a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, publicou uma proposta de mensuração das competências socioemocionais intitulada SENNA (Social and Emotional or Non-Cognitive Nationwide Assessment), em que é apresentado o modelo Big Five (PRIMI; SANTOS, 2014).

Nas últimas décadas, manifestou-se entre os psicólogos um consenso de que a maneira mais eficaz de analisar a personalidade humana consiste em observá-la em cinco dimensões, conhecidas como os Cinco Grandes Fatores: Abertura a Novas Experiências, Extroversão, Amabilidade, Conscienciosidade e Estabilidade Emocional. Os Big Five são construtos latentes obtidos por análise fatorial realizada sobre respostas de amplos questionários com perguntas diversificadas sobre comportamentos representativos de todas as características de personalidade que um indivíduo poderia ter (PRIMI; SANTOS, 2014, p. 16, grifos nossos).

O documento aponta que as políticas públicas negligenciaram por muito tempo as abordagens socioemocionais, as quais seriam um dos elementos fundamentais para os alunos atingirem o sucesso na vida. Entretanto, mediante avaliação e monitoramento constantes, seria possível construir e contribuir para a melhoria da qualidade da educação brasileira. Além disso, o desenvolvimento do projeto de mensuração visa disponibilizar um instrumento para diagnosticar, monitorar, avaliar e desenhar políticas públicas.

Posteriormente, o IAS, em parceria com a UNESCO, publicou um material de discussão sobre competências socioemocionais (IAS; UNESCO, [2016]), o qual coloca as competências socioemocionais como uma possibilidade de alavancar a aprendizagem e melhorar os índices. Para o referido Instituto, torna-se necessário ensinar os alunos a aprender a viver, conviver e trabalhar. O documento descreve que se espera, para uma educação para o século XXI, a tríade acesso, conclusão escolar e aprendizagem integral. Reconhece também que o ensino como vem sendo praticado não dá conta de garantir aos jovens aprendizagens significativas.

Em março de 2014, o Estado de São Paulo foi sede do Fórum Internacional de Políticas Públicas, “Educar para as competências do século 21”, realizado em parceria entre IAS, OCDE, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e MEC. Na abertura do Fórum, Viviane Senna, presidente do IAS, colocou que o Instituto possui sólidas evidências para comprovar a importância das habilidades socioemocionais para o sucesso acadêmico. Em seguida, o então ministro da Educação, José Henrique Paim, afirmou que: “Acreditamos que as competências socioemocionais precisam ser incluídas em políticas públicas educativas ambiciosas e vamos sistematizar e financiar iniciativas que incentivem e desenvolvam as competências socioemocionais nos estudantes” (FÓRUM INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 2014, p. 1-2).

Viviane Senna destacou que temos um currículo oculto que aborda as referidas competências; porém, precisamos, segundo a psicóloga, tornar isso visível e, portanto, desenvolvido intencionalmente. Foi apontado, ainda, que é preciso resgatar a noção tradicional de educação provedora, não apenas de informação e conhecimento, mas também como guia de valores necessários para uma boa cidadania, como cooperação, responsabilidade e orientação para resultados.

A OCDE acredita em uma abordagem mais holística para a educação para, assim, superar diversos desafios socioemocionais. Isso significa que famílias, escolas e comunidade possuem papéis importantes a desempenhar para garantir que os esforços em cada contexto sejam eficientes. Para a OCDE, é necessário repensar as políticas para responder melhor aos anseios dos jovens e prepará-los para enfrentar os desafios do século XXI. No documento, Competências para o progresso social: O poder das competências socioemocionais, (OCDE, 2015), a organização questiona: quais são as competências que estimulam o bem-estar e o progresso social? A própria OCDE responde que, chegou-se à conclusão da necessidade de desenvolver uma “criança completa”, com um conjunto de competências tanto socioemocionais quanto cognitivas que lhe permitam enfrentar os desafios do século XXI.

Importa ressaltar, embasados em Biesta (2013), que, pensando na educação como um processo de emancipação, esta não ocorre apenas em uma via individual ou social, “os educadores críticos nos ajudam a ver que não há emancipação individual sem emancipação social” (BIESTA, 2013, p. 30). Sendo assim, para que seja almejado um sujeito resiliente, independente e autônomo, torna-se preciso levar em conta as questões sociais que nos cercam, compreendendo de forma contundente que estas interferem no desenvolvimento humano.

Com base nesse pequeno panorama, notamos que existe um esforço significativo por parte de organizações nacionais e internacionais para a implementação e mensuração das competências socioemocionais nas políticas públicas do Brasil. Consideramos que, no processo de escolarização, o currículo possa refletir um projeto educativo globalizador, que abranja diferentes facetas culturais, pessoais e sociais, com o propósito de formação considerada fundamental na sociedade em que se está inserido.

Para Sacristán (1998), as aspirações a uma educação cada vez mais globalizadora, no sentido de serem transferidas à escola missões educativas de diferentes instituições, são lidas como a ideologia dominante da atualidade. Essa questão faz da seleção dos componentes curriculares uma difícil tarefa, na qual se complicam as possibilidades de se obter consenso sobre o que conta como componente curricular. Se o consenso não é fácil, o debate e a problematização se tornam fundamentais, porque vivemos em uma época em que se proliferam propostas de inovação curricular. Como aponta Nóvoa em entrevista concedida à revista Carta Educação (PAIVA, 2017), é fácil propor reformas curriculares; difícil é dar as condições básicas de funcionamento de uma instituição escolar, especialmente no Brasil.

Essa proliferação de reformas curriculares sinalizada por Nóvoa se justificaria em certa medida pelo fato de que o currículo é uma forma de expressão de um projeto cultural e educacional em dada sociedade, ou seja, é um projeto idealizado que muitas vezes não costuma coincidir com a realidade, conforme aponta Sacristán (2013, p. 24): “Ao aceitar a elevação do currículo à categoria de projeto educacional, surge uma nítida distância entre discurso e realidade. Nesse ‘abismo teleológico’, é inevitável que a ideia de educação se empobreça”.

Compreendemos, junto com o autor, que as funções escolares do currículo são mais amplas do que a seleção de conteúdos propriamente dita. Entretanto, consideramos que a proposta curricular aqui analisada, ao idealizar a função formadora da escola no sentido de alargar e delegar a essa instituição a resolução de problemas sistêmicos, se distancia da realidade da educação brasileira, não conseguindo, assim, prestar atenção às necessidades básicas que devem ser levadas em consideração. Acreditamos que, ao fomentar a ideia de que uma educação com pressupostos emocionais possa resolver problemas como obesidade, bullying, satisfação com a vida, depressão, desigualdades sociais, etc., esmaece, de forma contundente, a função essencial do processo de escolarização, que é, nas palavras de Young (2016), uma forma de estabelecer uma relação com o conhecimento que possibilite ao aluno avançar para além do cotidiano.

A seleção cultural que compõe o currículo não é neutra. Buscar componentes curriculares que constituam a base da cultura básica, que formará o conteúdo da educação obrigatória, não é nada fácil e nem desprovido de conflitos, pois diferentes grupos e classes sociais se identificam e esperam mais de determinados componentes do que de outros (SACRISTÁN, 1998, p. 62).

A leitura dos documentos acima citados deixa em evidência que as competências socioemocionais se centram prioritariamente no indivíduo. Nessa perspectiva, cada indivíduo deve trabalhar em si mesmo e gerir suas emoções e condutas, deixando à margem do debate as condições institucionais, culturais e socioeconômicas, reforçando, desse modo, o processo de individualização contemporâneo. Em contrapartida, esses discursos geram novas formas de conformismo perante as condições de vida de cada um, promovendo especialmente a adaptação dos sujeitos. Dessa maneira, outras dimensões estruturadoras da vida social e escolar, as quais remetem aos tecidos relacionais em que acontece a emocionalidade, ficam invizibilizadas (NOBILE, 2017). Essa invizibilização desconsidera as condições desiguais que atravessam a educação, sobretudo no Brasil, reforçando e colaborando para sua perpetuação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse inicial movimento de contato com os documentos que sinalizam a importância da entrada das competências socioemocionais no currículo escolar, a partir da escolha de lentes teóricas distintas e exercitando um pensamento transversal alinhado a compreender o processo amplo e multifacetado que influencia a formação de políticas curriculares, podemos afirmar que, em relação às competências socioemocionais, estas estão sendo apresentadas como forma de alinhar a educação ao desenvolvimento de sujeitos flexíveis e resilientes. Em termos curriculares, essa questão parece redefinir a organização dos conhecimentos escolares sob um prisma psicológico, ocorrendo o que Silva (2017a) define como emocionalização pedagógica. Como consequência desse processo, há uma redefinição contemporânea dos conhecimentos escolares (LOCKMANN; TRAVERSINI, 2017), a qual pode estar relacionada com o caráter utilitarista dado aos conhecimentos escolares na contemporaneidade, com o foco no desenvolvimento de competências parecendo nortear os documentos selecionados.

Essa redefinição também está relacionada, como vimos anteriormente, com a grade de inteligibilidade neoliberal. Com esse predomínio neoliberal, o conhecimento propriamente dito fica esmaecido, uma vez que o eixo agora são as competências e habilidades. Isso é parcialmente resultado, segundo Biesta (2013), do processo de learnification, em que a linguagem da educação tem sido substituída pela linguagem da aprendizagem. Nesse cenário, os processos ganham destaque, e os conteúdos e propósitos da educação ficam em segundo plano.

Podemos pensar que o processo de construção do capitalismo emocional, no qual as emoções foram transformadas em microesferas públicas, transformou a emocionalidade, como discutido, em um nível instrumental, em um negócio significativo para o sujeito empresário de si. Acreditamos, deste modo que as concepções que versam sobre a necessidade de desenvolver na escola características socioemocionais presentes nos documentos aqui listados possuem ressonâncias com o ethos terapêutico. Supõe-se que, por meio do manejo e aprimoramento das emoções, é possível tirar proveito delas em termos profissionais, sociais e pessoais, caracterizando, assim, certa instrumentalização de tais aspectos.

A referida reforma possui ressonâncias com o capitalismo emocional, já que se pode identificar um interesse particular dessas reformas na questão da conduta dos sujeitos em termos de seus sentimentos, crenças e valores. “No século XXI, a gestão política da vida adquire um especial tom aonde o giro sobre o afetivo constitui um eixo chave das políticas e dos debates contemporâneos” (GRINBERG, 2017, p. 63). Nesse sentido, dinâmicas de autoajuda têm permitido montar os saberes que funcionam como racionalidades da nossa época, com um interesse maior na conduta dos seres humanos. Corroborando essa afirmativa, Silva (2017b) aponta que os currículos deste século enfatizam cada vez mais a conduta do aprendente; neles, as ferramentas de tradução e inscrição do currículo estão relacionadas com a vida e, assim, pouco se conectam com as disciplinas e o conhecimento propriamente dito.

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Recebido: 10 de Agosto de 2018; Aceito: 10 de Abril de 2019

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