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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.2 São Paulo abr./jun 2019  Epub 08-Ago-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i2p472-491 

Artigos

PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS DOS CÍRCULOS CONCÊNTRICOS

EPISTEMOLOGICAL ASSUMPTIONS OF CONCENTRIC CIRCLES

SUPUESTOS EPISTEMOLÓGICOS DE LOS CÍRCULOS CONCÉNTRICOS

Martin KUHN1 

Helena Copetti CALLAI2 

Cláudia Eliane Ilgenfritz TOSO3 

1 Doutor em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e Estágio de Doutorado Sanduíche na Universidad Autónoma de Madrid (UAM). Pós-Doutorado em Educação nas Ciências na UNIJUÍ. (Bolsista Capes/Prosup). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Frederico Westphalen - RS. E-mail: martk@outlook.com.br

2 Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado na UAM, com bolsa CAPES. Professora de Geografia no Departamento de Humanidade e Educação (DHE). Docente - pesquisadora no PPGEC - Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências - UNIJUÍ. Pesquisadora: PQ/CNPq Nível 1D - Bolsista de produtividade em pesquisa e PqG - Pesquisador Gaúcho - FAPERGS/RS. E-mail: copetti.callai@gmail.com

3 Doutora em Educação nas Ciências da UNIJUÍ e Estágio de Doutorado Sanduíche na Università di Bologna (Itália). Professora substituta na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo. E-mail: claudia.ilgenfritz@hotmail.com


RESUMO

O ensino dos Estudos Sociais nos anos iniciais do Ensino Fundamental é a temática deste texto. Por que ensinamos Estudos Sociais nos anos iniciais da forma como ensinamos? Que concepção epistemológica e pedagógica orienta essa forma de organização do currículo escolar? Como se produziu o ensino dos Estudos Sociais que toma como referência os círculos concêntricos? O objetivo é fustigar a tradição consolidada em torno da forma como ensinamos os conhecimentos dos Estudos Sociais nos anos iniciais da Educação Básica. É uma reflexão com caráter ensaístico permeada pelos anos de experiência de ensino nos anos iniciais e da formação inicial e continuada de professores. Antecipamos que a disposição curricular dos conteúdos dos Estudos Sociais está organizada tomando como referência os pressupostos epistêmicos dos círculos concêntricos, ou seja, do mais próximo e do mais imediato para o mais distante e abstrato ou do mais simples para o mais complexo.

PALAVRAS-CHAVE: Círculos concêntricos; Epistemologia; Estudos Sociais; Anos Iniciais

ABSTRACT

Teaching Social Studies in the early years of Elementary School is the theme of this text. Why do we teach Social Studies in the early years as we teach? What epistemological and pedagogic conceptions guide this kind of organization of the school curriculum? How was the Social Studies teaching that has as reference the concentric circles produced? The objective is to instigate the consolidated tradition around the way we teach Social Studies in the early years in the Basic Education. This is a reflection with an essay character permeated by years of teaching experience in the initial years and initial and continued education of teachers. We anticipate that the curricular arrangement of the contents of Social Studies is organized taking as reference the epistemological assumptions of the concentric circles, that is, from the closest and most immediate to the most distant and abstract contents or from the simplest to the most complex contents.

KEYWORDS: Concentric circles; Epistemology; Social studies; Early years

RESUMEN

La enseñanza de los Estudios Sociales en los años iniciales de la enseñanza fundamental es la temática de este texto. ¿Por qué enseñamos Estudios sociales en los años iniciales de la forma como la enseñamos? ¿Qué concepción epistemológica y pedagógica orienta esa forma de organización del currículo escolar? ¿Cómo se produjo la enseñanza de los Estudios Sociales que toma como referencia los círculos concéntricos? El objetivo es confrontar la tradición consolidada en torno de la forma como enseñamos los conocimientos de los Estudios Sociales en los años iniciales de la educación básica. Es una reflexión con carácter ensayístico permeada por los años de experiencia de enseñanza en los años iniciales y de la formación inicial y continuada de los profesores. Antecedemos que la disposición curricular de los contenidos de los Estudios Sociales está organizada tomando como referencia los presupuestos epistémicos de los círculos concéntricos, es decir, del más cercano y del más inmediato al más lejano y abstracto o del más simple al más complejo.

PALABRAS CLAVE: Círculos concéntricos; Epistemología; Estudios sociales; Años Iniciales

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Interrogar o instituído é perscrutar a tradição que se banaliza e sobre a qual não cabem mais perguntas. O presente texto tem o objetivo de fustigar a tradição consolidada em torno da forma como ensinamos os conhecimentos dos Estudos Sociais (História e Geografia) nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para quem foi ou é professor desses anos de ensino “sabe” e está instituído que iniciamos a aprendizagem dos conhecimentos sociais dos elementos mais próximos e simples, para os mais distantes e abstratos. O Livro Didático dos Estudos Sociais e o plano de trabalho do professor evidenciam que se parte do eu, para a família, para a escola, para o bairro, para o município, para o Estado, para o Brasil, e, por fim para o mundo. O professor delimita em cada série o que será ensinado, seguindo a lógica do simples para o complexo e do local para o global.

Essa forma de dispor o conhecimento dos Estudos Sociais no currículo dos anos iniciais é nominada de círculos concêntricos, conforme Cunha e Góes (1985 i), Callai (2005 ii) e Schmidt (2007 iii). A problemática, portanto, está presente na organização do dia a dia da escola, do professor e das aprendizagens, mas raramente é interrogada. Professores, quando questionados em atividades de formação continuada sobre como estão organizados os conhecimentos dos Estudos Sociais e sobre o porquê dessa forma de organização, pouco tinham a dizer. Há clareza sobre como estavam organizados sequencialmente esses conhecimentos; contudo, o porquê dessa forma, poucos haviam se questionado. O Curso Normal ensina assim, a Pedagogia ensina assim, os livros didáticos e os conteúdos estão dispostos assim, e, igualmente, o plano de trabalho da escola está organizado desse modo. Se assim está instituído, não parece muito pertinente ou não cabe interrogar o que está posto como tradição, pois passa a fazer parte da cultura escolar. É assim!

A intenção dessa reflexão é mexer no baú dessa tradição que se institui ao longo da construção da escola moderna. Algumas questões ajudam a orientar a discussão: por que ensinamos Estudos Sociais nos anos iniciais da Educação Básica da forma como ensinamos? Que concepção epistemológica e pedagógica orienta essa forma de organização do currículo escolar? Como se produziu essa forma de organização do currículo nas ciências sociais e humanas (História e Geografia)? O que significa organizar o currículo na lógica dos círculos concêntricos? Essa forma de organização das aprendizagens respeita as atuais discussões sobre o desenvolvimento da criança? Há alternativas para o ensino dos conhecimentos dos Estudos Sociais que rompam com a lógica organizativa dos círculos concêntricos? Se há, para que serve esse rompimento, em nome de que romper com o que a tradição consolidou? Esse ensaio teórico busca explicitar que concepções epistemológicas fundamentam essa forma de organização do currículo dos Estudos Sociais.

2 FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS: RACIONALISMO E REALISMO

As questões anteriormente apresentadas têm a intenção de guiar a reflexão que segue sobre a tradição epistemológica que orienta os círculos concêntricos. Desse modo, nada mais significativo do que conhecer as epistemologias que fundamentam a forma como organizamos o conhecimento e como esse conjunto de ideias estrutura a escola, o currículo e o fazer do professor.

2.1 O Racionalismo

Como apontado na introdução, a reflexão fará o esforço de desnaturalizar o naturalizado ou desbanalizar o banal, já que acerca dele não cabem mais perguntas. É corriqueiro ensinar da forma como ensinamos os Estudos Sociais e, via de regra, todas as escolas e professores ensinam mais ou menos da mesma forma. Assim, parece ser descabida a curiosidade sobre o porquê ensinamos História e Geografia da forma como ensinamos, pois já está instituído dessa forma.

A naturalização facilmente leva à passividade e à replicação pela simples razão de ser assim mesmo. É o que acontece no ensino dos Estudos Sociais tomando como referência os círculos concêntricos. Interrogar essa forma de organização do currículo e do ensino da História e da Geografia para os anos iniciais da Educação Básica significa pedir pelas razões que a justificam ou pela sua razoabilidade. Tal postura de estranhar o instituído requer que se escavem as razões em nossa tradição epistemológica e pedagógica. Afinal, quais as bases epistemológicas dessa forma de organização do currículo escolar dos Estudos Sociais?

Para responder a tal interrogação, retomamos, ainda que em largos passos, a modernidade em seus fundamentos epistêmicos. Assim, como explicita Saviani (1996), a modernidade não mais se interroga sobre as possibilidades de conhecermos, mas como se explica o conhecimento humano ou como conhecemos: razão ou experiênciaiv? Assim, racionalismo e realismo buscam, cada um a seu modo, explicar como conhecemos as coisas. Conforme Eby (1962, p. 129), “[...] o prodigioso avanço no conhecimento científico durante o século XVII deve ser atribuído à passagem do mero filosofar sobre a natureza para a experimentação cuidadosa”. René Descartes e Francis Bacon são os dois expoentes da modernidade que se voltam a pensar o melhor método para o progresso do conhecimento. Assim eles “[...] originaram duas linhas de pensamento filosófico que, nos séculos posteriores, produziram resultados espantosos” (EBY, 1962, p. 135). Desse embate, à medida que avançamos na modernidade, desde as contribuições da razão e da experiência, consolida-se o método científico, que se tornou a referência para o conhecimento seguro. Verdade e método coincidem.

Descartes (1596-1650) é o expoente pioneiro na formulação de um método racional para conhecer. Afirma a primazia da razão sobre a experiência e compreende que, a partir de um método correto, orientado pela razão, é possível conhecer de modo seguro e verdadeiro. Um conhecimento seguro funda-se no método matemáticov, ou como formulada nas palavras de Descartes (2002, p. 13-14), “[...] penetramos o reino da física e da matemática com espírito de pesquisador. Nem acreditamos, nem deixamos de acreditar, apenas neutros. Desejamos que as coisas sejam demonstradas. Entramos pela porta do ceticismo na tesouraria dos mistérios”. Desse modo, em sua busca pelo conhecimento claro e distinto, ele elabora o método. Conforme Eby (1962, p. 131): “Um mais alto grau de certeza apareceu na experiência humana - um sentimento de certeza baseado não na experiência pessoal de um indivíduo, mas em deduções racionais de leis inevitáveis e universais”.

Em Discurso do método: regras para a direção do espírito, na Segunda parte, Descartes apresenta os quatro passosiv para a condução do espírito em busca de um conhecimento seguro e verdadeiro: 1) “nunca aceitar como verdadeira nenhuma coisa que eu não conhecesse evidentemente como tal”; 2) “dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las”; 3) “conduzir por ordem os meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, aos conhecimentos dos mais compostos”; e, 4) fazer, para cada caso, “enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de não ter omitido nada” (DESCARTES, 2002, p. 31-32).

Dessa forma, para chegar a um conhecimento evidente, investigue as dificuldades de modo a torná-las livres de dúvidas. Para tal, proceda, em primeiro lugar, à divisão das dificuldades em tantas unidades quanto for necessário para melhor conhecê-las. Na sequência, organize as dificuldades das mais simples de conhecer às mais compostas, grau a grau. E, finalmente, feitas enumerações e revisões tão gerais, em nada ficando de fora, pode-se generalizar o conhecimento, reconhecendo-o como verdade universal. O erro, nessa perspectiva epistêmica, é associado ao mau uso da razão. Conforme Silva (2016, p. 68), “[...] a razão subjetivavii, conhece e domina, fornece os fundamentos, os pilares para a revolução científica moderna, que se processava, nos laboratórios do século XVI” e a elaboração de um método foram fundamentais.

Na Quinta parte da referida obra, Descartes ilustra detalhadamente como se procede no desenvolvimento de seu métodoviii. A partir do estudo dos movimentos do coração e das artérias, tornam-se claros os caminhos do movimento indutivo que, quando a investigação for diligentemente feita, permite deduzir verdades claras e certas. Para Descartes (2002, p. 45), “[...] as coisas por nós concebidas muito clara e distintamente são todas verdadeiras”, pois são ideias puras e simples, inatas no sujeito, estabelecidas por Deus. Assim, temos ideias a priori, “certas leis por Deus estabelecidas” em nós e na natureza e que podem ser observadas “em tudo o que existe e se faz no mundo” ((DESCARTES, 2002, p. 47). Assim, o estudo sistemático das coisas, dos fenômenos pelo movimento indutivo, permite deduzir e relacionar essas leis com as universais. Desse modo, a dimensão indutiva do método cartesiano, descrita e possibilitada por seus passos, tem por finalidade conduzir o espírito das coisas mais simples às mais complexas, de tal forma que, a partir delas, se possam deduzir as verdades e as leis impressas nelas pelo criador.

Descartes, ao apresentar a estrutura, a função e o funcionamento de cada elemento do coração e das artérias, esclarece como procede o método e torna claro o movimento feito pelo órgão. Segundo o autor, “[...] o coração de um grande animal provido de pulmões, pois é em tudo semelhante ao do homem” (DESCARTES, 2002, p. 51). Nesse sentido, acompanhar e compreender o movimento indutivo que Descartes faz é importante para a nossa posterior argumentação. Se compreendido que a descrição que segue foi feita lá pela primeira metade do Século XVII, chega a impressionar a riqueza e a precisão dos detalhes. Para não interromper o raciocínio indutivo por ele proposto, seguem seus apontamentos sobre a estrutura do coração (Figura 1) - das partes mais simples para as mais complexas. Esmiuçando-as parte a parte, elimina-se qualquer dubiedade ou obscuridade.

Fonte: Os autores.

Figura 1 Esquema representativo do método cartesiano, do mais simples ao mais complexo, para a produção do conhecimento. 

Feita a apresentação da estrutura do coração e das artérias, parte a parte das mais simples às mais complexas, Descartes segue para a descrição da função e do funcionamento de cada elemento. Assim, toma cada uma das partes, apresenta sua estrutura, função e descreve seu funcionamento. Dessarte, a função e o funcionamento da veia cava, com suas três membranas, a veia arteriosa, com suas três membranas, a artéria com suas duas membranas e a grande artéria com suas três membranas são descritas em termos de função e de funcionamento. O fluxo sanguíneo feito em cada parte e em todo o organismo é resultado do complexo movimento de cada uma delas, distribuído pelo corpo por veias e artérias e sua vinculação aos demais órgãos do corpo. Há outros detalhes que enriquecem o complexo funcionamento do coração e das artérias descritos por Descartes. Assim, a Quinta Parte demonstra como procede indutivamente o método cartesiano na condução do espírito em busca de verdades claras e certas.

Na Segunda parte da obra, Descartes (2002) apresenta as regras para a direção do espírito. A Regra I, na condução do método indutivo, orienta o passo a passo da investigação partindo dos elementos mais simples aos mais complexos. Tal modo de proceder deve conduzir o homem à contemplação da verdade. Nesse sentido, o percurso indutivo tem a finalidade de aumentar a luz natural da razão na explicação da realidade. A enumeração diligente e cuidadosa de cada particularidade da coisa investigada torna-a mais clara e certa, e permite estabelecer relações e deduzir as verdades. Na mesma direção, a Regra II afirma que não devemos dar crédito ao conhecimento que não seja perfeitamente conhecido, certo e indubitável, “a respeito dos quais não se pode duvidar” (DESCARTES, 2002, p. 75). Assim, se para os objetos puros e simplesix (aritmética e geometria) “em nada faz falta a experiência”, pois suas certezas são deduzidas pelo raciocínio, na investigação indutiva, o rigor é fundamental para produzir ideias claras e certas.

Acerca da Regra III, devemos investigar, declara Descartes, não o que os outros investigaram, mas aquilo sobre o qual podemos ter intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza. Para evitar o erro, o autor sugere que se proceda desse modo: “[...] vamos enumerar aqui todos os atos de nosso entendimento por meio dos quais podemos chegar ao conhecimento das coisas, sem receio de engano; não se admitem mais que dois, a saber, a intuiçãox e a deduçãoxi” (DESCARTES, 2002, p. 78). Nesse sentido, reitera Descartes que as ideias claras e distintas, a priori, se conhecem por intuição e, por sua vez, as ideias claras e certas derivadas do método são conhecidas por dedução. Dessa forma, para Descartes, o método seria uma condição necessária para a procura e a produção da verdade. O percurso indutivo procede, desse modo, começando “[...] sempre pelas coisas mais simples e fáceis, nunca passei a outras até que me parecesse que não ficava mais nada a desejar nas primeiras” (DESCARTES, 2002, p. 85). Aqui se evidencia o movimento indutivo do método racionalista de Descartes. Das regras do método indutivo, quando diligentemente aplicadas, é possível deduzir verdades racionais relacionadas umas às outras.

Descartes refere-se às ideias oriundas da intuição e da dedução valendo-se do conceito de absoluto e de relativo. Absolutas são as ideias a priori, de natureza pura e simples e são universais, portanto, inatas. As ideias relativas são dependentes e particulares, são mais simples. Contudo, as ideias relativas ou deduzidas podem ser referidas ou relacionadas às absolutas. No caso dos processos dedutivos, reitera Descartes (2002, p. 88), que não devemos “começar os estudos para a investigação das coisas difíceis”, mas pelas mais simples e delas deduzir outras, de modo a tornar a coisa clara e certa. Assim, a presença da dimensão indutiva do método cartesiano sugere a enumeração dos elementos da investigação de modo diligente e cuidadoso de tudo que está relacionado à questão, de forma que “podemos concluir com certeza e evidência” (DESCARTES, 2002, p. 91). Por “[...] enumeração suficiente ou indução entendemos somente aquela da qual se pode deduzir uma verdade com mais certeza que por qualquer outro gênero de prova, salvo a da simples intuição” (DESCARTES, 2002, p. 91). Para tal procedimento, sugere dividir as dificuldades em tantas partes quantas necessárias para melhor resolver uma questão, bem como conduzir de modo ordenado os pensamentos, começando dos mais simples e fáceis de conhecer até chegar, gradualmente, aos mais complexos. Assim, no método cartesiano, é a razão que processa o real. Isso é a dedução cartesiana. Conforme Jiménez (1989, p. 21), “[...] as construções conceituais e a linguagem delas derivadas aparecem como a realidade”, ou seja, como a realidade é uma construção racional.

De que modo a reflexão sobre o método de Descartes pode nos ajudar a pensar os círculos concêntricos em termos epistemológicos? Parece-nos que o terceiro passo (DESCARTES, 2002, p. 32) ou a Regra V (DESCARTES, 2002, p. 85) do método científico cartesiano, ou a decisão de ordenar os pensamentos começando com os elementos mais fáceis e simples para então subir, por assim dizer, passo a passo aos mais complexos e amplos para serem compreendidos, apresenta similaridade com a forma como dispomos os conhecimentos curriculares dos Estudos Sociais em termos de círculos concêntricos. Se concordarmos que essa regra se aplica à disposição curricular dos círculos concêntricos, podemos afirmar, então, que há elementos do método cartesiano nela presentes. Contudo, é significativo ter claro que se trata da dimensão indutiva do método, ou seja, o modo como ordenamos o real para conhecê-lo. Mais ainda, reconhecer que a forma de disposição dos conhecimentos, dos mais simples para os mais complexos, presente nos círculos concêntricos, não tem nada de natural, trata-se de um ordenamento do real resultante de um método. Nesse sentido, há intencionalidade nessa organização para atender a uma concepção de conhecimento sustentada por um método.

Desse modo, enumerar o fenômeno social em unidades sequenciais, do mais simples para o mais complexo, como sugere Descartes, torna-se significativo para o entendimento da nossa reflexão. Esse ordenamento racional aponta para um elemento central do subjetivismo moderno; o mundo, a natureza, o humano é produto de um ordenamento dedutivo, como aponta Horkheimer (1980). Tal como sugere Descartes, esse ordenamento do mundo real de juízos mais simples para juízos mais complexos é uma forma de limpá-lo de qualquer dubiedade. Trata-se do modo de operar da razão subjetiva em uma perspectiva lógica dedutiva. Por conseguinte, conclui Descartes (2002, p. 32) que “[...] as longas cadeias formadas por motivos racionais, de muito simples e fácil compreensão, [...] para chegar às mais difíceis demonstrações, me levaram a imaginar que todas as coisas que possam ser do conhecimento do homem se encontram na mesma relação”. Nessa acepção, podemos afirmar, preliminarmente, que a disposição dos conhecimentos dos Estudos Sociais na perspectiva dos círculos concêntricos trata-se de uma disposição lógica, uma determinada forma de produzir e ordenar o entendimento sobre os fenômenos. Tomemos isso como uma primeira forma de aproximação entre o proceder indutivo do método cartesiano e a disposição curricular dos círculos concêntricos.

2.2 O Realismo/Empirismo

As teses do racionalismo são duramente criticadas e interrogadas por filósofos realistas contemporâneos de Descartes, como Bacon (1561-1626), Locke (1632-1704) e Newton (1643-1727), entre outros. Mais do que simplesmente um conflito epistemológico, dos desencontros e dos encontros, do diálogo dessas duas racionalidades, ergue-se o edifício da ciência experimental moderna em que, conforme Silva (2016, p. 70), “[...] predominariam a observação sistemática e a experimentação”.

Para a ciência experimental, só é verdadeiro o conhecimento que oferecer explicações às causas dos fenômenos naturais, na medida em que “[...] o pensamento puder ‘representar’ fielmente as relações entre as causas e os efeitos, obedecendo a natureza” (SILVA, 2016, p. 70), em outras palavras, apresentar as leis gerais que regem os fenômenos particulares. Assim, a ciência experimental busca descobrir as leis dos fenômenos para dominá-las, controlá-las, prevê-las e a partir delas agir. Marques (1993) pondera que a ciência moderna da natureza não mais funda seu conhecimento em uma interpretação intelectual, descrição, como foi proposto por Descartes, mas que os fenômenos passam a ser “[...] tecnicamente constituídos; não são dados, mas resultados; não se descrevem, se produzem” (MARQUES, 1993, p. 42). Esse novo método, conforme Eby (1962, p. 138), era “[...] simplesmente o processo indutivo, usado com bom resultado pelos cientistas”, contexto em que a observação sistemática dos fenômenos do mundo exterior, combinada com a experimentação, tornam-se a fonte do conhecimento, do estabelecimento das leis da natureza.

Poder-se-ia dizer de uma ciência dedutiva para uma ciência indutiva. Contudo, não parece fazer justiça à história da ciência, uma vez que, em Descartes, também a investigação recorre à indução sistemática, por isso o entendimento de um encontro epistemológico, em que cada perspectiva sai interrogada. Realismo, empirismo, experimentalismo, positivismo, pragmatismo, mesmo com as suas particularidades, afirmam a centralidade do sensível perceptivo (real) no processo de construção do conhecimento. O conhecimento racional científico instrumentalizado busca conhecer as leis da natureza para dominá-la e explorá-la. O método indutivo, especialmente a partir dos pensadores realistas modernos, compreende que “[...] iniciemos com situações observáveis para depois raciocinar com afirmações e leis, contraria o enfoque escolástico, pois exige a verificação de situações específicas antes que um julgamento seja feito” (OZMON; CRAVER, 2004, p. 67). Nesse sentido, os fatos só são conhecidos pela experiência, oportunizada pelos sentidos, fundamentos de toda elaboração teórica.

Desse modo, no enfoque indutivoxii, chega-se à generalização (estabelecimento de leis gerais) partindo de observações sistemáticas da realidade particular experimentada. Como se descobriu muitos erros em proposições consideradas garantidas, oriundas do pensamento metafísico ou dedutivo, a exemplo do geocentrismo X heliocentrismo, Francis Bacon insiste que “todo o nosso conhecimento previamente aceito” (OZMON; CRAVER, 2004, p. 67) seja reexaminado. A ciência moderna, dessa forma, mais do que simplesmente propor outra lógica de produzir conhecimentos, questiona toda a tradição filosófica de base racionalista, bem como as próprias certezas do método dedutivo. Conforme Locke (2008, p. XV), a aceitação da “[...] existência de ideias inatas obriga à aceitação de vários dogmatismos: no plano do conhecimento abre curso a uma metafísica conceptualizadora e entificadora que minimizava a experiência”.

Vamos por partes. Discordante das teses racionalistas, Locke (2008) afirma que a nossa mente ao nascer é como uma folha de papel em branco, sem qualquer registro. Aceito esse pressuposto, ele pergunta: de onde a nossa mente tira os materiais da razão e do conhecimento? “A isto respondo com uma só palavra: da EXPERIÊNCIA” (LOCKE, 2008, p. 106). Ela seria o fundamento de todo conhecimento, ou fonte dele. A observação e a reflexão “[...] fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter” (LOCKE, 2008, p. 107). A condução de experiências, visitas, observações do real, conduzidas com as crianças, dariam os registros sensoriais para a formulação de ideias em um segundo momento. Aqui podemos radicar a nossa primeira aproximação entre epistemologia, psicologia e pedagogia. Um determinado modo de conceber o conhecimento e o desenvolvimento infantil, como organizadores do currículo escolar e das práticas pedagógicas da escola e do professor. No caso dos Estudos Sociais (História, Geografia ou conhecimentos sociais), esses conhecimentos são apresentados às crianças, em função de seu desenvolvimento cognitivo, dispondo-os pedagogicamente dos elementos mais próximos aos mais distantes ou, nas palavras de Callai (2005, p. 230), a compreensão de que a “[...] criança aprende por níveis hierarquizados - no caso do espaço, por níveis espaciais que vão se ampliando sucessivamente”.

Locke propõe que todas as ideias, as afirmações e os conhecimentos estão, em última instância, radicados na realidade. Para tal, reconhece duas fontes primordiais de experiência, uma externa (sensação) e a outra interna (reflexão) de onde deriva o conhecimento humano. A primeira fonte de nossas ideias são nossos sentidos. Apoiado na compreensão de Locke (2008), significa reconhecer que os sentidos introduzem os dados sensíveis em nossa mente a partir dos quais produz percepções. “Chamo sensação a esta grande fonte de maior parte das ideias que temos, posto que estas dependem totalmente de nossos sentidos e por eles são comunicados ao entendimento” (LOCKE, 2008, p. 107).

A outra fonte a partir da qual a “[...] experiência provê de ideias o entendimento é a percepção das operações interiores da nossa própria mente enquanto se debruça sobre as ideias que recebeu” (LOCKE, 2008, p. 107). A essas operações internas da alma que refletem sobre as coisas recebidas pela sensação, o filósofo chama de “reflexão”. Seria como que um debruçar da mente sobre as impressões deixadas pelas sensações. A reflexão constitui um conjunto de ideias que não se poderiam receber diretamente das coisas exteriores. “Tais são as de percepção, pensar, duvidar, acreditar, racionar, conhecer, querer e de todas as diversas acções do nosso próprio espírito” (LOCKE, 2008, p. 107). Por ora, deixamos as interrogações: como tem sido conduzido o ensino e a aprendizagem dos Estudos Sociais nos anos iniciais? De onde partimos?

Como a fonte de onde emergem todos os nossos conhecimentos é externa (para empiristas e positivistas), a posição do sujeito e da mente é “[...] puramente passiva e receptiva, exatamente como uma folha de papel recebe as impressões da pena. A mente não desempenha parte ativa na audição de um som, visão de uma luz, ou em qualquer das percepções originais que vêm a ela” (EBY, 1962, p. 253). Se na tese racionalista a mente é ativa e produtora das verdades, no realismo e em suas diversas denominações é a realidade que se impõe e se apresenta à mente, de onde se abstraem as elaborações teóricas. A máxima de Locke (2008, p. 108) - de que não há nada em nossa mente que já não tenha passado pelos nossos sentidos, pelas nossas experiências -, sustenta esse modo de conhecer. Reitera que “[...] os objetos externos fornecem à mente as ideias das qualidades sensíveis que são todas essas diferentes percepções por elas produzidas em nós; e a mente fornece ao entendimento as ideias das suas próprias operações” (LOCKE, 2008, p. 108, grifos do autor). Dessa forma, todo conhecimento se origina, em última instância, da experiência imediata. Sem incorrer em reduções e simplificações ingênuas, parece-nos que as práticas pedagógicas (vivências de aprendizagem) oportunizadas às crianças reproduzem o ritual apresentado pela tese empirista. Conduzimos as aprendizagens das crianças tomando o contexto concreto, a partir de percepções sensoriais, ida à realidade, observação e experimentação, como pressuposto à construção de aprendizagens pelas crianças. Essa linearidade do próximo para o distante ou o entendimento de que a criança constrói as aprendizagens referidas aos círculos concêntricos assumem a mesma matriz epistêmica, psicológica e pedagógica.

A ciência, por sua vez, na elaboração de uma ideia, de uma teoria, de uma lei, pressupõe sempre a presença da observação sistemática e da experiência. Não se trata, assim, de uma simples impressão da realidade em nosso intelecto, a partir do qual formulamos nosso entendimento, tal qual sugere o realismo ingênuo. Se a tese realista afirma que nada há em nossa mente, em nosso intelecto que não tenha partido da realidade e acolhida pelos nossos sentidos, podemos também afirmar que não há em nossa ciência experimental moderna conhecimento acerca da natureza que não tenha sido sistematicamente observado e experimentado a partir do método. Assim, para o realismo e a ciência experimental moderna, a realidade é o ponto de partida para o conhecimento.

O que significa isso em termos de ciências experimentais analíticasxiii? Significa em palavras simples que todas as verdades para serem reconhecidas e aceitas como legítimas necessitam passar ou se submeter ao crivo do método científico, à observação sistemática e à experimentação. Passa a ser válido, reconhecido e legítimo o conhecimento submetido ao método científico que fragmenta e isola os fenômenos. Fora do método científico, há especulações, senso comum, conhecimentos tradicionais, que, para a ciência moderna, tem pouco ou nenhum valor. Assim, os princípios de objetividade, de neutralidade, de imparcialidade e de universalidade serão referência para a validade do conhecimento, são exigências da ciência. O que tomamos como conhecimento das ciências em nosso tempo, com o estatuto de verdade, foi produzido pelo método científico.

Uma ciência objetiva e neutra propõe-se a produzir um conhecimento objetivo e neutro que funda certezas e verdades. Como nos recorda Descartes, que nada seja verdade que não tenha sido submetido aos rigores do método, premissa válida tanto para os racionalistas quanto realistas, mas fundamentalmente para a ciência. Importa ainda salientar que esse método, construído sob fundamentos matemáticos e das ciências da natureza, será a baliza para o conhecimento verdadeiro. Os conhecimentos, sobre os quais o método não pode ser aplicado, em função de sua “materialidade”, caem no campo do descrédito, como acontece com a Filosofia e, posteriormente, com as demais ciências humanas e sociais.

Assim, ao longo da modernidade, confirma-se o crescente predomínio da ciência experimental na produção do conhecimento, contribuições das epistemologias tanto de cunho racionalista como empirista. “O pleno conhecimento da natureza deveria ser feito, desde então, a partir de uma nova ciência por meio de um novo método - prático, indutivo” (SILVA, 2016, p. 70). Trata-se da construção de uma racionalidade científica, ou seja, a razão está à disposição da ciência para a organização de modo sistemático do que a observação e a experimentação produziram.

Desse modo, faz sentido o entendimento de Marques (1993) de que o conhecimento da ciência moderna, um modo de ordenamento do mundo, é uma construção técnica, fundada nos rigores da ciência e da experimentação científica. Bauman (1999), em Modernidade e Ambivalência, afirma que a modernidade se caracteriza pela eliminação do caos, ou seja, de toda desordem. A racionalidade dedutiva e a racionalidade indutiva, na perspectiva de produzir conhecimento válido, legítimo, eliminam qualquer incerteza do caminho. Ambas se voltam à produção de uma ordem para o mundo, significa dotá-lo de uma - buscando suas leis, tanto nas ciências naturais quanto nas ciências humanas e sociais, como foi a intenção do positivismo.

3 O POSITIVISMO E OS ESTUDOS SOCIAIS

Para compreender as ciências humanas e sociais, algumas considerações sobre o positivismo são importantes. A perspectiva positivista infere que a legitimidade e a validade do conhecimento das ciências humanas e sociais só serão objetos de crédito se forem conduzidos segundo o rigor do método das ciências exatas ou da natureza. Assim, as ciências humanas e sociais na busca de estatuto de ciência acolhem as diretrizes do método científico para a compreensão dos fenômenos sociais e humanos. Contudo, é preciso reconhecer que se trata de conhecimentos de naturezas diferentes. Se, no âmbito das ciências naturais, podemos submeter os fenômenos à experimentação para a formulação de leis gerais ou universais, no caso das ciências humanas e sociais, a objetividade e a neutralidade tornam-se mais complexas. Como pondera Carmo (2007), nas ciências sociais e humanas, uma vez que as variáveis são inumeráveis, seria impossível apreendê-las em sua totalidade. Nesse sentido, as ciências humanas e sociais são contingentes, seus fenômenos são interpretados e compreendidos em um contexto situado no tempo e no espaço.

Nas palavras de Ribeiro (2006, p. 10), o positivismo trata-se de um programa cujo objetivo “[...] fundamental era unificar as duas culturas - a humanística e a científica - num novo humanismo, fundado na ciência; uma ciência capaz de redescobrir e reavaliar a exigência humana, conferindo-lhe um significado de valor universal”. A busca pelas leis que governam a sociedade é a meta: conhecer para controlar e intervir na sociedade e quem sabe resolver seus problemas. O cientista social, objetivo, neutro e imparcial na investigação dos fenômenos sociais torna-os conhecimentos válidos universalmente. Nesse contexto, pondera Morin (2014, p. 17), “[...] as ciências antropossociais adquirem todos os vícios da especialização sem nenhuma de suas vantagens”. O autor conclui que “[...] os conceitos molares de homem, de indivíduo, de sociedade, que perpassam várias disciplinas, são de fato triturados ou dilacerados entre elas, sem poder ser reconstituídos pelas tentativas interdisciplinares” (MORIN, 2014, p. 17). Perde-se, nesse processo, a dimensão social e histórica dos fenômenos sociais e humanos. Dessa maneira, o que podemos observar é que, no âmbito do currículo e dos conteúdos desenvolvidos na escola, estes estão descolados de sua dimensão histórica e contextual. A escola e o professor, em sua tentativa de ressignificação (aproximação do contexto), tornam as disciplinas um conjunto de atividades práticas que, muitas vezes, não conseguem dialogar com os conceitos (conhecimentos sistemáticos das disciplinas) que as crianças necessitam aprender para ler, interpretar, compreender, pensar e agir no mundo.

O movimento da ciência moderna positivista apresentado configura a base epistêmica de produção e de organização do conhecimento que se materializará no currículo escolar. Da tradição racionalista e empirista do método, sobressai-se o entendimento de que a produção de conhecimento seguro requer uma verificação sistemática, observação e experimentação, organizada de modo racional (dedutivo ou indutivo), trata-se de um modo de ordenamento do mundo. A ciência moderna produziu os imprintingxiv que organizam o nosso modo de pensar, de explicar, de ordenar o mundo, a sociedade, a escola, etc. A distinção entre as ciências naturais e as ciências humanas, assim como a divisão em múltiplas disciplinas, bem como a subdivisão do currículo escolar em unidades menores, capítulos, temas, aulas, etc., são oriundos dessa concepção de ciência e dessa forma de ordenamento do mundo.

Marques (1993, p. 106), ao referir-se à organização do currículo escolar orientada desde a perspectiva da ciência moderna, configura-a como “[...] justaposição de disciplinas autossuficientes, grades nas quais os conhecimentos científicos reduzidos a fragmentos desarticulados se acham compartimentados, fechados em si mesmo e incomunicáveis com as demais regiões do saber”. Os círculos concêntricos que dispõem o currículo dos Estudos Sociais nos anos iniciais, de herança positivista, são a tradução pedagógica da racionalidade científica, um modo de compreendermos e ordenarmos o mundo e a sociedade. Embora aqui estejamos problematizando o currículo dos Estudos Sociais, parece-nos que essa racionalidade se estende também às demais disciplinas do currículo escolar. Desse modo, a disposição da realidade (conhecimento e conteúdo) referida aos círculos concêntricos produz uma determinada estrutura da realidade, cosmovisões, um mundo social, uma ordem política e econômica, uma ordem cultural, subjetividades, modelos pedagógicos, teorias da aprendizagem, etc.

Quando a escola parte do pressuposto de que a criança conhece, aprende tomando como referência a experiência da realidade imediata, significa reconhecer a indução como procedimento racional para a organização das aprendizagens, mesmo que este real seja o conhecimento sistematizado na forma de conteúdo abstraído apresentado pelo livro didático. Parte-se do real, do próximo mais simples para elaborar proposições cada vez mais amplas e complexas. Retrata-se aqui a proposição positivista que, conforme Ribeiro (2006, p. 21), afirma ser próprio da ordem lógica da inteligência “[...] passar do mais simples e abstrato para o mais completo e concreto, conforme a regra da síntese proposta por Descartes”.

Nesse sentido, quando se organiza o conhecimento escolarizado do próximo e imediato para o distante e o abstrato, reafirma-se a posição epistemológica realista de lógica indutiva, do particular se formulam leis gerais. Assim, compreendemos que a organização do currículo escolar dos Estudos Sociais, a partir dos círculos concêntricosxv, reproduz a lógica indutiva, uma vez que aquele conhecimento ali sistematizado nada mais é do que a experiência imediata organizada pela ciência para compreendermos o real para ser apresentado às crianças. Acredita-se, pois, que a criança pode “repetir” aquelas experiências e com elas aprender. Mais do que isso, a escola e o currículo tradicional acreditam que a transmissão dessas experiências à criança alargará sua possibilidade de ler, de interpretar e de compreender o mundo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os pressupostos filosóficos e epistemológicos apresentados são as referências da tradição à produção e à organização do conhecimento disposto no currículo dos Estudos Sociais. A proposição curricular que parte do mais simples, do mais próximo e imediato observável da realidade experienciada, para produzir ideias e conhecimentos, segue a perspectiva epistêmica realista/positivista. E mais, no âmbito da prática escolar, via de regra, a realidade é tomada em seu modo mais elementar. Destarte, a organização curricular que parte do eu, para a família, para a escola, para o bairro, para o município, para o Estado, para o Brasil e, deste para o mundo, não se trata de uma disposição sem lastro epistêmico, psicológico ou pedagógico. Reproduz uma lógica epistêmica indutiva que parte da realidade particular para o universal; portanto, um ordenamento da realidade e do mundo. Desse lastro epistêmico, desdobram-se uma psicologia e uma pedagogia do desenvolvimento humano de caráter evolucionista.

Desse modo, afirmamos que a disposição do currículo dos Estudos Sociais (História e Geografia) em termos de círculos concêntricos remete a uma epistemologia realista/empirista. Cabe ressaltar que a presença do 3º passo ou a regra V do método cartesiano nessa disposição, como fica anunciado ao longo da reflexão, não é contrária a essa racionalidade. Reitera-se que essa regra do método cartesiano tem caráter indutivo e orienta a forma de ordenar o real para torná-lo possível de ser apreendido de modo claro e certo pela razão. Dividir, enumerar a questão a ser investigada dos elementos mais simples, de mais fácil apreensão, para os mais complexos, de mais difícil apreensão, tem a finalidade de ordenar os pensamentos, para que, a partir deles, possamos deduzir verdades racionais. Assim, os círculos concêntricos remetem ao encontro de elementos compreensivos formulados por racionalistas como por realistas, especialmente ao que se refere à dimensão indutiva. Contudo, para além dos pressupostos epistêmicos e estreitamente com eles relacionados, carecem ser investigadas as questões da psicologia e da pedagogia moderna que contribuíram para a consolidação dos círculos concêntricos como modo de compreender o processo de desenvolvimento humano, de aquisição do conhecimento e de ordenamento do currículo escolar dos anos iniciais.

REFERÊNCIAS

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SILVA, Sidinei Pithan da. Pós-modernidade, capitalismo e educação. Curitiba: Appris, 2016. [ Links ]

i De acordo com Cunha e Góes (1985 apudMARQUES, 2008, p. 204): “A intenção era a de enquadrar o indivíduo em uma sociedade harmônica baseada no lema Deus, Pátria e Família, com ênfase para os papéis individuais como meio de progresso e bem-estar de todos. [...]. O conteúdo do Ensino Primário estava centrado na relação família, escola e comunidade como forma de celebrar a coesão social e condenar os comportamentos desviantes desse padrão”.

ii Conforme Callai (2005, p. 230), os círculos concêntricos constituem uma prática de ensino que considera “[...] que se deve partir do próprio sujeito, estudando a criança particularmente, a sua vida, a sua família, a escola, a rua, o bairro, a cidade, e, assim, ir sucessivamente ampliando, espacialmente, aquilo que é o conteúdo a ser trabalhado”. A autora acrescenta que “[...] os Círculos Concêntricos, que se sucedem numa sequência linear, do mais simples e próximo ao mais distante” (CALLAI, 2005, p. 230). Em suas ponderações críticas, ela reconhece que “[...] esse procedimento constitui mais um problema do que uma solução, pois o mundo é extremamente complexo e, em sua dinamicidade, não acolhe os sujeitos em círculos que se ampliam sucessivamente do mais próximo para o mais distante” (CALLAI, 2005, p. 230).

iii O estudo da localidade, no contexto das reformas do ensino da década de 1970, conforme Schmidt (2007, p. 188 apudGERMINARI, 2014, p. 357), “[...] era entendida como sinônimo de comunidade e como referência para o ensino de Integração Social, articulando atividades de História e Geografia. Esse ensino privilegiava o estudo do meio mais próximo. Trata-se de uma concepção geográfica de articulação dos conteúdos curriculares, conhecida como ‘currículo por círculos concêntricos’”.

iv Para ampliar a compreensão, sugere-se a leitura de Saviani (1996, p. 38) Educação: do senso comum à consciência filosófica. Conforme o autor, especialmente a partir de Kant, “[...] não se questiona mais sobre se é possível o conhecimento humano; isso já não era um problema para sua época”. Ele admite que o homem conhece, mas a pergunta que formula é expressa nos seguintes termos: como se explica o conhecimento? Segundo a perspectiva racionalista ou segundo a perspectiva empirista? “Em face a situação descrita, Kant colocou-se a questão fundamental: como é possível o conhecimento humano”? (SAVIANI, 1996, p. 38).

v Por que o método matemático? “Comprazia-me especialmente com as matemáticas, a exatidão e evidência de seus raciocínios” (DESCARTES, 2002, p. 24), e a isso soma-se o entendimento de que apenas “[...] os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes” DESCARTES, 2002, p. 31) a partir do ordenamento das razões das mais simples e fáceis às mais complexas das quais se podem deduzir longas cadeias de raciocínios que conduzem a um conhecimento claro e certo. Disso depreende o entendimento que o modo de proceder matemático para produzir conhecimento claro e evidente pudesse ser estendido às demais ciências. Dessa proposição de Descartes, parte o entendimento de que as ciências experimentais modernas devem se orientar a partir do modelo matemático, e tal referência passou a ser a norma, inclusive para as humanidades, por meio do positivismo.

vi Apresentadas geralmente como quatro passos ou regras, mas são um total de 21 e não serão todas referidas aqui.

vii “La razón subjetiva regula, exatamente, dos relaciones fundamentales que el sujeto puede entablar (estabelecer) con los objetos posibles. Por ‘objeto’ entende la filosofia de la subjetividad todo lo que puede ser representado como siendo; y por ‘sujeto’, la capacidad de referirse en actitud objetivante a tales entidades en el mundo y la capcidad de adueñarse (assumir/produzir) de los objetos, bien sea para representárselos tal como son, o bien para producirlos tal como deben ser” (HABERMAS, 2001, p. 494).

viii Descartes (2002, p. 81) entende por método “[...] regras certas e fáceis, graças às quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz”.

ix Por objetos puros e simples, Descartes compreende os conceitos da intuição, não oriundos do universo empírico. “São mais fáceis e claras de todas e têm um objetivo como o que buscamos, visto que nelas, se não é por inadvertência, parece difícil um homem se enganar” (DESCARTES, 2002, p. 77).

x Por intuição, Descartes (2002, p. 78-79) entende “[...] o conceito do espírito puro e atento, [...] que nasce apenas da luz da razão, e que, por ser mais simples, é mais certo que a mesma dedução”. Aqui é importante atentar para o termo “simples” duplamente usado ao longo do texto. Nos passos do método indutivo proposto por ele, simples refere-se aos elementos empíricos mais próximos e elementares, mais fáceis de serem observados e experimentados, mas também é utilizado para se referir à intuição pura, produto da razão não contaminada pelo universo empírico. Asserções intuitivas (simples) não carecem de universo empírico para serem aceitas como claras e certas, pois são verdades a priori.

xi Por dedução, Descartes (2002, p. 79) compreende “[...] tudo aquilo que se segue necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza”. Não evidentes em si mesmas, mas deduzidas de “[...] princípios aceitos como verdadeiros e já conhecidos, por um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento, que já intui nitidamente cada coisa em particular” (DESCARTES, 2002, p.79). Assim, do percurso indutivo proposto por Descartes, podemos deduzir, por sucessão, ou pela sequência de argumentos, verdades claras e distintas.

xii Para Chaui (2003, p. 67-68), a indução realiza um caminho inverso ao da dedução. Na indução, “[...] partimos de casos particulares iguais ou semelhantes e procuramos a lei geral, a definição geral ou a teoria geral que explica e subordina todos esses casos particulares”.

xiii Para Aron (2007, p. 88), “[...] as ciências da natureza inorgânica, a física e química, são analíticas no sentido de que estabelecem leis entre fenômenos isolados, e isolados e necessária e legitimamente”. Tal percepção é importante quando se pondera acerca da produção do conhecimento em suas diversas especialidades, nas quais os fenômenos são fragmentados e isolados para serem conhecidos. De um modo ou de outro, a fragmentação/disciplinarização do conhecimento em áreas, depois em disciplinas com suas especificidades, se enraíza nesse modo de compreender a realidade.

xiv “No plano da universidade, encontramos aí um fenômeno que a etologia (estudo do comportamento animal) revelou, que é imprinting. Trata-se da famosa história dos passarinhos de Konrad Lorenz: o passarinho sai do ovo, sua mãe passa ao lado do ovo e ele a segue. Para o passarinho, o primeiro ser que passa perto do ovo de onde ele saiu é a sua mãe. Como foi o gordo Konrad Lorenz quem passou ao lado do ovo, o passarinho tomou-o por sua mãe e temos toda uma ninhada de passarinhos correndo atrás de Konrad, persuadidos de que ele é a mãe. Isso é o imprinting, marca original irreversível que é impressa no cérebro. Na escola e na universidade, sofremos imprinting terríveis, sem que possamos, então, abandoná-los. Depois disso, a invenção acontecerá considerados como dissidentes ou discordantes” (MORIN, 2014, p. 50).

xv Embora o contexto em questão esteja dirigido para as especificidades da disposição do currículo escolar dos Estudos Sociais, é pertinente ponderar que essa forma de organização está presente em explicações cosmológicas clássicas. Assim, por exemplo, a cosmologia ptolemeica/aristotélica dispõe o mundo em círculos concêntricos (sistema geocêntrico). Se na modernidade mecanicista formulamos outra cosmologia, a copernicana/galileiana (sistema heliocêntrico), mas ainda preservando a disposição concêntrica. Somente as explicações contemporâneas descentram os sistemas explicativos concêntricos, questionando um centro e colocando o universo em expansão. Desse modo, radicalizando, podemos afirmar que esses sistemas cosmológicos são estendidos a outras dimensões de organização da realidade e da sociedade. Os círculos concêntricos presentes no currículo escolar seriam uma tradução desses sistemas.

Recebido: 17 de Dezembro de 2018; Aceito: 27 de Maio de 2019

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