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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.2 São Paulo Apr./June 2019  Epub Aug 08, 2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i2p768-787 

Artigos

APRENDIZAGENS INTERDISCIPLINARES SIGNIFICATIVAS: FILOSOFIA EM INTERLOCUÇÃO COM A ARTE

SIGNIFICANT INTERDISCIPLINARY LEARNING: PHILOSOPHY IN INTERLOCUTION WITH ART

APRENDIZAJE INTERDISCIPLINARIO SIGNIFICATIVO: LA FILOSOFÍA EN DIÁLOGO CON EL ARTE

Nádia Dumara Ruiz SILVEIRA1 

Luis Fernando Lima e SILVA2 

1 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Professora titular do Departamento de Fundamentos da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil. Pesquisadora e Docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Currículo na Linha de Pesquisa “Currículo, Conhecimento, Cultura” - PUC-SP. E-mail: ndrs@uol.com.br

2 Doutorando em Educação Currículo pela PUC-SP. Mestre em Educação Currículo pela PUC/SP. Especialista em Ensino de Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Licenciado em Filosofia. E-mail: fer_phresto@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar resultados de estudo desenvolvido sobre o ensino de Filosofia em interlocução com a Arte. Enfatiza-se o pressuposto de que a Arte se constitui em um recurso comunicativo, perceptivo e reflexivo no processo educativo em Filosofia, sendo este concebido de modo dialógico no qual o professor se caracteriza como importante mediador. Nesse viés, confirma-se a hipótese de que o reconhecimento do significado pedagógico da Arte, em sala de aula, pode ultrapassar o sentido usual de ilustração ou sensibilização, no ensino de Filosofia, respaldado na concepção interdisciplinar na interlocução de saberes. Destaca-se, nesse sentido, a dimensão da estética como linguagem que propicia construção de conhecimento por meio da Arte, conhecimento este não restrito à contemplação ou à apreensão do belo, mas como componente significativo do processo de construção de saberes e reflexões de natureza filosófica.

PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade; Ensino de Filosofia; Arte; Estética

ABSTRACT

This article aims to present results of a study developed on the teaching of Philosophy in interlocution with Art. Emphasis is given to the fact that Art is a communicative, perceptive and reflexive resource in the educational process in Philosophy, which is conceived in a dialogical way in which the teacher characterizes him/herself as an important mediator. In this bias, the hypothesis is confirmed that the recognition of the pedagogical meaning of Art in the classroom can surpass the usual sense of illustration or sensitization, in the teaching of Philosophy supported interdisciplinarity in the conception of interlocution of knowledge. In this sense, the dimension of aesthetics as a language that propitiates the construction of knowledge through Art is emphasized, a knowledge not restricted to the contemplation or apprehension of the beautiful, but as a significant component of the process of construction of knowledge and reflections of a philosophical nature.

KEYWORDS: Interdisciplinarity; Teaching Philosophy; Art; Aesthetics

RESUMEN

Este artículo pretende presentar los resultados de un estudio desarrollado sobre la enseñanza de la Filosofía en la interlocución con el Arte. Enfatiza el supuesto de que el Arte es un recurso comunicativo, perceptivo y reflexivo en el proceso educativo de la Filosofía, que se concibe de una manera dialógica en la que el profesor se caracteriza como un importante mediador. En este sesgo se confirma la hipótesis de que el reconocimiento del significado pedagógico del Arte en el aula puede ir más allá del sentido habitual de la ilustración o de la conciencia, en la enseñanza de la Filosofía apoyada por la concepción interdisciplinaria de la interlocución del conocimiento. En este sentido, destacamos la dimensión de la estética como un lenguaje que proporciona la construcción del conocimiento a través del arte, un conocimiento que no se limita a la contemplación o aprehensión de lo bello, sino que es un componente significativo del proceso de construcción del conocimiento y de las reflexiones de naturaleza filosófica.

PALAVRAS-CLAVE: Interdisciplinariedad; Enseñanza de la Filosofía; Arte; Estética

1 INTRODUÇÃO

Entendemos a atividade filosófica como rigorosa reflexão crítica sobre conceitos relativos aos conhecimentos científicos e a cotidianidade, na busca de uma compreensão sobre a realidade para além do perceptível aparente e imposto. Cabe à reflexão filosófica se dedicar ao estudo da pluralidade de “verdades” disponíveis pela tradição do pensamento humano, na dimensão histórica, econômica, cultural, religiosa, artística e social. Essa concepção sobre a natureza da Filosofia é caracterizada por Murcho ao enfatizar:

[...] de tantas posições diferentes quanto à natureza da filosofia, há uma certa convergência entre os filósofos. A filosofia é uma atividade crítica, que consiste no estudo rigoroso dos conceitos mais básicos que usamos no dia-a-dia, nas ciências (humanas e da natureza), nas religiões e nas artes (MURCHO, 2002, p. 21).

No que diz respeito ao ensino de Filosofia, embora especialistas em Filosofia e Educação revelem a importância dessa área do conhecimento e seu caráter formativo no desenvolvimento do pensamento crítico de crianças e de jovens, a disciplina de Filosofia insere-se, ao longo da história da educação brasileira, com oscilações entre sua permanência e retirada do currículo obrigatório nacional, mediante intencionalidades políticas, econômicas, sociais e concepções de ensino que se alteraram ao longo dos tempos.

Não diferentemente de contextos sociopolíticos anteriores, no Brasil atual, em que a disciplina de Filosofia é componente curricular obrigatório desde 2008, a questão de sua permanência na Educação Básica ainda é pauta de discussão no âmbito de políticas educacionais nacionais.

A Lei no 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, evidencia essa realidade ao deliberar sobre a reformulação do Ensino Médio e gerar incertezas sobre a permanência da Filosofia na matriz curricular, visto que o documento não faz menção à sua obrigatoriedade, mas dispõe sobre conteúdos filosóficos, como pode ser lido em seu Art. 3º, no § 2º, onde consta que: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia” (BRASIL, 2017, p. 1, grifos nossos). Essa determinação abre precedentes para uma nova retirada da disciplina do currículo, assim como admite a retomada da abordagem de conteúdos filosóficos como conjunto de temas transversaisi.

Entretanto, embora a questão da obrigatoriedade ou não do ensino de Filosofia na Educação Básica ainda se mantenha, este artigo propõe-se a enfatizar o exposto na Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que caracteriza os conhecimentos de Filosofia como necessários ao exercício da cidadania, o que nos remete à necessidade de refletir sobre significados diferenciadores das práticas educativas em Filosofia.

Nessa perspectiva, o presente estudo concebe a importância da experiência da interlocução da Arte em múltiplas linguagens artísticas com a Filosofia, tendo como premissa a relação imbricada entre a Filosofia e a Arte, tal como defende Danto (2010, p. 99), ao expor que “[...] a investigação do fato de que a arte se presta espontaneamente ao tratamento filosófico pode nos ensinar alguma coisa a um só tempo sobre filosofia e sobre a arte”.

Assim, a afirmação de que “A arte é pensar por imagens”, como abordado no texto A Arte como Procedimento ii , de Chklovski (1973), sintetiza o campo desta investigação. Pretendemos evidenciar a Arte em seu potencial altamente reflexivo e pedagógico na perspectiva de um ensino de Filosofia de modo interdisciplinar, respeitando as singularidades dessas áreas.

Os estudos de Fazenda (2003) apresentam subsídios teóricos que fundamentam essa perspectiva de estudo, ao explicitar o conhecimento interdisciplinar como busca da totalidade, respeitando a especificidade de cada disciplina, que, neste estudo, se configura pelos diferenciais dos campos da Arte e da Filosofia. A autora ressalta que a interdisciplinaridade se faz por meio da própria disciplinaridade, de forma reflexiva, dialógica e relacional, constituindo-se na “[...] arte do tecido que nunca deixa ocorrer o divórcio entre seus elementos, entretanto de um tecido bem trançado e flexível” (FAZENDA, 2003, p. 29).

A Arte como a Filosofia se coloca no campo de reflexão que visa superar o senso comum, ao abrir espaço para a problematização da cotidianidade e reflexão mais profunda sobre o mundo e o indivíduo. Justifica-se, nessa dimensão, assumir o desafio central de refletir sobre a interlocução de conhecimentos que articulem diferentes saberes de modo a conceber que experiências estéticas sensíveis e capacidades cognitivas não se desvinculam do processo de aprendizagem, assim como não se admite a necessidade de sobreposição de uma em relação à outra, visto que ambas são elementos constitutivos do saber reflexivo.

2 INTERLOCUÇÃO DE SABERES: FILOSOFIA E ARTE

A relação entre Filosofia e Arte caracteriza-se como um campo fértil à construção de conhecimento filosófico, partindo do pressuposto que este se constitui por inúmeras relações de significados que convergem em um campo de signos, símbolos e conceitos, trazidos pelas linguagens, pelas ações e pelos afetos, o que possibilita a experiência do conhecer.

O lugar da estética, como linguagem que propicia um conhecimento por meio da Arte, não é entendida como algo que se restringe à contemplação ou à apreensão do belo, mas, sim, como um elemento importante no processo de construção de saberes, o qual se dá por meio dos sentidos corpóreos, da subjetividade, da apreensão da expressividade simbólica do objeto artístico e da reflexão.

A fim de compreendermos a apreensão da Arte, como via de experiência de conhecimento, reportamo-nos aos dizeres de Merleau-Ponty (1945, p. 281), para quem “[...] ter a experiência duma estrutura não é recebê-la passivamente: é vivê-la, retomá-la, assumi-la, reencontrando o sentido imanente”. Em outras palavras, na busca de sentido a essa experiência estética, a Arte induz-nos a um movimento de desconforto, inquietação, questionamento e reflexão filosófica.

Com isso, dada a relevância de uma experiência associada à Arte, tendo como pressuposto o potencial altamente formador desse componente, deve-se objetivar e estimular as interrogações e as intersecções com outros saberes possíveis, o que se viabiliza no contato com o objeto estético.

Segundo Jorge Larrosa (2011), a experiência é uma condição necessária para a formação e a transformação do indivíduo. No texto Experiência e Alteridade em Educação, Larrosa (2011) aponta algumas possibilidades de pensar a educação a partir do valor da experiência, atribuindo a ela o caráter “daquilo que nos passa”, ou seja, um acontecimento independente e exterior a nós, que nos atravessa e deixa um registro.

Nessa direção, a experiência decorrente de um acontecimento externo ao sujeito, mas que se dá nele, em um movimento contínuo de ida e volta, é representado por Larrosa como “princípio de reflexibilidade” ou “princípio de transformação”. Encontra-se, nessa concepção de experiência, uma possibilidade de transformação do sujeito, na medida em que este vai ao encontro do acontecimento e é afetado por ele, influindo no desenvolvimento de suas ideias, sentimentos, intenções, desejos, projetos e demais ações.

Cabe destacarmos, ainda, que, para o autor, a experiência é sempre singular, e é nessa singularidade subjetiva que se abre possibilidade ao caráter transformador e formador, daquele que é sujeito da experiência. Assim, é possível atribuir à experiência um papel relevante no aprendizado do aluno, por criar condições desencadeadoras de um processo de reconhecimento de si, como pessoa atuante no mundo e de desenvolvimento de seu pensamento crítico e emancipador.

Desse modo, a escolha pela abordagem estética no ensino de Filosofia baseia-se na compreensão de que é possível aprender por meio do objeto artístico, considerando a experiência e o pensamento que ele pode revelar.

[...] seja qual for o objeto do meu pensamento, aprendo ao mesmo tempo sobre o objeto e sobre o próprio pensamento, de modo que a estrutura dos objetos que o ato de pensar revela também são revelações sobre estruturas do pensamento. A natureza da filosofia é de tal sorte que ela parece estar logicamente coimplicada em cada objeto de que se ocupa (DANTO, 2010, p. 99).

A Arte como objeto ao qual a Filosofia pode se articular nos direciona a refletir sobre seu potencial formativo, tendo em vista sua interlocução com outros saberes do ponto de vista da história, da linguagem, da cultura e da reflexão filosófica. Nessa perspectiva, este artigo concebe a Arte em seu potencial formador de discursos e promotor de saberes na dimensão do ensino de Filosofia, sem a pretensão de ter como objetivo a conceituação de Arte e sua finalidade, mas visando entender sua importância e seu potencial educacional interdisciplinar.

Torna-se compatível ter como referencial, como perspectiva de ensino e aprendizagem, a produção de Fazenda (1994), que entende a prática interdisciplinar como algo que propõe uma mudança de postura em relação ao saber, em substituição a uma visão fragmentada dele. A autora afirma que “[...] interdisciplinaridade não é categoria de conhecimento, mas de ação” (FAZENDA, 1994, p. 28).

A concepção de ensino de Filosofia que abarca a interdisciplinaridade tem o objetivo de estabelecer um campo fértil à construção de conhecimento filosófico. Parte-se do pressuposto de que este se constitui por inúmeras relações de força que convergem em um campo de signos, símbolos e conceitos, trazidos pelas linguagens, pelas ações e pelos afetos, os quais possibilitam uma experiência com o conhecimento, incluindo aí a experiência estética com o objeto de Arte.

Gardner (1999, p. 57) afirma que “[...] o sensível e o intelectual não estão dissociados dos processos cognitivos, uma vez que o indivíduo necessita do sistema corporal, sensível e cognitivo para comunicar-se no mundo das ideias, das sensações e das emoções”. Tal afirmação nos leva a crer e ressaltar que tanto o conhecimento sensível quanto o racional têm seu grau de importância no processo de ensino e de aprendizagem, pois ambos são partes integrantes e essenciais na experiência humana.

Entendemos ainda que aprendizagem significativa em Filosofia é aquela que vai além da apresentação e da discussão de conceitos, que promove uma experiência de conhecimento visando à totalidade e se coloca aberta a novas possibilidades de interpretação da complexidade do mundo, na qual a Arte possui potencial altamente formador, suscitando estímulos instigantes às interrogações e às intersecções com outros saberes, no seu contato com o objeto estético.

2.1 A linguagem artística e seu potencial reflexionante

A Arte insere-se no mundo como produção humana de ordem estética, constituída pela linguagem e expressa sob diferentes manifestações artísticas, como: pintura, desenho, escultura, música, dança, teatro, cinema e outras.

Cada teoria da arte busca à sua maneira as propriedades definidoras do que é Arte e requer para si a condição de conhecimento reconhecido como verdadeiro, alertando para a insuficiência de teorias anteriormente constituídas, ao formular sua definição. Desse modo, considerando a existência de uma pluralidade de interpretações sobre o que caracteriza a Arte, tomaremos inicialmente a noção de arte tida por Danto (2010, p. 105), para o qual “Arte é um conceito aberto”, e a abordagem de Coli (1995, p. 8), ao entender a arte como “[...] certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo, isto é: nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia”. Essa concepção de que a arte é algo mais elevado, que se origina no mundo como objeto criado na cultura e pela cultura, englobando aspectos históricos, sociais, políticos e estéticos, adquire seu estatuto mediante uma noção própria da cultura na qual se insere.

Definir a Arte constitui-se em um processo complexo, pois seria simplista afirmar que a sua legitimação é norteada por uma única teoria, de responsabilidade dos críticos e historiadores de arte, visto que os discursos desses especialistas em Arte são variáveis. Dentre os diversos fatores a serem considerados, situam-se, na análise técnica da obra, a relação entre a cultura do crítico e a do artista e até mesmo um conhecimento sobre os problemas identificados na obra. Assim, dada a complexidade desse processo de conhecimento, o estatuto de Arte “[..] não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos da nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai”, conforme descreve Coli (1995, p. 11).

Tendo em vista a noção de que a obra de Arte se compõe de instrumentos de caráter histórico e cultural, é muito comum instaurar aos objetos de arte um lugar específico no mundo, como salas de concerto, museus, teatros, cinemas, revistas especializadas, embora existam manifestações artísticas que se encontram inseridas em outros espaços.

Diante desse contexto e condizente com a proposição deste estudo, reconhecemos como instigante discutir sobre a possibilidade de promover situações de aprendizagem em Filosofia considerando o objeto estético, de modo significativo, no interior da sala de aula, ou seja, em espaço diferenciado dos lugares comumente prestigiados às obras de Arte.

Ao ressaltarmos a Arte e seu potencial formador de conhecimento específico em Filosofia, cabe destacarmos que tipo de objeto artístico torna-se expressivo em seu caráter comunicativo e perceptivo, no qual a experiência estética de fruição pode se estender a uma reflexão de natureza filosófica. A noção de fruição, adotada neste estudo, é referenciada por Roland Barthes ao indicar que:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, que rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura. Texto de fruição; aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 1977, p. 21, grifo do autor).

Nota-se a sinalização, nessa citação, da distinção entre o texto de prazer e o texto de fruição. Embora o conceito de fruição formulado por Barthes se refira especificamente à experiência com os textos, neste estudo seu sentido é expandido, por ser aplicado a todas as manifestações artísticas.

Em sua concepção de texto de fruição, o referido pensador entende por aquele que “[...] pesa, cola-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens” (BARTHES, 1977, p. 19). O autor contempla ainda uma explicitação complementar de sua definição ao reforçar:

Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 1977, p. 22).

Embora na obra O prazer do texto, Barthes (1977) dedique-se a discorrer sobre o prazer da leitura a partir do “espaço” entre o autor/leitor, assumindo que é nesse “espaço” que se encontra a possibilidade de fruição e, consequentemente, o prazer que emerge do texto (tendo a escritura como objeto de fruição da linguagem), este estudo adota uma perspectiva ampliada desse conceito, ao associar a fruição a outras linguagens artísticas, e não a restringindo à linguagem escrita.

A fruição da obra de Arte dá-se mediante a experiência com o objeto estético, configurada no espaço ou lacuna deixado pelo próprio autor da obra de arte. Após a criação artística, a obra ganha uma vida autônoma, sendo impossível ao seu criador ter garantias de que as intencionalidades por ele representadas serão compreendidas em sua integralidade, o que exige do espectador dessa criação artística um exercício de entendimento e, muitas vezes, ressignificação do objeto de Arte, na tentativa de preencher os vazios existentes na obra, a cada novo contato com ela.

Nessa perspectiva reflexiva, a experiência estética é entendida em seu potencial sensível e como corpo reflexionante, tal qual Cerón e Reis (1999) concebem, ao considerar que, em muitos casos, se faz necessário atribuir significado ao que se está sentindo ou vivenciando, sendo essa sensação ou vivência fomentada por um processo reflexivo, criando uma relação de interdependência entre o sensível e o intelectual.

Assim, o objeto de Arte que causa fruição abre espaço a um procedimento reflexivo e não somente contemplativo, ilustrativo, ou sensibilizador, visto que, a partir de uma experiência sensível com o objeto de Arte, se identifica que este “[...] é reflexionante por ser requisitado a prestar contas sobre o significado do que está sentindo, e o que está sendo sentido é por sua vez alimentado por essa reflexão” (CERÓN; REIS, 1999, p. 232).

Ao atribuir aos objetos Arte geradores de fruição uma convergência com a Filosofia, assume-se que deles emergem tanto experiências sensíveis quanto reflexionantes em seu interlocutor, o que possibilita uma ressignificação desse processo de conhecimento do ponto de vista dialógico.

2.2 Dialogicidade no processo de construção de sentido

Ao abordarmos sobre o processo dialógico, de forma a refletir sobre o potencial reflexionante das obras de Arte, consideramos que estas são concomitantemente reflexo de um processo criativo que possibilita novas interpretações e ressignificações, por parte de seu interlocutor, na experiência com a obra de Arte. Isso impõe a questão dos enunciados discursivos.

No que diz respeito ao dialogismo, conceito entendido à luz de Bakhtin (2002), importante pensador da linguagem, nossa opção foi por entendê-lo de maneira abrangente e não especificamente quanto ao caráter linguístico ou literário, a fim de apresentar as possibilidades e as intencionalidades comunicativas dos discursos no processo de aprendizagem em Filosofia a partir da experiência estética. O que nos direciona a esse conceito de dialogismo e à concepção de linguagem de Bakhtin é o entendimento de que suas reflexões e produção privilegiam não só a ação do eu individual e particularizado, mas a ação interativa com o outro por meio da relação comunicativa do discurso.

Sobre o conceito de dialogismo, cabe destacarmos a definição expressa na obra Questão de literatura e de estética: a teoria do romance, originalmente publicada em 1975, pouco antes da morte de seu autor, Bakhtin. Suas sistematizações contemplam diversos ângulos implícitos nesse processo de conceituação, como explícito na formulação a seguir:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2002, p. 88).

Constatado que o dialogismo se faz pela relação de sentido de dois ou mais enunciados e por considerá-lo como parte integrante e indissociável no processo de comunicação, é que refletimos sobre a possibilidade metodológica de um ensino de Filosofia que explore a relação dialógica constituinte do objeto estético e sua recepção por parte de seu interlocutor, como experiência sensível e comunicativa que propicia um saber, baseado na experiência e na reflexão emergidas de um objeto de Arte, seja ele escrito, visual ou sonoro.

Ao focalizar a atuação do artista, envolvendo a criação do objeto de Arte, composição estética, enunciado discursivo, interpretação e ressignificação por parte de seu interlocutor, pressupõe-se um processo de interação, tensão e transformação de discursos. Isso interfere na produção artística e no produto final.

Para Bakhtin, o inacabamento dos signos da linguagem nos obriga a um exercício de compreensão de vários pontos de vista, a fim de captar os processos de construção de um significado particular. É no inacabamento da obra de Arte que se manifesta a dinâmica peculiar do processo dialógico de construção de sentido.

O inacabamento obriga-nos a um exercício variado de compreensão sobre um determinado fenômeno ou ideia a partir de diferentes pontos de vista, com o objetivo de captar o momento de construção de sua significação. É pelo inacabamento que percebemos a dinâmica que condiz com os conceitos bakhtinianos. Desse modo, ninguém pode se colocar frente a uma obra de Arte de modo passivo e impune no processo de sua leitura e entendimento, o que nos direciona novamente ao conceito de dialogismo, como componente imprescindível no processo de comunicação e entendimento de uma obra de Arte.

A relação entre elementos internos e externos da manifestação estética-artística pressupõe empenho pelo acabamento da obra. A noção de acabamento de Bakhtin (2002) implica uma construção de sentido do todo por meio de relações entre partes. Como categoria estética, a noção de acabamento valoriza a relação entre o eu e o outro em relações dialógicas do “eu-para-mim”, do “outro-para-mim”, do “eu-para-o-outro”. A referida noção tende a organizar um entendimento dos vários pontos de vista incidentes sobre a criação do objeto estético. Dessa forma, entendemos que o que é chamado de todo é uma determinação relativizada de visões individuais. Assim, os escritos bakhtinianos, em cada unidade de formulação teórica, são potencializadores de inúmeras questões sobre o universo da linguagem, o que nos permite múltiplas focalizações e possibilidades de reflexão em relação à temática em questão.

A Arte, neste artigo, sob a perspectiva do dialogismo bakhitiniano, na busca por uma compreensão de seu sistema de signos (entendemos por signo tudo aquilo que comunica), é criada a partir de um processo dialógico complexo de estreita ligação entre linguagem e sociedade, envolvendo uma atividade avaliativa e interpretativa de sujeitos em processo interativo. Nesse sentido, a vivência com o objeto de Arte é fundamental para que o saber advindo de uma experiência de fruição e de exercício de acabamento da obra de arte, ao identificar enunciados discursivos e refletir sobre suas intencionalidades, se torne os motores que conduzem à problemáticas filosóficas, suscitando conhecimentos específicos dessa área.

Cabe ressaltarmos que entendemos por discurso tudo aquilo que possui uma intencionalidade comunicativa. Tal premissa consolida nossa escolha em ter o objeto estético como significativo no processo de ensino de Filosofia, assumindo que a Arte pode promover reflexão, por meio de sua construção estético-discursiva. Uma obra de Arte que reflete uma ligação com seu tempo, espaço ou posição diante do mundo, se torna objeto de profícua reflexão de natureza filosófica, considerando que se constitui de um processo vivo de interação social, envolvendo interlocutor, história e sociedade.

O exposto até o momento remonta aos princípios bakhtinianos com o objetivo de evidenciar o potencial didático das obras de Arte nas aulas de Filosofia. Prosseguimos nossa reflexão sobre o processo necessário de mediação, realizado pelo professor de Filosofia, que adota como pressuposto didático a importância do objeto de Arte no processo educativo, como via de aprendizagem de conhecimentos específicos de Filosofia.

3 MEDIAÇÃO E ATITUDE INTERDISCIPLINAR

O papel do professor de Filosofia como mediador do processo de apreensão e construção de conhecimento das questões trazidas pelas obras de Arte, que, em consonância com conceitos filosóficos, explicita e problematiza as vozes discursivas do objeto de Arte, é de suma importância para a compreensão de um objeto artístico que é, a princípio, particular e não mensurável advindo de uma experiência individual. Desse modo, para refletir sobre o papel da mediação na concepção de ensino de Filosofia e sua relação com aprendizagens sobre Arte e Filosofia por meio do objeto estético, respaldamo-nos teoricamente no psicólogo russo Lev Semionovitch Vygotsky (1896-1934), segundo o qual o homem se produz na e pela linguagem, isto é, na interação com outros sujeitos e formas de pensar.

Contemporâneos, Bakhtin e Vygotsky viveram no mesmo país - a Rússia -, experienciando o mesmo momento histórico e ambiente teórico-ideológico. Embora possuam objetivos diferentes - Bakhtin, uma concepção social e histórica da linguagem; e Vygotsky, uma psicologia historicamente fundamentada - ambos concebem a importância de um processo de interação do eu com o mundo e com o outro, seja do ponto de vista da construção do sentido e significação, como é o caso de Bakhtin, seja como o processo de desenvolvimento cognitivo e psicológico do indivíduo, como em Vygotsky. É possível então identificarmos como ponto de encontro entre esses dois pensadores a valorização do método dialético como via de apreensão de saberes e de construção de identidades, o que possibilita um entrecruzamento de teorias, que, neste estudo, tende a reforçar o significado da obra de Arte no processo de aprendizagem de Filosofia.

O pensamento de Vygotsky faz-se relevante, nesta pesquisa, ao passo que contempla uma concepção de aprendizagem como processo interno, contínuo e interpessoal, que se dá por meio da linguagem e o contexto em que o sujeito da aprendizagem está inserido. Em seus estudos sobre os processos do desenvolvimento psicológico do indivíduo, o autor sistematiza três conceitos importantes do ponto de vista da aprendizagem e da psicologia, sobre os modos de operação no desenvolvimento mental e cognitivo, socialmente situados: desenvolvimento real, desenvolvimento potencial e desenvolvimento proximal.

O desenvolvimento real diz respeito ao conjunto de conhecimentos e de comportamentos que o indivíduo é capaz de produzir, no seu estado atual, ou seja, um conhecimento já constituído pelo indivíduo ao longo de suas vivências, como um saber estabelecido até o momento presente.

O desenvolvimento potencial, considerando a interação como componente fundamental na construção do conhecimento, é concebido como a capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de outros, como processo colaborativo na formação do indivíduo. Caracteriza-se pela possibilidade de alteração de desempenho mediante o auxílio de um par mais experiente, partindo da zona de desenvolvimento real para zona de desenvolvimento potencial, indicando, assim, um avanço na construção de funções psicológicas humanas e aprendizagem, por meio da interação social.

Por fim, temos a zona de desenvolvimento proximal, a qual se caracteriza pelo postulado da existência dos dois níveis de desenvolvimento já citados - real e potencial - definidos por Vygotsky. A zona de desenvolvimento proximal se configura como o caminho percorrido pelo indivíduo no processo de amadurecimento de um conhecimento, que, ao fim, se estabelecerá como desenvolvimento real. Assim, este se coloca como ponto de equilíbrio no processo de co-construção do saber, partindo da premissa de que o processo de desenvolvimento do indivíduo é contínuo.

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento (VYGOTSKY, 1984, p. 97).

Desse modo, vemos que o desenvolvimento real, desenvolvimento potencial e desenvolvimento proximal, são processos psicológicos importantes para a aprendizagem, visto contemplarem os avanços do indivíduo em sua apreensão do mundo e sua conexão com as estruturas socioculturais e históricas.

Embora Vygotsky não tenha elaborado uma concepção estruturada dos processos psicológicos do indivíduo, do nascimento até a fase adulta, constatamos, na teoria vygotskiana, a preocupação com o entendimento dos processos de desenvolvimento psicológicos por meio da aprendizagem, pois nela pressupõe a interação com o real, o ambiente e outras pessoas. Ao enfatizar a importância dos processos de aprendizagem, observamos que há, na teoria de Vygotsky, uma preocupação com o processo de intervenção pedagógica, o que atrai educadores a refletir sobre as práticas educativas ou docentes e sua função como promotoras do desenvolvimento do aluno.

Este artigo, ao ressaltar a importância da escola na formação e no desenvolvimento do indivíduo, por meio das práticas pedagógicas, reconhece também que ela se constitui em um ambiente propício para potencializar, estimular, problematizar e ressignificar o desenvolvimento pleno do aluno. Nesse sentido, colocamos a necessidade de dissertar sobre o papel do professor como agente ativo na relação educativa e interativa junto ao aluno.

A perspectiva da mediação vygotiskiana, no que concerne ao fazer pedagógico, atribui ao professor a capacidade de mediar a relação do aluno com o conhecimento. Consideramos, assim, que o desenvolvimento dos alunos está atrelado à concepção de ser social em suas várias relações com a sociedade (universal), constituindo-se como indivíduo (singular) por meio das mediações sociais e entendimento dos signos linguísticos de uma determinada cultura e momento histórico.

Essa concepção atribui ao desempenho do professor uma responsabilidade sobre a qualidade no exercício de uma mediação dialógica que efetive condições de interação e apreensão do saber, por meio de múltiplas linguagens. A relação comunicativa entre professor e aluno é sempre mediada por signos linguísticos com o intuito de comunicar, informar, explicitar, problematizar e argumentar sobre determinados conteúdos. Contudo, essa mediação primeira, dada pela linguagem, não é condição suficiente para assegurar um ensino significativo.

Cabe ressaltarmos, neste artigo, que a mediação do professor não se realizaria em sua totalidade apenas pela comunicação ou clareza na explicitação de signos linguísticos que indicam um determinado conteúdo, recaindo no modelo tradicional de aula expositiva, mas, sim, pela escolha de signos linguísticos que propiciam uma experiência de conhecimento significativa que coloque o aluno em situação de agente ativo no seu processo de construção de conhecimento.

A mediação, na concepção de Ensino de Filosofia expressa neste artigo, assume dupla função, a mediação do professor entre o aluno e o conhecimento formalmente estruturado, como ação relacional que promove construção de saber cognitivo, e a mediação do professor envolvendo o aluno e a obra de Arte, na dimensão de um saber que perpassa a experiência estética. A obra de Arte é entendida como objeto que propicia conhecimento, constituída de signos e sentidos que deverão ser na medida do possível e realizável, experienciados pelos alunos, problematizados, discutidos e refletidos junto ao professor como mediador.

Assim, assumimos, neste estudo, que, dentre os signos, os que melhor dialogam com a perspectiva exposta, no ensino de Filosofia, são os signos que compõem as obras de Arte, uma vez que possibilitam uma investigação sobre sua dialogicidade e contemplam a dimensão sensível, por meio da fruição, além dos significados socioculturais e históricos. Explicitamos, dessa forma, a mediação pelo professor como ato de intervenção em uma relação que antes era direta, sem intermediários, entre o aluno e uma determinada obra de Arte, com o intuito de complexificar uma prática que comumente se pauta em estímulos revertidos em respostas superficiais que desconsideram o que é experienciado, fruído e refletido.

A abordagem da linguagem artística como repertório de vozes discursivas, com potencial para comunicar algo sobre o mundo que nos cerca, por meio de sua composição expressiva, a mediação do professor de Filosofia, utilizando-se do objeto de Arte, deve considerar tais elementos para estabelecer uma relação de interlocução entre os saberes da Arte e da Filosofia, no âmbito pedagógico.

A ação do professor, nesse prisma, é entendida como relevante no desenvolvimento do aluno por meio da mediação, o que se torna expressivo ao utilizar objetos de Arte nesse processo, considerando a experiência estética de fruição como elemento que afeta o estudante de modo a provocá-lo ou instigá-lo à busca de um entendimento diferenciado sobre o objeto que lhe causou estranhamento.

Por meio de problematizações, o professor dá indicações de possibilidades de interpretações da obra, atentando para os elementos que subsidiam, em termos de apreensão de conhecimento formal em filosofia, uma relação com as problemáticas filosóficas de um determinado momento socio-histórico, ao acionar os pensadores da história da Filosofia que melhor dialogam ou contribuem para respaldar tal interlocução de saberes.

Esse percurso de ensino de Filosofia, no qual há possibilidade de se apreender algo sobre a Arte e sobre a Filosofia, configura-se em um outro caminho metodológico do ensino, que possibilita colocar o objeto estético como elemento que propicia conhecimento, tendo o professor como mediador na “zona de desenvolvimento proximal” do aluno (VYGOTSKY, 1984). Nessa abordagem metodológica de ensino, pressupõe-se que o aluno se coloca em atividade progressiva de entendimento dos conhecimentos aos quais terá acesso e, também, como agente ativo no processo de aquisição desses conteúdos e ressignificação deles, por meio de estímulos mediados pelo professor.

A mediação, nessa perspectiva, é tida como processo de intervenção em uma relação que antes era direta, sem intermediários, ou seja, uma operação de estímulo-resposta é trocada por um ato de natureza complexa, mediado. Com isso, Vygotsky concebe a relação do homem com o mundo como uma relação mediada entre dois tipos de agentes mediadores: os instrumentos e os signos.

Quando pensamos sobre os processos psicológicos, mediados pela linguagem, assume-se a importância desse processo, as representações mentais da realidade exterior e seus signos como os principais mediadores na relação do homem com o mundo e a ideia de que o indivíduo opera mentalmente sobre o mundo. Nas palavras de Oliveira (1998), vemos:

A própria ideia de que o homem é capaz de operar mentalmente sobre o mundo - isto é, fazer relações, planejar, comparar, lembrar, etc. - supõe um processo de representação mental. Temos conteúdos mentais que tomam o lugar dos objetos, das situações, e dos eventos do mundo real. Quando pensamos em um gato, por exemplo, não temos na mente, obviamente, o próprio gato; trabalhamos com uma ideia, um conceito, uma imagem, uma palavra, enfim, algum tipo de representação, de signo, que substitui o gato real sobre o qual pensamos (OLIVEIRA, 1998, p. 35).

A capacidade de lidar com representações mentais, que possibilitam ao indivíduo fazer relações mentais internas, caracteriza os processos superiores psicológicos, os quais são fundamentais para a aquisição e a construção de significado e de sentido dos signos linguísticos. Com isso, reiteramos então a importância da linguagem e de seus sistemas simbólicos como elementos fundamentais na mediação entre a interação do indivíduo com seu entorno, o que é condição para a construção do conhecimento e da aprendizagem.

Considerando o que é proposto neste estudo, no que diz respeito ao trato com o objeto de Arte na prática pedagógica do professor de Filosofia, ele pode ser observado nas Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2006). Não se desvincula também do que é esperado de um profissional formado em Filosofia, tal qual é indicado pelas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia e pela Portaria INEP no 171, de 24 de agosto de 2005, que, além de instituir o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) de Filosofia, nos apresenta as habilidades e as competências esperadas desse profissional que atuará no Ensino Médio da Educação Básica, conforme referenciado nas Orientações Curriculares Nacionais de 2006:

a) capacitação para um modo especificamente filosófico de formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos do conhecimento;

b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade sócio-histórico-política;

c) capacidade para análise, interpretação e comentário de textos teóricos, segundo os mais rigorosos procedimentos de técnica hermenêutica;

d) compreensão da importância das questões acerca do sentido e da significação da própria existência e das produções culturais;

e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político;

f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da cidadania e com o respeito à pessoa, dentro da tradição de defesa dos direitos humanos.

Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso de Filosofia, seja ele licenciado ou bacharel, deve apresentar uma sólida formação em História da Filosofia, que o capacite a:

a) compreender os principais temas, problemas e sistemas filosóficos;

b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar com as ciências e as artes, e refletir sobre a realidade;

c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente (BRASIL, 2006, p. 31-32).

Entende-se, então, que o professor de Filosofia, além de conquistar uma sólida formação em História da Filosofia, deve ser dotado da capacidade de articulação entre as produções culturais, artísticas e científicas para o exercício pleno de sua atividade docente, de modo a qualificar sua prática educativa na perspectiva interdisciplinar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando o pressuposto defendido por Danto (2010, p. 99), que “[...] a investigação do fato de que a Arte se presta espontaneamente ao tratamento filosófico pode nos ensinar alguma coisa a um só tempo sobre filosofia e sobre a arte”, reafirmamos, por meio do presente artigo, a importância da experiência com a Arte em suas múltiplas linguagens e sua interlocução com a Filosofia.

A investigação concluída consolida a premissa de que a relação imbricada entre a Filosofia e a Arte, na qual cada área do conhecimento, mesmo tendo suas especificidades, podem contribuir para a apreensão do conhecimento sem estabelecer disparidades entre as duas áreas ou, ainda, colocar uma área do conhecimento a serviço dos propósitos educativos de outra. Nessa perspectiva de ensino, assume-se a possibilidade de aprender a um só tempo conhecimentos filosóficos e sobre Arte, ao reconhecer o potencial reflexivo advindo da experiência estética.

O escopo deste estudo centra-se, portanto, a evidenciar, como diferenciador o tipo de objeto de arte que tem potencial significativo e mobilizador de processos reflexivos, e que pode ser utilizado com finalidade pedagógica nas aulas de filosofia: os objetos de Arte que causam fruiçãoiii, estranhamento e que instigam o pensar por seus elementos dialógicos.

Na obra de arte de fruição, na perspectiva discutida até então, vemos a possibilidade de ir além da busca por evidências de um problema ou sensibilização por reconhecimento ou empatia a uma determinada obra de Arte. Identificamos seu potencial formativo como agente de experiência estética, por possibilitar ao aluno identificar o inacabamento iv que a obra contém, vivenciar o estranhamento que o inacabamento causa e mobilizá-lo ao exercício de acabamento da obra (considerando uma multiplicidade de visões), com o objetivo de causar no aluno a busca ativa pela captação da significação do objeto de Arte, por meio da reflexão de sua estética representativa e de seus enunciados discursivos.

As reflexões desencadeadas indicam o objeto de Arte como promotor de conhecimento independente da Filosofia. Na perspectiva do ensino de Filosofia, além do contato com obras de Arte ampliar o repertório cultural dos alunos, este aprendizado corrobora para a reflexão filosófica, dado que, a partir dessa busca ativa pelo entendimento da obra de Arte, mediado pelo professor, novas vozes discursivas somam-se a esse processo de aprendizado, situando-se aí o lugar da apreensão dos discursos e dos conceitos filosóficos como elementos constitutivos de novos saberes, os quais são independentes da Arte. Entendemos, nesse escopo, que a disciplinaridade da Filosofia, quando tomada de forma reflexiva, dialógica e relacional é um dos meios para a atividade interdisciplinar como busca da totalidade do conhecimento, ou seja, a interdisciplinaridade se faz por meio da própria disciplinaridade (FAZENDA, 2003).

A experiência com o objeto de Arte, com finalidade didático-pedagógica na aula de Filosofia, possibilita um processo de compreensão de signos ou intencionalidades comunicativas estéticas, que somada aos discursos filosóficos ganha novos contornos de complexidade e ampliação das interpretações possíveis do fenômeno retratado na obra de Arte. Cabe, assim, ao professor de Filosofia, que entende a linguagem em suas múltiplas dimensões como fonte de conhecimento, e que adota essa perspectiva didático-metodológica valorizadora da linguagem artística no processo de ensino e aprendizagem em Filosofia, uma escuta atenta às sensibilidades e às percepções dos alunos, às vozes discursivas do objeto de Arte que incorpora à aula e a consonância desses discursos com os discursos filosóficos.

Diante da relevância do foco investigativo corporificado neste artigo, reafirmamos seu centro instigador identificado pela interlocução significativa entre Arte e Filosofia, analisada por meio das reflexões compartilhadas no presente texto. Dada a natureza do estudo realizado e seu pressuposto de que é possível aprender sobre Arte e Filosofia, respeitando as especificidades de cada uma dessas áreas do conhecimento e suas intersecções, admitimos o caráter inconcluso desta produção, diante do desdobramento de questionamentos motivadores da sua continuidade.

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Notas

i Os temas transversais reportam-se à possibilidade de estabelecer-se, na prática educativa, uma relação entre aprender na realidade e da realidade sobre problemas fundamentais e urgentes da vida social, abarcando problemáticas da dimensão ética, meio ambiente, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e temas locais. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997 (BRASIL, 1997), legitima-se, como proposta curricular, essa prática educativa. O documento pode ser consultado na íntegra pelo link: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf

ii “A arte como procedimento” reforça os ideais dos formalistas russos, os quais tinham por objetivo sistematizar o funcionamento da arte, em especial a literatura.

iii Conceito elaborado por Barthes na obra O Prazer do Texto (1977), que caracteriza o texto que causa desconforto ou perda.

iv Retomando o conceito de inacabamento de Bakhtin, este se caracteriza pelo processo de interação, tensão e transformação na relação entre o artista, a materialidade e o enunciado discursivo da obra de arte, a interpretação e ressignificação do interlocutor da obra.

Recebido: 01 de Junho de 2019; Aceito: 04 de Junho de 2019

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