1 INTRODUÇÃO
Ao longo de muitos anos os surdos foram colocados à margem do mundo familiar, social, cultural, educacional e político, sendo considerados como deficientes, incapazes e desapropriados dos seus direitos e possibilidades de escolha.
O acesso à escola de crianças, jovens e adultos surdos em Moçambique teve início em 1962, com a criação das escolas especiais privadas, através do Diploma Legislativo nº 2.288, de 25 de Setembro de 1962. Logo após a independência, e com a introdução do Sistema Nacional de Educação em 1983, o ensino de crianças, jovens e adultos com dificuldades de aprendizagem sofreu mudanças significativas no âmbito educativo. Conforme o artigo 18 da Lei nº 4/83, de 23 de Março, o “ensino especial passou a proporcionar uma formação que permitisse a integração destas crianças, jovens e adultos em turmas especiais dentro das escolas regulares”.
No que respeita às crianças, jovens e adultos surdos, esta formação foi salvaguardada pela Constituição da República de 2004, que no número dois do artigo 125, estabelece que o “Estado promove a criação de condições necessárias para a aprendizagem da Língua de Sinais”. O artigo 9 postula que o Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional, e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da identidade moçambicana. No plano legislativo reconhece-se a existência da Língua de Sinais (LS) para a população surda moçambicana.
Apesar da história das LS no mundo ser bastante antiga, só em 1990 é que se fala de Língua de Sinais Moçambicana (LSM). Mesmo assim, os censos populacionais de 1997, 2007 e 2017, não registaram a existência da LSM na distribuição e diversidade linguística do país. Chimbutane (2015) afirma que em muitos países multilingues, como é o caso de Moçambique, não existe um documento que defina a sua política linguística.
Ainda que haja um reconhecimento da Língua de Sinais através da Constituição da República e outros dispositivos legais, o seu estatuto oficial de língua de ensino, ainda é incipiente na sociedade moçambicana. Lopes (1997) defende a existência de uma certa forma de política linguística no território moçambicano que consiste no abandono de uma visão de um Estado-Nação unido em torno de uma língua ex-colonial, o Português, e, ao mesmo tempo centrada na conceção de um Estado-Nação em que o multilinguismo e multiculturalismo são vistos como condimentos incontornáveis na construção da moçambicanidade.
Este estudo tem por objetivo refletir sobre e pertinência e a urgência do uso da língua de sinais (L1) e do Português (L2/LE) no currículo dos alunos surdos em Moçambique, tendo sido desenvolvido no registo de uma abordagem qualitativa, de análise documental de normativos legais e de análise de conteúdo de entrevistas realizadas com professores, focada no currículo proposto e nos modos como é aplicado.
O trabalho é composto por oito pontos sendo o primeiro, esta Introdução; II. Contextualização; III. Currículo, Justiça Curricular e Social; IV. Estudos sobre o currículo dos alunos surdos; V. A pertinência da Língua de Sinais (L1) e do Português (L2); VI. Percurso metodológico; VII. Que dizem os Professores sobre o ensino de surdos e, VIII. Conclusão.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO
Em 1992, através da cooperação finlandesa, começam a formar-se professores, intérpretes e pais, entre outros, em Língua de Sinais para trabalhar com surdos nas escolas especiais. Até então, a formação assentava na metodologia oralista, que compreendia os surdos como deficientes da audição, da fala e da comunicação, entre outros adjetivos, de acordo com a visão e o método médico-terapêutico. Este método e orientação justificam a matriz da deficiência, dominante na educação dos surdos em Moçambique, e deixam antever dificuldades para a mudança desta matriz no sentido do entendimento da surdez como uma diferença linguística e cultural, e da comunidade surda como uma minoria com uma língua e uma cultura próprias, tal como a presença finlandesa veio, de certa forma, introduzir.
Na sequência dessa influência, foi produzido o 1º Dicionário de Língua de Sinais de Moçambique em 1995, coordenado pela Pirkko. A partir daí, o ensino dos surdos nas escolas especiais e nos Centros de Recursos de Educação Inclusiva (CREI) passou a adotar a Comunicação Total. Esta consiste numa filosofia de trabalho com crianças surdas, que admite toda uma gama de recursos e procedimentos, entre os quais a Língua de Sinais, embora sempre ao serviço da promoção da oralidade.
Três anos depois, em 1998, sob a influência de medidas de educação a nível internacional, foi implementado o Projeto-Piloto “Escolas Inclusivas”, dando assim início a outra etapa da educação de surdos em Moçambique.
Em 2002, foi editado o 2º volume do Dicionário da Língua de Sinais de Moçambique, coordenado por José Fernando e Ana Bertrand e, em 2013, o Centro de Estudos Africanos (CEA), reconhecendo a importância dos antigos dicionários editou o 3º Dicionário da Língua de Sinais de Moçambique, coordenado por Armindo Ngunga, com cerca de 1300 entradas.
Apesar de todas estas publicações, bem como da implementação do Projeto Escolas Inclusivas, a filosofia de ensino de surdos que prevalece até aos dias de hoje, nas turmas regulares e nas turmas especiais é a Comunicação Total.
Assente na Comunicação Total, o Plano Estratégico da Educação (PEE, 1999-2003/4) prosseguiu com o desafio inclusivo especificamente, com a expansão do acesso à escola inclusiva e a melhoria da qualidade de ensino. O Projeto Escolas Inclusivas foi posteriormente refletido no Plano Estratégico da Educação (PEE, 2012-2016 com extensão até 2019) do Ministério da Educação e Cultura (MEC) que referiu a igualdade de oportunidades, através da promoção de uma participação inclusiva que deve ser proporcionada às crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais (NEE) em todos os níveis de ensino.
A ideia de inclusão é ainda reforçada na Estratégia de Educação Inclusiva e Desenvolvimento de Crianças com Deficiência (2020-2029) do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH, 2018, no prelo) que postula “garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência” - isto é, pessoas surdas e com outras deficiências. No mesmo diapasão, o Plano Quinquenal do Governo de Moçambique (2015, p. 19) assegura “o uso de Língua de Sinais nos diferentes programas informativos e eventos públicos”.
Esta prerrogativa estabelecida no contexto das políticas públicas moçambicanas, que busca a inclusão de todos os educandos, encontra-se ironicamente, em consonância com a prerrogativa do movimento político de lutas por políticas públicas que contemplam o reconhecimento da diversidade de alunos e o compromisso de atender às suas necessidades nos contextos escolares comuns, mencionados em vários documentos internacionais como a Proposta de Educação para Todos e a Declaração de Salamanca, referências deste processo.
Contudo, esta inclusão, que advoga para os alunos surdos o mesmo tratamento de outros grupos de educandos com necessidades especiais demonstra o quanto as políticas publicas educacionais se constituem num território de disputa de poderes (Leite e Fernandes, 2010; Ponce e Neri, 2015). Tal fica evidente quando se observa que, mesmo já estando estabelecido na legislação moçambicana, o direito dos alunos surdos à educação através da Língua de Sinais (LS), permanece a tendência para a normalização em nome da inclusão, alicerçada na perspetiva ouvintista, que desconsidera as especificidades dos sujeitos surdos e a diferença do que significa inclusão para eles.
Embora haja um reconhecimento do uso da Língua de Sinais nas escolas, numa lógica de justiça curricular comprometida com a justiça social (Connell, 1997; Leite, 2008; Leite e Fernandes, 2010; Ponce e Neri, 2015), as diretrizes dos Planos Estratégicos da Educação não indicam como deverá ser encaminhada a função instrutiva e educativa dos alunos surdos. Segundo Lacerda (2009) a importância da Língua de Sinais como meio de comunicação entre surdos deveria ser reconhecida e a provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tivessem acesso à educação na sua língua nacional de sinais.
Os documentos legais referidos reconhecem a importância do uso da LS nas escolas regulares e especiais, contudo, não fazem menção ao conjunto de direitos e medidas que é necessário criar e assegurar para que os alunos surdos beneficiem disso nas escolas, tais como: o direito a uma educação bilingue, atendendo ser o surdo um indivíduo pertencente a uma comunidade linguística e culturalmente minoritária; o direito a ter professores que dominem a Língua de Sinais Moçambicana; o direito ao apoio de intérpretes de LSM e o acesso ao ensino do Português como segunda língua (L2). Não se verificando estes pressupostos, a LSM perde estatuto enquanto língua da comunidade surda moçambicana e é vedada a acessibilidade dos alunos surdos ao Português L2, comprometendo o direito a estes serem bilingues, o que não é compatível com a ideia de um currículo que se pretende justo, igualitário, acessível e de qualidade.
Mesmo havendo um avanço na legislação sobre políticas educativas, a inexistência de instrumentos políticos que regulamentem o uso da LSM, a ausência ou raridade de professores surdos de LSM, de professores ouvintes que dominem a LSM e de intérpretes de LSM, assim como a fraca padronização da LSM podem comprometer de forma severa o processo de ensino e aprendizagem da população surda, não apenas no que refere ao direito a ser bilingue, mas também no que concerne a todas as aquisições académicas e sociais que a escola deve proporcionar, no quadro de uma educação inclusiva.
3 CURRÍCULO, JUSTIÇA CURRICULAR E SOCIAL PARA SURDOS NAS ESCOLAS REGULARES
O currículo é um conceito que tem assumido diversos significados. Na visão de Figueiredo, Leite e Fernandes (2016), falar de currículo é falar de um conjunto de saberes e conteúdos selecionados por grupos de detentores de poder para serem ministrados na escola, reconhecendo-os como os conhecimentos válidos. Na mesma linha que estas autoras define-se por currículo:
lugar de representação simbólica, transgressão, jogo de poder multicultural, lugar de escolhas, inclusões e exclusões, produto de uma lógica explícita muitas vezes e, outras, resultado de uma “lógica clandestina” que nem sempre é expressão da vontade de um sujeito, mas imposição do próprio ato discursivo (BERTICELLI, 1998, p. 159).
Nesse sentido, Figueiredo, Leite e Fernandes (2016) lembram que o currículo não pode apenas ser visto numa perspetiva de poder, de obrigatoriedade daquilo que se pretende ensinar. Um currículo deve ser visto como um processo que é orientado por objetivos precisos e previamente definidos e que funcionam, quer como orientadores do ensino-aprendizagem, quer como analisadores da eficácia do mesmo (MUÑOZ, 1984). Embora esta orientação curricular tenha vindo a valorizar e a prever a participação dos alunos nas situações de ensino aprendizagem (Leite e Fernandes, 2010), essa participação é vista numa perspetiva tecnicista que pressupõe otimizar a eficácia dos resultados, por referência aos objetivos uniformemente enunciados e, nesse sentido, ainda que tenha em consideração diferentes pontos de partida dos alunos, prevê um único ponto de chegada (LEITE, 2002).
Apesar da participação ser tecnicista, muitas das vezes são abertas possibilidades para que os atores locais, através da autonomia relativa de que dispõem, possam desenvolver experiências curriculares ligadas aos quotidianos dos alunos, argumenta Fernandes (2008). Tal autonomia significa que os atores locais “dispõem de uma capacidade de decisão própria” que se operacionaliza através “dos seus órgãos representativos em função das suas competências e em determinados domínios” (Barroso, 2005, p. 108). Todavia, no que diz respeito às atuais políticas e programas curriculares, eles deixam de reconhecer a subjetividade dos educandos, as suas culturas, valores e modos de vida precarizados. Desta feita, os currículos tornam-se “estruturas rígidas, quase sagradas, delineadas por um conhecimento curricular que não é o conhecimento nem a racionalidade do senso comum, da vida comum, mas é o território do conhecimento e da ciência, da racionalidade e da cultura nobre, da norma culta” (ARROYO, 2011, p. 41).
Na mesma linha de pensamento, Leite (2002, p. 30) reconhece que a “forma como o currículo se organiza (...) e os processos a que se recorre para ensinar e fazer aprender” são fatores que “estão na base do desigual sucesso escolar dos alunos”. Na ótica de Leite e Fernandes (s/d), uma escola que se deseja inclusiva, isto é, com todos e para todos, tem de reconfigurar o currículo nacional, adequando-o aos contextos onde ele se desenvolve, por forma a nele incorporar os saberes e as culturas locais, a ter por referência os interesses e as características da comunidade educativa e da população escolar, e a recorrer a ações que criem nos/as alunos/as o gosto por aprender. Em outras palavras acrescentam as autoras (ibidem), o currículo tem de ser recontextualizado prestando atenção às questões da diversidade cultural que caracteriza hoje as populações escolares e procurando, sobretudo, encontrar respostas educativas adequadas a esses públicos, de modo a que todos e todas se sintam incluídos/as e inclusivos/as. Só desta forma podemos falar de uma justiça curricular e social.
O conceito de justiça social de acordo com Fraser (2009, p. 17) “requer arranjos sociais que permitam que todos participem como pares na vida social”. É à luz deste conceito que os surdos reclamam o reconhecimento da sua língua e cultura na educação, e a sua participação na condução de assuntos que aos surdos dizem respeito. Nessa perspetiva, desenhar um currículo para a educação de crianças surdas implica uma plena participação de surdos adultos, conhecedores dos modos de aprendizagem das crianças surdas, capazes de pugnar por um modelo de ensino adequado, o qual deve contemplar uma língua de sinais, como primeira língua (L1) e uma língua vocal, como segunda língua (L2), sobretudo na sua modalidade escrita (LANE, 1992; SKLIAR, 1998; QUADROS, 1997; QUADROS E SCHMIEDT, 2006).
Por outras palavras, e de acordo com o conceito de justiça curricular, não basta apenas desenhar um currículo em que a Língua de Sinais constitua um dos conteúdos programados (QUADROS E SCHMIEDT, 2006). É necessário que os métodos, os materiais de ensino, as formas de avaliação dos conteúdos façam parte do desenho curricular (SILVA, 2016). O currículo envolve não apenas o que ensinar, mas por que ensinar, como ensinar, para que ensinar, pois está ligado a um projeto educativo que abrange o conjunto das práticas educativas. Como diz Sacristán (2007, p. 125):
(…) o estudo do currículo aborda temas relacionados com a justificativa, a articulação, a realização e a comprovação do projeto educativo ao qual a atividade e os conteúdos do ensino servem. A sistematização de problemas e soluções que originam essas interrogações são preocupações didáticas, organizativas, sociais, políticas e filosóficas.
O currículo não é neutro. Existe uma intenção nas escolhas dos acontecimentos a serem abordados em sala de aula, na forma como a escola e a sala são organizadas e estruturadas, como são organizados os horários, a metodologia escolhida e os materiais utilizados. Para compreender o currículo de uma escola é necessário observar e participar dela, como defendem (LEITE, 2008; FERNANDES, 2008, 2011).
Por uma questão de justiça social e curricular é importante romper com atitudes de conformismo que nos fazem aceitar que não é possível concretizar o princípio da igualdade de sucesso numa escola que se caracteriza pela diversidade, mas em que todos e todas se sintam representados/as (LEITE, 2008). Na justiça curricular:
são indispensáveis conhecimentos escolares que facilitem ao(à) aluno(a) uma compreensão acurada da realidade em que está inserido, que possibilitem uma ação consciente e segura no mundo imediato e que, além disso, promovam a ampliação de seu repertório cultural (MOREIRA; CANDAU, 2008 P. 21).
Em Moçambique, desde 1998, com a introdução do Projeto Escolas Inclusivas, que as políticas educativas tentam direcionar o currículo para uma filosofia de inclusão, onde crianças e jovens com necessidades especiais, com e sem deficiência, possam estudar juntos numa escola regular e não serem segregados numa escola especial. A Reforma Curricular do Ensino Básico (2003), daí advinda, não contemplou programas curriculares específicos no âmbito da inclusão nem um programa vocacionado para a educação de surdos, apesar dos discursos da igualdade, da diversidade e dos conteúdos inclusivos, continuarem plasmados nos Planos Estratégicos de Educação (PEE, 1999-2003/4; 2006-2010/11; 2012-2016/19).
Os surdos, nesse contexto, são considerados deficientes e não uma minoria linguística, com uma língua e cultura próprias. Apesar do reconhecimento oficial do uso da Língua de Sinais no ensino de crianças surdas (CR, 2004, artigo 125), em termos curriculares, pouco ou nada, foi desenhado nesse sentido. Os surdos são colocados nas escolas regulares e o currículo usado nessas escolas continua o mesmo, desenhado por ouvintes e para ouvintes. A comunidade ouvinte não tem informação nem conhecimento sobre a comunidade surda e os programas curriculares atuais encontram-se completamente desfasados da realidade surda. Como sustenta Leite (2008, p. 30) “se quisermos uma escola para todos, temos de reconhecer a multiculturalidade e valorizá-la como ponto de partida para que elementos dos grupos maioritários e dos grupos minoritários aprendam a comunicar em situações de igualdade, e onde, por isso não há lugar para silêncios e marginalizações”.
As linhas mestras de orientação de ensino propostas no Plano Estratégico de Educação (2012-2016/19), no Plano Quinquenal do Governo (2015-2019), na Lei nº 18/2018 do Sistema Nacional de Educação e na Estratégia para o Desenvolvimento de Educação Inclusiva e de Crianças com Necessidades Educativas Especiais (EDEI-CNEE/ MINEDH, 2018, no prelo), apesar de pouco claras no que se refere à educação de surdos, enunciam como ações prioritárias: a) promover um Sistema Educativo inclusivo, eficaz e eficiente que garanta a aquisição das competências requeridas ao nível dos conhecimentos, habilidades, gestão e atitudes que respondam às necessidades de desenvolvimento humano; b) Assegurar oportunidades educativas para crianças com Necessidades Educativas Especiais.
De acordo com Leite (2008), podemos afirmar que os Planos Estratégicos cumprem com os ideais de uma escola democrática e inclusiva, promovendo de alguma forma, situações que procuram concretizar uma justiça curricular que se estrutura na intenção de produzir condições de igualdade. Todavia, Leite e Fernandes (s/d) reconhecem que estes ideais estão mais presentes nos discursos do que nas práticas pedagógicas. São as práticas pedagógicas que sustentam a chamada justiça curricular. Ponce e Neri (2015, p. 333) afirmam que essa justiça se faz:
pela busca e prática do currículo escolar como instrumento de superação de desigualdades, sendo a prática curricular a chave desse processo nas suas três dimensões fundamentais: a do conhecimento necessário para que os sujeitos do currículo se instrumentalizem para compreender o mundo e a si mesmos neles; a do cuidado com esses sujeitos envolvidos no processo pedagógico de modo a garantir que todos tenham condições dignas para desenvolverem-se.
4 ESTUDOS SOBRE CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO DE SURDOS
Em Moçambique são escassos os estudos sobre o currículo na educação de surdos, tal como não existem referências ou documentos que definam uma política linguística. Para termos ideia sobre o currículo na educação de surdos, talvez valha a pena recuarmos alguns anos no tempo e visitarmos o Sistema Nacional de Educação.
A base jurídica do Sistema Nacional de Educação de Moçambique, que define os princípios, funções e objetivos de cada subsistema de ensino, incluindo o primário, secundário, técnico-profissional, especial (onde se situam todos os deficientes, incluindo os surdos), foi definida pela Lei 4/83, de 8 de março, revista pela Lei 6/92, de 6 de maio e, recentemente reformada pela Lei 18/18, de 28 de dezembro.
No período colonial, a língua de ensino usada por missionários portugueses era o Português. Logo após Moçambique tornar-se independente de Portugal, em 1975, a língua consagrada oficial, de comunicação e de ensino, foi o Português (FIRMINO, 2002). No entanto, Moçambique tem mais de vinte línguas locais ou Bantu (LOPES, 1997; NGUNGA, 1993). A maioria da população deste país fala a sua língua local, ou uma mistura de Português e uma língua local (Firmino, 2002), tornando-se assim bilingues ou trilingues.
Dados estatísticos do censo populacional de 2017, apontam que apenas cerca de 10,5% de 27 milhões de habitantes falam o Português como língua materna (LM/L1) e a restante percentagem, 89,5%, como língua segunda (L2) ou língua estrangeira (LE). Nas áreas rurais apenas 2,6% fala a língua portuguesa como primeira língua, o que mostra que, a maioria comunica nas línguas locais (INE, 2017). Estes mesmos dados revelam que, em Moçambique, 0,3 % (68.326) da população é surda. Todavia, a Língua de Sinais de Moçambique (LSM), língua reconhecida constitucionalmente como pertencente a esse grupo minoritário, está ausente de todos os mapas linguísticos elaborados desde o primeiro censo populacional em 1980, até à data.
Esta ausência dos mapas linguísticos pressupõe a negação de um direito linguístico dos surdos, apesar de estes serem considerados cidadãos moçambicanos pela Lei Constitucional. Deste fenómeno de exclusão linguística resulta que a população surda, inserida num meio linguístico multicultural e oral, inicia tardiamente a sua escolaridade e em condições de enorme desvantagem. Estudos (Lane, 1992; Skliar, 1998) indicam que 95% das crianças surdas existentes em todo o mundo são filhas de pais ouvintes e desconhecem uma Língua de Sinais, que é a sua língua natural (Sim-Sim, 2005) e tem potencial para ser a sua Língua Materna (LM), ou L1.
No contexto moçambicano, os pais ouvintes têm domínio de línguas locais/bantu sendo que o primeiro contacto estabelecido com o filho surdo é oral (Língua Local) - e talvez o Português - combinado com “gestos/sinais” não padronizados. Nesse contexto, a criança surda exposta a uma língua vocal não adequada à sua condição de surdo, chega à escola sem uma língua estruturada, nem vocal, nem de sinais. A ausência de uma língua estruturada, além de constituir uma grande desvantagem relativamente aos seus colegas ouvintes, representa um défice de desenvolvimento cognitivo, social, linguístico e cultural que terá graves implicações na sua relação com a escola e com o mundo (SKLIAR, 1998). É com a aquisição e/ou aprendizagem da Língua de Sinais como primeira língua (LM/L1) que os surdos podem aprender uma língua segunda ou estrangeira (L2/LE).
Importa aqui realçar que, para a educação de alunos surdos em Moçambique, se adotou o português, na modalidade oral e escrita, como língua de ensino. Como diz Manguana (2013), optou-se pelo modelo oralista fazendo-se a combinação da fala, dos sinais, da língua portuguesa escrita e da datilologia. Parte-se, do pressuposto, que a mistura de Sinais, da língua oral e da sua modalidade escrita, promovem o desenvolvimento cognitivo e social da criança surda de forma adequada. Contudo, hoje reconhece-se que tal só será possível caso o aluno surdo seja exposto, desde tenra idade, a um ambiente linguístico em que circule uma verdadeira LS e respectiva cultura.
Apesar da LSM ser reconhecida como língua de ensino para os surdos pela Constituição da República (CR, 2004), no sistema atual de ensino, ela não se constitui como língua curricular nem de instrução nas escolas regulares moçambicanas, o que prejudica não só a aprendizagem das duas línguas e o desenvolvimento integral das crianças surdas, como também contradiz o conceito de justiça curricular e social antes discutido. Uma escola justa para os surdos requereria que a sua língua nativa fosse a língua de instrução, que o seu reportório histórico e cultural estivesse contemplado no currículo, que a presença de professores surdos como modelos de identificação linguística e cultural fosse garantida, além de uma adequada pedagogia para o ensino e avaliação do português como L2. Assim e como realça Coelho (2010), é dever do sistema educativo assegurar que as crianças surdas cresçam bilingues, pois um dos objetivos do bilinguismo no surdo é legitimar o uso das línguas de sinais/gestuais como línguas de aprendizagem num meio educativo bilingue.
5 A PERTINÊNCIA E URGÊNCIA DA LÍNGUA DE SINAIS NO CURRÍCULO ESCOLAR DOS SURDOS
Uma questão político-pedagógica que merece a nossa reflexão e necessita de um posicionamento dentro das escolas regulares onde os surdos estão inseridos é saber qual o papel e espaço que a Língua de Sinais (LS) e a Língua Portuguesa (LP) ocupam na organização do currículo escolar. Não basta o reconhecimento constitucional do uso da LS para garantir o desenvolvimento pleno desses alunos, pois é preciso respeitar os espaços de uso das duas línguas, sabendo que isto demanda entendimento sobre a dialética existente entre a língua e a cultura.
A invisibilidade do sujeito surdo no currículo escolar, sem problematizá-lo dentro do projeto pedagógico deixa transparecer uma postura a que Lima (2012, p. 326) chamou “celebração de tolerância”, pela qual apenas se tolera o outro. Desta forma, a LS ocupa, nos espaços escolares, apenas o papel de coadjuvante no processo de ensino, enquanto a LP permanece no papel principal. O que se verifica na prática, são métodos e estratégias próprias do ouvinte, tal como um currículo marcado pela ausência do Outro, sem referenciar a história do povo surdo, a Língua de Sinais e a cultura surda.
A grande maioria das crianças surdas, segundo Skliar (1998), é proveniente de famílias de ouvintes, pelo que a aprendizagem da LS acontece tardiamente. Fechadas num mundo oral que não entendem e que não as entende, as crianças surdas chegam ao primeiro ciclo sem terem adquirido a LS, fundamental não só ao contacto com os outros, mas também à aprendizagem da LP na sua forma escrita (BAPTISTA, 2011).
Este cenário faz com que os surdos, na sua grande maioria, se sintam estrangeiros dentro da sala de aula e talvez, no seu próprio país. A LS, na verdade, mostra-se uma ferramenta decisiva na elaboração das formações discursivas dos surdos, pois possibilita-lhes um maior entendimento da realidade e ajuda na constituição da sua identidade. Como defende Carvalho (2007), a linguagem constitui um processo determinante para o desenvolvimento da cognição e da consciência. O sujeito surdo, geralmente inserido em contextos sociais cuja língua de comunicação é falada, enfrenta diversas dificuldades em construir conhecimentos e perceber o mundo que o rodeia.
A LS desempenha um papel expressivo na vida do sujeito surdo, conduzindo-o, por intermédio de uma língua estruturada ao desenvolvimento pleno. Tendo em conta o contexto moçambicano, é imprescindível e urgente que a criança surda estabeleça o contacto com a LS o mais precocemente possível. Quando a escola aceita a surdez, reconhece a LS como a língua de comunicação e passa a utilizá-la com o aluno, está a criar condições para que este realize novas aquisições e a impulsionar o seu desenvolvimento linguístico (DIZEU & CAPORALI, 2005).
Não se pode esperar que um aluno cuja língua do seu conhecimento lhe é negada tenha sucesso na aprendizagem. Uma proposta para o sucesso do aluno surdo na escola regular é o ensino bilingue (SKLIAR, 1997). Defende-se, nesta proposta, o uso da LS como língua de instrução para o aluno surdo e, a língua vocal oficial do país, como L2. O aluno aprende primeiro, usando a sua língua nativa e a sua herança cultural, para depois aprender a língua vocal (LANE, 1992; SKLIAR, 1997). Apenas num ambiente bilingue os alunos surdos têm “a possibilidade de construir-se enquanto sujeitos usuários da LS como primeira língua, promovendo a aprendizagem da linguagem oral por meio da metodologia da segunda língua” (ANDREIS-WITKOSKI, 2013, P. 96).
Compreender que a linguagem (língua) desempenha um papel decisivo no processo de interação e de ensino e aprendizagem dentro da sala de aula (DORZIAT, 1999), é criar condições favoráveis à aquisição prioritária da LS, tanto mais que a aprendizagem da L1 é condição sine qua non para o acesso à escrita, que se configura como L2, tanto pela cronologia da sua aprendizagem, como pela inexistência da LS no modo escrito (BAPTISTA, 2011).
6 PERCURSO METODOLÓGICO
Este texto é um recorte de um estudo doutoral sobre políticas de inclusão e estratégias de ensino de português a alunos surdos na escola regular moçambicana. Consiste num trabalho de cariz fenomenológico interpretativo (Amado, 2014), com recurso à análise documental, assistência de aulas e entrevistas semiestruturadas realizadas junto de dois professores de língua portuguesa, sendo estas analisadas através de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011).
Para os sujeitos de investigação utilizámos códigos numéricos acreditando que isso asseguraria melhor identificação, confidencialidade e tratamento de dados. Estes foram recolhidos numa escola secundária regular, em Maputo, que integra alunos surdos, para além de alunos com outras deficiências. Trata-se de uma das escolas regulares do projeto piloto “Escolas Inclusivas” implementado em 1998, em cinco províncias de todo o país. A escolha da escola deve-se ao fato de esta ter sido a única escola secundária com estas características, localizada na cidade de Maputo, e, por ser representativa, dado ser frequentada por um número considerável de alunos surdos.
Em 2016, ano da recolha de dados, os alunos surdos estavam inscritos no 1º ciclo secundário, estando as turmas divididas em dois modelos: uma com maioria de alunos surdos (aqui designada por turma de alunos surdos) e turmas com maioria de ouvintes (designadas turmas com alunos surdos). Nos 11º e 12º ano não existiam turmas com surdos, por isso selecionámos professores de português de uma turma de surdos do 9º ano e outra com surdos do 10º ano. Os professores entrevistados têm entre 50 a 55 anos de idade, possuem licenciatura em ensino de português, exercem há mais de vinte anos, três dos quais no ensino inclusivo. Não dominam a LSM embora tenham realizado uma capacitação de muito curta duração.
Os dados da pesquisa foram transcritos e analisados com recurso ao software Nvivo 11. Para operacionalizar os dados da pesquisa utilizamos várias funcionalidades desde análises simples, como estatística descritiva e contagem de palavras, elaboração de mapas de conexão, estimação de modelos de séries temporais até a codificação e categorização.
7 QUE DIZEM OS PROFESSORES DE PORTUGUÊS SOBRE O ENSINO DE ALUNOS SURDOS NAS TURMAS REGULARES?
Com recurso ao Nvivo 11, a partir da temática em discussão, categorizámos as respostas desta forma: i) Língua de Ensino nas aulas de Português; ii) Interação e/ou Relação Aluno Surdo versus Professor e Colegas Ouvintes; iii) Dificuldades de Aprendizagem dos Alunos na Língua Portuguesa.
a. Língua de ensino nas aulas de português
Quando perguntámos ao professor da turma de surdos em que língua são dinamizadas as aulas de português nas turmas regulares, este respondeu:
É uma dúvida que eu tenho. Sou professor mas reconheço que não sei qual é a língua de (…) nós chamamos de transmissão. Não temos nenhuma instrução sobre a língua que devemos usar, e não está uniformizado. (...) aqueles colegas tiveram uma formação diferente da nossa e têm também mais tempo mais experiência, então julgo que para este grupo de professores com experiência e alguma preparação, a linguagem que eles usam é a linguagem de sinais, mas para o outro grupo que é o nosso, sem formação, sem experiência, normalmente acabamos usando a língua portuguesa para a transmissão de conhecimentos. (…) Exato. E julgo que isto é negativo. É negativo porque os miúdos não entendem isto, não entendem. Até começando pela própria estrutura, eu apercebi-me que a estrutura da linguagem de sinais é diferente da estrutura da língua portuguesa. Por exemplo, na flexão verbal, acabei me apercebendo que eles não flexionam os verbos. (…) (PROF. 9ª) .
Este professor reconhece não ter formação na área da LS nem experiência em lidar com este tipo de ensino, situação diferente de um grupo de professores que num passado, tiveram esta oportunidade. Argumenta não ter tido uma formação ou capacitação de especialidade suficiente capaz de responder a esse tipo de ensino. O tempo de capacitação do Ministério da Educação foi de apenas uma semana. Estamos convictos que nenhuma língua se aprende em uma semana. Comparando a capacitação que teve com a de outro grupo de professores, mais experientes, declara-se manifestamente aquém destes. Revela misturar a oralidade, a escrita e os gestos, embora reconheça que estes não constituem os meios apropriados para dinamizar as aulas. Refere ainda, que essa mistura não tem dado bons resultados uma vez que os alunos nada aprendem. Sendo um professor ouvinte sem domínio da LSM, resta-lhe oralizar.
Percebemos que a estratégia de ensino usada é focada na oralidade, tal como no passado, quando as LS não eram reconhecidas como línguas. Trata-se de uma educação tradicional concebida como mera transmissão de herança cultural, responsável pela manutenção de uma cultura padrão e de um saber considerado único e imutável (Leite e Fernandes, s/d). Neste modelo curricular, as conceções e práticas educativas não visam o sucesso do aluno pertencente a grupos sociais distanciados da cultura padrão. O professor não revela competências nem poder de decisão e autonomia na sala de aula (Leite e Fernandes, s/d), daí apresentar práticas pedagógicas inadequadas ao ensino do aluno surdo.
Facto curioso é que este professor demonstrou uma preocupação em conhecer a estrutura gramatical da LSM, distinguindo-a da LP. As Línguas de Sinais são línguas que têm uma estrutura, uma gramática e uma cultura próprias, tal como as outras línguas (Quadros,1997). Contudo, não basta ter interesse pela LSM. Apoiando-nos em Leite e Fernandes (s/d), destacamos que é preciso também que o professor tenha o poder de aprendizagem e a sabedoria do que está aprender.
Ao colocarmos a mesma questão ao professor da 10ª classe, este respondeu:
Quando eu estou nessas turmas, sou obrigado a misturar, a escrita e os gestos. Às vezes consigo fazer isso (gestos) enquanto estou a falar faço o gesto e pergunto já percebeu e ela diz sim já percebi (PROF. 10ª).
A estratégia de ensino usada por este professor é idêntica à do colega. O professor da 10ª classe sente-se obrigado a misturar a escrita, os gestos, e a oralidade, o que denota o recurso a práticas de ensino desadequadas. Nesse sentido, acrescentou:
(…) Eu digo aos outros (ouvintes) eu estou aqui e se ponho-me a escrever é por causa deles. A turma já sabe. É a valorização pelos alunos surdos. Sim, sim (PROF. 10ª).
Este relato revela que persiste a ideia do modelo patológico (Skliar, 1997), pois o surdo não é visto como pertencente a um grupo linguístico minoritário, com direito a uma LS, tal como os ouvintes a uma Língua Oral. O professor da 10ª classe assume que usa a escrita no quadro para comunicar com os alunos surdos, como uma medida compensatória quando a turma é com alunos surdos. Segundo ele, a escrita é uma forma de valorizar e de considerar a presença de alunos surdos na mesma sala que alunos ouvintes, como podemos conferir abaixo:
Eu escrevo no quadro e o aluno copia. Até costumo dizer se eu ponho-me a escrever é por causa dos alunos surdos. Noutras é normal ditar mas nessas sou obrigado a escrever. (Investigadora): De que modo o professor se comunica com os alunos? Através de quadro e gestos também (…). Salvo esse cursinho que eu disse, (de uma semana), sim de uma semana, (…) (PROF. 10ª).
A questão que se coloca é como um aluno surdo cuja língua natural é espaço-visual poderá ser considerado ou valorizado a partir da escrita de uma língua oral que desconhece. Esta tentativa de “discriminação positiva” por parte do professor revela um desconhecimento profundo dos direitos linguísticos e dos modos de aprendizagem dos alunos surdos, cujo efeito pode, perversa e paradoxalmente, redundar num processo de exclusão, pois o aluno surdo pode copiar, mas não lê nem entende o que copia, pois está escrito em português, uma língua que não domina. Por essa razão Perlin (2001, p. 57) defende que “a escrita do surdo não se vai aproximar da escrita do ouvinte” e “não há que exigir uma construção simbólica tão natural como a do ouvinte”.
b. Interação e/ou comunicação alunos surdos versus professores e alunos ouvintes
Apesar da parca experiência de trabalho neste contexto de inclusão e de não dominarem a LSM, perguntámos aos professores como se processava a comunicação entre alunos surdos e ouvintes nessas turmas:
Prof: Havia uma interação no sentido positivo principalmente dos alunos que não têm esta deficiência. (...) quando os colegas não conseguissem perceber ou mesmo copiar o que estava no quadro, porque alguns são lentos a escrever, os colegas passavam-lhe os apontamentos. Então, foram bem acolhidos. A reação foi positiva por parte dos alunos ouvintes. (Prof. 9ª)
Prof: (...) tenho uma aluna na 10ª 8, altamente aproveitada do que os ditos “normais”. Ela tem notas altas, não perfeitas por causa (…) ela escreve legivelmente, ela lê e percebe. Eu tenho mandado a ela ir ao quadro para escrever para os outros. Ela é surda-muda (…). (Investigadora: Então, há uma boa relação entre alunos surdos e ouvintes na mesma turma?) Sim há. Há uma boa relação (PROF. 10ª).
Do nosso ponto de vista, nestes dois contextos, a inclusão apenas acontece na medida em que parece haver aceitação da diferença por parte dos alunos ouvintes. Nesse sentido, vale ressaltar que se os alunos surdos estivessem numa escola de surdos e com um currículo adequado, podiam preparar-se, inclusive para uma melhor socialização com os ouvintes. Esta seria, segundo Andreis-Witkoski (2013), uma consequência natural, advinda da significativa formação educacional, com acesso à informação, à consciência de direitos de cidadania e à edificação de uma identidade surda fomentada nesta escola específica. Desta forma, diz esta autora, o sujeito surdo estaria habilitado a estabelecer com os ouvintes, uma relação equitativa, em que ambos os grupos teriam o que trocar, saindo-se portanto, do perfil de tutela do ouvinte em relação ao outro, o que é marca, até aos dias de hoje, das relações educacionais e sociais. Quando procurámos saber se essa interação era extensiva ao professor, responderam-nos o seguinte:
Prof: A relação não era boa. Esses alunos têm um problema: Eles, durante a aula, não vou dizer que conversam, mas eles trocam informações entre si com aquela linguagem de sinais. Isso acaba interferindo na atividade do professor …, e mais, eles produzem certos sons mas parece que eles não têm consciência que isso está a acontecer (…). Isso acabou criando não só comigo como para outros colegas algum problema de relacionamento. Mas há um outro problema, não sei se posso colocar. É a questão de comunicação. Há problemas de comunicação entre professor aluno (Invest: exatamente por causa da) da linguagem de sinais. (…) (PROF. 9ª).
Prof: Não, não. Por exemplo essa aluna a quem me referi é a única que normalmente vem procurar o trabalho para ir (risos) estudar. (...) É altamente aplicada. (Invest: E os outros não se relacionam com o professor?) Também relacionam-se bem comigo. Não há como posso dizer, não há nada que impede (a comunicação) (PROF. 10ª).
A interação entre os alunos e o professor é escassa, uma vez que não existe um modo de comunicação comum. Enquanto o professor oraliza um determinado conteúdo, os alunos surdos comunicam entre si, produzem sons que “perturbam” o ambiente da sala de aula. Como não percebem o professor, os alunos surdos divergem e comunicam através da LS, criando um distanciamento entre eles e o professor, bem como relativamente aos colegas ouvintes, quando a turma é com surdos. Não é possível haver interação minimamente positiva se não houver uma língua de comunicação comum entre duas pessoas. Vários autores (Skliar, 1998; Quadros, 1997; Coelho, 2010), reclamam a educação bilingue para os surdos extensiva a todas as instituições de inclusão, assegurando o uso da Língua de Sinais como língua de instrução e do Português como língua segunda.
c. Dificuldades de aprendizagem dos alunos surdos na língua portuguesa
Tentámos perceber por parte dos professores quais as dificuldades que os alunos tinham na aprendizagem da língua portuguesa, ao que nos responderam:
Prof: Acho da preparação da escola de onde vêm. (Invest: Mas esses alunos vêm com o prof desde 8ª classe) Sim, por exemplo na escrita, eu tenho feito ortografia e estando na 10ª, já vêm com a escrita do tipo letra minúscula, maiúscula, fazem uma mistura, então aí tenho, a dificuldade está para aí. (PROF. 10ª).
Prof: A primeira dificuldade, como eu disse, tem a ver com a linguagem usada pelo professor. Muitas das vezes a língua usada pelo professor não é a mesma que os alunos usam. (...) Estes alunos chegam aqui, como eu disse, a saber transcrever textos e frases mas sem capacidade de produzir uma frase, não é um texto, uma frase coerente. Um teste por exemplo, uma prova de interpretação é difícil para eles elaborarem uma resposta (…) (PROF 9ª).
O professor da 10ª classe refere que os alunos têm problemas de escrita, problemas esses vindos das classes anteriores, ou melhor, da escola anterior. Sobre responsabilidades não admitidas, Mantoan (2003) aponta que é fácil receber os alunos que aprendem apesar da escola e é mais fácil ainda, encaminhá-los para as classes e escolas especiais quando mostram dificuldades de aprendizagem e, sendo ou não deficientes. Segundo esta autora (Mantoan, 2003, p. 18) “estamos habituados a repassar nossos problemas para outros colegas, os especializados e, assim, não recai sobre nossos ombros o peso das nossas limitações profissionais”.
Para o professor da 9ª classe, a dificuldade de aprendizagem da LP por parte dos alunos, deve-se ao fato de estes não perceberem esta língua (LP), consequentemente, não perceberem o que é escrito e não saberem escrever. A língua do professor, LP, não é a língua do aluno, LS, o que à partida não pressupõe compreensão nem inclusão. Os professores não equacionam a possibilidade desta situação ocorrer pelo fato de os alunos surdos não terem tido as condições adequadas de ensino e aprendizagem que lhes permitissem adquirir competências na LS e também na LP. Do mesmo modo, não questionam o facto de não terem formação nessa área de ensino, poder ser a causa das dificuldades de aprendizagem por parte dos alunos surdos. Leite (2004) chama à atenção para os riscos das situações de diversidade linguística, entre professor e aluno, considerando que compete à escola e ao professor, produzir igualdade contextualizando as razões que a justificam, de modo a não produzir o efeito perverso de distinguir e de separar, em vez de aproximar e incluir.
8 CONCLUSÃO
Ao refletirmos sobre a relevância e pertinência da LS no ensino escolar como forma de justiça curricular e social dos alunos surdos em Moçambique, apercebemo-nos que a LS é o meio que garante a socialização e a interação do surdo na sociedade, razão por que, um currículo para o surdo deve contemplar a LS como língua de instrução e a língua oficial escrita do país em que o surdo está inserido, como a L2.
A análise das respostas dadas pelos professores entrevistados permite-nos inferir que a partir de um currículo de e para ouvintes, as práticas pedagógicas em curso conduzem à segregação, à discriminação e exclusão dos surdos em ambientes educativos. Permite-nos ainda, aventar que a exiguidade de tempo e qualidade na capacitação de especialidade, bem como a inexperiência na área de ensino inclusivo, podem ditar a insuficiência de conhecimentos, e conferir insegurança na concretização do trabalho do professor. Os professores destacaram ter pouca experiência a trabalhar com alunos surdos, não terem formação especializada e não dominarem a língua de sinais. Como consequência dessa ausência de língua de sinais, os professores não desenvolvem uma comunicação positiva e estimulante com os alunos surdos, e os alunos ouvintes também não são motivados a desenvolver uma comunicação de qualidade com os seus colegas surdos.
Segundo Skliar (1997, p. 145) a língua de sinais “é a língua minoritária relegada, tradicionalmente, ao uso em situações informais e quotidianas entre pares”. Ela tem, portanto, uma manifesta função intragrupal. Já a língua oral “é maioritária e utilizada em interação com os ouvintes e quando o interesse é necessidade de integração” (Idem, p. 146). Apesar dessa dicotomia funcional, o aluno surdo necessita de ambas as línguas com um desenvolvimento competente, seja na Língua de Sinais, seja na língua oral maioritária.
Geralmente, os únicos modelos, ou os modelos fundamentais representados na escola são ouvintes (SKLIAR, 1998). A escola não pode prover só modelos ouvintes nos quais os surdos jamais se poderão reconhecer e identificar. É preciso que o currículo seja reconfigurado, adequando-o aos contextos onde ele se desenvolve, por forma a nele incorporar os saberes e as culturas locais, a ter por referência os interesses e as características da comunidade educativa e da população escolar, e a recorrer a ações que criem nos/as alunos/as o gosto por aprender. Deste modo, pelo exposto ao longo do trabalho, concluímos a nossa exposição, reforçando e destacando a pertinência e a urgência da Língua de Sinais (L1) e do Português (L2/LE) no currículo escolar dos alunos surdos em Moçambique. Só cumprindo esse desiderato, poderemos falar de inclusão e de justiça social e curricular dos alunos surdos nas escolas regulares.