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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.3 São Paulo jul./set 2019  Epub 28-Out-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i3p963-989 

Dossiê Temático: Em busca da justiça curricular: as possibilidades do currículo escolar na construção da justiça social

A DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR EM UMA ESCOLA QUILOMBOLA - UMA POSSIBILIDADE DE MAIS JUSTIÇA CURRICULAR E SOCIAL

CURRICULAR DECOLONIZATION IN A QUILOMBOLA SCHOOL - POSSIBILITY OF A MORE CURRICULAR AND SOCIAL JUSTICE

LA DECOLONIZACIÓN CURRICULAR EN UNA ESCUELA DE QUILOMBOLA - UNA POSIBILIDAD DE MÁS JUSTICIA CURRICULAR Y SOCIAL

Valéria Campos CAVALCANTEi 

Paulo MARINHOii 

i Professora e pesquisadora do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Educação, Currículos e Diversidades e membro do Grupo de Pesquisa Multidisciplinar em Educação de Jovens e Adultos. vccavalcante1@hotmail.com

ii Investigador do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (Membro da Comunidade de Prática de Investigação - Currículo, Avaliação, Formação e Tecnologias Educativas - CAFTe). Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas. pmtmarinho@fpce.up.pt


RESUMO

Este artigo destaca a construção e o desenvolvimento de uma descolonização curricular assente em fundos de conhecimentos culturais e processos de recontextualização curricular aportados na diversidade de conhecimentos de uma comunidade quilombola. Teve por base uma pesquisa interventiva-colaborativa que assumiu como objetivo geral a construção e o desenvolvimento de currículos contra-hegemônicos, no sentido de possibilitar mais justiça curricular e social, em contextos caracterizados por vigorosas exclusões de várias ordens. O estudo envolveu alunos e professoras do Ensino Fundamental, estudantes e professores/pesquisadores do Ensino Superior. A vivência desse currículo permitiu extrapolar o currículo hegemônico engessado a legados epistemológicos do colonialismo, em que os alunos teceram suas práticas, a partir de redes de conhecimentos já existentes, ampliando saberes sobre a cultura da comunidade em que vivem. Permitiu o reconhecimento, a reconstrução e o fortalecimento de uma identidade cultural e promoveu uma motivação e uma participação mais ativa na construção das aprendizagens dos alunos, constituindo-se em uma possibilidade de mais justiça curricular e social.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Justiça curricular e social; Escola quilombola; Descolonização curricular

ABSTRACT

This article highlights the construction and development of a curricular decolonization based on cultural knowledge funds and curricular recontextualization processes based on the diversity of knowledge of a Quilombola community. It was based on an intervention-collaborative research that assumed as general objective the construction and development of counterhegemonic curricula, in the sense of allowing more curricular and social justice, in contexts characterized by strong exclusions of several orders. The study involved students and teachers of Elementary Education, students and professors/researchers of Higher Education. The experience of this curriculum allowed to extrapolate hegemonic curriculum embedded in epistemological legacies of colonialism, in which students weave their practices from existing knowledge networks, increasing knowledge about culture of community in which they live. It allowed the recognition, reconstruction and strengthening of a cultural identity and promoted more motivation and active participation in the construction of students’ learning, constituting a possibility of greater curricular and social justice.

KEYWORDS: Curriculum; Curricular and social justice; Quilombola School; Curricular decolonization

RESUMEN

Este artículo destaca la construcción y el desarrollo de una descolonización curricular basada en fondos de conocimiento cultural y procesos de recontextualización curricular basados ​​en la diversidad de conocimiento de una comunidad de quilombola. Se basó en una investigación de intervención-colaboración que asumió como objetivo general la construcción y el desarrollo de currículo escolar contrahegemónicos, en el sentido de posibilitar más justicia curricular y social, en contextos caracterizados por exclusiones vigorosas de varias órdenes. El estudio involucró a estudiantes y profesores de educación primaria, estudiantes y professores/ investigadores de educación superior. La experiencia de este currículo nos permitió extrapolar el currículo hegemónico integrado en los legados epistemológicos del colonialismo, en el que los estudiantes tejen sus prácticas a partir de las redes de conocimiento existentes, aumentando el conocimiento sobre la cultura de la comunidad en la que viven. Permitió el reconocimiento, reconstrucción y fortalecimiento de una identidad cultural y promovió la motivación y una participación más activa en la construcción del aprendizaje de los estudiantes, lo que constituye una posibilidad de más justicia curricular y social.

PALAVRAS CLAVE: Currículo; Justicia curricular y social; Escuela Quilombola; Descolonización curricular

1 INTRODUÇÃO

Em uma sociedade global, em que os valores de competição e exclusão de várias ordens sobrepõem-se a valores de solidariedade humana, na qual o foco principal é o lucro desmedido, não importando as consequências que daí advêm a nível planetário, leva-nos a considerar que estamos a viver uma nova versão de um sistema global egoísta humanamente devastador. Nesse contexto, o século XXI parece exigir que se constitua como espaço-tempo de necessidade premente de discussões que possam contribuir para ações efetivas, entre outras dimensões, defesa do meio-ambiente, luta pela democracia e pela dignidade humana (SANTOS, 2008), e assim, uma luta por uma sociedade local e global mais justa e solidária.

É dentro desse cenário global que se tem interrogado como a educação escolar tem assumido a sua responsabilidade social de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, em que micro contextos possam emergir como processos de contracultura a lógicas de globalização de ordem estandardizada, que descontextualiza o peculiar e negligencia necessidades e emergências de contextos locais.

Nesse âmbito, em determinados contextos, os currículos escolares assentes em lógicas e ordens hegemônicas universais têm intensificado situações de desigualdades e de exclusões múltiplas na vida de crianças, jovens e adultos. Esses currículos pouco ou nada têm contribuído para que esses sujeitos, em situação de extrema vulnerabilidade social, possam construir percursos singulares emancipatórios e de empoderamento assentes em experiências educacionais potenciadoras de mais justiça social e, consequentemente, fortalecimento da dignidade humana (MARINHO; DELGADO, 2019).

Tendo por pressupostos básicos, no conceito de justiça social, a dimensão de equidade, inclusão e democracia, os currículos escolares têm vindo a ser inquiridos a mudar (LEITE, 2018), no sentido de dar respostas aos desafios que se apresentam em um tempo convertido em uma “[...] sociedade de avaliação associada à crença no poder dos números, das classificações [e] dos objetivos a atingir” (BROADFOOT; BLACK, 2004, p. 19) - uma sociedade da testagem (STOBART, 2008), na qual se usa e abusa de avaliações estandardizadas nacionais e internacionais. Essa situação tem colocado, por vezes, lugares e sujeitos em periferias de extrema exclusão, como é o caso da escola participante neste estudo. Trata-se de uma escola pertencente a uma comunidade quilombola, constituída na sua maioria por famílias remanescentes de quilombo, descendentes de escravos negros que carregam o estigma e o peso da exclusão e do abandono da sociedade. Essas comunidades são reconhecidas na Constituição Brasileira de 1988 e consideradas no Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, no Art. 2.º, como grupos étnico-raciais “[...] com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003a, n.p.). Apesar desse reconhecimento, na prática, tem-se vivenciado uma trajetória de exclusão social e invisibilidade, que tem negado direitos aos afrodescendentes e negligenciado os territórios quilombolas na estrutura agrária brasileira (CARRIL, 2017), colocando essas comunidades em epicentros de exclusão.

É no quadro dessas ideias que temos vindo a assumir que se situa o estudo a que se reporta este artigo e que teve por base uma pesquisa interventiva-colaborativa (IBIAPINA, 2008), assente em duas questões centrais de investigação: Compreender o currículo como parte do processo de formação humana ou permanecer em uma visão e ação unicamente conteudista? Como construir e desenvolver um currículo em um contexto de desigualdades e marginalização, no sentido de potenciar mais justiça curricular e social? Assim, assumiu-se como objetivo a construção e o desenvolvimento de currículos contra-hegemônicos, de modo a possibilitar mais justiça curricular e social em contextos educativos de extrema marginalização e exclusão. A intervenção e a recolha de dados da pesquisa concretizaram-se em uma escola quilombola, situada em um município do Estado de Alagoas (nordeste brasileiro), envolvendo alunos e professoras do Ensino Fundamental e estudantes (bolsistas) e professores/pesquisadores do Ensino Superior.

Com o processo de pesquisa interventiva-colaborativa, buscamos superar a concepção de se investigar sobre a escola, passando a investigar com a escola, contribuindo para que os integrantes da comunidade escolar se reconheçam como produtores de conhecimentos. Nesse sentido, o artigo apresenta dados empíricos que oferecem possibilidades de análise e contributos para a recriação de currículos democráticos, contra-hegemônicos, possíveis de gerar mudanças na prática pedagógica e nas aprendizagens dos alunos, no sentido de mais justiça curricular e, por conseguinte, mais justiça social.

2 A DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR COMO PROCESSO POSSIBILITADOR DE MAIS JUSTIÇA CURRICULAR E SOCIAL

A descolonização do currículo emerge dentro de uma denúncia sobre a vigorosa rigidez que se tem construído as grades curriculares, assentes em lógicas e ordens de conhecimentos hegemônicas de base colonial como únicas verdades epistêmicas. Currículos que são estruturados por uma colonização do conhecimento, aportada a modelos de poder de um “colonialismo moderno” que operam por meio de mecanismos “[...] do mercado capitalista mundial e da ideia de raça” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131). É por essa ideia de raça que “[...] o Norte Global apresenta ao mundo a imagem da diferença como um problema a ser resolvido. No centro da atuação epistemicida do ocidental, o que é nativo, é por natureza desviante” (MACEDO; MACÊDO, 2018, p. 304).

É dentro desse colonialismo moderno hegemônico que Boaventura de Sousa Santos (2010) considera o pensamento moderno ocidental como um sistema de “[...] distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis”, caracterizando-se por uma fenda abissal, na qual as “[...] distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘[d]o outro lado da linha’ ”, constituindo-se essa divisão de tal ordem excludente, que “[...] ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, se torna inexistente, e é mesmo produzido como inexistente […]” (SANTOS, 2010, p. 31-32).

Nesse âmbito, os conhecimentos gerados do outro lado da linha são “[...] reduzidos a crenças, opiniões, magia, entendimentos intuitivos que, na melhor das hipóteses, podem se tornar objeto ou matéria-prima para a investigação científica” (CANDAU, 2016, p. 24). Desse modo, arrogam-se processos de negação e de silenciamento a referenciais culturais e de conhecimento (como a língua, a culinária, o jeito de se vestir, as crenças religiosas, normas e valores), considerados inferiores a traços de uma cultura e conhecimento colonial. Diante disso, Silva (2005) afirma que:

A invisibilidade e o recalque dos valores históricos e culturais de um povo, bem como a inferiorizarão dos seus atributos adscritos, através de estereótipos, conduz esse povo, na maioria das vezes, a desenvolver comportamentos de auto rejeição, resultando em rejeição e negação dos seus valores culturais e em preferência pela estética e valores culturais dos grupos sociais valorizados nas representações (SILVA, 2005, p. 22).

Assente nesse pressuposto, a construção identitária de cada indivíduo em seu contexto cultural articula-se a símbolos de identificação a um grupo ou a uma comunidade desvalorizada e extremamente excluída, o que leva à própria negação e ao silenciamento do sujeito dos seus referenciais culturais, colocando-os em contextos e vidas caracterizadas por profundas injustiças sociais - consignando-se a construções de identidades culturais subalternizadas.

Quando se pensa em identidade negra no Brasil, essa construção é ainda mais complexa, pois concretiza-se mediante as junções de classe, gênero e raça, no contexto dos mais diversos sentidos do racismo e da exacerbada desigualdade social brasileira (TOSTA; ALVES, 2013; MADEIRA; GOMES, 2018). É nesse sentido que Backes (2010) afirma que é no campo da cultura, “[...] visto como articulado inexoravelmente com relações de poder, [que se] produz as identidades e as diferenças, posicionando os sujeitos em diferentes lugares sociais” (BACKES, 2010, p. 141).

Reconhecer-se em uma identidade supõe, portanto, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência - a uma identidade cultural que nos identifica. É nesse contexto que Carvalho (2014) sustenta a necessidade de reforçar as referências culturais locais na formação do sentimento de pertença propositiva, na qual não se recusa a própria história, os valores, os costumes, mas se potencia no reconhecimento de uma cultura com referenciais de forças contra-hegemônicas. Esses referenciais possibilitam a transgressão a uma subalternização (BACKES, 2010) e a negação de si mesmo.

Considerando esse contexto, acreditamos que a escola pode assumir o compromisso de reconhecimento dessa cultura, integrando-a no currículo escolar e, assim, contribuir para uma valorização de uma identidade cultural, que se possa contrapor a uma cultura de exclusão, de negação e de inferiorização. Compreendemos que a escola tem um papel relevante dentro da comunidade, sobretudo, como espaço de resgate e de valorização da cultura, que, nesse caso específico, se refere a uma cultura quilombola, descendentes de escravos negros que carregam o estigma e o peso da exclusão e da negação da sociedade.

Nessa perspectiva, em contraponto ao currículo prescrito de base colonial, propomos um trabalho curricular mais democrático na escola quilombola, no qual os professores possam fortalecer diálogos com suas práticas e (re)construir outras perspectivas de conhecimento, de currículo e de docência, como possibilidade de pensar a democratização curricular (AXER; FRANGELLA; ROSÁRIO, 2017), de modo a promover mais justiça curricular e, consequentemente, mais justiça social. Pois é de salientarmos que as escolas têm ainda apresentado muitas dificuldades na desconstrução daquilo que foi durante séculos tido como verdade absoluta, um currículo baseado no branqueamento que foi construído ideologicamente pelo branco colonizador. Assim, as escolas que priorizam um currículo tradicional acentuam práticas pedagógicas a partir de conteúdos descontextualizados. Logo, a aquisição do conteúdo está relacionada à aplicação de exercícios de memorização mecânica, que, na maioria das vezes, está artificialmente relacionada a situações de uma realidade considerada “próxima”. Esta serve de ilustração para o mundo criado e apresentado como “ideal” pelos livros didáticos e propostas de ensino.

Essa perspectiva curricular que nos referimos, sempre esteve presente no Brasil, por meio do pensamento abissal (SANTOS, 2010), legitimado pelos currículos para a escola pública, que se materializa por intermédio das teorias pedagógicas que se estruturam como percurso do polo negativo da incultura para cultura, da ignorância para o saber. Tudo isso utilizado como estratégia para conformar crianças, jovens e adultos negros como seres inferiores, cujos direitos lhes foram e são interditos pela hegemonia. É nesse sentido que Macedo e Macêdo (2018) referem que:

Os ideais colonizadores presentes na sociedade ainda são (re)produzidos na educação, colocando os sujeitos sócio e historicamente marginalizados, “do outro lado da linha”. Os negros, indígenas, quilombolas, ciganos, pobres, entre outros, ora são postos como seres inferiores, ora problemas sociais, que necessitam de soluções. Os currículos escolares acabam reforçando essa lógica da bifurcação social e produzem superiores e inferiores, inteligentes e incapazes, nós e os outros (MACEDO; MACÊDO, 2018, p. 307).

Essa é a concepção do silenciamento e da invisibilidade dos sujeitos no currículo escolar, dito de uma forma parcialmente diferente. A exclusão torna, ao mesmo tempo, radical e inexistente o Outro, a voz do Outro, uma vez que “[...] seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social” (SANTOS, 2008, p. 9).

Nesse aspecto, a grande maioria das ações pedagógicas, pensadas para o público pobre e negro no Brasil, quase sem exceção, foram elaboradas com a ausência de diálogo e respeito para com os indivíduos, configurando-se, portanto, como um campo educacional com características fundantes na impossibilidade da copresença dos dois lados da fenda abissal. Contudo, em 2003, por meio da Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou-se obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (BRASIL, 2003b) nas escolas públicas e privadas da Educação Básica do país, assim como a implementação de políticas públicas educacionais voltadas à Educação das Relações Étnico-Raciais em conformidade com o Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004), no sentido de uma inclusão efetiva e de mais justiça social (BRASIL, 2005, 2012).

É tendo por base essas ideias e pressupostos que temos vindo a apresentar que vários autores vêm solicitando a necessidade premente de uma descolonização do currículo (SLEETER, 2010; GOMES, 2012; DESAI; SANYA, 2016; MACEDO; MACÊDO, 2018; HARVEY; RUSSEL-MUNDINE, 2019), de modo a criar condições que concretizem princípios de equidade promotores da justiça social (RAWLS; BERLINER, 2003; CONNEL, 2012; SANTOMÉ, 2013; SAMPAIO; LEITE, 2015). O desenvolvimento de um currículo por meio de redes de conhecimento, tecidas em recontextualizações curriculares (BERNSTEIN, 1980; DELGADO; LEITE; FERNANDES, 2016; LEITE; FERNANDES; FIGUEIREDO, 2018) e aportadas na diversidade de conhecimentos do cotidiano, potenciam o reconhecimento e a (re)construção de saberes contra-hegemônicos que possibilitam a todos os alunos mais autonomia, motivação e participação ativa na construção das aprendizagens (MARINHO; DELGADO, 2019). Um currículo que possibilita aprendizagens nas quais há produção de conhecimento pelos próprios sujeitos e, assim, mais justiça cognitiva e social, pois, como sustenta Santos (2010), não é possível uma justiça social sem uma justiça cognitiva.

Nessa linha de ideias, o currículo vai-se constituindo como outra possibilidade, sempre desafiando o currículo prescrito, não no sentido de negação, mas de recontextualização e de recriação com o contexto situacional do sujeito, possibilitando superar a reprodução de currículos escolares entrincheirados nos legados epistemológicos do colonialismo que preservam conhecimentos hegemônicos como únicas verdades. Nesse contexto, salientamos a importância dos fundos de conhecimento na recontextualização curricular, como amplo conjunto de recursos culturais e cognitivos na definição de estratégias de ensino (MOLL et al., 2005) e nas reconfigurações curriculares. Os fundos de conhecimento abrangem conhecimentos, habilidades e experiências adquiridas por meio de interações históricas, sociais, econômicas e culturais de um indivíduo, vivenciadas no seu cotidiano, em sua comunidade e na vida familiar. Nesse sentido, oferecem subsídios substanciais para o processo de recontextualização curricular que podem ser mobilizados para validar as identidades dos alunos, ao reconhecê-los como indivíduos detentores de conhecimentos válidos e ao recorrer a esses conhecimentos como base para futuras aprendizagens. É nessa acepção que poder-se-á vivenciar pelos grupos, constantemente injustiçados, uma reivindicação de novos processos de produção e de validação de conhecimentos válidos e de novas relações entre diferentes tipos de conhecimento (SANTOS, 2011).

Embora se reconheça que esses procedimentos de descolonização curriculares possam estar ainda embutidos em modos ocidentais de conhecer, de ser e de fazer, podem, não obstante, ser usados para interrogar e revisitar a construção e a pedagogia do conhecimento disciplinar ocidental (HARVEY; RUSSEL-MUNDINE, 2019), de modo a apoiar mudanças paradigmáticas e, consequentemente, rupturas epistemológicas que possam contribuir para mais justiça social dos sujeitos e das comunidades marginalizadas. É nesse sentido que reconhecemos a importância de trabalharmos nas escolas quilombolas em um processo de contra-hegemonia, na qual as identidades dos alunos devem ser integradas e priorizadas. Pois, como refere Quirino (2014, p. 52), o “[...] currículo é constituído de múltiplas narrativas, podendo utilizar o discurso do grupo dominante [...], as histórias podem ser invertidas, subvertidas e parodiadas, criando novas identidades e subjetividades contra-hegemônicas”. Nesse contexto, o currículo escolar quilombola deve assumir as especificidades dessas comunidades (BRASIL, 2012) e reafirmar o seu poder ao permitir aos alunos negros e pobres enxergar o mito da democracia racial, que nega e rouba sua identidade e história, e, assim, contribuir para combater as injustiças epistêmicas de um sistema dominado pelo pensamento ocidental.

3 CONTEXTOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: O CASO EM ESTUDO

Este artigo tem por base um estudo que se desenvolveu em uma escola municipal inserida em uma comunidade quilombola do Estado de Alagoas (nordeste brasileiro), nos anos letivos de 2017 e 2018. A escola do estudo, designada ficticiamente por Dandara, oferece duas modalidades de ensino - a Educação Infantil e anos iniciais (do 1º ao 5º ano) e anos finais (do 6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental, nos turnos matutino e vespertino, organizada em séries anuais. Estruturada em dois espaços físicos, sede e extensão, integra um total de 22 turmas: sete na sede e 15 na extensão. No ano letivo de 2019, conta com 627 estudantes matriculados, de seis a 15 anos de idade, e um total de 49 profissionais. O apoio técnico administrativo é formado por 12 funcionários, sendo dois agentes administrativos, sete auxiliares de serviços gerais, três vigilantes e uma secretária escolar. A gestão da escola é constituída por uma diretora, uma vice-diretora e uma coordenadora pedagógica e o corpo docente por 34 profissionais.

A comunidade, em que se insere a escola Dandara participante desta pesquisa, é composta, em sua grande maioria, por famílias remanescentes de quilombo. Trata-se de famílias que residem na comunidade há muito tempo e que, em sua pluralidade, são descendentes de escravos que carregam o estigma e o peso da exclusão e do abandono da sociedade brasileira. São pessoas de baixa renda e muitos sobrevivem com o auxílio de renda do programa do Governo Federal Bolsa Família, vivendo abaixo da linha da pobreza.

No aspecto cultural, traz em si o conhecimento da cultura negra, de uma ancestralidade vivenciada pelos avós e seus descendentes e que, ao longo do tempo, foi incorporando novas manifestações culturais, como as danças e as músicas afro-brasileiras. A culinária de origem africana faz parte desse aspecto cultural da comunidade, assim como as plantas medicinais, que são cultivadas nos quintais das casas. As benzedeiras utilizam algumas dessas plantas para rezar e fazer chás cicatrizantes. A comunidade tem como referência religiosa o catolicismo, mas o que predomina entre os remanescentes quilombolas é o candomblé. A cultura da comunidade está enraizada no legado afrodescendente; contudo, é de salientarmos que há uma ausência de discussões referentes à identidade quilombola e, consequentemente, entre os jovens, há um certo desconhecimento sobre a história e a cultura do quilombo, e, até de certa forma, um constrangimento em admitir essa ancestralidade. Nesse contexto, a comunidade que integra essa escola traz em si o conhecimento informal baseado na educação adquirida pelos pais e pelos seus descendentes, sendo atribuído à escola o compromisso do acolhimento afetivo e educacional, visando o ingresso da criança em um ambiente propício ao seu desenvolvimento cognitivo e social.

O estudo teve por base uma pesquisa interventiva-colaborativa (IBIAPINA, 2008) que assumiu como objetivo a construção e o desenvolvimento de currículos contra-hegemônicos, no sentido de possibilitar mais justiça curricular e social em contextos educativos de extrema marginalização e exclusão. Envolveu todos os professores da escola, professores/pesquisadores de uma universidade e estudantes (bolsistas) de licenciaturas. Teve por plataforma um contexto de formação continuada com a escola, no sentido de compreender e construir currículos, em um contexto de desigualdades e marginalização, potenciadores de mais justiça curricular e social. Nesse contexto, a pesquisa interventiva-colaborativa concretizou, inicialmente, um levantamento de problemáticas e necessidades de intervenção, tendo emergido, entre outras, questões de marginalização social, preconceito étnico-racial, negligência da cultura da comunidade no cotidiano da escola e a sua negação em processos identitários.

A partir desse diagnóstico, foram planejadas e desenvolvidas as seguintes ações: a) formação com os professores sobre currículos, culturas, diversidade e identidades; b) construção de uma base de fundos de conhecimento por meio de encontros de estudantes bolsistas com elementos sênior da comunidade, no sentido de resgatar histórias sobre a cultura da comunidade quilombola (contadores de histórias); c) contação de história na escola Dandara; d) realização de representações das crianças em forma de desenhos; e) construção de textos em sala de aula; e f) apresentação de peças teatrais para a comunidade.

No sentido de obter dados de forma aprofundada, realizamos observação-participante de aulas em turmas de Ensino Fundamental, assim como de outras ações desenvolvidas ao longo da pesquisa, sendo os dados registrados em um diário de observação (DO). Recorremos também à realização de 2 grupos focais (GF1 e GF2), constituídos por professoras e coordenadoras pedagógicas envolvidas no projeto. Os discursos dos grupos focais foram analisados pela técnica da análise de conteúdo (BARDIN, 2008). Neste artigo, são base de apresentação e análise, os dados provenientes dos grupos focais, da observação de aulas de duas turmas - uma do 2º ano e outra do 5º ano, ambas do Ensino Fundamental - e da observação geral do projeto de investigação.

4 DECIFRANDO POSSIBILIDADES DE DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR NA ESCOLA DANDARA

Os dados e a respectiva análise desta pesquisa interventiva-colaborativa, tendo por base um trabalho de levantamento de fundos de conhecimento do contexto local, serão mais bem compreendidos se, em princípio, apreendermos as complexidades do próprio contexto. A esse propósito, e referindo-se ao contexto de trabalho, as professoras e as coordenadoras da escola partilham:

Olhe, não é fácil trabalhar com a história da comunidade, até porque muitos moradores resistem a contar as histórias, não sei se é por medo ou vergonha, quando a gente pergunta alguns dizem que isso é coisa do passado.

Olhe, realmente isso é verdade, aqui muita gente não aceita que é preto [...].

[...] mas compreendemos agora, que é aí que entra nossa intervenção. É tentar melhorar essa situação, para romper com essa negação; porque esse comportamento é de certa forma uma maneira de se defender. Lembram do Texto de Moura o que ela diz sobre o papel da escola? Na verdade, ela diz para desconstruir esses preconceitos. Eu na discussão anotei aqui [...].

É, agora entendemos nosso papel, agora entendemos [...]. (GF2).

Eu me lembro do dia que uma mãe chegou aqui chorando porque a filha foi chamada de negra, preta, aí eu nem sabia o que dizer.

Como foi essa história?

Mulher... foi uma criança que estuda aqui e um dia outra criança, também da escola, chamou ela de negra, aí a mãe veio aqui reclamar chorando, e olhe que a mãe é uma professora também e é negra, mas acho que nem sabe, enfim, trabalha em outra escola. Aí eu consolei a mãe, nem sabia o que dizer. Se fosse hoje, eu já ia dar outro encaminhamento, iria chamar as mães e conversar sobre o que é ser negro, o que é ser quilombola. Ia desconstruir com elas a sua história e identidade cultural. (GF1).

Também nessa mesma linha de ideias, e em um dos encontros com elementos sêniores da comunidade para realizar resgate de histórias, uma estudante bolsista registra:

[...] é muito difícil, quando fui fazer pesquisa para o levantamento de fundos de conhecimentos, algumas pessoas me disseram: Saiam daqui com essa conversa de negro da minha porta. (DO).

Desses relatos, podemos constatar que estamos perante contextos marcados por processos e vivências de extrema negação e exclusão. Esses discursos levam-nos a acreditar que muitas foram, e são, as lutas históricas dessas comunidades quilombolas contra a opressão, a exploração e a violência de vários tipos e dimensões e que remetem os sujeitos e contextos para formas de silenciamento e marginalização. Essa constatação vai ao encontro de Silva (2005) quando sustenta que processos de invisibilização, recalcamento e inferiorização dos valores históricos e culturais de um povo provocam comportamentos de auto rejeição e negação do sujeito, assim como de seus referenciais culturais.

Nesse âmbito, a pesquisa interventiva-colaborativa desenvolvida em uma plataforma de construção e de desenvolvimento de currículos contra-hegemônicos tentou chegar a essas realidades e contribuir para a desconstrução de cenários caracterizados por cartografias existenciais invisibilizadas, periféricas e excludentes. A esse respeito, as professoras e as coordenadoras sinalizam que:

[...] o que estamos a conseguir fazer na escola por meio do trabalho das ações do projeto de pesquisa é muito importante [...].

Sim é muito, um dia mesmo, uma mãe me contou uma história de quando era pequena, que tinha vergonha de ser preta, porque todo mundo dizia que quem morava aqui na comunidade era preto e pobre, havia até xingamento, ela disse: “Xingava a gente de negrinha, falava que a gente morava no quilombolo, que nós eram escravos”. Aí ela disse que as coisas mudaram e que com sua filha era diferente, e que esse trabalho na escola também estava ajudando ela a mudar. (GF2).

É dentro desse contexto de possível mudança que a escola foi reconstruindo suas práticas curriculares tendo por base o contexto da comunidade dos seus alunos, como podemos constatar nos trechos seguintes:

Olha, sabe o que eu percebo, é que agora depois dos nossos estudos, de nossas formações, eu percebo que estamos trabalhando muito mais com as questões negras [...], questões que antes nunca tínhamos trabalhado, questões do quilombo, de povos marginalizados, nunca mesmo.

Sim, de fato nunca se trabalhou essas temáticas no currículo e os livros didáticos colocados não apoiam esse trabalho, são outros conteúdos [...].

[...] começamos a perceber que ao ler, ao discutir com vocês, nós tentamos melhorar, buscamos estudar mais e melhorar nossa prática, considerando as discussões sobre Identidade e Diversidades. Então entendo que essa pesquisa nos permitiu enxergar que aqui é uma escola quilombola.

Gente, eu fico até emocionada ao ouvir isso, é que dificilmente eles falavam do quilombo, acho que nem sabiam nada sobre isso.

Como a gente não enxergava essa realidade da comunidade! Estávamos bem formatadas ao que era posto no livro didático.

Olhe gente, mas eu tenho que dizer uma coisa, agora na escola as professoras vivem fazendo trabalhos com a temática quilombola, Veja só, em cada sala tem uma atividade, tem sempre alguém fazendo currículo com o tema quilombola, tem muita história da comunidade, sempre tem. (GF1).

Desses depoimentos, podemos inferir que a escola Dandara, durante muito tempo, assumiu perspectivas e ações curriculares reprodutoras do silenciamento e da invisibilidade dos sujeitos no currículo escolar ao negar as discussões e aprendizagens relativamente a múltiplas dimensões que compõem a identidade cultural da sua própria comunidade quilombola. De certa forma, contribuiu para a realimentação dos possíveis preconceitos, racismos e desigualdade social, que se reconstrói cotidianamente na sociedade brasileira (TOSTA; ALVES, 2013; MADEIRA; GOMES, 2018). Desse modo, fica claro como a escola vinha negligenciando o seu contexto e, concomitantemente, a realidade e a vida dos seus alunos, pois “[...] nunca se trabalhou essas temáticas no currículo” (GF1), colocando também em evidência que a Lei No 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas, bem como as respetivas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004) não se constituíam como orientações base na construção e no desenvolvimento curricular da escola Dandara.

Podemos compreender tal situação dentro da rigidez que se tem construído e desenvolvido os currículos, aportados a uma colonização do conhecimento (MALDONADO-TORRES, 2007), que sempre esteve presente no Brasil por meio do pensamento abissal (SANTOS, 2010), o que remete crianças, jovens e adultos negros a processos de exclusão. É nesse sentido que Macedo e Macêdo (2018) aclaram que os ideais colonizadores presentes na sociedade ainda são (re)produzidos nos currículos escolares, contribuindo para que os negros, os indígenas, os quilombolas, os ciganos e os pobres sejam colocados “do outro lado da linha”. Esse cenário pode contribuir para que os professores, quando trabalham temáticas sobre relações étnico-raciais e sobre História da África, como constatam Gomes e Jesus (2013), fiquem apenas por questões superficiais, por vezes estereotipadas e confusas. Não obstante, as professoras e as coordenadoras envolvidas no estudo percepcionam que:

[...] estamos avançando bastante em relação ao que fazíamos antigamente no currículo, como diz a professora. Graças ao projeto, eu estou achando que estamos mais à vontade.

Sim, estamos conseguindo. E, por isso estamos com mais ânimo. Assim, eu comecei a perceber que eu cresci e que eles também cresceram.

Eu percebo que já estão discutindo realmente sobre escola quilombola, sobre currículo quilombola. Estamos fazendo atividades mais voltadas para a realidade da comunidade que é quilombola, articulando com a sala de aula. (GF1).

Dessa forma, as ações curriculares e pedagógicas-didáticas desenvolvidas na escola Dandara parecem constituírem-se como um processo transformador das práticas, pelas quais a escola se envolve em um processo de mudança individual e coletiva, em que atua, reflete e aprende com o outro. Emergem daí possibilidades para ressignificar o processo de ensino e as práticas pedagógicas desenvolvidas por essa escola quilombola. Dessa forma, promove o desenvolvimento profissional docente, em que as professoras oportunizam o fortalecimento de diálogos com suas práticas, no sentido de (re)construir currículos mais democráticos (AXER; FRANGELLA; ROSÁRIO, 2017). Assim, potencializa-se, neste contexto específico, uma compreensão e ação curricular mais horizontal, tendo por base as realidades contextualizadas da comunidade quilombola, contrapondo as lógicas hegemônicas do conhecimento de base colonial.

Ao refletirem sobre suas práticas impulsionadas pelo projeto de pesquisa, as professoras começaram por compreender os sentidos do currículo em contexto da sua ação:

E a gente aqui na escola, cheia de problemas, nem percebia como o currículo é uma luta de forças. Eu pensava que estava trabalhando certo, mas agora entendo que estávamos fazendo muitas atividades em círculo, sem muito sentido para estes nossos alunos e com aprendizagens muito fechadas, reduzidas. (GF1).

Desse relato, podemos inferir que as professoras compreenderam que o currículo se constitui em um campo de luta de forças, nesse caso particular, lutas entre conhecimentos hierarquizados e descontextualizados e conhecimentos dos contextos sociais e culturais dos alunos quilombolas. Constatam que a sua prática assentava no desenvolvimento de um currículo de forma circular, um currículo fechado em si mesmo, com pouco sentido para os alunos e, muitas vezes, sem oportunizar aprendizagens significativas. Por conseguinte, um currículo que não é construído em constante espiral - aberto e articulado com múltiplos conhecimentos e aprendizagens.

Observamos, assim, que a escola começou a colaborar com a experiência social e cultural da comunidade, procurando entender seus significados e a recontextualizá-los no currículo reconstruído cotidianamente. Nessa concepção de currículo, rompeu-se, portanto, com os conhecimentos tidos como fechados, confrontando-os com outras opções de conhecimentos. A esse propósito e quando questionadas sobre que práticas têm recorrido em sala de aula, as professoras expõem:

Eu sempre trabalho com as histórias do quilombo, mas também trabalho com outros conteúdos né, eu trabalho com os contos [...].

[...] eu gosto muito do trabalho com as articulações com suas realidades, seus conhecimentos e temos trazido também a literatura Afro pra sala de aula.

Trabalhamos muito com os contos e causos que as idosas da comunidade contaram na pesquisa.

Trabalhamos também fábulas, algumas crônicas reconstruídas no projeto.

Sim, depois de nossos estudos, comecei a trabalhar com os contos das idosas da comunidade, aqueles que vocês apresentaram aqui. Trabalhei com as outras turmas seguindo aquele trabalho que as bolsistas fizeram com os estudantes do segundo ano.

Isso mesmo, estamos seguindo. O que eu percebo é que durante as leituras, que foram prazerosas e interativas, os alunos gostam muito, se identificam, alguns já conhecem as histórias que foram contadas por seus pais. (GF2).

Tal como esses discursos, consideramos que os fundos de conhecimento (MOLL et al., 2005), aportados aos contos/causos que foram recolhidos na comunidade, constituíram-se como centro nevrálgico para a escola, em geral, e para o trabalho em sala de aula, em particular, em contextos de práticas de leitura e escrita. É nesse sentido que as professoras e as coordenadoras narram:

Um dia, num trabalho de produção de texto, em dupla, sobre histórias da comunidade, uma aluna contou uma história muito interessante sobre a origem da comunidade. Ela disse que a mãe contou como começou a comunidade, ela disse que aqui era sítio, eles capinavam, plantavam, trabalhavam na roça e disse que a mãe levava os filhos para trabalhar na roça. Depois as crianças pegavam na enxada também. As crianças faziam, mas eram crianças ainda, à noite, levavam lenha pra casa e carregavam água, era fogão de lenha e a água era da fonte. Assim, acho que vale a pena fazer em dupla, eles ficam mais soltos, falam as histórias que escutam em casa e produzem o texto ativamente com muito significado. (GF2).

Tem um grupo que é muito tímido, geralmente o grupo que fica mais próximo da janela são os que participam mais, são os que até dominam a questão da oralidade... porque tem muitas crianças que são muito tímidas [...], às vezes não conseguem ler o texto, porque eu tenho muitos alunos que ainda não leem.

É, muitos têm dificuldade de leitura.

Mas eles participam mais quando a história é engraçada, eu peço para eles lerem. Depois faço uma leitura em voz alta, aí ficam motivados e esforçam-se para a leitura.

[...] gostaram muito do Chico Peste, esse eles adoraram [...].

Os meus gostaram mais da história do Padre que bebeu, nesse dia eles participaram muito assim, bastante. (GF2).

Nessa perspectiva, por meio da contextualização das suas realidades no currículo escolar em uma lógica descolonizadora do conhecimento, os alunos ficaram motivados para a aprendizagem da leitura e para a produção textual. Situação que fica bem patente na nossa ação de observação e de intervenção:

[...] ficamos desse lado do grupo que participa menos [...] realmente eles têm mais dificuldade na leitura. Aí a gente lê para eles em voz alta, mas quando eles gostam da história pedem para a gente repetir e ficam motivados para a aprendizagem da leitura. (DO).

Essas novas possibilidades educativas desenham outra possibilidade de currículo na escola quilombola, estabelecendo relações mais ecológicas entre saberes e culturas diferentes que dialogam em sala de aula, por meio de experiências de horizontalização/ecologização (OLIVEIRA, 2012). Partindo dos saberes e das práticas de seus agentes, as experiências do mundo dos alunos são vistas como integrantes do processo pedagógico que não pode esgotar-se nessas totalidades ou partes.

Nesse aspecto, compreendemos que o currículo não é centrado em verdades absolutas, mas, sim, na horizontalidade, em que todos os conhecimentos são reconhecidos e valorizados, não havendo, portanto, hierarquização de saberes. Dessa forma, configurou-se uma possibilidade de construção de um currículo mais criativo por meio de redes de conhecimento tecidas em recontextualizações curriculares (BERNSTEIN, 1980; DELGADO; LEITE; FERNANDES, 2016; LEITE; FERNANDES; FIGUEIREDO, 2018), que potenciaram o reconhecimento e a (re)construção de saberes de contra-hegemonia colonial, promovendo motivação e uma participação mais ativa na construção das aprendizagens dos alunos (MARINHO; DELGADO, 2019). Assim, buscou-se criar um desenho curricular mais justo, igualitário e mais humano.

É nesse mesmo sentido que, em outras atividades (para além da leitura e da escrita), em particular no processo de representação por meio do desenho e durante a contação de histórias resgatadas da comunidade, alguns alunos faziam interrupções para contribuir e acrescentar algo à história contada (Chico Peste). Ilustra essa situação o seguinte diálogo entre alunos do 2º ano (A) e a professora (P):

A: Aí professora, esse homem era muito ruim, não era? Ficava fazendo malvadezes com o povo.

P: Pois é, ficava. Ele era perigoso.

A: Minha mãe já contou essa história também, disse que aqui todo mundo tinha medo dele.

P: Realmente, ele era terrível. Minha mãe também falava isso. Os antigos aqui todos lembram deles, né isso? Quem mais já ouviu as histórias do Chico Peste?

A: Eu já! Minha mãe disse que minha avó conheceu esse homem e que ele era muito ruim. Batia mesmo nas pessoas, todas as crianças aqui tinham medo dele. [...] ela disse que ele ficou muito rico tia. Ele comprou uma casa bem grande lá no centro.

A: Eu também fui lá em cima, não foi? Minha mãe até hoje tem medo de passar por ali. Ela disse que até hoje tem mal assombração, por causa do Chico Peste.

A: Olha só, professora. Veja se ficou bom. Ele era assim muito esquisito [...]. Aí de noite, se escondia para bater nas pessoas. Coloco aqui professora, no desenho?

P: Pode colocar. Isso mesmo. (DO).

Como podemos constatar, as histórias contadas trazem traços culturais de regionalidade e marcas da oralidade da comunidade. Isso permitiu aos alunos, no momento de desenhar, recuperar as tradições da cultura popular da comunidade. Compreendemos que, ao utilizar esse conto tradicional no currículo, a escola permitiu que se estabelecesse uma relação entre os conhecimentos escolares/formais com as diversas redes de conhecimentos trazidas pelos alunos. Após a contação, as crianças fizeram suas representações.

Ainda nessa linha de ideias, mas agora com alunos do 5º ano, observamos e registramos o diálogo emergente em sala de aula, também por meio da dinâmica de contação de histórias locais (Botija escondida):

P: Tá vendo meninos como esse homem era preguiçoso, vocês entenderam a história? Vocês acham que o preguiçoso mereceu a botija?

A: Eu entendo que a botija era para a preguiçosa, aí não adiantou o outro vizinho tirar. Minha mãe disse que quando a botija é da pessoa não adianta outra ir tirar.

A: Professora eu sei dessa história de botija, minha mãe disse que aqui tá cheio de botija.

A: Quem enterrou essas botijas aqui?

A: Ela disse que era dos negros que escondia o ouro nos cabelos, que escondia dos brancos.

P: E esses negros moravam aqui? De onde vinham? Quem eram?

A: Não sei, ela disse que era daqui. A tia num disse que os negros eram quilombolas?

P: Na verdade, a história é outra, os negros se escondiam aqui, lembram? Eles são os antepassados. [...]. Gente, tá vendo, vejam como é bom conhecer as histórias do passado, as histórias dos negros que viviam aqui.

A: A professora contou outras histórias pra gente também, aí eu levei a história da assombração pra casa, minha mãe disse que aqui também tem muita assombração, aqui disse que é dos negros que morreram aqui.

A: Foi minha mãe que disse também que minha bisavó foi escrava numa casa lá da fazenda, que sofreu muito.

P: Realmente os nossos antepassados negros sofreram muito; olhem na próxima aula vamos desenhar essas histórias e escrever sobre elas. O que vocês acham?

Como podemos perceber, por meio desse diálogo, o trabalho desenvolvido conseguiu promover a construção de uma proposta educativa, em que todos os envolvidos construíram várias redes de saberes a partir da temática negra estudada. Dentro desse contexto, as crianças trouxeram suas experiências. Observamos, assim, que o contexto permite estabelecer aproximações entre os alunos e a realidade vivenciada na comunidade pelos seus antepassados, pais e avós. Essas aproximações desencadearam curiosidades e sentimentos de pertencimento nos alunos. Compreendemos, portanto, que, por intermédio da contação da história em questão, foi possível alcançar a superação da lógica hegemônica. Nessa concepção, a sala de aula caracterizou-se como lugar de desinvibilização dos saberes dos alunos, que, em algumas escolas, são tratados como inferiores. Transparecem, assim, possibilidades de práticas curriculares que potenciam a descolonização do currículo. Possibilidades de rupturas epistemológicas e, consequentemente, a superação das monoculturas hegemônicas (SANTOS, 2014), sendo reconhecidos novos processos de produção e de validação de conhecimentos, garantido, assim, aos alunos quilombolas o direito de se apropriar dos conhecimentos tradicionais e das suas formas de produção, de modo a contribuir para o seu reconhecimento, valorização e continuidade (BRASIL, 2012) da sua comunidade e identidade cultural.

Dentro desse contexto, as crianças sentiram-se livres para trazerem suas experiências pessoais para dentro da sala de aula, desenvolvendo-se e reconstruindo-se um currículo que possibilita aprendizagens significativas com produção de conhecimento pelos próprios alunos e promovendo-se, dessa forma, mais justiça curricular. De fato, como pudemos observar em contexto de sala de aula,

[...] são recorrentes, na prática de todas as professoras, processos de recontextualização curricular por meio dos fundos de conhecimentos coletadas na comunidade. Percebemos que, ao longo desses meses, as professoras foram ampliando o planejamento com temáticas negras, trabalhando com uma diversidade de textos, contos, fábulas, músicas. Todo esse material tinha como temas questões étnicos-raciais. Isso tem permitido os alunos serem reconhecidos e valorizados nos seus saberes, ampliando esses mesmos saberes sobre os seus ancestrais e articular com outros. (DO).

É de salientarmos que essas práticas começam por deslocar o olhar e a ação para além do contexto de sala de aula, criando movimentos, ações e diálogos ativos com os membros da comunidade. A exemplo disso, as professoras relatam:

Por falar nisso, vejam aí, como os alunos do 4º e 5º ano estão fazendo o teatro sobre temáticas negras, contando a história de quilombolas e a discriminação que são submetidos; todos vestidos com roupas tradicionais. É muito bom!

É verdade minha gente, que coisa mais linda, estão representando muito bem.

Você viu como elas estão falando? Se apropriando do que trabalhamos com eles [...] falando bem [...].

E as famílias estão gostando muito dessas apresentações. Elas adoram, estão gostando muito, compraram o pano para fazer as roupas e uma mãe costurou; as mães estão muito orgulhosas e a comunidade gosta muito. (GF1).

Estamos perante um currículo que se amplia para além da sala de aula, dos muros da escola, e que se articula com e na vida da comunidade, constituindo-se em potência humanizadora. Um currículo sem fronteiras e amarras, que não se confina a uma única forma de conceber e validar o conhecimento. De fato, existem muitos “[...] modos de fazer e criar conhecimentos nos cotidianos, diferentes daquele aprendido, na modernidade, especialmente, e não só, com a ciência” (ALVES, 2008, p. 15), mas também nas interações com outras formas de ser e de fazer. Segundo Boaventura Sousa Santos (2014), será o reencontro da ciência com o senso comum, pelo qual se transforma o senso comum com base na ciência constituída e no mesmo processo transforma a ciência por meio de uma ecologia dos saberes. Tendo por base essas ideias, o currículo é percepcionado como cultura real que emerge de uma série de processos, mais do que como objeto delimitado estático fechado em si mesmo (FORD; FRIEDERICI, 2007).

É importante enfatizar que todas essas formas de (re)organização, (re)construção e ressignificação do currículo na escola Dandara têm também contribuído para o reconhecimento, a reconstrução e o fortalecimento de uma identidade cultural propositiva (CARVALHO, 2014), como podemos constatar nos seguintes depoimentos:

Eu estava aqui pensando, vocês falam, eu sei que eu faço, agora, porque antes nós não sabíamos trabalhar no currículo com temas que envolvessem a cultura negra e identidade. Assim, eles ficam mais motivados e com orgulho de si, orgulho de pertencer a uma comunidade quilombola. Tenho observado isso todos os dias [...].

Sim, isso é uma realidade, uma mudança bem presente.

Sem dúvida, de fato essa mudança existe [...].

No começo era complicado pra gente mudar. Mas agora até as crianças já dizem: “nós somos do quilombo, somos quilombolas”.

[...] e dizem isso com orgulho, muito orgulho [...]. (GF2).

Provocar experiências que incentivem e promovam o reconhecimento e a valorização dos sujeitos faz com que a escola e a educação cumpram com um dos seus maiores desígnios - respeitar e fazer respeitar a dignidade de todos e para com todos. Por meio deste estudo, podemos compreender a relevância de se trabalhar nas escolas, principalmente no caso de comunidades historicamente marginalizadas, processos de contra-hegemonia, nos quais as identidades dos alunos possam encontrar espaço para se reencontrar e reconstruir suas identidades culturais, assentes em sentimentos de valorização pessoal e comunitária.

5 CONCLUSÃO

Com este artigo, que teve por base uma pesquisa interventiva-colaborativa, pretendemos contribuir para a produção de conhecimento relevante e aprofundamento teórico-epistemológico sobre possibilidades de construção e de desenvolvimento de currículos contra-hegemônicos, no sentido de possibilitar mais justiça curricular e social em contextos educativos de extrema marginalização e exclusão.

Nesse âmbito, os dados deste estudo evidenciam uma aprendizagem coletiva na compreensão de sentidos curriculares de base epistemológica do colonialismo para uma descolonização de conhecimentos hegemônicos por meio de processos sistemáticos de recontextualização curricular. Processos em que os alunos teceram suas aprendizagens a partir de conhecimentos já existentes, ampliando saberes sobre a cultura da comunidade em que vivem. A transformação das práticas curriculares potencializou a sala de aula como lugar de desinvibilização dos saberes dos alunos, de modo a promover a motivação e a participação ativa nos processos de aprendizagem, e oportunizou o reconhecimento, a reconstrução e o fortalecimento de uma identidade cultural quilombola. Nesse contexto, o currículo reafirmou o seu poder como potência na reconstrução identitária cultural dos alunos, descortinando o mito da democracia racial que nega e rouba sua identidade e história.

Tal como outros estudos (SLEETER, 2010; GOMES, 2012; DESAI; SANYA, 2016; MACEDO; MACÊDO, 2018; HARVEY; RUSSEL-MUNDINE, 2019), esta investigação sustenta a necessidade de se construir e desenvolver mecanismos nas escolas que potenciem uma descolonização dos currículos, como compromisso de criar condições que ofereçam mais justiça curricular e social para todos. Vem também reforçar a importância de se repensar e equacionar currículos que se ampliem para além das fronteiras da sala de aula, pois a forma de ensinar não pode continuar a negligenciar todos aqueles que são marginalizados nos códigos e nas lógicas de uma cultura escolar curricular hegemônica. Em pleno século XXI, prevalecem práticas aprisionadas a grades curriculares que consignam o desenvolvimento de um currículo mais em forma circular, do que em forma de espiral.

Contudo, como Gomes (2012), consideramos que descolonizar os currículos é um vigoroso desafio para a educação escolar do século XXI, que deve ser assumido como um contributo imprescindível na concretização de sociedades mais justas e solidárias. Temos consciência de que a educação não tem em si porções mágicas; não obstante, em muito pode contribuir para que a vida de crianças, jovens e adultos em situação de extrema vulnerabilidade social possam construir percursos de educação e de formação potenciadores de mais justiça social.

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Recebido: 12 de Julho de 2019; Aceito: 27 de Agosto de 2019

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