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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.3 São Paulo jul./set 2019  Epub 28-Out-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i3p1045-1074 

Dossiê Temático: Em busca da justiça curricular: as possibilidades do currículo escolar na construção da justiça social

A JUSTIÇA CURRICULAR EM TEMPOS DE IMPLEMENTAÇÃO DA BNCC1 E DE DESPREZO PELO PNE (2014-2024)2

CURRICULAR JUSTICE IN ‘BNCC’ IMPLEMENTATION TIMES AND DESPISE FOR ‘PNE’ (2014-2024)

LA JUSTICIA CURRICULAR EN TIEMPOS DE IMPLEMENTACIÓN DE LA BNCC Y MENOSPRECIO POR EL PNE (2014-2024)

Branca Jurema PONCEi 

Wesley ARAÚJOii 

i Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: Currículo. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Justiça Curricular (GEPEJUC). E-mail: tresponces@gmail.com

ii Doutorando do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: Currículo. Diretor de escola pública da Rede Municipal de Várzea Paulista (SP). E-mail: waraujo_ef@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo é um dos frutos da pesquisa denominada A justiça curricular no século XXI, as políticas e os sujeitos do currículo, que pautou a Educação Básica no Brasil em diferentes regiões e redes escolares. É resultado da ampliação dos estudos que relacionam currículo e justiça social realizados no Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular (GEPEJUC) e de análises do contexto brasileiro, que a passos largos tem aprofundado na vida escolar uma racionalidade neoliberal. A ela somaram-se drásticos cortes nos investimentos públicos, a partir de 2016, que têm impedido a realização de metas propostas pelo Plano Nacional de Educação (2014-2024), além da obrigação jurídica imputada pelo Estado brasileiro aos entes federados de implementar a Base Nacional Comum Curricular, homologada em 2017. Analisa-se o currículo escolar como território de disputa (ARROYO, 2013) e apresenta-se o conceito de justiça curricular em suas três dimensões - a do conhecimento, a do cuidado e a da convivência - utilizando-o nas análises dos recentes acontecimentos educacionais brasileiros e propondo-o como um dos instrumentos de resistência às tendências dominantes na medida em que, no currículo, se cultivem espaços de formação de subjetividades democráticas. Ressalta-se a urgência de ensinar na e para a democracia compreendida como um valor. A fundamentação teórica: em relação às proposições epistemológicas e políticas, contou com Santos (2007, 2011, 2018) e Freire (2001, 2011, 2014) e, em relação ao conceito de justiça curricular, contou com Santomé (2013), Connel (2009), Estevão (2001, 2004), Ponce e Neri (2015, 2019) e Ponce (2016, 2018).

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Justiça curricular; Políticas educacionais; PNE; BNCC

ABSTRACT

This paper is one of the products of research called Curriculum Justice in the 21st Century, policies and subjects of the curriculum, which guided Basic Education in Brazil in different regions and school networks. It is the result of the expansion of studies that relate curriculum and social justice conducted in the Study and Research Group in Curriculum Justice (called GEPEJUC) and analyzes of the Brazilian context, which has made impressive strides in deepening a neoliberal rationality in school life. Drastic cuts in public investments from 2016 was added to it, which have prevented the achievement of goals proposed by the National Education Plan (PNE - 2014-2024), in addition to the legal obligation imputed by the Brazilian State to the federated entities to implement the National Common Curricular Base (known as BNCC), approved in 2017. The school curriculum is analyzed as a territory of dispute (ARROYO, 2013) and the concept of curricular justice is presented in its three dimensions - knowledge, care and coexistence - using it in the analysis of recent Brazilian educational events and proposing it as one of the instruments of resistance to the dominant trends as far as spaces for democratic subjectivities are formed in the curriculum. The urgency of teaching in and for democracy understood as a value is emphasized. The theoretical foundation: in relation to epistemological and political propositions counted on Santos (2007, 2011, 2018) and Freire (2001, 2011, 2014) and, in relation to the concept of curricular justice counted on Santomé (2013), Connel (2009), Estevão (2001, 2004), Ponce and Neri (2015, 2019) and Ponce (2016, 2018).

KEYWORDS: Curriculum; Curricular justice; Educational policies; PNE; BNCC

RESUMEN

Este artículo es uno de los frutos de la investigación denominada La justicia curricular en el siglo XXI, las políticas y los sujetos del currículum, que guió la Educación Básica en Brasil en diferentes regiones y redes escolares. Y es el resultado de la ampliación de los estudios que relacionan currículum y justicia social realizados por el Grupo de Educación e Investigación en Justicia Curricular (GEPEJUC) y de análisis del contexto brasileño, en el que se observa que rápidamente se ha profundizado en la vida escolar una racionalidad neoliberal. A ella se suman drásticos recortes en las inversiones públicas desde 2016, que impiden la realización de los objetivos propuestos por el Plan Nacional de Educación (2014-2014), además de la obligatoriedad jurídica imputada por el Estado brasileño a las entidades federadas para implementar la Base Nacional Común Curricular que se homologó en 2017. El currículum escolar se analiza como territorio de disputa (ARROYO, 2013) y se presenta el concepto de justicia curricular en sus tres dimensiones - la del conocimiento, la del cuidado y la de la convivencia - utilizándolo en el análisis de los recientes acontecimientos educacionales brasileños y proponiéndolo como uno de los instrumentos de resistencia a las tendencias dominantes a medida que, en el currículum, se cultiven espacios de formación de subjetividades democráticas. Se enfatiza la urgencia de enseñar en y para la democracia comprendida como un valor. La fundamentación teórica se estriba en Santos (2007, 2011, 2018) y Freire (2001, 2011, 2014) en lo que concierne a las proposiciones epistemológicas y políticas; y en Santomé (2013), Connel (2009), Estevão (2001, 2004), Ponce y Neri (2015, 2019) y Ponce (2016, 2018) en lo que atañe al concepto de justicia curricular.

PALABRAS CLAVE: Currículum; Justicia curricular; Políticas educacionales; PNE; BNCC

1 INTRODUÇÃO

Louco, o bêbado com chapéu-coco

Fazia irreverências mil à noite do Brasil

[...]

A esperança dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha pode se machucar

Azar!! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar.

O bêbado e o equilibrista (João Bosco)

A organização da vida econômica e social alterou-se significativamente nos últimos cem anos impactando os sistemas de ensino. A mudança de um modelo de produção fordista para um modelo de maior flexibilidade em que o trabalho fixo é substituído pelo trabalho intermitente, que ocorre no contexto da ascensão de novas forças de produção sustentadas na alta tecnologia e na esteira de uma competição de mercado que se dá em grande escala, caracteriza o processo de globalização de caráter neoliberal e necessita, para o seu desenvolvimento, da redução do Estado e da introdução e da ampliação de serviços privados em setores públicos, o que vai impactar a educação escolar, que, além de se prestar a ser um lucrativo mercado, também é instrumental na consecução dos objetivos definidos pela racionalidade neoliberal.

No início da década de 1990, países que compunham a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) organizaram um projeto de Definição e Seleção das Competências-Chave a serem alcançadas pelos estudantes por meio da escolaridade (CHIZZOTTI; PONCE, 2012). Em 2006, foram estabelecidas essas competências que balizariam as reformas educacionais no cenário europeu com o objetivo de formar indivíduos a partir desses marcos que visam atender às transformações do modelo de produção.

Diante do paradigma emergente, a OCDE elaborou referências para a avaliação e a comparação dos resultados educacionais, criando o Programme for International Student Assessment (PISA). Padronizaram-se as competências educacionais alinhadas com as transformações econômicas para avaliá-las e promover ranqueamentos entre e intra países envolvidos. Essa lógica passa a regular as políticas educacionais induzindo os Estados nacionais a reformas curriculares. O Brasil não passou incólume por esse processo, que veio no bojo e reforçando um cenário de hegemonia da racionalidade neoliberal que se impôs ao mundo ocidental.

A aprovação da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2017) como documento prescritivo e obrigatório em âmbito nacional3 no Brasil estabelece um conjunto de conhecimentos, competências e habilidades que, em tese, todos os alunos deverão desenvolver ao longo das etapas e das modalidades da Educação Básica. A obrigação jurídica que a BNCC imputa aos entes federados de adequar seus currículos em consonância às competências e às habilidades definidas a partir do modelo mencionado tensiona a área educacional.

O currículo evidencia-se, mais uma vez, como um território de disputa política entre forças que se encontram em campos diferentes e opostos: as dos que se alinham em torno da busca de uma racionalidade preocupada com a eficiência em relação ao desenvolvimento do sistema econômico vigente e as dos que entendem que o currículo escolar pode e deve ser desenhado coletivamente a partir de objetivos voltados à construção de uma sociedade mais justa, de iguais sociais respeitados em suas diversidades.

Alinhando-se à segunda opção, adotou-se inicialmente, a partir de 2012, o conceito de justiça curricular de Jurjo Torres Santomé (2013), inspirando-se também em Connel (2009) e em Estevão (2001, 2004), para olhar analiticamente o momento educacional do mundo ocidental e, em especial, o do Brasil, que deu foco ao currículo em suas opções nas políticas educacionais, contemplando com essa escolha uma articulação entre os interesses do sistema financeiro e o poder público. No momento em que as políticas públicas de educação deveriam ter se voltado para a valorização e a ampliação da autonomia dos professores brasileiros, assim como para a melhoria nas condições das escolas públicas, assistiu-se à centralização e à prescrição de um currículo a ser avaliado a partir de competências preconizadas por sistemas de avaliações externos à vida escolar, atrelando os resultados ao financiamento da educação e articulando-os a políticas de responsabilização.

Em atendimento aos interesses econômicos do sistema financeiro internacional, foram feitos cortes drásticos nos investimentos públicos no Brasil a partir do Golpe de Estado ocorrido em 2016. A Emenda Constitucional 241, votada em 2016 na Câmara Federal, e, em 2017, no Senado como Emenda Constitucional No 55, congelou por 20 anos os gastos públicos, o que incidiu diretamente na educação escolar que vinha se democratizando, inviabilizando, por exemplo, o Plano Nacional de Educação (PNE) proposto para o período de 2014-2024, cujas metas estavam vinculadas aos recursos financeiros com datas a serem cumpridas.

O currículo centralizado e prescrito, a avaliação externa com critérios definidos a partir de competências voltadas aos interesses do sistema financeiro e a centralização do financiamento da educação, no caso brasileiro, somada a cortes profundos de verbas públicas, têm sido o combustível para o funcionamento da engrenagem neoliberal na educação escolar brasileira.

Insiste-se que, mesmo nesse contexto, haja possibilidade de fazer um caminho contra hegemônico. Historicamente, as resistências a governos e propostas discriminatórias e autoritárias não caíram dos céus após tempos difíceis, mas foram forjadas no interior da opressão em momentos que aparentemente não seriam permitidas vivências democratizantes e de busca de justiça. Não se apagam experiências democráticas por completo da história, elas sobrevivem nas redes públicas de ensino, em grupos, nas memórias de profissionais que as viveram. Quando acionadas, voltam a pulsar.

Em busca de compreender o contexto brasileiro - que a passos largos veio aprofundando e implementando na vida escolar uma racionalidade neoliberal -, de ampliar os estudos que relacionam currículo e justiça e voltar o olhar mais enfaticamente para as redes públicas de educação no Brasil, procurou-se pensar o conceito de justiça curricular e verificar a sua possibilidade de auxiliar no caminho de luta contra as discriminações e as desigualdades.

Pode o currículo escolar contribuir com a construção da justiça social no contexto em que os interesses do sistema financeiro estão articulados ao poder público e este se presta a representá-los em suas propostas de políticas educacionais? Ciente de que não cabe aqui ingenuidade, afirma-se que a escola é ao mesmo tempo reprodutora de desigualdades e mediadora de possibilidades para superação delas. O currículo escolar, portanto, pode e deve ser disputado a partir dessa contradição, como um espaço de luta por dignidade, por igualdade e respeito às diversidades. É o que se faz aqui e em ações de pesquisas participativas. A disputa por construir subjetividades democráticas é legítima e possível. Pautada nessa esperança alicerçada em experiências históricas exitosas e significativas para a autonomia da escola e para a construção de uma sociedade democrática, propõe-se uma reflexão sobre essa possibilidade a partir do conceito de justiça curricular, cuja essência utópica4 é a busca por justiça social, horizonte a ser buscado, por meio do currículo escolar.

A pesquisa de onde se origina este texto contou com buscas teóricas, discussões no Grupo de Educação e Pesquisa em Justiça Curricular (GEPEJUC/CNPq), com duas teses de Doutorado (NERI, 2018; SOUZA, 2018) e uma dissertação de Mestrado (OLIVEIRA, 2019), inseridas no projeto de pesquisa de origem, que deram o suporte empírico e histórico para as análises.

Toma-se o currículo como uma construção que conta com a participação de todos os sujeitos implicados. “Por currículo [toma-se] todo o processo de ensino-aprendizagem-convivência-cuidado na construção do conhecimento significativo para a vida” (PONCE; NERI, 2017, p. 1223). A partir dessa concepção de currículo, entendendo-o como comprometido com a democratização da escola e de outros espaços onde haja relações desiguais de poder, tendo como horizonte a busca da superação das desigualdades e, desde o seu exercício, a afirmação das diversidades, estabelecem-se três dimensões a serem definidas e estudadas no processo de construção da justiça curricular, a do conhecimento, a da convivência e a do cuidado, que serão abordadas adiante.

Distante de um conhecimento confinado em grades curriculares avalizado universalmente pela ciência - para além de cuidados de vieses patológicos que encapuzam as mazelas sociais e econômicas que criam a desigualdade e a negação de direitos -, aponta-se para uma convivência democrática que extrapole os cânones da teoria política liberal e afirme-se como um valor cultivado.

A crítica ao universalismo, às metanarrativas, além da ênfase na pluralidade e na heterogeneidade, distanciam o currículo do caráter prescritivo, que tem a pretensão de conter conceitos e conhecimentos universais que sejam capazes de abarcar toda e qualquer realidade. Afirma-se a necessidade de democratizar os conhecimentos e as epistemologias constituindo inteligibilidade entre os vários saberes a serem considerados em relações horizontais. Ressalta-se a urgência de que a prática curricular se paute na democracia e se faça por ela, entendida como um valor norteador de possibilidades inclusivas e distributivas. Observa-se a importância de que todos e cada participante do currículo seja cuidado segundo suas necessidades e seus direitos, seja pelas políticas públicas ou por outras dimensões do cuidado que se façam necessárias.

O currículo escolar pensado a partir das dimensões da justiça curricular guia-se pela e para a constituição de subjetividades democráticas, inconformistas e rebeldes (SANTOS, 2018).

2 O CURRÍCULO E A JUSTIÇA CURRICULAR

O currículo escolar é um campo de lutas onde se disputa, no espaço de formação de crianças, jovens e adultos, o assentamento de valores, crenças, visões de vida e de sociedade, e a construção de possibilidades pessoais da existência presente e futura. As tensões em torno da formação que deve ser oferecida aos estudantes são históricas e constituem o cenário para propostas curriculares alinhadas às sociedades vislumbradas pelos seus propositores.

O sistema escolar brasileiro abriga modelos diversos de educação escolar ao longo de sua história e geografia, hibridizados entre si (PONCE, 2018). Ainda que divergentes, encontram-se neles determinados princípios convergentes como o da meritocracia, que tem como valor orientador, a competitividade, que legitima as desigualdades e o não reconhecimento das diferenças. Trata-se de concepções de educação escolar que continuam se arvorando como protetoras da igualdade entre os seres humanos, a qual é compreendida, nesse contexto, como igualdade de oportunidades, conceito liberal clássico que supõe suficiente que se ofereçam oportunidades independentemente das condições de cada indivíduo para acessá-las. Dubet (2004), denominando o produto dessa concepção de “desigualdades legítimas constituídas a partir do mérito individual”, denuncia a falseta em relação aos direitos à igualdade.

Esse princípio ignora ou quando muito minimiza questões de classe, de gênero e de raça (APPLE, 2006, 2008), assim como ignora o capital cultural (BOURDIEU; PASSERON, 1975), que determina os conhecimentos que chegam às escolas por meio dos alunos. As avaliações externas corroboram o modelo discriminatório e refletem resultados tensionadores para a comunidade escolar (FREITAS, 2012).

Sob a narrativa da igualdade de oportunidades, caberia à escola o estabelecimento de hierarquias escolares e sociais “justas”, considerando o trabalho, o talento e o mérito de cada indivíduo (DUBET, 2008).

A priori, toda criança que entra na escola deve dispor das mesmas oportunidades de ter êxito escolar, independentemente de seu nascimento e de sua fortuna. A escola deve então construir uma competição justa a fim de que cada um obtenha o lugar que merece e que se forme assim uma ordem social justa. A força da igualdade meritocrática das oportunidades deve-se ao fato de que esse modelo de justiça surge como o único capaz de combinar a igualdade fundamental dos indivíduos e as hierarquias da divisão do trabalho. No mais, esse modelo confere uma legitimidade moral às desigualdades que lhes são resultantes, pois se a competição escolar é justa, cada um pode ater-se apenas a si mesmo. As elites têm todas as razões de serem fiéis ao seu sucesso, enquanto aqueles que fracassaram só podem atribuir seu desânimo a si mesmo. Trata-se, então, de um princípio de justiça às vezes cruel para os indivíduos e exigido pelo sistema, pois supõe que cada aluno tenha a capacidade e a vontade de ter êxito e que o recrutamento das elites reflete, no final, a estrutura da sociedade (DUBET, 2008, p. 383).

Os conceitos de justiça distributiva (RAWLS, 2000) e de igualdade de oportunidades complementam-se no ideário liberal e compõem as bases teóricas das propostas curriculares hegemônicas, que têm professado a meritocracia como valor e têm gerado propostas curriculares pautadas na racionalidade instrumental.

O currículo é uma prática social complexa que envolve construção histórica-social; disputas ideológicas; espaços de poder; escolhas culturais; e exercício de formação de identidades. Não é estático, não se presta a ser universal, nem pode ser reduzido a técnicas eficientes de implementação de uma base prescrita, ou, ainda, circunscrito a uma grade curricular que pretenda engessar os conhecimentos definidos como comuns, únicos e legítimos, não permitindo a inserção de outros considerados ilegítimos (ARROYO, 2013) e provenientes de outras racionalidades obscurecidas (SANTOS, 2018).

Como prática social de caráter pedagógico, o currículo conterá inevitavelmente características das instituições escolares e dos sujeitos que o colocam em ação, o que permite analisá-lo como uma prática contornada por outras práticas sociais.

[...] o currículo faz parte, na realidade, de múltiplos tipos de práticas que não podem reduzir-se unicamente à prática pedagógica de ensino; ações que são de ordem política, administrativa, de supervisão, de produção de meios, de criação intelectual, de avaliação, etc., e que, enquanto são subsistemas em parte autônomos em parte interdependentes, geram forças diversas que incidem na ação pedagógica. Âmbitos que evoluem historicamente, de um sistema político e social a outro, de um sistema educativo a outro diferente. Todos esses usos geram mecanismos de decisão, tradições, crenças, conceitualizações, etc. que, de uma forma mais ou menos coerente, vão penetrando nos usos pedagógicos e podem ser apreciados com maior clareza nos momentos de mudança (SACRISTÁN, 2000, p. 22).

No Brasil, a obrigação jurídica que a promulgação da BNCC imputa aos entes federados em adequar seus currículos tendo como diretriz o desenvolvimento das habilidades e competências pré-definidas, certamente provocará mudanças nas práticas pedagógicas. Entretanto, há de disputar esse espaço curricular com outras concepções de currículo e outras práticas curriculares, construindo-as coletivamente de modo a que cuidem de todos, garantindo e ampliando direitos individuais e sociais que elevem a cidadania, tecendo uma convivência democrática nos espaços escolares para que se alastre para tantos outros espaços onde haja relações desiguais de poder. É o que intenta o caminho para construção da justiça curricular (PONCE, 2016, 2018).

Embora concebido como instrumento de contenção social, entender o currículo como território em disputa (ARROYO, 2013) e disputar esse espaço sócio-educativo-cultural poderá apontar possibilidades democráticas que visem a superação de desigualdades e a consideração das diversidades e das individualidades.

A compreensão de justiça adotada pela justiça curricular concebe-se a partir do conceito de dignidade da pessoa humana e espraia-se para a ideia de justiça social, entendida como a que considera todos os sujeitos dignos, portanto merecedores dos bens necessários para se realizarem como seres individuais, racionais e sociais em virtude da sua condição de pessoas humanas (BARZOTTO, 2003, n.p.). A justiça social supõe igualdade absoluta na medida em que todos são iguais na condição de pessoas e assim devem ser considerados. A dignidade é inerente ao ser humano. Sob esse prisma, no Brasil, a ausência de qualquer direito que possa negar a dignidade da pessoa humana, como prevista na Constituição Federal (CF, 1988), deveria ser considerada injusta. Entre os direitos sociais capazes de dignificar a pessoa está o da educação escolar, que é garantido constitucionalmente.

Apesar de haver relação entre o ordenamento legal e a justiça social, no Brasil, sob o Governo de Bolsonaro (2019), estamos ameaçados pelo descaso com a Constituição de 1988. Os avanços conquistados em relação à universalização da Educação Básica no Brasil também estão ameaçados por condições estruturais em que se encontram as escolas, condições de trabalho e ensino que a constituem, pelos conhecimentos que são propostos, por políticas educacionais, pelo movimento da Escola sem Partido, pelo descrédito promovido por interesses privatistas a que se tem submetido a escola pública. Nesse contexto, os currículos e a agenda econômica impostos por organismos multilaterais geram e aprofundam um distanciamento entre as necessidades para uma vida digna e a forma como a realidade escolar tem respondido a elas.

Diante de um contexto adverso em relação à consideração da dignidade humana, há um imperativo ético de refletir sobre a escola, lutar pela qualidade social da educação e criar proposições curriculares capazes de contribuir para a construção de uma sociedade que a preze.

Por justiça curricular, toma-se uma concepção de currículo que reconheça a pluralidade cultural da sociedade, elevando os saberes dos menos favorecidos para além do trato folclórico, estereotipado e fragmentado, no qual não se consideram em profundidade os mecanismos históricos, políticos e sociais de formação e de exclusão de identidades (CONNELL, 1997); que analise conteúdos de forma crítica; valorize os diversos saberes culturais a partir das necessidades e do comprometimento com um mundo justo e democrático (SANTOMÉ, 2013). A justiça curricular é um dos processos de busca de justiça social, aquela que se faz por meio do currículo escolar valorizando o caráter da construção coletiva deste. Busca seus fundamentos em experiências históricas democráticas significativas de educação escolar.

Dar mais precisão ao conceito foi um processo que contou com buscas do termo na literatura acadêmica. Foi preciso estabilizá-lo e fazer opções, já que se tratava de um conceito polissêmico, conforme apurou-se nas buscas. A partir das referências iniciais, o processo teórico e empírico da pesquisa foi permitindo dar consistência ao conceito e maior segurança em seu uso. Foi preciso também testá-lo em pesquisas empíricas, o que foi feito em duas teses de doutoramento (NERI, 2018; SOUZA, 2018). Para a pesquisa designou-se também uma dissertação (OLIVEIRA, 2019) que buscou compreender as contribuições propositivas do conceito “direito à educação” na história da educação brasileira, em três documentos relativos a movimentos de educadoras e educadores (1932, 1959, 1986) e no PNE, que ensejam - a partir das experiências acumuladas - possibilidades de relacioná-las à justiça curricular compreendida como o percurso de um currículo pautado em direitos.

Em artigo publicado, afirmou-se que

A justiça curricular prevê a permanência exitosa do educando na escola e na vida e toma por currículo todo o processo de ensino-aprendizagem-convivência-cuidado na construção do conhecimento significativo para a vida, que vai sendo subjetivamente apropriado pelo educando ao longo do processo e vai permitindo a ele compreender o mundo e a si mesmo de modo crítico e reflexivo (PONCE; NERI, 2017, p. 1223).

Por justiça curricular, tomou-se o percurso de um currículo pautado em direitos civis, sociais, políticos e humanos. Em tempos em que a principal política educacional do Estado brasileiro refere-se ao currículo, enfatizando a BNCC, desvinculando-a de políticas de valorização dos educadores e de investimentos na escola pública e no caráter público desta, afirma-se os direitos das crianças, dos adolescentes e dos adultos brasileiros relativos à educação escolar garantidos desde a Constituição Federal de 1988. A justiça curricular propõe e constrói um currículo pautado em direitos. Além de sua base estar assentada nos direitos civis, políticos, sociais e humanos, a Educação em Direitos Humanos (EDH) é conteúdo obrigatório em seu percurso5.

Utiliza-se a expressão justiça curricular, e não currículo justo, para expressar uma construção cotidiana de justiça por meio da prática curricular. Na expressão, a justiça é o substantivo. Ela pode e deve ser buscada em todos os momentos da vida humana, em gestos e palavras, em vários espaços da vida social. Um dos espaços é o do currículo escolar, que - defende-se - tem potencial para isso. O currículo pode e deve fazer a sua opção. A busca desse caminho faz-se a partir de políticas (sociais, em geral, e educacionais, especificamente) e dos sujeitos, da confiança neles.

Por meio de um currículo sob a inspiração da justiça curricular, espera-se formar subjetividades engajadas na democratização. Santos (2018) afirma que não há democracia em si, mas, sim, processos de democratização das relações sociais que visam transformar relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada. A educação escolar pode ser um terreno fértil para esse intento.

3 AS TRÊS DIMENSÕES DA JUSTIÇA CURRICULAR

Tal como o espaço, que é tridimensional e que não prescinde, em seu conceito, da consideração da tríade altura, largura e profundidade; a justiça curricular tem três dimensões e só será conceituada, compreendida e praticada a partir da consideração das três. São elas: a dimensão do conhecimento, compreendida como uma estratégia de produção da existência digna, que norteará a seleção dos conteúdos do currículo; a da convivência escolar democrática e solidária, que admite os conflitos e as divergências, para que se consolidem valores humanitários e se crie uma cultura de debate e respeito ao outro; e a do cuidado com todos os sujeitos do currículo para que se viabilize o acesso ao pleno direito à educação de qualidade social, o que envolve a afirmação de direitos, que inclui desde as boas políticas públicas de formação e de contratação de professores que os dignifiquem até os cuidados das redes de proteção aos mais vulneráveis, passando por boas condições nos espaços e boa utilização dos tempos escolares. Nessa concepção, caberá à escola o cultivo de uma cultura de participação e de formação.

3.1 A dimensão do conhecimento

Para os homens e as mulheres, impõem-se, além das necessidades básicas, também a necessidade de compreender o mundo e a si mesmos. É da natureza humana, a ação de conhecer. Essa ação, em seus primórdios, teve dupla finalidade: superar o desconhecido e o pavor gerado por ele e possibilitar a subsistência da espécie humana. O conhecimento foi sendo elaborado para permitir a compreensão, obter o domínio do mundo natural e subsidiar a criação de formas de subsistência, protegendo e melhorando a vida.

O conhecimento não seria necessário se os significados e as relações entre os elementos do mundo concreto já estivessem explicitados na sua forma de se apresentar à humanidade. O mundo que se vê, se sente, se ouve, se experimenta, guarda em si mistérios que não se apresentam à primeira vista. Foi e continua sendo preciso que se construam significados e relações entre as coisas, os fenômenos e as pessoas. A pesquisa e a construção de conhecimento são inerentes à humanidade. Esse processo está cada dia mais complexo e distancia-se, em sua compreensão, da sua origem. É preciso retomar a importância do conhecimento na sobrevivência da espécie humana; ela não teria sobrevivido sem ele.

Para “escolher”, no cardápio do momento, que conhecimentos devem ser contemplados no currículo escolar, é preciso discutir o próprio processo desse elemento vital - o ato de conhecer - na vida humana. Uma comunidade escolar não prescindirá dessa discussão, a ser pautada pelos educadores da escola e levada aos seus alunos de diversas formas, o que equivale a dizer que deve estar contida no currículo escolar.

Nenhum conhecimento é neutro, sempre estará carregado de intencionalidades, interesses, expectativas e necessidades. Que conhecimentos são necessários, indispensáveis, no mundo em que se vive neste século XXI para a construção da vida digna para todos? Quais deles podem e devem estar no currículo escolar? Há sempre uma íntima relação do conhecimento, presente e ausente nos currículos escolares, com as intencionalidades com que foram colocados ou retirados deles. Há uma intrínseca ligação entre as escolhas e o projeto de mundo, de sociedade, de vida humana que se tem em mente. As seleções feitas contêm valores e não são despidas de significados.

Vive-se um mundo de extrema complexidade, que tem engendrado a hegemonia de uma educação escolar que contempla e toma pelo todo uma seleção de conhecimentos que está longe de proporcionar uma compreensão do mundo, além de excluir em sua seleção os conhecimentos considerados menos “nobres”.

O educador brasileiro Paulo Freire propõe que o conteúdo programático do currículo se organize a partir da investigação das situações concretas vividas pelos educandos e das contradições que elas deflagram. Com essa metodologia, constrói, coletivamente, os temas que serão estudados, chamados temas geradores, que estão envolvidos e envolvem situações de opressão, a que o educador denomina situações-limite. Sua superação exige atos-limites que implicam ações sobre o mundo que visam à transformação. A busca pelos temas geradores na vida concreta dos sujeitos-educandos inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade (FREIRE, 2011).

A valorização dos saberes populares, das vivências cotidianas, do senso-comum no âmbito escolar, são marcas do pensamento freiriano, que inaugurou no campo da educação uma ruptura epistemológica com o conhecimento pautado na ciência moderna, que, no caso do Brasil, trouxe marcas colonialistas. O reconhecimento desses saberes relaciona-se ao que Santos (2011, 2018) denomina justiça cognitiva. A democratização dos conhecimentos e das epistemologias que os sustentam dão suporte ao conceito de justiça cognitiva e alicerçam a dimensão do conhecimento na justiça curricular.

Santos (2007, 2011, 2018), ao criticar o conhecimento produzido no hemisfério Norte, que, sob a égide da razão científica, arroga-se o direito de deter o conhecimento do mundo, propõe validar conhecimentos oriundos de perspectivas dos que sofrem injustiças geradas pelo colonialismo, pelo patriarcado e pelo capitalismo, marcos da opressão. A partir da crítica à epistemologia dominante, o autor afirma a necessidade de considerar os saberes que, historicamente, vêm sendo rejeitados, ainda que resistam e permaneçam presentes. Ele propõe um diálogo horizontal entre os vários conhecimentos a que denomina ecologia de saberes. Segundo o sociólogo, a compreensão do mundo não pode ser atribuída exclusivamente à ciência moderna.

A expansão do presente é possível através da sociologia das ausências: tornar visíveis e credíveis as experiências sociais que, por ocorrerem do outro lado da linha abissal, são desconsideradas ou invisibilizadas pelo conhecimento hegemônico. A contração do futuro dá-se por via da busca da identificação das possibilidades concretas de futuro aqui e agora através da sociologia das emergências. Tanto a sociologia das ausências como a sociologia das emergências, longe de serem sociologias convencionais, são transgressivas, constituídas pela articulação entre conhecimentos científicos e conhecimentos não científicos, artesanais, populares. A essa articulação chamo de ecologia dos saberes (SANTOS, 2018, p. 58).

A dilatação do presente às experiências sociais emudecidas pelos cânones científicos e a confluência de diversos saberes que emanam de tais experiências visa romper com a monocultura do saber científico e estabelecer uma ecologia de saberes que possibilite o diálogo e a disputa epistemológica dos conhecimentos, tendo como princípio a incompletude em que estão assentados. Sob essa perspectiva, a partir de racionalidades de diferentes contextos, haveria de ter um diálogo na escola entre as muitas formas de pensar a criança, a infância, a juventude e a vida adulta. Como consequência da ampliação do presente, abrir-se-ia uma diversidade infinita de experiências sociais e conhecimentos possíveis.

A tradução é um processo intercultural, intersocial. Utilizamos uma metáfora transgressora da tradução linguística: é traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem “canibalização”, sem homogeneização. Nesse sentido, trata-se de fazer tradução ao revés da tradução linguística. Tentar saber o que há de comum entre um movimento de mulheres e um movimento indígena, entre um movimento indígena e outro de afrodescendentes, entre este último e um movimento urbano ou camponês, entre um movimento camponês da África e um da Ásia, onde estão as distinções e as semelhanças. Por quê? Porque é preciso criar inteligibilidade sem destruir a diversidade. Um exemplo simples: os movimentos indígenas deste continente nunca falam de emancipação social, mas de dignidade e respeito, que são dois conceitos básicos. O movimento operário ainda fala de emancipação e de luta de classes. As feministas usam muito o conceito de liberação, também os afrodescendentes. É necessário não preferir uma palavra a outra, mas traduzir dignidade e respeito por emancipação ou por lutas de classes, ver quais são as diferenças e quais as semelhanças (SANTOS, 2007, p. 39)

Outro procedimento sugerido por Santos (2018) para constituir um conjunto de saberes diante das inúmeras possibilidades que se apresentam é o da artesania das práticas. Tendo como referência o contexto da prática em que está inserida a ecologia dos saberes, busca-se o confronto entre as diversas epistemologias para selecionar um contributo prático para uma demanda que possa promover práticas sociais eficazes e libertadoras. A artesania das práticas é uma forma peculiar de constituição de conhecimentos que se distancia da ciência moderna aproximando-se dos conhecimentos gerados por experiências de lutas de grupos até então silenciados.

É nesse processo da ecologia dos saberes, tradução e artesania, que se insere uma nova forma de pensar o conhecimento, seus critérios de validação e sua contribuição para a emancipação social. Santos (2007, 2018) é categórico em afirmar que não haverá justiça social sem a promoção da justiça cognitiva, compreendida como o estabelecimento de uma relação horizontal entre os conhecimentos, um diálogo entre eles e uma nova forma de relação, como propõe o conceito ecologia.

Apoiada na análise política da epistemologia proposta por Santos, a dimensão do conhecimento da justiça curricular funda-se no diálogo das diversas experiências sociais presentes na escola e nas racionalidades6 que transcendam a razão instrumental.

Conhecimentos locais e globais devem fazer parte do currículo e contribuir para elevar a justiça cognitiva e apontar direções emancipatórias. O conhecimento dos vencidos narrados a partir de suas perspectivas deve fazer parte dos currículos escolares, descolonizando o conhecimento escolar. Ter clareza de que sem isso não haverá justiça social alarga o horizonte de possibilidades de políticas curriculares comprometidas em conceber currículos que contribuam para a superação das desigualdades.

A educação para o inconformismo tem de ser ela própria inconformista. A aprendizagem da conflitualidade dos conhecimentos tem de ser ela própria conflitual. Por isso, a sala de aula tem de transformar-se ela própria em campo de possibilidades de conhecimento dentro do qual há que se optar. Optam os alunos tanto quanto os professores e as opções de uns e de outros não têm de coincidir nem são irreversíveis. As opções não se assentam exclusivamente em ideias já que as ideias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis. (SANTOS, 1996, p. 18).

A crítica à razão instrumental proposta por Santos, assim como a justiça curricular, não nega as possibilidades do conhecimento científico, toma-o como um dos conhecimentos importantes para a compreensão da complexidade do mundo. O conhecimento é plural, expandindo na linguagem e nas ações as possibilidades de experiências. Traduzir entre os grupos as experiências sociais do presente, estabelecendo entre estas os pontos em comum e as diferenças, contribui para que não se descaracterize e inferiorize a diversidade entre os saberes e suas origens. Com essas práticas, criam-se condições para processos emancipatórios. Ancora-se o currículo não apenas no aspecto cognitivo, mas também no corporal, nas percepções e nas emoções dos sujeitos que dele fazem parte. A justiça curricular afirma a necessidade de um conhecimento significativo para a vida do educando que lhe permita compreender e agir no mundo.

Como a proposta da justiça curricular pressupõe uma educação escolar pautada em direitos, a Educação em Direitos Humanos (EDH), nascida da prática social, registrada em textos teóricos e organizada em Planos nacionais, estaduais e municipais no Brasil, deve ser presença obrigatória no currículo escolar. Trata-se de um conhecimento teórico-prático, que se ampliou pela legislação e é instrumental na defesa dos direitos e na emancipação de todos os sujeitos do currículo.

Embora se esteja vivendo tempos de implementação da BNCC em que os ditames neoliberais impostos às políticas curriculares cerceiam alternativas, reduzem o presente para obscurecer práticas educacionais transgressivas e dar holofotes à racionalidade científica como única alternativa credível, ainda assim não o fazem sem resistência.

3.2 A dimensão do cuidado

Uma das três dimensões da justiça curricular é a do cuidado, que envolve todos os sujeitos do currículo. Inclui desde as boas políticas públicas de formação e de contratação dos profissionais, até os cuidados dispensados pelas redes de proteção aos mais vulneráveis. Nessa dimensão, incluem-se também as boas condições dos espaços e o cuidado com a consideração dos tempos escolares. Para além de cronológico, o tempo escolar é de construção social com vistas à justiça curricular.

O tempo é, hoje, um bem escasso. Um bem que flui e se esgota. Mas, um olhar atento possibilita entendê-lo também como espaço de possibilidades, de oportunidades de viver de modo mais significativo. É nessa direção que o tempo escolar merece ser pensado (PONCE, 2016, p. 1146).

Pela dimensão do cuidado, toma-se todo o zelo necessário para que se viabilize o acesso ao pleno direito à educação de qualidade social. O bem-estar individual e coletivo é uma condição indispensável para o acesso ao direito à educação. Todo o necessário para que essa trajetória formativa seja realizada tem de ser, portanto, viabilizado. O cuidado envolve a garantia e a ampliação de direitos. Não há quem lute por seus direitos sem conhecê-los, o que implica em que os conhecimentos sobre os direitos e os cuidados sejam considerados interdependentes. Daí a necessária presença da Educação em Direitos Humanos (EDH) no currículo escolar.

Todo o processo de cuidados é fundamental no desenvolvimento curricular. Desde as condições de trabalho dos professores e gestores, sua formação, até a qualidade de vida das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Para ensinar/aprender e aprender/ensinar, para reproduzir/produzir conhecimento/ensinagem/aprendizagem, para criar currículo, há de ter boas condições pessoais e boas escolas e, logicamente, vida digna. Na medida em que não existam essas condições, o primeiro passo é dar possibilidades no próprio currículo escolar de que os seus sujeitos imediatos se tornem conscientes de que essas condições são direitos inalienáveis de todos e de cada um, portanto deles próprios (PONCE, 2018, p. 12).

O cuidado como dimensão da justiça social é a atenção integral aos sujeitos envolvidos no processo educativo de modo a garantir o direito à educação firmado pela Constituição brasileira de 1988. O cuidado é o zelo pela formação cidadã que supõe atenção, responsabilidade, pelos sujeitos envolvidos no currículo. É o provimento das necessidades desses sujeitos para que possam desempenhar o trabalho de aprenderem a se formar continuamente como sujeitos livres e autônomos para pensar o mundo e a si próprios nele.

Para Guará (2006), é preciso educar integralmente. Para isso, é preciso entender os sujeitos dos currículos, detectar as suas necessidades e demandas e construir relações que visem o seu desenvolvimento pessoal e social. A educação integral:

Ao colocar o desenvolvimento humano como horizonte, aponta para a necessidade de realização das potencialidades de cada indivíduo, para que ele possa evoluir plenamente com a conjugação de suas capacidades, conectando as diversas dimensões do sujeito (cognitiva, afetiva, ética, social, lúdica, estética, física, biológica) (GUARÁ, 2006, p. 16).

O cuidado é elemento fundamental na consecução da educação integral. O oposto do cuidado é a negligência, o descuido. É deixar o processo educativo escolar sem as condições necessárias ao seu êxito, gerando na contramão da justiça curricular, processos de violência curricular (GIOVEDI, 2016), que consiste em formatos e propostas que desconsideram os sujeitos envolvidos como pessoas que têm demandas e necessidades a serem consideradas, assim como identidades próprias. Nega-se dignidade às vidas envolvidas ao se negar cuidados no processo curricular. O cuidado é um ato de caráter ético e político, que poderá traduzir-se em atos mais imediatos de atenção.

Um exemplo radical de descuido com a educação escolar, entre muitos, é o desprezo dos governos brasileiros, desde o Golpe de 2016, com o Plano Nacional de Educação (2014-2024). Pela forma como foi elaborado, com consultas e debates públicos, pode-se considerar que esse PNE, previsto pela Lei No 13.005, de 25 de junho de 2014, expressa “[...] o acúmulo de experiências em defesa da educação pública brasileira e a institucionalização da cultura do planejamento participativo da educação no país via Conferências da Educação (CONAE)” (OLIVEIRA, 2019, p. 6). Entretanto, apesar da sua qualidade, foi colocado fora da agenda do Estado e sofreu consequências graves geradas pelos cortes de recursos públicos7 previstos para o cumprimento de suas Metas. Em 2019, o PNE (2014-2019) está completando cinco anos. Segundo o Relatório8 da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, das 20 Metas que visavam aprimorar a qualidade da educação no país, apenas quatro obtiveram avanços parciais.

Além das péssimas condições das escolas, dos contratos de trabalho injustos, da competitividade e do individualismo fomentados pelas avaliações externas, alicerçados na meritocracia, os sujeitos curriculares são negligenciados. Tem-se permitido, também, a culpabilização de professores, de alunos e demais trabalhadores da educação pelas dificuldades enfrentadas pelas escolas, deixando rastros de desesperança para os que não alcançaram o privilégio de serem os mais bem avaliados. Para a justiça curricular, não há vencedores e fracassados, todos têm - ou devem lutar para tê-los - direitos plenamente garantidos porque todos são dignos deles.

A educação sob a lógica do sistema financeiro descuida de seus sujeitos e atribui o seu destino a eles próprios, descompromissando o Estado. A dimensão do cuidado supõe um Estado de Bem-estar social ou a luta por ele na medida em que o Estado é fundamental para a garantia e a ampliação de direitos.

É preciso refundar a relação de obrigação verticalizada entre Estado e cidadão e a relação de obrigação horizontalizada entre cidadão e cidadão estabelecida na Modernidade9, incluindo, desta vez, o direito de cidadania a partir de epistemologias que alarguem tal conceito para além da visão eurocêntrica. Com isso, eleva-se a igualdade sem descaracterizar a diferença em comunhão com a cultura da solidariedade e da participação (SANTOS, 2018). Cuidar, nessa perspectiva, é promover a cultura do diálogo e da participação com vista à inclusão de demandas sociais alijadas do currículo escolar, alçadas ao debate a partir daqueles que foram historicamente excluídos. É buscar democratizar as relações sociais presentes na escola e cultivar a solidariedade entre os diferentes. É processo de busca de justiça curricular.

3.3 A dimensão da convivência

Trata-se de uma convivência escolar democrática e solidária que admite os conflitos e as divergências, que tem como objetivos consolidar valores humanitários e criar uma cultura de debate e respeito ao outro. É uma dimensão da justiça curricular que não prescinde da ética. Ela perpassará todos os tempos e espaços do currículo.

A formação do sujeito ético pressupõe a convivência democrática e solidária em todos os ambientes e tem como horizonte a construção da maturidade, do discernimento e da autonomia, pautada em valores e princípios fundamentais, dos quais se destacam pelo menos quatro essenciais ao nosso momento histórico: o princípio do respeito e da solidariedade ao outro, o da igualdade de direitos, o da justiça social, e o da liberdade para ser.

O ato moral não é (ou pelo menos não deveria ser) composto por obrigações, mas sim por vínculos com a comunidade humana e pela livre escolha do indivíduo ético e autônomo. A adesão ou a rejeição responsável à regra constituem parte fundamental da ação moral e pressupõem discernimento para optar. Por isso, é fundamental um currículo que contemple a convivência democrática e conhecimentos que instrumentalizem os sujeitos com um pensar reflexivo e responsável, que conduza ao exercício da autonomia, a qual é compreendida como possibilidade pessoal construída cotidianamente pelo pensamento crítico, o que pressupõe um repertório cultural constantemente revisto.

O importante sociólogo brasileiro Florestan Fernandes perseguia sistemática e metodicamente em sua obra a resposta a uma questão: “Onde residem as possibilidades estruturais e historicamente dadas para que todos os atores sociais possam ter voz e vez?” (COHN, 2008, p. 7). A sua sociologia construía-se como ciência pautada em valores e princípios éticos, como é possível observar. A ciência, dizia Florestan Fernandes, “[...] é incompatível com a irresponsabilidade” (COHN, 2008, p. 23).

O currículo que busca a justiça curricular com conhecimentos democráticos e atualizados, com cuidados devidos e com a garantia de uma convivência democrática e solidária, tenderá a formar seres humanos contemporâneos de seu momento histórico, generosos e solidários, capazes de compreenderem criticamente o seu mundo, se compreenderem e serem felizes. Essa felicidade é compreendida como felicidadania (RIOS, 1993).

Compreendendo a democracia como um valor e uma forma de convivência social a ser cultivada em todos os espaços e, aliada às correntes democráticas que elevam o papel da participação dos sujeitos na discussão e na deliberação das questões públicas, destaca-se o currículo escolar como possibilidade de constituir a escola como um lócus de experiência democrática a ser vivida coletivamente e considerada no espaço mais amplo das cidades e países. A convivência como dimensão da justiça curricular ancora seu significado no da democracia participativa como um sistema de organização social que visa incluir demandas sociais silenciadas pelas políticas, conclamando a necessidade de participação de todos.

Esta pode ocorrer pela pressão social de grupos marginalizados e/ou como cessão de poder daqueles que o detêm. Em ambos os casos, os sujeitos precisam ter aspirações e estar em condições materiais e imateriais de participar no tecimento dos rumos de sua vida e nos da sociedade da qual fazem parte. Essas condições são construídas nos vários espaços das relações sociais. Esses mesmos espaços podem ser lugares de lutas contra o poder desigual e a favor do fortalecimento da democracia participativa.

A educação escolar pública, localizada no espaço da cidadania (SANTOS, 2011) pode e deve tomar para si a responsabilidade de educar para a participação e ir além dos cânones da democracia liberal, incorporando outras perspectivas democráticas e formas de participação.

Durante os governos progressistas no Brasil, entre os anos de 2003 e 2016, houve substancial crescimento de formas alternativas de democracia com os Conselhos Nacionais e Conferências temáticas (AVRITZER, 2009), além de experimentos democráticos como o Orçamento Participativo, que elevaram a compreensão sobre o significado político de participar e disputaram espaço com a democracia estritamente representativa. Outras vozes foram ouvidas e fizeram-se valer nos currículos escolares10 e em políticas educacionais11.

Tendo na participação dos sujeitos do currículo a sustentação da dimensão política da convivência democrática, há de considerar-se a participação de todos na construção de currículos, no orçamento público, na gestão administrativa da escola e na seleção de conhecimentos a partir das diversidades epistemológicas presentes. Parte-se dos princípios de que a participação não deve se confinar ao espaço delimitado pelo Estado e de que a democracia não é apenas um regime político estritamente procedimental, mas assenta-se em um valor a ser vivido e fortalecido na escola e em todos os espaços de modo a aperfeiçoar as relações sociais tornando-as mais e mais democráticas.

Os grêmios estudantis em articulação, a partir da democracia representativa e participativa; os Conselhos Mirins de Educação (na escola e em âmbito regional); as Conferências lúdicas, tendo no brincar outras formas de conhecer o mundo; bem como o Orçamento Participativo Criança, são propostas existentes e exequíveis na educação escolar brasileira que contribuíram para o aprendizado e o fortalecimento da democracia na escola e podem contribuir em outros espaços onde há relações desiguais de poder.

Murillo e Hernández-Castilha (2014) destacam a representação e a participação, em conjunto com a redistribuição e o reconhecimento (denominado os três “Rs” pelos autores) como elementos fundamentais na busca pela justiça social por meio da educação escolar. Para os autores, o envolvimento da comunidade em aspectos curriculares e de organização das aulas, valorizando a representação de coletivos tradicionalmente marginalizados, fomenta a democracia e promove a partilha das responsabilidades com os estudantes sobre o seu futuro e a sua formação. Ressalta-se, ainda, a importância das relações de liderança em que a autoridade é compartilhada com a comunidade e com os professores, estabelecendo nas escolas as condições para desenvolver práticas que levem a uma instituição mais justa e democrática.

A democratização das práticas sociais não é o bastante se o conhecimento que as orienta não é democrático. Os conhecimentos presentes no currículo devem ensinar-aprender a participar e constituir energias emancipatórias para lutar contra toda e qualquer forma de opressão. Devem ensinar o valor democrático guiado pela diversidade epistemológica. Nessa óptica, as políticas curriculares e o currículo em ação são construídos de “dentro para fora”, de forma a democratizar o conhecimento e as práticas pedagógicas que dele emanam.

A participação deve ser constituída como um direito objetivo e subjetivo, enraizado no “eu” íntimo de cada um e de todos para a formação de subjetividades democráticas. Nessa esteira, Santos (2011) assinala que em busca de uma democracia de alta intensidade devem formar-se subjetividades inconformistas e rebeldes que transformem os espaços em que imperam relações desiguais de poder em espaços de relações de autoridade partilhada. A convivência democrática forja-se no espaço entre o da formação das subjetividades democráticas e o da transformação desses espaços.

Habitualmente, aprendem-se nas escolas os conceitos de democracia representativa com a justaposição dos poderes executivo, legislativo e judiciário, e o conceito de democracia direta, ambos compreendidos como procedimentos de aferição de vontades dentro de regras estabelecidas. Delimita-se a democracia ao embate político em torno do controle do Estado. Não se leva em consideração outros espaços a serem democratizados. O conceito de democracia presente no currículo tem sido, costumeiramente, reduzido ao sistema político formal decidido pelo voto, sustentado em teorias científicas que relegam outras concepções democráticas, bem como formas alternativas de participação.

Aprende-se sobre democracia de baixa intensidade12 na escola, sem tampouco exercê-la. Tem-se previsto constitucionalmente uma gestão “democrática” do ensino público, que constituída sob um Estado patrimonialista, regulado pelo mercado, aproxima conceitos como participação e cooperação dos interesses de acumulação, que geram desigualdades estruturais. Formar subjetividades democráticas requer experiências pedagógicas próprias cotidianas orientadas pela democratização dos conhecimentos. Não há formação se a observação e a vivência que se seguem ao aprendizado teórico apontar para um futuro que trai a igualdade, que mantém privilégios, onde não há lugar para todos. Praticar relações democráticas exige dos envolvidos reflexões e ações democráticas, assim como o acolhimento irrestrito dos conhecimentos em toda a sua diversidade.

O reconhecimento dessa diversidade assenta-se na ecologia dos saberes e no trabalho de tradução intercultural (SANTOS, 2007, 2011) buscando pontos em comum entre as culturas presentes na escola, constituindo inteligibilidade sem destruir a multiplicidade, como observou-se anteriormente.

A dimensão epistemológica da convivência democrática só adquire potência consubstanciada à dimensão política e ao seu exercício cotidiano nas escolas. A dimensão da convivência democrática só pode ser exercida pari passu à dimensão do conhecimento, ambas entrelaçadas ao cuidado como direito social garantido pelo Estado para todos os sujeitos da educação.

Santos (1996), ao estabelecer o perfil para um projeto educativo emancipatório orientado para a formação de subjetividades inconformistas e rebeldes, considera:

A conflitualidade do passado, enquanto campo de possibilidades e decisões humanas, é assumida no projeto educativo como conflitualidade de conhecimentos. Para este projeto educativo não há uma, mas muitas formas de conhecimento. Todo o conhecimento é uma prática social de conhecimento, ou seja, só existe na medida em que é protagonizado e mobilizado por um grupo social, atuando num campo social em que atuam outros grupos rivais protagonistas ou titulares de formas rivais de conhecimento. Os conflitos sociais são, para além do mais, conhecimentos de conhecimento. O projeto educativo emancipatório é um projeto de aprendizagem conflituantes com o objetivo de, através dele, produzir imagens radicais e desestabilizadoras dos conflitos sociais em que se traduziram o passado, imagens capazes de potenciar a indignação e a rebeldia. (SANTOS, 1996, p. 17).

Visto desse modo, as políticas curriculares podem reconhecer e inserir nos currículos a matemática e a economia daqueles que sobrevivem com recursos que os colocam abaixo da linha da pobreza. Podem também levar para os currículos a pirâmide alimentar de grupos sociais não considerados que, certamente, não se alinha às diretrizes internacionais nutricionais da alimentação saudável. Ainda no campo da saúde, deve-se pensar nas soluções criadas nas periferias para a negação do saneamento básico e para a falta da medicina científica e de medicamentos. As práticas corporais e lúdicas, de lazer e artísticas, que são criadas para elevar a racionalidade estética-expressiva como meio de emancipação e forma de sobrevivência. A diversidade epistemológica é infindável na língua, na arte, na geografia, na medicina, etc. Inseri-las no currículo a partir de seu contributo prático, submetê-las ao crivo crítico de todos, é condição para políticas curriculares e currículos que vislumbram a formação de subjetividades democráticas, inconformistas e rebeldes.

4 EM TEMPOS DE IMPLEMENTAÇÃO DA BNCC E DE DESPREZO PELO PNE (2014-2024), A ESPERANÇA TEIMOSAMENTE ACENA COM NOVOS TEMPOS PROMISSORES

A justiça curricular - conceito e prática em construção - como possibilidade contra-hegemônica na construção de políticas curriculares toma também para si a responsabilidade de formar subjetividades democráticas, inconformistas e rebeldes que democratizem a escola e outros espaços necessários à democratização da sociedade, não temendo a ousadia de expandir as experiências do presente para além do epistemicídio13 das avaliações externas, do autoritarismo e do conservadorismo do Estado brasileiro e do capitalismo global.

O seu caráter esperançoso pretende ser um alento para os sujeitos da educação. Sujeitos históricos que por imperativo ético aprendem-ensinam-vivem tendo como horizonte, no sentido de uma consciência antecipatória, um mundo mais justo com pessoas mais felizes (SANTOS, 2018), um mundo possível onde o embate é a favor da vida. A justiça curricular carrega, em cada uma das suas dimensões e em todas as ações que destas decorrem, uma semente que se pretende capaz de expandir o horizonte de possibilidades e elevar o caráter transformador da escola, que venha combater o “cansaço existencial” (FREIRE, 2001, p. 50) que tem pairado sobre os que acreditam na educação emancipatória.

É por esse inconformismo rebelde que se tem a necessidade urgente de ensinar na e para a democracia, com conhecimentos que a ampliem e tornem suas possibilidades inclusivas e distributivas mais robustas, cuidando, assim, de todos e de cada um segundo suas necessidades e direitos.

Em tempos de desprezo pelo Plano Nacional de Educação (2014-2024), que documentou desejos concretos e possíveis da sociedade civil brasileira em relação à sua educação escolar; em tempos em que a principal política educacional do Estado brasileiro refere-se ao currículo, enfatizando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), desvinculando-a de políticas de valorização dos educadores e de investimentos na escola pública e no caráter público desta, afirmam-se os direitos das crianças, dos adolescentes e dos adultos brasileiros de estudarem, de terem uma escola democrática, de terem o direito à educação conforme preconizado pela Constituição Federal de 1988.

Termina-se como se começou: poetando e cantando com João Bosco, fazendo com ele irreverências mil à noite, que se tornou o Brasil. Irreverências ao Brasil oficial, que nos rouba cotidiana, simbolicamente e de fato. Irreverências porque é preciso não calar! A esperança dança na corda bamba de sombrinha e sabe que em cada passo dessa linha pode se machucar, mas sabe também que é preciso não parar; e dá de ombros - Azar!!. Tem a certeza de que não se está só, de que são muitos os que lutam pela vida digna e de que a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar.

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Notas

1 Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 2 set. 2019.

2 Plano Nacional de Educação. Disponível em: http://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais-de-educacao/543-plano-nacional-de-educacao-lei-n-13-005-2014. Acesso em: 2 set. 2019.

3 Ainda que o texto da Base se defenda neste quesito, proclamando que Base não é Currículo, tentando demonstrar que são previstos “espaços” de atuação para os indivíduos presentes no cotidiano escolar, estudos têm demonstrado que essa Base que foi homologada no Brasil foi proposta como currículo nacional (CURY; REIS; ZANARDI, 2018; UCHOA; SENA, 2019). “A BNCC é uma proposta curricular obrigatória e imobilizadora que parte do centro do poder para todas as escolas, centralizada na confiança na capacidade de especialistas tomarem as decisões sobre os conhecimentos, competências e habilidades que nossos estudantes podem acessar. Decisões que deveriam se fundar nos pilares constitucionais de uma sociedade plural e comprometida com a não discriminação e com os valores sociais do trabalho” (CURY; REIS; ZANARDI, 2018, p. 71). Segundo os autores, “(...) além da BNCC ser uma prescrição de currículo nacional, ela é uma forma de tornar consensual o que pretende ser o conhecimento oficial” (CURY; REIS; ZANARDI, 2018, p. 73).

4 “Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri -. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar” (GALEANO, 2003).

5 Apesar da relevância desse fator (EDH), ele não será objeto de apresentação e análise neste texto, mas o será em próximos textos, que estão sendo gestados.

6 A racionalidade estética-expressiva e a racionalidade musical são exemplos das possibilidades apresentadas pelo autor.

7 Emenda Constitucional No 241, votada em 2016 na Câmara Federal, e, em 2017, no Senado como Emenda Constitucional No 55, que congelou por 20 anos os gastos públicos.

8 Disponível em: http://campanha.org.br/wp-content/uploads/2019/05/RelatorioMetasEstrategias_PNE_5Ano_Campanha_2019-1.pdf. Acesso em: 6 set. 2019.

9 Para Santos (2018), isso é fundamental para reinventar a democracia e criar outro contrato social.

10 A Lei Federal No 11.645, de 10 de março de 2008 (BRASIL, 2008), que cria a obrigatoriedade de os currículos oficiais incluírem a temática “História e cultura Afro-brasileira e indígena”, é um exemplo emblemático.

11 O amplo debate que ocorreu sobre o Plano Nacional de Educação, promulgado em 2014.

12 Termo utilizado por Santos (2016) para referir-se à democracia representativa em crise no Ocidente.

13 Termo utilizado por Santos (2011) para se referir ao extermínio de outras formas de compreender o mundo que foi levado a cabo pela ciência moderna.

Recebido: 12 de Agosto de 2019; Aceito: 13 de Setembro de 2019

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