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vol.17 número3EDUCACIÓN Y LA URGENCIA DE "DESARBARIZAR" EL MUNDOPOTENCIALIDADES DE LA TEORIA DEL DISCURSO PARA EL ANÁLISIS DE LA POLÍTICA CURRICULAR DE FORMACIÓN DOCENTE (1996-2006): DEMANDAS, ANTAGONISMOS Y HEGEMONÍA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.3 São Paulo jul./sept 2019  Epub 28-Oct-2019

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i3p1123-1143 

Dossiê Temático: Em busca da justiça curricular: as possibilidades do currículo escolar na construção da justiça social

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA ORDEM PÓS-DEMOCRÁTICA: DESAPARECIMENTO DA MODALIDADE E INVISIBILIDADE INSTITUCIONAL

YOUTH AND ADULT EDUCATION IN THE POST-DEMOCRATIC ORDER: DISAPPEARANCE OF THE MODALITY AND INSTITUCIONAL INVIBILITY

EDUCACIÓN DE JÓVENES Y ADULTOS EN EL ORDEN POSTDEMOCRÁTICO: DESAPARICIÓN DE LA MODALIDAD Y INVISIBILIDAD INSTITUCIONAL

Janayna CAVALCANTEi 

i Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, atua na área de Didática e Currículo, mestre e doutora em Educação. E-mail: janaynacavalcante@gmail.com.


RESUMO

O texto discute as condições de existência das políticas curriculares para Educação de Jovens e Adultos no contexto identificado como ordem pós-democrática no Brasil. A análise de enfoque arqueogenealógico percorre dois processos: o desaparecimento institucional do setor específico para EJA na reforma administrativa do Ministério da Educação, e o silenciamento da noção de modalidade educacional no texto publicado da Base Nacional Curricular Comum. Considerados como expressões do abandono institucional e curricular, conclui-se que tais processos articulam a produção de modos de desaparecimento da EJA.

PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos; Biopolítica; Análise do Discurso; Pós-democracia

ABSTRACT

The text discusses the conditions for the existence of curricular policies for Youth and Adult Education (EJA in Portuguese) in the context identified as post-democratic order in Brazil. The analysis of an archaeogenealogical approach runs through two processes: the institutional extinction of the specific sector for EJA within the administrative reform of the Ministry of Education, and the silencing of the notion of educational modality in the published text of the Common National Curricular Base. Considered as expressions of institutional and curricular abandonment, it is concluded that such processes articulate the production of modes of political disappearance of EJA.

KEYWORDS: Adult education; Biopolitics; Discourse analysis; Post democracy

RESUMEN

El texto discute las condiciones de existencia de políticas curriculares para la educación de jóvenes y adultos en el contexto identificado como orden postdemocrático en Brasil. El análisis del enfoque arqueogenealógico pasa por dos procesos: la desaparición institucional del sector específico para EJA en la reforma administrativa del Ministerio de Educación, y el silencio de la noción de modalidad educativa en el texto publicado de la Base Curricular Nacional Común. Consideradas como expresiones de abandono institucional y curricular, se concluye que tales procesos articulan la producción de formas de desaparición de la EJA.

PALAVRAS CLAVE: Educación de adultos; Biopolítica; Análisis del discurso; Postdemocracia

1 INTRODUÇÃO

O contemporâneo é um tempo exigente. Sermos contemporâneos ao nosso tempo, mais do que apenas existir no que chamamos de presente, significa sermos capazes de nos deixar afetar pela contemporaneidade, pela pregnância de compartilharmos a luz e a sombra deste tempo que também nos olha (AGAMBEN, 2010). Exercitando essa atitude como possibilidade analítica, nos propomos a pensar, neste texto, a inscrição da Educação de Jovens e Adultos (EJA) nas políticas curriculares do período atual, no qual uma reordenação estratégica das forças políticas reconfigura o Estado e a sociedade brasileiros, como parte daquilo que Dardot e Laval (2016) identificam como uma ordem pós-democrática. Na análise aqui empreendida, nos propomos a ler a dinâmica de desaparecimento da EJA no âmbito do Estado, expresso a nosso ver em dois processos: as mudanças administrativas no Ministério da Educação resultantes de processos políticos dos últimos seis anos e o silenciamento da ideia de modalidade como imagem-força da especificidade curricular da Educação de Jovens e Adultos.

A EJA configura-se como uma modalidade da Educação Básica, um direito a ser garantido por políticas públicas previstas na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96), reafirmada por um Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), sendo simultaneamente a experiência escolar de milhões de pessoas jovens, adultas e idosas, além de ser produzida por plurais processos pedagógicos mobilizados por milhares de docentes, primordialmente em escolas públicas. O campo institucional da EJA é composto por organismos de governo, universidades e movimentos sociais. No plano governamental, a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA) tem atuado como instância consultiva e de acompanhamento de políticas junto ao Ministério da Educação, sendo composta por representantes da sociedade civil, de instituições de ensino superior e dos governos estaduais e municipais, além dos movimentos sociais. No plano da sociedade civil, a rede formada pelos Fóruns EJA Brasil conta com a presença de representantes de movimentos sociais, organizações de docentes, bem como representações regionais, estaduais e distrital de gestores e educadores envolvidos com a modalidade. Além dos atores já citados, uma ampla rede de pesquisadores nas Universidades compõe as instâncias de governo e de movimentos sociais da EJA.

Historicamente, a presença de pessoas adultas nos espaços escolares é considerada uma conquista democrática no tocante ao acesso à Educação por uma parte considerável da população brasileira, a quem foram negadas as condições mais adequadas ao usufruto desse direito em outras etapas da vida. A escolarização da EJA é reconhecidamente como uma vitória, ainda que exígua, de uma longa trajetória de lutas, cuja série histórica inicia-se na articulação pela alfabetização do povo brasileiro, em torno das décadas de 1940 e 1950 do século passado (SCOCUGLIA, 1999; BRASIL, 2000; HADDAD e DI PIERRO, 2000; PAIVA, 2003; DI PIERRO, 2005).

A escolarização de adultos corresponde a uma institucionalização da pessoa não alfabetizada e das pessoas cuja experiência escolar na educação básica tenha sido interrompida, não iniciada ou não concluída, no horizonte de uma cultura escolar ancorada em racionalidades afeitas à produção da infância e de formas de governá-la. Do ponto de vista curricular, no entanto, a crescente institucionalização da EJA observada ao longo do século XX não se fez acompanhar pelo devido aprofundamento, na dimensão normativa do currículo, da noção de especificidade e de diferença curricular pertinente à pluralidade de sujeitos e culturas presentes na EJA. Nessa perspectiva, o silenciamento analisado neste estudo apresenta-se como uma nova etapa de um abandono normativo já presente no campo curricular da Educação de Jovens e Adultos. A tarefa de produção curricular vem sendo realizada, no entanto, primordialmente nos contextos de prática, seja das escolas públicas, seja dos movimentos sociais, onde experimentação e invenção resultam na ampliação contínua das possibilidades de dizer e fazer sobre uma educação para pessoas jovens e adultas (CARVALHO, 2004; ARROYO, 2007; SOUZA, 2007).

A população de pessoas não alfabetizadas, público prioritário dessa institucionalização, é recebida nas escolas de forma intermitente aproximadamente desde a década de 1960, sendo interpelada por um conjunto de discursos que vão desde a retórica da “vergonha nacional do analfabetismo” até os enunciados do “direito à educação”, da “educação para o trabalho” e, por fim, da “EJA como política de Estado” (LIMA, 2015). Ao longo dessa trajetória de crescente institucionalização, marcadamente entre os anos de 1960 (BEISIEGEL, 1974) e os anos 2000 (HADDAD; DI PIERRO, 2000), a educação de pessoas adultas foi alvo de oscilantes investimentos políticos que ora dedicaram atenção política, administrativa, financeira e pedagógica às ações voltadas à população adulta não escolarizada, ora administraram com parcimônia tais recursos, desenhando assim um movimento descontínuo no atendimento escolar do direito à educação das pessoas jovens e adultas. Essa dinâmica descontínua é visível, por exemplo, na série histórica da presença do direito à educação de pessoas adultas nas leis de diretrizes e bases e nas diversas constituições. O caráter histórico dessa descontinuidade ressalta a instabilidade e a contingência como condições para a análise do campo da EJA.

A descontinuidade com que a modalidade da Educação de Jovens e Adultos foi instalada como política educacional no Brasil é uma das características da sua história e das lutas, com recuos e avanços, pela garantia das condições para que todas e todos que desejarem estudar possam fazê-lo, independentemente de sua idade. A ideia de “condições para estudar” representa um conjunto bastante amplo de variáveis, podendo ser considerada resultante das lutas que se expressam na perspectiva política, em que os variados grupos de interesse disputam o jogo da visibilidade e do reconhecimento. Por exemplo, diversas condições tornaram possível a emergência de um Programa Nacional do Livro Didático para EJA (PNLDEJA), no ano de 2009. O convencimento dos decisores de políticas do Ministério da Educação sobre a necessidade deste programa decorreu, em larga medida, como decorrência da articulação de educadores e pesquisadores da EJA, por sua vez apoiados na ideia fundamental de isonomia de direitos entre os diversos públicos das políticas de educação. Contribuiu ainda para esse processo o avanço da compreensão sobre a importância do artefato livro no apoio às condições de ensino. A articulação entre avanço do conhecimento por meio da pesquisa, oportunidade política, aliada ao advocacy consistente resultou na produção de uma política que visava à garantia de condições mínimas para o cotidiano pedagógico da EJA. Tal trajetória da política sobre o artefato livro didático expõe uma importante dinâmica de produção curricular na EJA, fortemente articulada ao debate da especificidade.

Situando-nos na complexa relação com o nosso contemporâneo, e tomando a tarefa de perscrutá-lo e compreender suas sombras, nos perguntamos sobre aquilo que inicialmente identificamos como uma dinâmica de desaparição da EJA, observada como decorrência das mudanças ocorridas a partir de 2013. Nesse período, observa-se a instauração paulatina das condições históricas e políticas em que a ordem pós-democrática passou a ter contornos mais precisos no Brasil. A partir das jornadas de junho de 2013, uma série de instabilidades de ordem jurídica, administrativa, legal, econômica e ética, mas sobretudo políticas, instala uma disrupção na ordem social brasileira, culminando com a deposição da presidenta eleita através de um golpe de Estado. Neste artigo, analisamos o que ocorre com a EJA nesse período, considerando que visibilidade institucional e curricular se articulam como operadoras da garantia de direitos quando as salvaguardas do Estado democrático estão ativas. Em contraponto a esta expectativa, a ordem pós-democrática evidencia uma rearticulação desses operadores, produzindo o fenômeno do desaparecimento. Ao longo do texto, entretanto, explicitamos que a racionalidade dirigida ao desaparecimento não é instaurada apenas nesse período, mas se configura como uma linha de força mais antiga e enraizada em nossa sociedade que, no entanto, assume contornos específicos no contemporâneo.

Tratamos dois mecanismos desse desaparecimento, que ao fim se articulam: por um lado, consideramos que a invisibilização administrativa pode significar a emergência de um novo período de subalternização da EJA, e exploramos os significados desse processo. Por outro lado, analisamos os sentidos curriculares do silenciamento da ideia de modalidade, e da especificidade que ela articula, da educação escolar oferecida às pessoas adultas.

Como grade de inteligibilidade para analisar tais processos de desaparecimento, refletimos desde uma analítica arqueogenealógica foucaultiana, o que implica falarmos de uma concepção de poder como relação entre forças, de governo como ação de conduzir as condutas e de governamentalidade como um uso local da razão, uma racionalidade, que articula tanto as formas de conduta do outro - uma forma de governo - , quanto os modos de condução de si - processos de subjetivação. Com esse quadro teórico-analítico, trabalhamos ao nível descritivo do acontecimento discursivo e de suas condições de emergência, considerando, de partida, “[...] a emergência não como um nascimento, mas como um ‘estado de forças’ que faz aparecerem, na instância das relações, os objetos; logo, é da luta, do confronto das forças, e não de condições substantivas e transcendentes que emerge o poder, visível a partir de seus efeitos” (FOUCAULT, 1972, p. 36; grifo nosso). A atitude analítica arqueogenealógica trata, portanto, de um “poder de constituir domínios de objetos”. Nesse sentido, as relações de poder, desnaturalizadas, desmistificadas da sacralidade, representam uma arquitetura do que pode ser visível, discutível e desmontável. A análise das formas de poder-saber remetem, portanto, aos movimentos do que pode ser dito e do que pode ser falado, aos regimes de visibilidade e de enunciação dos objetos.

2 DEIXAR MORRER EM TEMPOS PÓS-DEMOCRÁTICOS

Segundo Dardot e Laval (2016), a ordem pós-democrática expressa o período da vida política das sociedades ocidentalizadas em que o neoliberalismo assume a forma de uma racionalidade, que investe esforços na produção não apenas de lógicas políticas mas, sobretudo, na elaboração contínua de formas de existência que têm na empresa seu modelo, na concorrência seu meio e no lucro sua finalidade. Esse investimento ocorre, sobretudo, na reelaboração das formas democráticas da vida social e num jogo de rearticulação da norma democrática em nome dos princípios do capital financeiro.

A partir das análises de Foucault sobre o neoliberalismo (2008b), Dardot e Laval delineiam a relação entre liberalismo e democracia, que toma diferentes formas ao longo dos dois últimos séculos, evidenciando a característica contingente desse arranjo alguma vez já tido como “natural”. Discutindo a emergência histórica do neoliberalismo, Foucault salienta que as formas do biopoder nascem da crise do modelo da soberania e de sua metamorfose lenta em “nova arte de governar” na qual as práticas de poder, sob a influência da racionalidade da economia política, se transformam em razão governamental. Para o filósofo, as formas da governamentalidade não são puras nem específicas, mas híbridas, complexas e acionam um conjunto variável de estratégias disciplinares, biopolíticas e de subjetivação, que variam no tempo, mas se articulam em arranjos estratégicos no presente: “[...] é isso que vocês veem no mundo moderno, o mundo que nós conhecemos desde o século XIX, toda uma série de racionalidades governamentais que se acavalam, se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente” (FOUCAULT, 2008b, p. 424).

As práticas governamentalizadas representam uma especialização sutil e complexa dos mecanismos de controle das populações. Do universo dessas práticas emerge a ideia de escolarização obrigatória e a instituição da escola como espaço dedicado à administração da infância e à sua produção como corpo social (VARELA, 1991). A análise genealógica informa-nos que tal característica dos processos de escolarização continua atuando como ponto que singulariza as linhas de forças constitutivas das relações de poder e aparece em dispositivos intrinsecamente relacionados com as formas de governar presentes em nossos dias. Foucault, sobre a análise destas relações, considera que “[...] a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem” (2005, p. 16). Analisando a emergência da governamentalidade como nova arte de governar, o filósofo ressalta ainda que ao poder caberá “[...] manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras palavras, gerir e não mais regulamentar” (FOUCAULT, 2008a, p. 474).

A liberdade é compreendida então como ideia central, pois, ao invés de reprimir ou regular a circulação, a questão passa a ser liberar a circulação das pessoas e dos capitais. Para Foucault, a liberdade se constitui um problema do liberalismo que “[...] se propõe a fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la” (2008b, p. 88). As liberdades civis e políticas envolvem um conjunto amplo de práticas sociais e mantêm uma relação complexa com os processos escolares, sendo simultaneamente tanto argumento para a estratégia de escolarização de algumas populações (inicialmente das infâncias brancas, masculinas, urbanas e médias), quanto um “subsídio” político estratégico para os processos de ampliação do acesso aos saberes escolarizados por outras populações, sabidamente negras, rurais, femininas e pobres.

A ambiguidade da relação entre o neoliberalismo e a democracia interessa-nos por permitir compreender o lugar da Educação de Jovens e Adultos, e de suas políticas curriculares especificamente, no conturbado processo de reconfiguração do Estado e da sociedade brasileira no período histórico dos últimos seis anos, nos quais uma série de instituições em nossa sociedade, dentre elas e de forma paroxística o campo da educação, vem passando por rearranjos institucionais e discursivos de uma lógica política que pode ser identificada com o que Gallo (2012) chama de “governamentalidade democrática”. Ao propor que a racionalidade específica da governamentalidade em vigor no Brasil desde a Constituição de 1988 vinha operando com uma peculiar articulação entre os modos de uma democracia liberal, uma sociedade de mercado, e uma formação histórica colonial e racista, Gallo (2012, p. 59) considera que

A maquinaria de uma governamentalidade democrática pressupõe uma sociedade civil organizada, em face do Estado; uma economia que regula as trocas e garante a potência do mercado, com geração de riquezas; uma população, que é alvo das ações preventivas do Estado nos mais variados âmbitos, na garantia de sua qualidade de vida; a garantia da segurança dessa população como dever do Estado; e, por fim, a liberdade e a não submissão dos cidadãos como valor fundamental dessa organização social e política. Nessa microfísica de relações, nada há de ideológico. A liberdade, por exemplo, não é tomada como objeto de uma defesa ideológica, mas peça material e fundamental no funcionamento da máquina social.

A forma dessa maquinaria parece sofrer uma reordenação no Brasil a partir dos fatos políticos e das mudanças institucionais desatados a partir do ano de 2013, confluindo para a identificação com uma ordem pós-democrática, caracterizada por uma “desativação do jogo democrático” típico das formas liberais da democracia (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 9).

No tocante à produção curricular na sua dimensão normativa, as circunstâncias que se avolumaram nos processos de definição da Base Nacional Curricular Comum, seja a alteração “de gabinete” de trechos inteiros do documento produzido por meio do debate público, seja a renúncia de membros do Conselho Nacional de Educação, chegando ao silenciamento da discussão sobre gênero no currículo nacional (LOPES; OLIVEIRA, 2018), o que se observa é a adoção de um conjunto de táticas de aparência legal, mas ilegítimas do ponto de vista do proceder democrático afiançado seja pela base ético-política, seja pela exígua cultura política adquirida ou mesmo pelos poucos ritos já constituídos em nossa curta experiência fora de regimes de exceção. Nesse sentido, é pertinente nos questionarmos sobre os significados políticos do desaparecimento da modalidade, na estrutura administrativa e no texto base do documento que se propõe a ser o nacional comum do currículo.

2.1 A invisibilização administrativa na estrutura do Ministério da Educação

O modo específico com que a Educação de Jovens e Adultos é atingida pelos novos arranjos políticos dá sequência a uma lógica cultural e política historicamente constituída no Brasil em torno da escolarização das pessoas não alfabetizadas e dos mais pobres, compondo uma longa tradição de subalternidade. A ideia de cidadania historicamente articulada como principal argumento na defesa do investimento estatal na Educação de Jovens e Adultos é secundarizada, pois “[...] a referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 381). Um dos traços dessa governamentalidade neoliberal se materializa por meio da reforma administrativa do Ministério da Educação, ocorrida em 2019, que faz desaparecer a Educação de Jovens e Adultos do quadro gerencial do órgão. Ainda de acordo com Dardot e Laval (2016, p. 381),

Longe de ser neutra, a reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social; reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um número crescente de “subcidadãos” e “não cidadãos”.

A invisibilização administrativa da EJA implica no risco de que a população de pessoas jovens e adultas não encontre a resposta institucional adequada às suas demandas educacionais. A especificidade geracional da modalidade EJA, que se refere à possibilidade de um diálogo curricular com a vida adulta em suas diversas questões, parece ficar subsumida às diretorias que atendem a nomenclaturas mais abrangentes, definidas desde uma noção vaga de alfabetização, deixando aquela especificidade curricular - característica da construção histórica de uma escola para adultos - desprovida de espaço institucional específico a partir do qual seja elaborada em forma de programas e projetos. O entendimento universalista, que reduz a educação dos adultos a uma versão da educação das crianças, produz uma zona de abandono institucional, extremamente problemático para a elaboração contínua de uma política curricular atenta às especificidades da EJA.

Desenha-se, então, uma relação de abandono, aqui compreendida como figura filosófica remetida a um processo constitutivo do vínculo biopolítico. O biopoder é a forma específica do poder que se ocupa da condução das condutas das populações, entendidas a partir da inscrição da noção de vida no cálculo político (FOUCAULT, 1988). Segundo Agamben (2004) o vínculo biopolítico é oriundo de uma relação de exceção configurada pela imagem do abandono. O lugar da exceção é um lugar de abandono em duas formas: estar abandonado à lei, ou seja, sob a lei, e estar esquecido pela lei ou marcado pela sua suspensão, num regime de indeterminação, numa deriva do horizonte normativo, porque a lei se define em potência também pelo que ela deixa de fora, pelo que ela pode excluir.

Agamben nos fornece o conceito de exceção para referirmo-nos ao fato de que “[...] a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (2004, p. 12). O Estado de exceção refere-se ao modo com que uma anomia é incorporada pela norma jurídica, é o momento em que a lei precisa aceitar sua própria ausência. Trata-se de um uso da Lei para suspender a própria Lei, como nos cenários mais comumente conhecidos como regimes de exceção, mas visível também na forma como, “dentro da lei”, “democraticamente” e por “mecanismos legais de direito” a ordem pós-democrática vem se constituindo relativamente ao campo da Educação de Jovens e Adultos.

A respeito deste ponto, recordamos a seguinte passagem de Agamben (2004, p.93):

O conflito parece incidir sobre o espaço vazio: anomia, vacum jurídico de um lado e, de outro, ser puro, vazio de toda determinação e de todo predicado real. Para o direito, esse espaço vazio é o estado de exceção como dimensão constitutiva [...]. Mas o que é igualmente essencial para a ordem jurídica é que essa zona - onde se situa uma ação humana sem relação com a norma - coincide com uma figura extrema e espectral do direito, em que ele se divide em uma pura vigência sem aplicação (a forma da lei) e em uma aplicação sem vigência: a força de lei.

É por caminhos de excepcionalidade semelhante que o processo de desaparecimento institucional da EJA pode ser lido. Embora nada garanta que a existência de um órgão administrativo no âmbito do Estado represente que a área em questão será devidamente atendida em suas demandas, é igualmente verdadeiro que a existência dessa área gera um foco para que ações de incidência política encontrem reverberação na consecução das políticas públicas. A vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9394 (BRASIL,1996), assim como das Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA (BRASIL, 2000), além do próprio Plano Nacional de Educação - Lei 13.005 (BRASIL, 2014) adentra uma zona de invisibilidade que faz com que estejam atuando como pura forma da lei, uma lei sem vigência, diante de um contexto em que as operações para fazer funcionar as políticas curriculares para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos se confrontam com o processo de desaparecimento provocado pela reforma administrativa do Ministério e pelo subsunção da modalidade à generalidade curricular.

De modo descontínuo, a educação de adultos esteve contemplada, pelo menos desde a década de 1950, com programas, departamentos, serviços, fundações e institutos de governo direcionados à sua agenda.

Do ponto de vista do aparato de visibilidade institucional, desde o ano de 2004 e até o ano de 2018, a EJA foi representada por uma diretoria específica no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD (que mais tarde passa a incluir a terminologia Inclusão e a chamar-se SECADI) -, a Diretoria de Educação de Jovens e Adultos, por sua vez composta pela Coordenação Geral de Alfabetização e pela Coordenação Geral de Educação de Jovens e Adultos. Apesar da assunção, no organograma, da bifurcação entre alfabetização e educação, extensivamente questionada pelos especialistas do campo, esta estrutura administrativa abria a possibilidade tanto da atenção institucional, quanto da qualificação da ação de governo para a área.

A descontinuidade administrativa nos processos de gestão pública no âmbito de sociedades de democracia representativa, no caso do Brasil, especificamente, é fato conhecido desde a esfera municipal até a esfera federal. Mas o que se apresenta na governamentalidade política pós-democrática parece configurar-se como uma espécie de ruptura em grande escala e não uma mera descontinuidade.

No exemplo específico da visibilidade institucional da EJA, o que vemos é a extinção da SECADI, em 2019, pelo Decreto 9465/19, e com ela a desaparição das menções à EJA na estrutura administrativa do Ministério da Educação. No entanto, mais do que uma extinção administrativa pura e simples, ocorre uma reordenação discursiva com a criação de uma Secretaria de Alfabetização composta por três diretorias: a Diretoria de Alfabetização baseada em evidência; a Diretoria de suporte estratégico à alfabetização e a Diretoria de desenvolvimento curricular e formação de professores alfabetizadores. Nos Artigos 29 a 32 do referido Decreto, que tratam da estrutura dessas diretorias, a Educação de Jovens e Adultos não é citada em nenhuma passagem, e os jovens e adultos aparecem em apenas duas ocorrências, quando da exposição das competências da Secretaria de Alfabetização, como público a ser atendido, e não como modalidade de atendimento escolar específico.

O Art. 33 do mesmo Decreto 9465/19 refere-se à Secretaria de modalidades especializadas de educação. Novamente, a Educação de Jovens e Adultos desaparece, e a especialização - e não a especificidade - sinalizada é a da Educação do Campo, Educação Indígena e Educação Quilombola. As duas últimas subsumidas na finalidade “valorização das tradições culturais brasileiras, inclusive dos povos indígenas e quilombolas” (BRASIL, 2019; grifo nosso). A elisão do termo “educação” na nomeação destas modalidades pode significar muitas coisas, dentre elas o não reconhecimento das formas de saber próprias a cada uma das experiências culturais dos povos citados e das respectivas formas educacionais e pedagógicas. O desaparecimento administrativo dessas modalidades evidencia o cenário biopolítico em que se movimenta a dinâmica da pós-democracia.

Segundo Foucault (2005), a noção de biopolítica é implicada por uma noção de tanatopolítica, ou seja, uma política da administração da morte ou “deixar morrer”. Conquanto a vida biológica esteja envolvida, o limite da existência e a manutenção deste suporte biológico contêm uma possibilidade concreta que é a eliminação. Na trajetória da Educação de Adultos, o argumento historicamente utilizado para legitimar a alfabetização direcionava-se à questão do voto do analfabeto. Alfabetizar-se era o processo que autorizava o sujeito ao exercício central da política numa democracia representativa. Antes da alfabetização o sujeito se equiparava à criança ou ao animal. Depois da alfabetização, era equivalente ao eleitor. Mais do que isso, sendo toda educação ato político, a biopolítica das práticas escolares para adultos, em toda a sua profusão de enunciados que ressaltam tanto o direito a estudar quanto a inferioridade social do analfabeto, emerge como questão estratégica da gestão social de populações marcadas por contínuos atos de desaparecimento e erradicação.

O poder, entendido como uma relação, um campo de forças que se organiza de maneira estratégica e atua sobre a conduta dos indivíduos e populações, tem menos a tarefa de garantir a reprodução social e mais a função de assegurar a contínua submissão a uma relação de controle eficiente e econômica, de modo que uma certa ordem seja constantemente produzida por meio das diferentes técnicas disponíveis.

Ao provocar novos movimentos na população interpelada, o biopoder apresenta-se com muitas facetas, algumas sutis, como um projeto de regulação da vida. Mas, lembrando que a vida pressupõe a morte, em certas circunstâncias é do caráter do biopoder propiciar o desaparecimento, ou “entregar à própria sorte” partes “não necessárias” do Estado Nação. Uma sociedade governamentalizada é aquela em que as artes de governar neoliberais administram vida e morte em diversos níveis. De acordo com Foucault, “[...] é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição” (FOUCAULT, 2005, p. 306, grifo nosso).

Não é recente essa forma de relação com a Educação de Jovens e Adultos (mas também com a Educação do Campo e Quilombola), pela tática do desaparecimento, na cultura política brasileira. Expressões como “papagaio velho não aprende a ler”, a associação do analfabetismo à cegueira, e a associação semântica que vincula o analfabeto ao significante “burro” e ao significado “ignorante” demonstram, além da característica violenta dos enunciados, que a luta pela “erradicação” do analfabetismo refere-se a um fundo muito complexo de significações que a sociedade construiu em torno da pessoa que transita por códigos culturais diversos das culturas ocidentais modernas. Dentre outros, esse é um problema de ordem colonial, e é um problema da ordem do racismo brasileiro em suas nuances e disfarces. A forma da violência que interdita na linguagem, neste caso, produz uma relação de regularidade com o conjunto de discursos que culturalmente interpelam a pessoa não alfabetizada como “ignorante”, que remetem o analfabetismo adulto à condição de “chaga nacional” e que propuseram, desde longa data no Brasil, a “erradicação” do analfabetismo como problema social, mas por meio de uma estratégia subjetivante marcada por esse léxico violento. Em outras palavras, a ideia de erradicação é um dos enunciados que fala não apenas sobre o analfabetismo, mas sobretudo fala com os analfabetos, produzindo posições de sujeito marcadas por este modo de significação.

Existindo em milhares de escolas concretas em quase todos os municípios brasileiros, sendo parte do Marco Constitucional do país, consistindo ainda no aparato institucional ainda existente do atendimento à educação das pessoas adultas, a EJA se confronta com processos de desaparecimento e subalternização desde longa data. No quadro atual, observa-se novo investimento simbólico no seu desaparecimento, perceptível a partir da produção de sua inexistência no âmbito do aparato administrativo de Estado, configurando uma relação na qual a zona de indistinção entre lei e anomia insere um novo capítulo na série histórica das políticas de abandono das quais a Educação de Jovens e Adultos vem sendo alvo constante.

2.2 O silenciamento curricular

É em outro movimento de desaparição que identificamos a segunda das táticas presentes na contextualidade pós-democrática no governamento da Educação de Jovens e Adultos. Trata-se do silenciamento da ideia de modalidade em relação à EJA no documento da Base Nacional Curricular Comum (BNCC).

Uma modalidade esclarece Jamil Cury no já clássico Parecer nº 11/2000, é “diminutivo latino de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria”. As implicações curriculares da noção de modalidade são extensas, e remetem a uma crítica da própria ideia da pedagogia como forma de racionalidade moderna, urbana e politicamente comprometida com a “transformação do súdito em cidadão”. A modalidade EJA e a presença de pessoas adultas de meio popular em bancos escolares produz a desestabilização de uma série de racionalidades concernentes aos procedimentos pedagógicos tradicionais (VARELA, 1991).

Não à toa, a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, elabora uma profunda análise dos procedimentos do que ele denominou “Educação Bancária” em contraponto ao que seria uma educação ocupada com o diálogo com o sujeito adulto, sua experiência de vida e conhecimentos já adquiridos, nem tanto no que concerne aos “saberes prévios” sobre a língua, mas centralmente ao que a pessoa adulta já experiencia de relação com o simbólico e o campo da cultura. Do ponto de vista de uma discussão intercultural do currículo, Carvalho (2004) identifica uma potência pós-colonial na discussão proposta por Freire.

A Pedagogia do Oprimido inaugura filosoficamente uma série histórica de discussão sobre a especificidade de uma escola para adultos, sobre a necessidade de superação tanto das práticas pedagógicas quanto da elaboração curricular dessas práticas. A noção de modalidade, e a especificidade a que ela remete, confronta, a nosso ver, crenças próprias das práticas pedagógicas, que se produzem desde os modos de avaliar os estudantes, as propostas temáticas, os modos de acionamento do pensar, as formas de significar a experiência, a peculiaridade de uma relação com a língua que passa pelas complexas relações entre o oral e o escrito, além de um poderoso agenciamento sobre o sujeito adulto escolarizável.

A noção de modalidade é produzida desde uma norma legal, assim como pelos documentos curriculares que a definem, mas, sobretudo, por uma ampla discursividade sobre a especificidade e a diversidade, observada na dispersão dos enunciados sobre os sujeitos da EJA, a abrangência da retomada do tema em um sem-número de produções científicas, publicações legais, textos de mídia e textos de professores. A especificidade da EJA, além de um desafio teórico e político-pedagógico, constitui lócus de um agonismo específico no âmbito da produção curricular da Educação Básica brasileira no tocante às lógicas culturais que lidam com interculturalidade (CARVALHO, 2004).

Construir o currículo da EJA no cotidiano das escolas, na elaboração de documentos curriculares ou de artefatos didáticos, e ainda na investigação de práticas pedagógicas, significa produzir em escala infinitesimal a noção de especificidade e mesmo contribuir para criar pluralizações contínuas na lógica de que a modalidade é apenas um jeito de ser diverso em relação a uma referência. Dentre outras coisas, a produção da especificidade da EJA consiste na produção de diferença no currículo, o que seria muito mais do que apenas uma bifurcação do mesmo caminho, mas sobretudo a invenção de outras escolarizações.

Como parte do dispositivo analisado, a noção de modalidade atua como um significante que vincula os regimes de visibilidade e enunciação e nos permite ver algo do significado político relativo à ordem da governamentalidade neoliberal.

No documento final da BNCC do Ensino Fundamental a palavra modalidade apresenta apenas duas ocorrências que se referem às modalidades da Educação Básica, presentes nos textos de introdução e fundamento legal da Base. O silenciamento da ideia de uma especificidade das Educações, ou de especificidades na Educação, não atinge apenas a Educação de Jovens e Adultos, mas o conjunto de sujeitos históricos cujas identidades fizeram emergir diferença curricular das lutas políticas por eles travadas. São atingidas por essa tática a Educação do Campo, Educação Quilombola e Educação Indígena e, especificamente no texto da BNCC, também a Educação Inclusiva.

As passagens do texto introdutório da BNCC, ao apresentarem o documento, evidenciam a tática do silenciamento como uma subsunção da diferença cultural, social e geracional na ideia de um universalismo abstrato marcado textualmente pelo pronome “todos”: “A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 07, grifo nosso). Trata-se de um duplo movimento de silenciamento da noção de especificidade, produzido tanto pela não nomeação direta da própria Educação de Jovens e Adultos, quanto pela abordagem inespecífica desta e das demais modalidades ao longo de todo o documento da BNCC. É fundamental refletirmos sobre o sentido de argumentos de postergação da normatização curricular destas modalidades para um “depois”. Haverá um depois para populações adultas não escolarizadas num ambiente econômico neoliberal?

Observamos como as duas táticas analisadas - a invisibilização institucional e o silenciamento curricular da especificidade - se coadunam com expressiva coerência, pois apresentam o regime de invisibilização, não nomeação, negação da ideia de modalidade como especificidade, produzindo um silenciamento dos enunciados conquistados em longos processos de mudança curricular propugnados pelos sujeitos da EJA desde meados do século passado.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste texto, tecemos uma análise acerca dos processos contemporâneos de desaparecimento da Educação de Jovens e Adultos no âmbito das políticas curriculares brasileiras. Discutimos dois operadores desse desaparecimento: a tática da invisibilização administrativa e a tática do silenciamento curricular. Conjugadas, estas duas táticas estabelecem, por sua vez, dois movimentos, sendo o primeiro uma linha de continuidade, identificada com as formas do racismo de Estado no Brasil, ou seja, com uma política de separação das parcelas da população atingidas pela lógica do “deixar morrer”. O segundo movimento se produz como uma descontinuidade, em relação com a ideia de “governamentalidade democrática” (GALLO, 2012), por algum tempo vigente no país, porém estabelecida sobre o mesmo fundo de uma sociedade marcada pela naturalização de hierarquias raciais, sociais e de gênero.

Consideramos que as táticas analisadas correspondem a um funcionamento eficiente da governamentalidade neoliberal, relativo ao deslocamento da noção de direito para a noção de concorrência, tocando em pontos sensíveis das formas de conceber a educação como bem público.

Perceber a operação dessa racionalidade no âmbito da EJA é especificamente importante devido à inscrição biopolítica desta modalidade no quadro da cultura política brasileira. A EJA é o território escolar das populações mais pobres, das mulheres negras e de periferia, dos trabalhadores não empregados, da população LGBTQI+, dos idosos, dos jovens em experiências turbulentas com a escolarização, das populações carcerárias e, mais recentemente, vem se tornando o espaço de acolhimento e provimento de atendimento escolar para pessoas adultas com deficiência. É sintomático que sejam esses e essas a terem sua educação demarcada pelo símbolo da invisibilização e da desaparição no contexto de uma sociedade pós-democrática, na qual os agenciamentos da racionalidade neoliberal reforçam o apelo ao indivíduo, à competição e à competência.

O silenciamento do campo curricular, centralmente no documento que se produz com a vontade de poder afirmar-se como o discurso do nacional comum, aliado à invisibilização administrativa, conjugam-se no operador central da discursividade analisada: o silenciamento da noção de modalidade educacional. Ao apagarem-se as marcas da modalidade abre-se um campo de legitimidade para o abandono, por meio da diminuição do apoio institucional à produção de diferença curricular, investindo, por sua vez, no apagamento político da produção histórica de currículos locais, contingentes, gerados pelos seus sujeitos educadores e educandos, articulados a formas de saber múltiplas, não hierárquicas (ou mesmo baseadas em hierarquias outras, situadas em referências culturais próprias), gerados na recontextualização permanente das interpelações de um currículo e de identidades nacionais. Processos estes que a noção de modalidade como operador político vinha ancorando, pelo menos desde a produção da norma 9394/96 e da própria Constituição Federal de 1988, inclusive, pela sustentação financeira, política e técnica viabilizadas pela estrutura governamental do MEC no exercício de sua função executiva.

A EJA, em meio a essa velha/nova discursividade, aparece sem aparecer, sendo contemplada na condição subalterna de uma sub-representação. Estando presente nos diplomas legais mais gerais da sociedade brasileira, mas sendo sub-representada nos discursos curriculares e na estrutura administrativa, emerge numa zona de abandono em que “aquilo que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído” (AGAMBEN, 2010, p.91). Tal condição paroxística remete à noção de exceção biopolítica, e revela a ambiguidade presente na condição de uma “escolarização sem especificidade” que parece resultar do quadro assinalado, quando a Educação de Jovens e Adultos é citada, mas sua forma própria é tratada por meio do silenciamento da especificidade curricular e da subalternidade administrativa no âmbito do Ministério da Educação.

Estar sob a lei, abandonado à força da lei, significa, em linguagem biopolítica, entre outras coisas, que o poder não abre mão do poder dizer (ou não), de legislar, de ordenar, enfim, de governar aquele território. Mas ele escolhe fazer isso por meio da relação de exceção, que se expressa, dentre outros modos, pela invisibilização, pela ocultação, pelo desaparecimento ou pelo silenciamento. Esta, no entanto, não é um modo de não ação estatal, senão uma forma específica de governar (FOUCAULT, 2008b; DARDOT; LAVAL, 2016).

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Recebido: 13 de Julho de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

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