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Revista e-Curriculum

On-line version ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019  Epub Jan 27, 2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i4p1480-1501 

Dossiê ABdC 2019: Confrontos e resistências nas políticas educacionais e curriculares no contexto atual

CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE NO CURRÍCULO DA NUDEZ: ENTRE DENÚNCIAS E RESISTÊNCIAS

BODY, GENDER AND SEXUALITY IN THE CURRICULUM OF NUDITY: BETWEEN DENOUNCEMENTS AND RESISTANCES

CUERPO, GÉNERO Y SEXUALIDAD EN EL CURRÍCULO DESNUDO: ENTRE QUEJAS Y RESISTENCIA

Luíza Cristina Silva SILVAi 

Shirlei Rezende SALESii 

i Doutoranda no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia na linha Currículo e (In)formação. É professora substituta na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Membro do Grupo ESCRE(VI)VER: Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq. E-mail: luizacsilvaa@gmail.com.

ii Pós doutoranda pela University of Illinois, USA. Professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minhas Gerais (UFMG), Brasil. Doutora em Educação. Membro dos grupos de pesquisa: Observatório da Juventude da UFMG; Ensino Médio em Pesquisa (EMPesquisa); Educação, Redes Sociotécnicas e Culturas e Digitais e GECC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da FaE/UFMG). E-mail: shirlei.sales@hotmail.com.


RESUMO

O presente artigo traz parte dos resultados de uma pesquisa que teve por objetivo investigar os modos de atuação do currículo da nudez na produção de relações de sexualidade e gênero na cibercultura. A análise desta pesquisa foi elaborada sob a perspectiva pós-crítica educacional, que compreende que o currículo é um artefato cultural que produz modos de existência e é capaz de multiplicar sentidos, saberes e resistências criativas. A análise do currículo da nudez pretende provocar deslocamentos, pois está fundamentada conceitualmente na noção de currículo cultural, que não se restringe ao espaço escolar. Desse modo, esse currículo é analisado nas relações produtivas do poder, nos regimes de verdade, na constituição de sujeitos, nas disputas e práticas discursivas. A metodologia utilizada na investigação articulou elementos da netnografia e análise do discurso de inspiração foucaultiana de três grupos secretos na rede social Facebook. Os grupos secretos existiam com intuito principal de trocar, publicar e brincar com autorretratos nus. Foram realizadas também entrevistas online com dez participantes dos grupos investigados, para complementar e aprofundar a produção das informações. O argumento desenvolvido é que no currículo da nudez denunciam-se práticas assimétricas de sexualidade e gênero e, assim, resiste-se a certas normas sociais da política contemporânea e ao regime de corporeidade.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Nudez; Resistência; Gênero; Sexualidade

ABSTRACT

This article summarizes part of the results of a research that aimed to investigate the modes of action of the nudity curriculum in the production of sexuality and gender relations in cyberculture. The analysis of the research was built based on the post-critical educational perspective, which understands that the curriculum is a cultural artifact that produces modes of existence and can multiply meanings, knowledge and creative resistances. The analysis of the nudity curriculum seeks to cause ruptures, because it is conceptually based on the notion of cultural curriculum that doesn’t only apply to the school. In this sense, the nudity curriculum is analyzed through the productive power relations, the regimes of truth, the subjects’ constitution and the discourses disputes and practices. We articulated elements of netnography and the discourse analysis based on Foucault to investigate three secret groups of the social network Facebook. The main purpose of these secret groups was to trade, publish and play with nude self pictures. We also did online interviews with ten participants of the groups, to complement and deepen the production of information. The argument of this paper is that in the nudity curriculum the subjects denounce asymmetrical gender and sexuality relations and, in this sense, they resist to certain contemporary policy norms and to the regime of corporeality.

KEYWORDS: Curriculum; Nudity; Resistance; Gender; Sexuality

RESUMEN

Este artículo trae parte de los resultados de una investigación con objetivo de investigar las formas de actuar del currículum de desnudos en la producción de relaciones sexuales y de género en la cibercultura. El análisis de esta investigación se elaboró desde la perspectiva educativa post-critica que comprende que el plan de estudios es un artefacto cultural que produce modos de existencia y es capaz de multiplicar los sentidos creativos, el conocimiento y las resistencias. Los análisis del currículum de desnudos pretende provocar desplazamientos, visto que se basa conceptualmente en la noción de currículum cultural que no está restringido al espacio escolar. Así, el currículum de desnudos se analiza en las relaciones productivas de poder, en los regímenes de verdad, en la constitución de sujetos, en disputas y prácticas discursivas. La metodología utilizada en la investigación articuló elementos de la netnografía y los análisis del discurso inspirado en Foucault de tres grupos secretos en la red social de Facebook. Los grupos secretos existían principalmente con el propósito de intercambiar, publicar y jugar con autorretratos desnudos. También se realizaron entrevistas en línea con diez participantes del grupo para complementar y profundizar la producción de información. El argumento desarrollado es que en el plan de estudios de la desnudez se denuncian las prácticas asimétricas de la sexualidad y el género y, por lo tanto, se resisten a ciertas normas sociales de la política contemporánea y el régimen de corporeidad.

PALABRAS CLAVE: Currículum; Desnudez; Resistencia; Género; Sexualidad

1 INTRODUÇÃO

A violência contra as mulheres é uma prática abusiva e criminosa que evidencia as relações assimétricas e desiguais de poder entre os gêneros. Segundo dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)1, de 2019: “Houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 foram mortas, o maior registro desde 2007.” (IPEA, 2019, p. 35).

De 2007 a 2017, a taxa de homicídio de mulheres negras cresceu 29,9%. Vale frisar que a violência contra a mulher não acontece apenas em situações de homicídio, inclui também a dimensão psicológica, financeira, física, institucional, doméstica e intrafamiliar. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança, uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência em 2016. Essa pesquisa mostra que 22% das brasileiras sofreram violência verbal em 2016, o que representa um total de 12 milhões de mulheres2.

Além do assassinato e do assédio nas ruas, outro tipo de violação são os crimes de exibição não consensual de imagens contendo nudez de mulheres. No mês de novembro do ano de 2013, por exemplo, em Parnaíba, no Piauí, uma jovem de 16 anos cometeu suicídio após a exposição de um vídeo seu nas redes sociais digitais no qual ela fazia sexo ter se tornado público nas redes sociais digitais3. No mesmo período, na cidade de Veranópolis, no Rio Grande do Sul, outra jovem, também de 16 anos, cometeu suicídio após seu ex-namorado ter divulgado fotos em que ela aparecia com os seios à mostra.

Os dados apresentados e os casos relatados revelam que a violência contra a mulher é uma questão que exige enfrentamento político em diferentes dimensões na sociedade brasileira. Com o intuito de criar uma legislação sobre esses atos, elaborou-se o projeto de lei nº 5555/134, que altera a Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 7 de agosto de 2006). Esse dispositivo visa ao combate de condutas ofensivas contra as mulheres na internet e em outros meios de propagação da informação. O referido projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 21 de fevereiro de 2017. No atual momento, segue para ser aprovado no Senado Federal Brasileiro. Até a criação dessa lei, as condutas violentas contra mulheres na internet não apresentavam jurisprudência no Brasil, o que ocasionava a impossibilidade de responsabilização para quem divulgasse imagens íntimas, autorretratos nus e vídeos sem consentimento.

Para a antropóloga Maria Filomena Gregori (2010, p. 28), o crime “implica a tipificação de abusos, a definição das circunstâncias envolvidas no conflito e a resolução, destes, em âmbito jurídico”. Já a violência implica o reconhecimento social, e não apenas legal, de que certos atos são abusivos e envolvem “processos interativos atravessados por posições desiguais de poder.” (GREGORI, 2010, p.28).

Vale ressaltar que o discurso jurídico criminal produz assimetrias de poder, não podendo se configurar como um campo neutro. O campo da política curricular, por sua vez, também é constituído por relações de poder. Neste artigo, o currículo é analisado tanto por seus “raciocínios políticos” quanto por seus “raciocínios culturais” (PARAÍSO, 2018, p. 27). Assim, a política curricular é discutida em suas relações de poder, conflitos, denúncias, lutas, resistências e emergências discursivas. Todas essas dimensões curriculares são compreendidas a partir do contexto histórico e social no qual insurge, no Brasil, uma “avalanche de ideias reacionárias que busca inundar a todos e todas com moralismos, divisões naturalizadas, identidades fixas, generificações hierárquicas, silêncios interessados, ódios destruidores” (PARAÍSO, 2018, p. 25).

Mesmo diante do contexto político das forças conservadoras, o currículo é capaz de fazer proliferar resistências criativas para enfrentar essa tormenta (PARAÍSO, 2018). Sendo assim, nomeamos de currículo da nudez as produções discursivas, as relações de poder e políticas de verdade próprias do contexto curricular analisado. No caso da pesquisa que subsidia este artigo, o currículo da nudez foi composto pelos ditos divulgados em três grupos secretos na rede social Facebook5. Assim, o currículo da nudez é constituído dos ditos, discursos e das relações de poder produzidas nesses três grupos.

De acordo com a perspectiva pós-crítica, o currículo é um artefato cultural que produz modos de existência (PARAÍSO, 2007). É a partir dessa perspectiva que o compreendemos, neste artigo, como “um discurso que ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos” (SILVA, 1996, p. 195). A análise do currículo da nudez está embasada conceitualmente pela noção de “currículo cultural” (GREEN; BIGUM, 1995), que “envolve a construção de significados e valores culturais” (SILVA, 2015, p. 55) e produz modos de ver, ser e compreender o mundo. Essa perspectiva apresenta uma noção ampliada de currículo que não se restringe ao espaço escolar. Desse modo, o currículo na perspectiva pós-crítica desestabiliza a noção de que o conhecimento é construído apenas na sala de aula.

No currículo da nudez, a cibercultura apresenta centralidade na produção de modos de vida. Segundo Sales (2010), a cibercultura possibilita novas formas de existência a partir das múltiplas conexões com as tecnologias digitas e, para Lemos (2010), é a junção da vida social, dispositivos eletrônicos e redes telemáticas. Embora o currículo da nudez não se trate de um currículo escolar, é caracterizado também por ensinar “modos de ser, pensar, estar e agir” (PARAÍSO, 2007, p. 24).

Por esse viés, as tecnologias digitais tornam “cada vez mais problemática as separações e distinções entre conhecimento cotidiano, o conhecimento de massa e o conhecimento escolar” (SILVA, 2015, p. 141). Sendo assim, o currículo da nudez problematiza as fronteiras entre essas formas de conhecimento. A perspectiva pós-crítica “vê tanto a indústria cultural quanto o currículo propriamente escolar como artefatos culturais [ou seja], sistemas de significação implicados na produção de [...] subjetividades” (SILVA, 2015, p. 142).

O currículo da nudez refere-se especificamente às engrenagens produtivas do poder da nudez exposta em nudes selfies nos grupos pesquisados. Nessa perspectiva, o currículo da nudez é constituído pelos modos específicos de subjetivação, pela divulgação de certos saberes, pelas verdades ali autorizadas e pelas condutas próprias da micropolítica na qual os discursos circulam. No caso da pesquisa em parte aqui sistematizada, a nudez é divulgada, compartilhada, contemplada, enaltecida, demandada e, por vezes, controlada em uma íntima conexão com as práticas constitutivas da cibercultura. As inúmeras possibilidades do universo digital, especialmente do Facebook, amalgamam-se com a política de produção da nudez. Os likes, os comentários, os compartilhamentos, os memes6 etc. são parte constitutiva do funcionamento do currículo da nudez.

Sendo assim, nessa relação produtiva, a nudez é curricular, porque aciona saberes de certo tipo sobre o corpo, produz discursividades específicas sobre os efeitos diferenciados da nudez em meio a relações de gênero e produz sujeitos que interditam os imperativos morais que tentam controlar a exibição do corpo nu. A nudez, em sua especificidade, produz efeitos de multiplicação dos sentidos para os sujeitos que expõem fotos nuas nas redes sociais. Isso porque a nudez está relacionada com as engrenagens produtivas dos imperativos morais, que podem ser de interdição, reprodução e ou prescrição.

A moral, para Foucault (2017, p. 205), é “um conjunto de valores e de regras de conduta que são propostas aos indivíduos e aos grupos por meio de diversos aparelhos prescritivos”. Desse modo, a nudez está relacionada com a produção do sujeito no que reproduz, interdita e prescreve como regra de referência nos modos de existir, tendo em vista que está relacionada à moralidade. Ela constitui um modo pelo qual nos tornamos sujeitos na cibercultura porque, na sociedade ocidental, a prescrição prevalente é a de que “toda nudez será castigada”7. Ao contestar esse imperativo, os sujeitos inauguram outros modos de existir, de relacionar-se, produzir desejos e performar o gênero.

O currículo da nudez suscita saberes sobre o corpo, o gênero e a sexualidade, constituídos por relações de poder que estão em constante disputa e transformação. A sexualidade é compreendida como uma rede de prazeres e trocas sexuais discursivamente produzidas, que direciona as formas de sentir e compreender as relações. É também uma rede de “estimulação dos corpos”. É “a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos” (FOUCAULT, 2014b, p. 115). Segundo Louro (2009, p. 88), o dispositivo da sexualidade, a partir do século XIX, na Europa, passa a inventar “tipos sexuais”, a decidir “o que era normal ou patológico” e a hierarquizar essas tipificações de atos e condutas a respeito da sexualidade. Busca-se, tenazmente, “conhecer, explicar, identificar e também classificar, dividir, regrar e disciplinar a sexualidade” (LOURO, 2009, p. 88).

Correlato à sexualidade, tem-se o conceito de gênero. Butler (2013) afirma que gênero é um processo, uma construção sem origem e nem fim, um constante vir a ser que se faz por uma reiteração de atos. Gênero é “um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser” (BUTLER, 2013, p. 59). Dessa forma, a autora nega qualquer possibilidade de essência ou substância inata aos seres, pois, segundo ela, “não há nenhuma ‘essência’ que o gênero expresse ou exteriorize” (BUTLER, 2013, p. 199). Portanto, gênero, para Butler (2014, p. 253), é o “mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados”.

Nessa trama produtiva, o currículo da nudez é constituído por relações de poder que o sustentam e o constituem. O poder “é um modo de ação de alguns sobre alguns outros” (FOUCAULT, 2014b, p. 132). Ele “existe em ato”, é correlação de força, é estratégia e não uma propriedade de classe. “É um conjunto de ações sobre ações possíveis” e, nesse mecanismo, “ele incita, ele induz, ele desvia, ele facilita ou torna mais difícil” (FOUCAULT, 2014b, p. 133). Isso porque o poder “é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários” e mais sobre “estruturar o campo de ação eventual dos outros” (FOUCAULT, 2014b, p. 133). A partir desse entendimento, o currículo da nudez é analisado em termos produtivos do poder, investigando o que é nele aceito ou não, os saberes que nele circulam e as verdades ali fabricadas.

No currículo da nudez, a posição de sujeito ciborgue é analisada em suas proliferações de modos de ser na cibercultura. O conceito de posição de sujeito é importante, nesta pesquisa, pois é uma “posição discursiva” que produz o sujeito “na mesma operação que lhe atribui um lugar discursivo” (LARROSA, 2004, p. 66). Para Foucault (2008b, p. 107), posição de sujeito é um “lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes”. Desse modo, a posição de sujeito não é permanente e, sim, disponibilizada discursivamente, mas os sujeitos podem ou não ocupá-la, dependendo das correlações de forças estabelecidas nos discursos (LEAL, 2017). Optamos por nomear a posição de sujeito de ciborgue porque, segundo Haraway (2016), ciborgue compreende a potência da hibridização na relação dos sujeitos com as tecnologias digitais.

Para essa investigação, construiu-se um caminho metodológico próprio através da netnografia de três grupos secretos do Facebook e da análise do discurso de inspiração foucaultiana. A opção pela netnografia baseou-se no entendimento que “a netnografia é uma abordagem da pesquisa online de observação participante” (KOZINETS; 2014, p. 72). Para Amaral, Natal e Viana (2008), a netnografia é uma “metodologia para estudos na internet”. Nesse viés, é um método interpretativo que investiga o comportamento cultural de comunidades online (KOZINETS, 2014).

A partir dessa compreensão, realizamos a investigação netnográfica de práticas ciberculturais nos grupos do Facebook. Segundo Evangelista (2016, p. 29), o Facebook pode ser considerado um “texto cultural produzido pelas postagens que se desenham na linha do tempo”. Essa rede social produz narrativas, estabelece relações, vincula enunciações e, assim, constitui-se “como o próprio discurso” (EVANGELISTA, 2016, p. 29). No Facebook, as informações adquirem um caráter fluido: tudo está em processo e em transformação. Sendo assim, foi analisado “o que é efetivamente dito na internet” (SALES, 2012, p. 120). Desse modo, foi realizada a netnografia das práticas ciberculturais em três grupos secretos do Facebook, que existiam com o intuito principal de trocar autorretrato nu, conversar sobre experiências sexuais, prazeres e desejos.

Os grupos foram selecionados a partir de uma pesquisa exploratória que identificou a massiva circulação de vídeos, memes, comentários, publicações e brincadeiras. Atribuímos nomes fictícios para cada grupo. O maior deles chamamos de Somente Libidinosas e apresenta mais de quatorze mil usuárias do Facebook em todo o Brasil. O segundo, que nomeamos de Gostosuras, apresenta três mil usuárias, com predomínio do estado de Minas Gerais nas discussões. Ao terceiro atribuímos o nome de As Minas, com mais de oito mil usuárias de todo o Brasil, sem predomínio de uma região ou estado, com a especificidade de ser movimentado também pelos relatos de experiência, desabafos e denúncias de estupro e outros abusos sexuais.

Vale ressaltar que, antes de iniciar a pesquisa de mestrado que subsidia o presente artigo, uma das autoras já participava desses grupos. Assim, ela já estava inserida e não foi preciso se preocupar com o processo de entrada. Ao serem selecionados três grupos e assim compreender as potencialidades deles para responder ao problema de pesquisa, tornou-se necessária a apresentação como pesquisadora para a interação com as participantes. Desse modo, foi feita uma publicação em cada grupo, explicando a proposta da investigação e perguntando se elas aprovavam a realização da pesquisa naquele espaço. Nessa publicação, foi explicado que nenhum autorretrato nu seria divulgado, nem os nomes ou informações que tornassem possível uma identificação. Foi esclarecido que se trabalharia com informações que não identificassem nem os grupos, nem suas integrantes.

No campo da análise do discurso, a produção das informações parte da compreensão de que “não se pode falar qualquer coisa em qualquer época” (FISCHER, 2001, p. 221). Desse modo, essa abordagem trouxe a possibilidade de perguntar: “por que isso é dito aqui, desse modo, nesta situação, e não em outro tempo e lugar, de forma diferente?” (FISCHER, 2001, p. 205). Assim, nesta pesquisa, a análise do discurso interroga sobre as invenções e sobre as condições de possibilidade para que um discurso apareça em um contexto histórico-social específico. Desse modo, a análise do discurso possibilitou a busca por produções, incitações e positividades do poder, ou seja, o olhar para aquilo que se afirma mais do que se proíbe. Por isso, buscamos perceber as diferentes formas que o poder estrategicamente assume na produção de saberes e verdades autorizadas, assim como procuramos perceber os inúmeros pontos de luta, escapatórias e resistências do poder.

Diante dessa perspectiva analítica, argumentamos que o currículo da nudez denuncia práticas assimétricas de sexualidade e gênero e, assim, resiste a certas normas sociais da política contemporânea e ao regime de corporeidade. No tópico seguinte do presente artigo, o currículo da nudez é discutido quanto à produção de denúncias contra assimetrias de gênero em torno da exibição da nudez no contexto da cibercultura. Para isso, será explicitado como as denúncias produzem práticas de resistência que constituem esse currículo. A resistência insurge nessas relações de poder porque nomeia, torna visível e combate práticas violentas. Nesse artigo, as denúncias mostram violências que foram praticadas a partir da divulgação não consensual de autorretratos nus nas redes sociais. No terceiro tópico, o conceito de regime de corporeidade é acionado para analisar as denúncias das ciborgues em relação ao poder assimétrico de gênero, que produz modos específicos de exibição do corpo nu na cibercultura. A análise é construída nos modos distintos de efeito de significação social da nudez entre os gêneros.

2 DENÚNCIAS DO CURRÍCULO DA NUDEZ E A CRIAÇÃO DE PRÁTICAS DE RESISTÊNCIAS

Neste tópico, discute-se como o currículo da nudez é produzido a partir das denúncias sobre violências ocasionadas pela exibição de nudez consentida e não consentida de mulheres na cibercultura. As denúncias e os relatos publicados nas redes sociais digitais são compreendidos, neste artigo, como resistências que constituem a criação de outros modos de existência. Resistência, para Foucault (2008), são atos de criação de modos de vida que procuram “escapar da conduta dos outros”, são a recusa aos “valores apresentados pela sociedade” (p. 257). Resistir é a possibilidade de criar, inventar, mudar e fazer diferente, produzindo, assim, outras reinvenções de vida, que buscam a “insubmissão” (FOUCAULT, 2017). Foucault (2008, p. 157) também afirma que a resistência é um movimento que tem como “objetivo outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores (...) para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e outros métodos”.

Nesse artigo, compreendemos que o currículo da nudez é constituído por práticas de resistência que atuam de modo específico na desestabilização das normas sociais de gênero e de sexualidade. Nesse caso, o currículo da nudez ensina possibilidades de resistência. As ciborgues criam outras possibilidades de compreender a si, o mundo e a nudez a partir das denúncias que realizam. Como na figura a seguir, publicada na rede social Facebook:

Fonte: Postagem pública no Facebook [27/12/2016]

Figura 1 Cultura do estupro 

A publicação anterior foi compartilhada no grupo Somente Libidinosas e é uma postagem de modo público, realizada em uma página do Facebook. Assim, o dito não é das ciborgues participantes do grupo, mas foi compartilhado por uma delas. Desse modo, a publicação produz o currículo da nudez ao denunciar a “cultura do estupro”. Para isso, a autora divulga a técnica de distinção entre publicações consentidas e não consentidas de nudez das mulheres na cibercultura. Os ditos de “todos ficam felizes” ou “todos se revoltam contra ela” fazem referência ao discurso machista que reafirma a norma social de gênero, de modo a produzir assimetria de poder. Para isso, esse discurso aciona estratégias de poder que colocam em prática as ações que provocam violências em relação às mulheres, sua nudez e as maneiras de viver sua sexualidade.

No caso, a publicação fala da “cultura do estupro” em relação à nudez das mulheres, acionando a distinção entre a nudez publicada nas redes sociais de maneira consentida e a nudez publicada de forma não consentida. De acordo com o dicionário online Michaelis, o significado de consentimento está relacionado ao “ato ou efeito de consentir, permissão, licença” ou “decisão favorável quanto à solicitação ou pedido; aprovação, anuência, aquiescência”. Sendo assim, a publicação de nudez consentida é aquela em que a pessoa foi favorável, permitiu ou ela mesma publicou a sua foto nua.

Nesta análise, referente ao currículo da nudez, a posição de sujeito ciborgue é produzida por meio da publicação da nudez realizada pela própria pessoa exposta na fotografia. Essa posição de sujeito é produzida, portanto, a partir da intensa conexão dos indivíduos com as tecnologias digitais. Nesse caso, ciborgues são também produzidas na relação que estabelecem com a denúncia de fotos divulgadas de maneira não consensual na cibercultura. Assim, essa posição de sujeito tem como característica constitutiva o questionamento, a denúncia e a transgressão das normas sociais, tendo o ciberespaço como campo principal de atuação. De acordo com a denúncia analisada, quando a nudez autoexposta é de mulheres, o discurso machista é acionado para desqualificá-la no âmbito moral e social.

O currículo da nudez, nessa publicação, aciona a “cultura do estupro” para denunciar a violência contra as mulheres, falando especificamente sobre os efeitos violentos do discurso machista em relação à sua nudez. A cultura, para Stuart Hall (1997, p. 1), envolve “sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros”. Dessa forma, a cultura é constitutiva das relações sociais porque dá “sentido às nossas ações” e permite “interpretar significativamente as ações alheias” (HALL, 1997, p.1). Desse modo, as ações, práticas, linguagens e os modos de vida são operantes culturalmente porque são dotados de códigos culturais que “significam as coisas”, codificam, organizam e regulam. Assim, a denúncia da publicação aponta para a “cultura do estupro” como um sistema de códigos sociais que são significados de forma a autorizar o estupro e outras violências em relação às mulheres.

Cultura do estupro é uma noção cunhada por feministas estadunidenses da década de 60 do século XX e, no Brasil, é muito utilizada por movimentos sociais que questionam a culpabilização das mulheres vítimas de agressão sexual (ROST; VIEIRA, 2015, p. 267). A cultura do estupro divulgada no currículo da nudez é entendida como o sistema de significados que regula as práticas sociais de modo a autorizar práticas de violência sexual. É a criação de regras sociais que torna inteligível o discurso que culpa a pessoa que sofreu violência sexual. Na Figura 1, o currículo da nudez denuncia o discurso machista que, a partir de fotos de mulheres nuas, provoca ações de violência e depreciação moral, ditas na publicação com o “todos se revoltam contra ela”.

Em contraste com a nudez consentida e autoexposta, existe a divulgação da nudez de maneira não consentida. Essa é um crime, como foi dito no início do capítulo. O currículo da nudez denuncia que o crime de publicação não consensual de fotos de nudez é uma prática autorizada pelo discurso machista. Isso ocorre nos ditos de “todos ficam felizes” quando esse tipo de crime acontece. A denúncia apresentada na Figura 1 pode ser compreendida como uma prática de resistência porque desestabiliza os atos que tentam reafirmar a dominação e subjugação de corpos nus de mulheres.

A seguir, outra forma de resistir e denunciar os efeitos de significação distintos entre gêneros é divulgada no currículo da nudez:

Fonte: Publicação no grupo Somente Libidinosas do Facebook [14/01/2017]

Figura 2 Liga Pontos 

A figura anterior foi capturada da rede social Facebook e apresenta, na forma de “liga pontos”, a “mágica” para descobrir o gênero dos sujeitos a partir da maneira como os autorretratos nus acionam sistemas de significados sociais distintos. Ou seja, como a sociedade produz códigos sociais de conduta de gênero em torno da nudez divulgada no ciberespaço. A figura apresenta inicialmente um fato: “vazou nude de uma pessoa”; em seguida, através da pergunta “como as pessoas estão respondendo?”, o gráfico pretende mostrar os efeitos desiguais de significação social que a nudez aciona. Quando o efeito de significação cultural produz condutas de “ofensas e ameaças de morte”, o gráfico denuncia que essa pessoa que teve o nude selfie vazado é uma mulher. Em oposição, quando a regulação produz a conduta “as pessoas te amam mais do que antes e pode andar na rua de boa e ainda fazer piada coma situação”, o nude selfie vazado é de um homem. O sistema de significação do “liga pontos” foi construído para enfrentar o modo desigual como a sociedade lida com a publicação de autorretratos nus não consentidos em meio às relações de gênero.

Para realizar essa denúncia, o “liga pontos” aciona a distinção de gênero como uma estratégia de poder para denunciar e tornar inteligível os efeitos de significação desiguais entre homens e mulheres nos autorretratos nus. Tem como estratégia de poder mostrar as assimetrias de gênero e provocar a desestabilização e o questionamento das condutas sociais em relação aos corpos nus exibidos nas redes sociais digitais. Assim, apresenta o nu masculino, que aciona técnicas que privilegiam seu modo de exibição, em contraste à nudez das mulheres, que aciona violências que pretendem diminuir a potência de vida. Para realizar essa denúncia, o gráfico torna visível a desigualdade de poder entre gêneros, produzindo uma desestabilização nas normas sociais, afinal, ao tornar visível uma relação assimétrica de poder, menos essa relação será eficiente (LOURO, 2009).

Assim, as práticas das ciborgues têm como estratégia a denúncia de violências de gênero quando fotos nuas são publicadas de maneira não consensual no ciberespaço. E, para isso, usam a técnica de comparar os modos de ação social distintos em relação à nudez entre mulheres e homens. No campo de forças que o “liga pontos” produz, os ditos resistem às normas de gênero, haja vista que denunciam violências em relação às mulheres quando autorretratos nus se tornam públicos de maneira não consensual.

Ao mesmo tempo, no campo de forças produtivo do discurso, o gráfico pode suscitar a reiteração binária do gênero ao construir a comparação entre homens e mulheres. Para Butler (2013, p. 199), os “vários atos de gênero” criam a “ideia de gênero”, ou seja, ao estabelecer a comparação de dois polos, homem e mulher, produzem-se significados fixos e posições diferenciadas. O discurso é produtivo nos modos de constituição dos sujeitos. Assim, ao construir apenas duas maneiras de chegar ao ponto final do “liga pontos”, com “você é uma mulher” ou “você é um homem”, produz e disponibiliza apenas esses dois modos de “ser” em relação ao gênero. Portanto, gênero é fabricado pela reiteração constante da norma pelo discurso e pelos atos que o “cristalizam” (p. 59) nas relações sociais. O “liga pontos” denuncia violências de gênero, problematizando as normas sociais em relação ao corpo nu na cibercultura. Também reitera o discurso binário de gênero, produzindo diferentes campos de força numa mesma estratégia discursiva.

A relação binária de gênero é efeito de um aparato tecnológico e também de circunstâncias “atravessadas por relações de poder”, que se combinam e possibilitam que essa norma seja admitida como verdade (LOURO, 2009, p.86). No conjunto das relações de poder, divulga-se, nesse discurso, que os sujeitos ajam apenas de duas maneiras em relação aos nudes vazados. O discurso binário que opõe homem e mulher é uma fabricação de verdade; é uma fantasia que se cristaliza nos corpos e nas relações sociais.

No tópico a seguir, a análise é construída nessa compreensão dos discursos binários de gênero, como também analisam-se as denúncias de maneira centrada nos modos de exibição do corpo, que produzem um regime de corporeidade. Esse modo específico de exibir o corpo nu é questionado e desestabilizado a partir de práticas de resistência produzidas pelas ciborgues no currículo da nudez.

3 REGIMES DE CORPOREIDADE NAS RELAÇÕES DE SEXUALIDADE E GÊNERO NO CURRÍCULO DA NUDEZ

Nesta seção, a construção analítica desenvolve-se a partir do conceito de “regime de corporeidade” (ROSE, 2001b) nas relações de sexualidade e gênero na cibercultura. Nikolas Rose (2001b), inspirado por Foucault, postula que as disposições do corpo são constituídas por relações de poder e saber que produzem um determinado tipo de materialidade do corpo. “A corporeidade humana [...] pode fornecer a base para uma teoria [...] da constituição dos desejos, das sexualidades e das diferenças sexuais” (ROSE, 2001b, p. 167). Neste tópico, entende-se o regime de corporeidade em suas conexões com técnicas e mecanismos de poder que o produzem nos modos de exibição do corpo nos autorretratos nus. Para Rose (2001b, p. 169), o corpo é um fenômeno histórico, “seus órgãos, processos e fluidos vitais” são resultados de uma história “cultural, científica e técnica”. Assim, o modo de exibição da nudez no autorretrato nu não é uma propriedade natural do corpo e, sim, uma “conquista técnica” das relações produtivas do dispositivo da sexualidade e das relações de gênero.

O dispositivo da sexualidade relaciona-se, neste artigo, com o regime de corporeidade, porque é produzido nos modos de exibição do corpo nu. Esse corpo fotografado e exibido no currículo da nudez é produzido por técnicas de poder que autorizam determinados modos de se fotografar. Com isso, o discurso produz subjetividades generificadas porque os modos de fotografar o corpo são prescritos de acordo com as normas de gênero, as quais são prescritas de forma meticulosa nos ditos sobre como mulheres e homens devem enviar fotos de nudez na cibercultura.

No regime de corporeidade, os modos de exibição do corpo nos nudes selfies são compreendidos como “conquistas técnicas” produzidas por um esquema discursivo, e não por uma “propriedade natural” do corpo (ROSE, 2001b). Nesta seção do artigo, argumentamos que o currículo da nudez questiona e desestabiliza as prescrições normativas de como o corpo deve ser fotografado. A seguir, apresenta-se um meme que foi publicado em um dos grupos do Facebook:

Fonte: Publicação no grupo As Minas,do Facebook [12/11/2016]

Figura 3 Homens e Mulheres Trocando Nude Selfie 

O meme utiliza a técnica discursiva da comparação entre homens e mulheres para denunciar a diferença entre os regimes de corporeidade em relação aos gêneros, ao ser compartilhado o nude selfie na cibercultura. Esse meme divulga um modo específico de regime de corporeidade, em que mulheres fotografam três diferentes partes do corpo na prática do nude selfie e os homens, apenas uma parte, que, na imagem, está representada por um animal, o pintinho.

Esse meme divulga diferenciações de gênero na prática do nude selfie e torna inteligível como o corpo é apresentado nas fotos, de acordo com o gênero. Nesse caso, o meme produz as verdades sobre a prática do autorretrato nu. Ao “viralizar”, ou seja, tornar o conteúdo de grande repercussão, o meme produz modos de expressar a corporeidade de acordo com as prescrições de gênero. A sexualidade também é produzida, tendo em vista que as partes corporais focalizadas na imagem indicam as zonas de intensidade de erotização. A erotização do corpo nu incide nas mulheres de maneira expressiva, talvez porque mais partes corporais são divulgadas como eróticas.

Essa diferença no modo de exibição da nudez e a erotização desse ato trazem indícios de assimetrias de poder entre os gêneros. As relações de poder são práticas, “o que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona” (MACHADO, 2011, p. XIV). Nesse caso, essas relações funcionam na produção de um determinado tipo ideal de corpo de mulheres, que, como mostra o meme, é branco, magro, com peitos grandes e avantajados e bunda empinada, como lócus potencial do erotismo e da sexualização. E parece que o meme apresenta essa relação assimétrica do corpo e do erotismo de maneira debochada, como forma de enfrentamento a essa prescrição social normativa de modos de existência.

O ato de resistir está intrínseco à própria rede de poder. No caso desse meme, a resistência encontra-se na recusa ao modo prescritivo e normativo de autofotografar o corpo. O meme, ao divulgar a diferença de autorretrato em termos de gênero, torna inteligível a normatividade de exibição da nudez na cibercultura. Dessa maneira, os sujeitos tornam-se capazes de identificar esse modo de ação e recusar as prescrições normativas do corpo autofotografado. Portanto, a posição de sujeito ciborgue produzida no currículo da nudez é constituída pela recusa ao regime de corporeidade, que limita os modos de exibição do corpo nu.

O sarcasmo sobre o modo como homens fotografam o corpo parece questionar a técnica de fotografar apenas o pênis como uma prática para reafirmar a masculinidade hegemônica (CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013), a qual “está relacionada com formas particulares de representação e uso dos corpos dos homens” (CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 269). Desse modo, a figura evidencia o modo de uso do corpo por homens na prática do autorretrato nu na cibercultura.

Assim, o modo de exibição da corporeidade masculina é representado de forma debochada por um animal - “pinto” ou “pintinho”. O meme suscita o questionamento sobre a “produção de um regime de corpo” (ROSE, 2001b, p. 170) masculino que fotografa o pênis como uma forma de reafirmação de gênero, a partir da virilidade. Os ditos indicam, a partir da imagem do pintinho, uma ironia à discursividade machista que reafirma a exibição apenas dessa parte do corpo nos autorretratos nus. O fato de a imagem apresentar um animal pequeno e aparentemente ainda indefeso ironiza a virilidade que esses autorretratos pretendem afirmar. Para Rose (2001b), o corpo é um fenômeno histórico que engloba diferentes discursos na sua produção. Nesse caso, ciborgues constituem discursividades no currículo da nudez, as quais questionam essa forma de corporeidade masculina expressa a partir de autorretratos nus. Assim, o meme pode ser analisado, em termos do regime de corpo e das relações de poder em disputa, sobre os modos de produção de corporeidade a partir das normas de gênero. Além disso, o tamanho avantajado do pênis é uma marca da virilidade masculina, por isso, representar o pênis com a imagem de um pintinho debocha e parece questionar essa relação.

No grupo Somente Libidinosas, o regime de corporeidade masculino é motivo de zoação, assim, foi compartilhada nesse espaço a seguinte publicação:

Fonte: Publicação no grupo Somente Libidinosas, do Facebook [08/11/2016]

Figura 4 Homem Mandando Nude Selfie 

Nessa publicação, o controle remoto é posicionado como o pênis e apresenta os quatro ângulos que os corpos masculinos exploram de seu corpo na captura do autorretrato. A publicação ironiza a corporeidade da masculinidade hegemônica. O controle remoto como objeto fálico que simboliza o pênis parece compor a zoação com a ironia da palavra “controle”. A palavra parece estar relacionada à necessidade de controle em relação ao exercício da masculinidade hegemônica, associado ao pênis ereto e viril expresso no autorretrato nu.

Para Rose (2001b), não se trata de pensar as propriedades do corpo, e, sim, de pensar o corpo em suas conexões com técnicas e mecanismos de poder que produzem o regime de corporeidade nos sujeitos. O regime de corporeidade da masculinidade está intensamente relacionado às relações de sexualidade e gênero, pois esse regime reitera que, para reafirmar a masculinidade e alinhar-se às normas de gênero, os corpos masculinos precisam expressar virilidade, ação e força, nesse caso, a partir do autorretrato nu. No currículo da nudez, o regime de corporeidade masculina é questionado, ironizado e zoado a partir das fotos agrupadas na publicação referente à Figura 4, e o título é direto: “homens mandando nude”. A zoação produz, nesse caso, a desestabilização desse modo de exibição do corpo no autorretrato nu como desejável ou interessante na troca de nude selfie. A zoação é característica da cibercultura e do ciberespaço onde essa imagem foi publicada.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Híbridos, quimeras, ficções, fronteiras, encruzilhadas, mosaicos, trânsito, corpos moventes, fissuras, ambiguidades, experimentos, entre lugares. Cambiar, desenraizar, cruzar, embaralhar, resistir. Ciborgue. Aqui, apresentamos as criaturas que emergem do currículo da nudez. Elas carregam os discursos que as constituem como a força viva da sua própria existência. Ciborgues refazem o já feito, repetem ditos, mobilizam aparatos sociais e estão comprometidas com a desobediência. Estão empenhadas em mudar o mundo, romper fronteiras, instaurar confusões.

O currículo da nudez é fruto de um processo que pretende provocar deslocamentos, questionamentos e criações singulares. É um currículo que foge da armadilha do campo das essências deterministas e faz parte de uma perspectiva epistêmica que questiona as normatividades que apresentam o universal homem branco e heterossexual como modelo padrão dos modos de existência, de modo que tudo esteja voltado para esse centro. O currículo da nudez é configurado nos pontos de contato das relações de poder que constroem as relações de sexualidade e gênero. Quanto mais se discute como estas relações são fabricadas, mais é possível reinventá-las. Ao se conhecer as minúcias dos mecanismos, técnicas, tecnologias e estratégias de poder, mais é possível compreender como ele funciona naquela relação. Por esse viés, as tecnologias digitais tornam “cada vez mais problemáticas as separações e distinções entre conhecimento cotidiano, o conhecimento de massa e o conhecimento escolar” (SILVA, 2015, p. 141). Sendo assim, o currículo da nudez problematiza as fronteiras entre essas formas de conhecimento. A perspectiva pós-crítica “vê tanto a indústria cultural quanto o currículo propriamente escolar como artefatos culturais”, ou seja, “sistemas de significação implicados na produção de [...] subjetividades” (SILVA, 2015, p. 142).

Nesse sentido, o argumento desenvolvido ao longo deste artigo demonstra que o currículo da nudez denuncia práticas assimétricas de sexualidade e gênero e, assim, resiste às normas sociais e ao regime de corporeidade. Portanto, diante das denúncias das assimetrias de gênero, compreendemos que as ciborgues produzem resistências que se contrapõem às normatizações e violências de gênero, e esse fenômeno constitui o currículo da nudez.

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NOTAS

1Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 05 de agosto de 2019.

2Dados disponíveis em: http://exame.abril.com.br/brasil/os-numeros-da-violencia-contra-mulheres-no-brasil/. Acesso em: 05 de agosto de 2019.

3Para saber mais sobre o caso: https://oglobo.globo.com/brasil/adolescente-se-mata-apos-ter-video-de-sexo-com-um-casal-divulgado-na-internet-10782350 . Acesso em: 10 de maio de 2017.

4Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=576366. Acesso em: 21 de novembro de 2017.

5O Facebook apresenta três possibilidades de configuração de privacidade em grupos na rede social: grupos públicos, fechados e secretos. Os grupos públicos são abertos, qualquer usuária/o pode entrar e ver as publicações, comentários e curtidas. Os grupos fechados são visualizados por qualquer usuária/o no sistema de busca da rede social e qualquer um pode solicitar entrada ou ser adicionado por um dos membros. Mas o conteúdo só fica disponível para membros. Os grupos secretos, como os investigados na pesquisa que subsidia este artigo, são ocultos, ou seja, não ficam disponíveis no sistema de busca da rede social.

6Os memes são “imagens, frases, fotomontagens, vídeos, referindo-se ao fenômeno de ‘viralização’ de uma informação” (EVANGELISTA, 2016, p. 43). Esses diferentes símbolos da cibercultura desenvolveram “a criação e a invenção de novas linguagens” que misturam “diversificados elementos gráficos, fonéticos, estéticos” (SALES, 2012, p. 118).

7“Toda Nudez será castigada” é uma peça teatral escrita por Nelson Rodrigues em 1965.

Recebido: 30 de Agosto de 2019; Aceito: 01 de Dezembro de 2019

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