SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número4CURRÍCULO E CONSTRUÇÃO DE UM COMUM: ARTICULAÇÕES INSURGENTES EM UMA POLÍTICA INSTITUCIONAL DE FORMAÇÃO DOCENTESENTIDOS DE INTEGRAÇÃO CURRICULAR NAS REFORMAS RECENTES DO ENSINO MÉDIO: ENTRE AS ÁREAS DO CONHECIMENTO E A ORGANIZAÇÃO DISCIPLINAR índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.4 São Paulo out./dez. 2019  Epub 27-Jan-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i4p1566-1586 

Dossiê ABdC 2019: Confrontos e resistências nas políticas educacionais e curriculares no contexto atual

UMA AÇÃO DE CONTRACONDUTA NO CURRÍCULO PARA O ENFRENTAMENTO À DISTORÇÃO IDADE-SÉRIE EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO: O PROJETO TRAJETÓRIAS CRIATIVAS

A COUNTER-CONDUCT ACTION IN THE CURRICULUM FOR COPING WITH AGE-SERIES DISTORTION IN TIMES OF NEOLIBERALISM: THE CREATIVE TRAJECTORIES PROJECT

ACCIÓN DE CONTRACONDUCTA EN EL PLAN DE ESTUDIOS PARA ENFRENTAR LA DISTORSIÓN EDAD-SERIE EN EL NEOLIBERALISMO: EL PROYECTO TRAJETÓRIAS CRIATIVAS

Clarice Salete TRAVERSINIi 

Kamila LOCKMANNii 

Ligia Beatriz GOULARTiii 

i Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: clarice.traversini@gmail.com

ii Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. E-mail: kamila.furg@gmail.com

iii Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora colaboradora do PPGEA da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: ligiabeatrizgoulart@gmail.com


RESUMO

O artigo objetiva analisar possíveis ações de contraconduta operacionalizadas no currículo escolar, frente ao contexto neoliberal que estamos vivenciando no Brasil. Para isso, discutem-se brevemente as tendências neoliberais atuais do contexto brasileiro e analisam-se alguns movimentos de contraconduta desenvolvidos numa escola que adere ao Projeto Trajetórias Criativas. Tal Projeto pode ser caracterizado como uma invenção curricular para o enfrentamento à distorção idade-série e acolhe estudantes de 15-17 anos dos anos finais do Ensino Fundamental. Teoricamente o texto utiliza as discussões contemporâneas de Dardot e Laval acerca do que denominam a nova razão-mundo e do princípio político do comum. Opera-se ainda com o conceito de contraconduta dos estudos foucaultianos. A empiria abrange observações de atividades com estudantes e reuniões de planejamento com professores em uma das escolas, registradas em diário de campo. Como resultado da pesquisa, destaca-se a força das propostas que emanam dos estudantes e inventam um currículo em movimento que fissura o currículo tradicional, incluindo outras possibilidades de produzir o aprender. O movimento do dobrar e redobrar as propostas pedagógicas engendra forças que agem sobre elas mesmas, para criar múltiplos caminhos, ações abertas, constituindo singularidades. Compreende-se que esse movimento fortalece o princípio político do comum e funciona como contraconduta dos professores porque os afasta da conduta de ensinar e aprender esperada, nesses tempos neoconservadores. Em síntese: ao recusarem ser governados dessa forma colocam-se junto aos estudantes para inventar outros currículos que os tornem aprendentes e, nesse movimento, criam trajetórias próprias para aprender.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Distorção idade-série; Contraconduta; Neoliberalismo; Projeto Trajetórias Criativas

ABSTRACT

The article analyzes possible counter-conduct actions operationalized in the school curriculum, considering the neoliberal context we experience in Brazil. To do so, we discuss the current neoliberal trends in the Brazilian context and analyze some counter-conduct movements developed in a school that joint the Creative Trajectories Project. This Project is characterized as a curricular invention for coping with age-series distortion, and it welcomes students aged 15-17 years of the final grades of Elementary School. Theoretically, the text uses the contemporary discussions of Dardot and Laval on what they call the new reason-world and the political principle of the common. We also address the concept of counter-conduct of Foucaultian studies. Empiricism encompasses observing activities with students and planning meetings with teachers in one of the schools, recorded in a field journal. We also highlight the strength of the proposals that emanate from the students and invent a curriculum in motion that cracks the traditional curriculum, including other possibilities of approaching the learning process. The bending and rebending movement of the pedagogical proposals engenders forces that act on themselves, creating multiple paths, open actions, and constituting singularities. This movement strengthens the political principle of the common and works as a counter-conduct for departing from the expected, as the conduct of teaching and learning in these neoconservative times. In short: by refusing to be governed in this way, they place themselves with students to invent other curricula that make them learners and, in this movement, create their own learning trajectories.

KEYWORDS: Curriculum; Age-series distortion; Counter-conduct; Neoliberalism; Creative Trajectories Project

RESUMEN

El artículo busca analizar las posibles acciones de contraconducta puestas en práctica en un plan de estudios escolar en el contexto neoliberal brasileño. Para esto, se discuten brevemente las tendencias neoliberales actuales en este contexto y se analizan algunos movimientos de contraconducta en una escuela que adhirió al Proyecto Trajetórias Criativas, que trata de una invención curricular para enfrentar la distorsión edad-serie y recibir a estudiantes de 15-17 años de los últimos años de Enseñanza Básica. Para el análisis se utilizaron las discusiones contemporáneas de Dardot y Laval sobre lo que llaman la nueva razón del mundo y principio político de lo común. También se aplicó el concepto de contraconducta de los estudios foucaultianos. El empirismo incluye las observaciones de actividades con estudiantes y las reuniones de planificación con maestros en una escuela, registrado en diario de campo. Los resultados revelan la fuerza de las propuestas que surgen desde los estudiantes que resulta en un plan de estudios dinámico que rompe lo tradicional al incluir otras posibilidades para producir aprendizaje. El movimiento de doblar y redoblar las propuestas pedagógicas engendra fuerzas que actúan sobre sí mismas para crear múltiples caminos, abrir acciones, constituyendo singularidades. Este movimiento fortalece el principio político de lo común y funciona como contraconducta de los docentes porque salen de lo esperado, como la conducta de enseñanza-aprendizaje actual neoconservadora. Al negarse a esto, se unen a los estudiantes para elaborar otros planes de estudio que los conviertan en aprendices y, así, crear sus propios caminos para aprender.

PALABRAS CLAVE: Plan de estudios; Distorsión edad-serie; Contraconducta, Neoliberalismo; Proyecto Trajetórias Criativas

1 INTRODUÇÃO

Este artigo tem como intenção discutir as atuais tendências neoliberais do contexto brasileiro, analisando possíveis formas de contraconduta operacionalizadas na escola por meio do Projeto Trajetórias Criativas. Para isso, apresenta-se uma breve contextualização do que se compreende como novas “reconfigurações” da racionalidade governamental contemporânea, no contexto específico do Brasil, apoiando-se em autores contemporâneos como Dardot e Laval. Esses autores analisam que o neoliberalismo não chegou ao fim, nem mesmo após as sucessivas crises que o mundo todo tem vivenciado. Pelo contrário, argumentam que tal racionalidade vem se fortalecendo, pois encontra formas de se reconfigurar, respondendo as demandas dos contextos atuais. Como formas de escape a essa lógica que parece articular neoliberalismo e neoconservadorismo, são apresentados dois conceitos centrais para esta investigação: o princípio político do comum, de Dardot e Laval e o conceito de contracondutas, de Michel Foucault. Diante desses dois conceitos, argumenta-se que algumas práticas escolares - neste caso as desenvolvidas no Projeto Trajetórias Criativas - parecem fortalecer o princípio político do comum e apresentar contracondutas a essas verdades neoliberais que tentam incansavelmente colonizar o espaço do currículo escolar.

Tais discussões são resultado de uma pesquisa interinstitucional desenvolvida no âmbito de dois grupos de pesquisa cadastrados no CNPq (Grupo de Pesquisa em Educação e Disciplinamento- GPED/UFRGS e Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e In/Exclusão- GEIX- FURG-RS).

Nessa pesquisa, analisam-se os materiais produzidos em observações desenvolvidas em uma das escolas que participam do Projeto Trajetórias Criativas, assim como em reuniões de planejamento com professores. As observações foram registradas em diário de campo, entre julho e dezembro de 2017.

2 CONTEXTO EDUCACIONAL BRASILEIRO: NOVAS RECONFIGURAÇÕES?

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas, é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2019, p. 2).

Os autores franceses, Pierre Dardot e Christian Laval, destacam que há pelo menos uma dezena de anos vem se anunciando o fim do neoliberalismo. Indicam a crise financeira mundial de 2008; a crise grega na Europa; o terremoto causado pela eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos; o referendo sobre o Brexit, em março de 2017 e a eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018, como um conjunto de crises sucessivas que poderiam nos levar a anunciar, ou pelo menos a refletir, sobre o fim do neoliberalismo. Porém, na contramão de anunciar o seu fim, tais autores reforçam a plasticidade do neoliberalismo e a sua notável capacidade de autofortalecimento e radicalização.

É preciso salientar, que assim como para Michel Foucault (2008), Dardot e Laval também compreendem que o neoliberalismo não se limita a uma doutrina econômica, mas constitui-se numa racionalidade orientadora da vida dos sujeitos, a qual “produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 16). Para eles, tal racionalidade se tornou mundial e consiste em impor a concorrência e o modelo da empresa como norma geral da existência humana. Laval (2013) explica que o neoliberalismo tem se constituído como a nova razão do mundo e que

[...] o conceito ‘razão-mundo’ pode ser entendido até num sentido irônico, uma vez que o melhor seria a “desrazão-mundo”, pois com esta lógica chegamos a situações absurdas. Quando utilizamos o termo “razão” é no sentido de uma lógica normativa, uma lógica de normas gerais dentro da construção do sistema hegemônico, em que estamos, e que conseguiu estender para todos os âmbitos sociais a normativa das regras do mercado, regidas pela concorrência (LAVAL, 2013, p. 2).

Dessa forma, os autores argumentam que no lugar de desaparecer, o neoliberalismo tem se expandido pelo mundo inteiro como a nova razão mundial que não parou de se impor, não encontrando forças contrárias suficientes para desintegrá-la. Isso acontece porque o neoliberalismo é um modo de governo que se alimenta das crises que ele mesmo produz e no lugar de se questionar a lógica que provocou tais crises, leva-se ainda mais longe essa racionalidade, reforçando-a indefinidamente. Assim, para Dardot e Laval (2019, p. 2), “O neoliberalismo só se sustenta e se reforça porque governa mediante a crise”. Se isso é assim, parece que o contexto brasileiro atualmente vem nutrindo, alimentando e reforçando essa nova razão-mundo referida pelos autores.

As incertezas que rondam o país, o desmantelamento das políticas sociais contemporâneas, a fragilização e a desconstrução dos direitos sociais e educacionais, são situações que caracterizam o terreno movediço pelo qual transitam, cotidianamente, todos os brasileiros e brasileiras. A cada "nascer" do Sol novidades governamentais nos afligem: são as novas leis de trânsito, a liberação de diversas marcas de fertilizantes, a discussão sobre o porte de armas, os cortes para educação, a sombra cada vez maior das privatizações e uma variedade de projetos de lei destinados às mais distintas áreas que parecem cegar nossas possibilidades de ação. Ainda, um agravante: A Constituição da República do Brasil de 1988 vem sofrendo acréscimos beneficiar alguns grupos em detrimento do respeito às questões sociais. Diante desse cenário, nos perguntamos: que modificações são essas que estamos vivendo atualmente? Tratam-se de modificações, de transformações ou de uma metamorfose no mundo, como sugere Ulrich Beck (2018)? Pode-se dizer que se vive um momento de ruptura entre governantes e governados, tal como aponta Manuel Castells (2018), ao discutir a crise da democracia liberal? Quais especificidades se encontram no Brasil, nesse momento de crise generalizada, em escala planetária? Concorda-se com os autores que o neoliberalismo não parece estar chegando ao seu fim e que é preciso analisar suas transformações atuais para perceber as especificidades vividas em cada um dos contextos globais.

Olhando especificamente para o Brasil, considera-se que essa nova razão-mundo, denominada neoliberalismo, continua extremamente presente, haja vista a necessidade da produção de sujeitos empresários de si como um tipo de subjetividade alinhada ao neoliberalismo, a qual tem invadido escolas, políticas públicas, documentos curriculares nacionais, avaliações em larga escala, etc. Por outro lado, alguns princípios neoliberais que pareceriam fundamentais para o funcionamento das estratégias de governamento da população no Brasil, até bem pouco tempo, parecem perder a sua centralidade diante desse novo contexto que articula neoliberalismo e neoconservadorismo. Se o neoliberalismo, vigente até então no Brasil, tinha como regra máxima a inclusão, ou seja, a regra da não exclusão, atualmente esse novo neoliberalismo parece não governar para todos.

Explicando um pouco melhor: Foucault (2008), no Curso Nascimento da Biopolítica, ministrado em 1979, no College de France, dizia que a regra máxima do neoliberalismo era a regra da não exclusão, ou seja, a inclusão como imperativo de funcionamento do neoliberalismo. Todos precisavam estar incluídos, ninguém podia estar fora do jogo econômico e social de um Estado Neoliberal. Com todas as críticas feitas a essa regra como um princípio econômico de manutenção da atividade do sujeito nesses jogos, ainda assim, ela parecia importante quando, por dentro dessa racionalidade, conseguia atribuir outros significados a experiência de viver juntos e de compartilhar formas de vida em comum. Porém, parece ser possível dizer, que, nos dias atuais, essa regra não mais se mantém em plena atividade.

Tal afirmação está embasada no rechaçamento sofrido por uma variedade de grupos, seja por meio de discursos preconceituosos, pelos cortes ou reordenamento de determinados projetos e políticas públicas, pelo controle dos currículos por meio de Projetos como “Escola sem Partido”, ou ainda, pela não obrigatoriedade de frequentar a escola, que agora é transformada em direito pela proposta de lei da Educação Domiciliar. Tais ações, amplamente visualizadas no Brasil atual, parecem não mais partir do princípio da inclusão como imperativo. Determinados grupos sociais, seja pela sua cor de pele, religião, orientação sexual, língua ou cultura parecem ser desconsiderados nas ações governamentais pensadas para a população brasileira. O novo governo não parece ter como premissa e necessidade da inclusão de todos.

Isso tem levado a pensar sobre as especificidades desse neoliberalismo contemporâneo. Ao historicizar as práticas de governo liberais e neoliberais, especialmente quando abordam a crise do liberalismo, Dardot e Laval (2016) apresentam dois modelos de liberalismo úteis para compreender as especificidades da racionalidade vivida no Brasil de hoje. Eles destacam um primeiro modelo liberal, que se organizou em torno das ideias de Smith e Ricardo. Tal modelo pressupunha que a livre troca favorece a especialização das atividades, a divisão das tarefas nas oficinas, assim como a orientação da produção nacional. “A consequência primeira desse modelo comercial e mercantil é que, pelo aumento geral da produtividade média que decorre da especialização, todo mundo ganha” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 53). Esse é um tipo de liberalismo clássico, que posteriormente influenciou o novo liberalismo, desencadeado a partir das políticas keynesianistas, baseado numa sociedade de liberdade individual, em proveito de todos.

Dardot e Laval (2016) vão além e apresentam um outro modelo de liberalismo muito mais perverso, a partir do qual se identifica uma linha de proveniência daquilo que tem produzido essa nova razão fortalecida. Esse segundo modelo de liberalismo, apresentado pelos autores, pauta-se nas ideias evolucionistas de Spencer, para quem qualquer tipo de intervenção é inaceitável, pois a seleção dos mais aptos ocorrerá de forma natural e por meio de uma concorrência, vista como o princípio motor do progresso da humanidade. Diferente do primeiro modelo de liberalismo, aqui “não se trata mais de uma lógica de promoção geral, mas um processo de eliminação seletiva” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 53). Não são todos os segmentos da população que precisam ser governados e tornarem-se produtivos, mas alguns deles os quais serão beneficiados e fortalecidos com o desaparecimento social ou a eliminação de tantos outros. “Daí a assimilação da concorrência econômica a uma luta vital geral, que é preciso deixar que se desenvolva para que a evolução não seja interrompida”. (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 52). Enquanto o primeiro modelo de liberalismo parecia pautar-se em princípios inclusivos, visto que acreditava que todos poderiam ganhar com o aumento da produtividade gerada quando a economia era comandada pela mão invisível de Deus; o segundo modelo parece trabalhar com ideias excludentes, onde "nada garante que aquele que participa da grande luta da seleção natural irá sobreviver”. (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 53).

Nesse último modelo de liberalismo já é possível visualizar o aparecimento da concorrência como algo que posteriormente será central na pauta de todo o pensamento neoliberal vigente. A diferença é que no século XIX, Spencer acreditava que essa concorrência era natural e por isso, em meio à crise da governamentalidade liberal, pregava a refundação do liberalismo. As especificidades do neoliberalismo, vigente em nossos dias, estabelecem maior relação com o liberalismo spenceriano, do que com as ideias do liberalismo clássico de Smith e Ricardo. A diferença é que a concorrência aqui não é mais vista como natural, pois necessita ser produzida e talvez deixe de eliminar os mais “fracos”, mas pode, perversamente, produzir o seu desaparecimento social e político.

Em meio a essa racionalidade política atual, tornada a nova razão-mundo, a escola tem sido alvo de uma série de controles, quando não, desqualificada como espaço formativo. Propostas como ‘Escola sem Partido’ pretendem regular o que se diz e o que se faz na escola, desprezam saberes locais, culturas populares e religiões diferentes daquelas compreendidas como as “mais verdadeiras” para a ordem vigente. Propostas como ‘Educação Domiciliar’ parecem ir além e, como lembra Lockmann (2019), transformam a exclusão num direito. A autora salienta que

Falar em exclusão num cenário povoado, ainda, por uma variedade de leis e políticas de todas as ordens, pode parecer estranho, mas a perversidade dessa nova face da exclusão encontra-se justamente no fato dela apresentar-se como um direito, cuja materialização pode ser visualizada, por exemplo, numa proposta de Educação Domiciliar que promove a exclusão dos sujeitos da escola como um direito das famílias (LOCKMANN, 2019, p. 8).

Com tais discursos e iniciativas corre-se o risco de não só transformar a exclusão num direito, mas também perder o caráter público e comum da educação. É nesse bojo que o princípio político do ‘comum’, discutido por Dardot e Laval, pode funcionar como uma alternativa a essa nova razão-mundo. Compreender esse conceito é fundamental para pensar o espaço da escola como comum, como um tempo e um espaço que não pode ser expropriado ou apropriado. Na análise do princípio político do ‘comum’ quatro pontos são importantes para sua compreensão. O primeiro, diz respeito a compreender o ‘comum’ como princípio. Para os autores, princípio é um começo, é o que vem primeiro e fundamenta todo o resto. Não pode ser apagado ou substituído com o que vem depois.

É um verdadeiro começo, um “começo sempre a começar”, isto é, um começo que rege e domina tudo o que vem depois. O grego arché tem o sentido duplo de começo e comando: arché é a fonte da qual deriva todo o resto. O comum é um princípio político no sentido de ordenar, comandar e reger toda a atividade política (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 10).

Além disso, ‘comum’ não é apenas um princípio, mas um princípio político, que tem relação com fazer algo junto, compartilhado. Esse seria o segundo aspecto que gostaríamos de destacar. Primeiro, ‘comum’ como princípio. Segundo, ‘comum’ como princípio político. Para os autores a política é “a atividade de deliberação pela qual os homens se esforçam para determinar juntos o que é justo, bem como a decisão e a ação decorrentes dessa atividade coletiva”.

O terceiro aspecto importante é considerar que, como princípio político, o ‘comum’ (munus) refere-se ao mesmo tempo à obrigação e à atividade, ou seja, compreende que a participação numa mesma atividade é uma obrigação política. Esse terceiro aspecto parece mostrar a importância da escola, como algo que não pode ser substituído por um processo individualizante para atender interesses privados. Os autores salientam que nenhum tipo de

[...] pertencimento - etnia, nação, humanidade etc. - pode ser em si o fundamento da obrigação política. Disso resulta também que essa obrigação não tem nenhum caráter sagrado ou religioso, o que implica que qualquer fonte transcendente, qualquer autoridade exterior à atividade devem ser rejeitadas (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 10, grifos do autor).

As considerações dos autores citados favorecem a compreensão do quarto e último aspecto a destacar, o qual se refere a inapropriabilidade do comum, ou seja, a forma como o comum não pode ser apropriado por alguém, como uma coisa ou um objeto. Segundo Dardot e Laval (2017, p.13) “inapropriável não é aquilo do qual ninguém pode se apropriar, isto é, aquilo cuja apropriação é impossível, mas aquilo do qual ninguém deve se apropriar, isto é, aquilo cuja apropriação não é permitida porque deve ser reservado ao uso comum”.

Ao utilizar o conceito de ‘comum’ para pensar a educação sustenta-se o argumento de que a escola é esse espaço inapropriável! A escola é um espaço público e comum, não apropriável. Os processos que ali ocorrem não podem ser reproduzidos em outros lugares, como na casa ou na instituição familiar, por acontecerem em espaço aberto de criação e invenção, o qual só pode ser produzido quando diferentes vozes, diferentes sujeitos, diferentes gerações, diferentes crenças e formas de vida, se encontram. Nesse encontro, compreende-se que a participação na atividade coletiva é uma obrigação política e como tal, é capaz de produzir a escola, senão como único, talvez o mais potente espaço-tempo capaz de sustentar o ‘comum’ como princípio político.

Dessa forma, por meio do princípio político do ‘comum’, pode-se fortalecer o espaço da escola como aquele que racha com a racionalidade neoliberal vigente, apresentando uma outra razão-mundo. Segundo Dardot e Laval (2016, p. 9) “o princípio político do comum remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais”. Porém, obviamente, não se é ingênuo de pensar que tudo que acontece na escola tende a rachar com a razão-mundo neoliberal. Há, é claro, muitas práticas em consonância com tal racionalidade. Entretanto, compreende-se, também, que a escola é lugar de potência, de criação, de invenção e de movimento constante. E esse movimento, materializa práticas que sustentam o princípio político do ‘comum’ e funcionam como contracondutas a essa razão mundo neoliberal.

3 CONTRACONDUTA: UM EXERCÍCIO DE CONCEITUALIZAÇÃO

A noção de contraconduta, na perspectiva foucaultiana, é considerada importante neste texto por reunir quatro dimensões: não aceita passivamente determinados modos de condução praticados, adquire uma conotação ativa, tem relação com o comum e pode ser compreendida como uma atitude crítica. Se a instituição escolar pode ser um espaço em que o princípio político do ‘comum’ pode fissurar práticas neoliberais excludentes, tais dimensões nos auxiliam a ler os currículos inventados pelo Projeto Trajetórias Criativas, atentas às formas de enfrentamento de um tipo de fracasso escolar: a distorção idade-série. Enfrentamento da exclusão na escola para incluir os estudantes como pertencentes àquele espaço, propiciando ações para que se reconheçam como sujeitos que aprendem.

No Curso Segurança, Território, População, na aula de 1 de março de 1978, Foucault (2008) discute as formas de resistência na época do pastorado e estuda os deslocamentos que se sucedem na época Moderna. Nestas discussões, emerge a noção de contraconduta, compreendia como “luta contra os procedimentos postos em prática para conduzir os outros” (FOUCAULT, 2008, p. 266). A própria compreensão do termo compõe a primeira dimensão mencionada, uma vez que há recusa de ser governado de determinada forma ou por determinados mecanismos. Não aceitar ser governado de determinado modo adquire um caráter estratégico (LORENZINI, 2015; VEIGA-NETO, 2018) que mobiliza “a constituição de outras possibilidades e de outros percursos, no enfrentamento produtivo dos sujeitos contra os excessos de governamento” (DIAS, 2017, p. 231). A contrantraconduta não é sinônimo de resistência, uma vez que não se trata de oposição, de enfrentamento a formas de governamento específicas. É sim, “dar às costas” a um tipo de condução para exercer outras formas de se conduzir, consideradas produtivas a determinados modos de vida.

A segunda dimensão consiste no sentido ativo da contraconduta. Ao discutir essa noção, Grabois (2011) chama atenção do seu sentido ativo quando Foucault (2008) apresenta a noção de ascese: “Creio que a ascese é, em primeiro lugar, um exercício de si sobre si, é uma espécie de corpo a corpo que o indivíduo trava consigo mesmo” e complementa “e em que a autoridade de um outro, a presença de um outro, o olhar de um outro é, se não impossível, pelos menos não necessário” (p.271). Nesse sentido, Grabois (2011) recorre a estudiosos foucaultianos para argumentar que a contraconduta se distancia da pressuposição de obediência no pastorado e possibilita que o sujeito atue sobre si para se subjetivar de outro modo, recusando guiar-se, de modo incondicional, por determinado tipo de governamento.

A terceira dimensão diz respeito à relação entre a noção de contraconduta e comum. Ao discutir a analítica do poder, Foucault (1995, p. 234) chama atenção que os aspectos mais importantes das lutas são aqueles que “questionam o estatuto de indivíduo” por ambos os lados, quais sejam: “afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais” e “atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se voltar para si mesmo e o liga a sua própria identidade de modo coercitivo” (FOUCAULT, 1995, p. 235). É neste ponto que encontramos a relação entre as noções de contraconduta e comum, pois como afirma Foucault, as lutas que travamos são “batalhas contra o governo da individualização”, as ações estratégias de contraconduta podem orientar-se por “práticas coletivas e de responsabilização social, outros modos de valoração e outros preceitos éticos, estéticos e políticos onde o “eu” se apaga em função do bem comum e do tecido social” (MARIN-DIAZ, 2015, p. 37). Essa dimensão converge com o princípio político do comum discutido por Dardot e Laval (2016) de potencializar o espaço da escola e, por meio do Projeto Trajetórias Criativas, inventar currículos mobilizadores do aprender conjunto entre professores e estudantes, os últimos desacreditados pelas sucessivas reprovações.

A quarta dimensão é a relação entre contraconduta e atitude crítica. Na conferência O que é a crítica, Foucault (1990) ressalta que a governamentalização das sociedades ocidentais da Europa do século XVI precisa ser associada a uma “inquietude em torno da maneira de governar”, um questionamento que se faz presente permanentemente: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles" (p.3, grifos do autor). E a “esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos indivíduos ao mesmo tempo” denomina de “atitude crítica” (p. 3). Para Lorenzini (2015) “a atitude crítica não é senão uma forma (ou talvez a forma) tipicamente moderna de contraconduta” (p. 142. Grifos do autor). Se a contraconduta é “uma atitude outra em relação aos modos instituídos e normalizados das práticas de governo”, a atitude crítica pode ser entendida “como um ethos característico da modernidade, o qual interpela os modos de governo das práticas governamentais (COSTA, p. 2019, p. 63, grifo do autor).

4 ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO PROJETO TRAJETÓRIAS CRIATIVAS

O Projeto Trajetórias Criativas iniciou em 2012 e consiste em uma ação de extensão em parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul- Colégio de Aplicação (CAP-UFRGS) e a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC/RS). Contou com apoio do Ministério da Educação (MEC) até 2018 e desenvolve-se em escolas da rede pública estadual dos municípios gaúchos de Porto Alegre, Alvorada, Canoas, Novo Hamburgo, São Leopoldo e Triunfo. Em 2018, o Projeto contava com 19 escolas, atendendo aproximadamente 750 alunos (UFRGS, 2018).

De acordo com Farias (2017), a proposta foi idealizada por um grupo de professores vinculados ao Colégio de Aplicação da UFRGS em face da exclusão de mais de três milhões de jovens de 15-17 anos, conforme dados do INEP (2018), que permanecem na escola sem concluir o Ensino Fundamental, mas colecionam sucessivas reprovações, o que os impossibilita de seguir para o Ensino Médio. A própria expressão Trajetórias, que dá nome ao Projeto, “relaciona-se ao que ocorre nas escolas que adotam sua metodologia: constroem percursos próprios associados ao entendimento que conseguem ter da proposta e às especificidades com que se deparam” (GOULART; SAENGER, 2016, p. 477). A proposta de ação educativa tem como objetivo, “a partir de novas práticas que dialoguem com os interesses dos estudantes, oportunizar aprendizagens necessárias à promoção de jovens de 15-17 anos que não concluíram o Ensino Fundamental para o Ensino Médio (BRASIL, 2014, p. 1). As atividades são voltadas a desenvolver a autoria, a criação, a autonomia e o protagonismo, e seus princípios encontram-se registrados em sete cadernos (BRASIL, 2014).

De forma breve, no Projeto Trajetórias Criativas: a) gestores, professores, profissionais da educação e estudantes são convidados a conhecer a proposta e decidir sobre seu envolvimento com o Projeto, considerando que é de livre adesão; b) os professores têm garantida as horas para planejamento das propostas, orientadas à ações integradoras; c) A equipe é constituída de professores dos diferentes componentes curriculares - Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes, Educação Física, e Religião -, trabalhando de forma integrada, a partir de reuniões sistemáticas de planejamento, às quais imprimem singularidades nas trajetórias de cada escola; d) a organização curricular envolve cinco áreas do conhecimento: Linguagens, Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Matemática e Ensino Religioso, compreendendo práticas interdisciplinares, ações integradas e atividades de Iniciação Científica. Cada componente curricular tem o mesmo número de horas, sem que nenhum seja priorizado. As práticas de avaliação acompanham as ações educativas com atividades integradoras (BRASIL, 2014); e) a organização das turmas é composta por 25 alunos em situação de distorção idade-série. Os estudantes podem permanecer no Projeto no máximo por três anos, agrupados em TC1, TC2, TC3 que correspondem às turmas que estão, respectivamente, no seu primeiro, segundo e terceiro ano. Eles podem ser promovidos a qualquer momento para o Ensino Médio, desde que avaliados pelos professores e atendam às condições exigidas para esse avanço.

5 PRÁTICAS DA E NA ESCOLA: CONTRACONDUTAS POSSÍVEIS

As atividades propostas são ações abertas produzidas pelos professores do Projeto Trajetórias Criativas, com vista a aproximar os estudantes de seus interesses e curiosidades. Assim, encaminham-se propostas pedagógicas afinadas com as intencionalidades dos professores, mas também próximas aos estudantes, de seu cotidiano e realidade, dando por isso sentido às aprendizagens. Destacamos uma dessas atividades, uma encenação, que mostra o processo em movimento. A apresentação de um texto clássico do teatro inglês como ‘Sonhos de uma Noite de Verão’, de Willian Shakespeare, para estudantes de periferia é um desafio. Teoricamente essa peça seria uma história desinteressante para estudantes contemporâneos. Isso acontece porque ela se desenrola na Inglaterra do século XVI e os personagens estão envolvidos em disputas amorosas, fora do contexto do século XXI e das situações vivenciadas pelos jovens deste tempo, especialmente os das periferias, como é o caso dos estudantes do Trajetórias Criativas, alvo deste trabalho. Entretanto, não foi o que aconteceu.

O grupo de jovens com idades entre 15-17 anos, vivendo em regiões de vulnerabilidade social envolveram-se com a proposta e construíram um espetáculo que os desafiou a realizar apresentações em diferentes contextos, muito diferentes daqueles em que vivem. Realizaram sessões para estudantes universitários, para colegas de outras escolas, para professores que trabalham com adolescentes, gestores de escolas, entre outros públicos. A proposta foi pensada no coletivo de professores que desenvolvem um trabalho pedagógico integrado e construído a partir de planejamento semanal. A atividade desencadeadora foi orientada pelo professor de Arte e de História dos estudantes da referida escola (Diário de campo, agosto de 2017).

Nas reuniões coletivas de planejamento, as temáticas têm como foco o interesse e a curiosidade dos estudantes, daí a preocupação em destacar assuntos que cativem os jovens para aprender. Destaca-se que essas aprendizagens se referem, tanto aos conteúdos/conhecimentos curriculares como, também, aquilo que é fundamental para esses estudantes, o acolhimento, o trabalho coletivo e cooperativo, a ampliação de horizontes por meio da leitura de outros/novos espaços, proporcionado pelos diferentes grupos com os quais mantiveram contato, bem como as situações confrontadas. Os estudantes aprenderam a representar, isto é, transpor informações do texto/história para a expressão corporal a fim de comunicar a mensagem. Destacamos do diário de campo excertos que se referem às atividades desenvolvidas.

[...] os estudantes foram incitados a criar e adaptar, com os materiais disponíveis os figurinos e, nesse sentido, pesquisar informações sobre como reciclar tecidos, roupas usadas, resíduos de papéis, entre outros materiais disponíveis (Diário de Campo, agosto de 2017).

Foi importante, aos estudantes, aprender sobre as condutas diversas e estabelecer escolhas para compreender seu papel nos diferentes contextos, como representantes de uma comunidade invisível. Entender o significado de seu papel como estudante e sair do lugar de esquecimento, de apagamento, para o da visibilidade. A atividade de teatro iniciou com uma prática, ainda que singular e despretensiosa, para encenar cotidianos representados em ilustrações sobre fatos e acontecimentos da História, cujo objetivo era se apropriar dos conhecimentos desse componente curricular. Entretanto, a proposta tomou rumos não esperados e permitiu redimensionar as ações pedagógicas no sentido da autonomia, autoria, criação e protagonismos dos sujeitos desse processo: estudantes e professores. Neste ponto, percebeu-se operar o princípio do comum como uma das dimensões da contraconduta, uma vez que juntos, “deram as costas” para a fragmentação dos conteúdos de História, proposta pelos professores, e promoveram a articulação com outros conteúdos dos demais componentes curriculares. As informações passaram então a fazer sentido porque estavam contextualizadas para seus cotidianos e realidades.

A escola está localizada em um município cuja população negra é significativa, ainda que no imaginário da gente brasileira o Rio Grande do Sul seja um estado com poucos negros, porque colonizado por europeus, daí as divindades religiosas africanas fazerem parte do cotidiano dos estudantes. Juntam-se a isto outras condições que contribuem para a releitura da peça, adaptada para o contexto, isto é, personagens representados pelos orixás, cenários associados à mata e atores interpretados pelos estudantes em distorção idade-série e, dessa forma, a reescritura da história se produz com autoria e protagonismo, porque criada pelos estudantes a partir de seu cotidiano. Inclusive como relata um professor: “Os estudantes propuseram introduzir na peça músicas e instrumentos próprios de rituais afro.” (Professor 2. Diário de campo, setembro de 2017).

Teoricamente essa releitura teria tudo para não acontecer, já que estudantes multirrepetentes são tidos como incapazes de produzir um trabalho dessa relevância, pois são sujeitos que apresentam descontinuidade em relação às propostas regulares de fluxo escolar. Dadas as condições, os contextos e a ação pedagógica dos professores, no movimento de enfrentamento e redirecionamento da aprendizagem, considerou-se a possibilidade de repensar o currículo e as formas tradicionalmente definidas para ensinar e aprender. O que aconteceu então foi a produção do novo texto, a encenação da peça e sua apresentação em espaços de aprendizagem, dentro e fora da escola.

Em uma das reuniões de acompanhamento, na escola, um professor analisa as ações propostas no Projeto Trajetórias Criativas e encaminha questionamentos e reflexões sobre o papel da escola, em relação aos estudantes e suas aprendizagens:

[...] o que seria importante aprender na escola para viver na sociedade, tendo em vista que esses eram estudantes indisciplinados que desafiavam os professores das turmas às quais pertenciam e não aprendiam? Hoje estão integrados a escola, participam das atividades propostas com comprometimento e envolvimento e, em muitos casos, mudaram seu comportamento na família e comunidade em que vivem. Parece que deixaram de ser apenas estudantes e tornaram-se protagonistas de suas aprendizagens (Professor 1. Diário de campo, setembro de 2017).

As afirmações do professor, em relação a situação dos estudantes de distorção, permitem indagar: seria possível aprender outras coisas, para além daquilo que é proposto nos currículos, nos Livros Didáticos e na Base Nacional Comum Curricular - BNCC? Ou, como construir aprendizagens com as coisas do contexto, pesquisando os orixás e suas formas de expressão e representação, conforme propõe à atividade de releitura da peça ‘Sonhos de Uma Noite de Verão’?

Outra condição a ser destacada para o desenvolvimento do trabalho com a peça já referida é o lugar, porque o mesmo desempenha papel significativo. A escola está localizada em uma área duplamente periférica: na periferia do município e na periferia da área metropolitana. Essa condição lhe agrega algumas características, por exemplo, estar próxima a um local de mata, região de expansão urbana ou reserva de área verde do município. Essa mata, contígua à escola, é utilizada em diferentes momentos como uma sala de aula, aqui entendida como espaço de aprendizagem diferente do tradicional.

Na “sala de aula” os estudantes realizam atividades diversas como: os ensaios e representações teatrais, bem como sessões de discussão sobre os encaminhamentos (expressão oral/escrita e defesa de ponto de vista, argumentação...) e até elaboração de figurinos necessários à peça. Isso favorece ainda mais a proximidade dos contextos: peça teatral e realidade dos estudantes, pois a peça original se passa em uma área de mata e a escola utiliza o respectivo espaço para efetivar o trabalho (Diário de Campo, de agosto de 2017).

Salienta-se, também, que a temática da história proposta na peça, ‘Sonhos de uma Noite de Verão’, discute o amor de jovens, ainda que nobres e do século XVI. Tal assunto envolve os estudantes porque trata de relações afetivas entre jovens, temáticas tão presentes na vida de quem tem entre 15-17 anos, pois possibilita a expressão de ideias e sentimentos por meio de manifestações teatrais. Segundo o relato de um professor,

[...] a ideia parte de encenações realizadas nas aulas de artes dramáticas. Esta proposta existe em virtude da necessidade de desenvolver-se atividades lúdicas e culturais que possibilitem o desenvolvimento das relações interpessoais dos alunos, a criatividade, a imaginação, o interesse pela leitura, a interpretação e a compreensão de textos. Os professores de diferentes áreas de conhecimentos se reúnem para de forma integrada produzir propostas que atendam essa necessidade (Relato do professor 2. Diário de campo, setembro de 2017).

Aquilo que é proposto nas aulas, conforme já foi mencionado, emana de uma compreensão da necessidade de transformação das práticas pedagógicas escolares. Os professores engajados no TC são sujeitos que têm práticas de contraconduta (ações que valorizam a construção conjunta com os estudantes, a escolha de conhecimentos/saberes que consideram as curiosidades genuínas e, por isso redimensionam o currículo tradicional) e deslocam-se produzindo desdobramentos que singularizam a trajetória de cada escola, no movimento de enfrentamento a distorção idade-série.

Assim, o ponto de partida para todo trabalho, é a própria sala de aula, a partir da mobilização dos estudantes para qualquer temática a ser discutida. Nesse caso, o interesse e a curiosidade tiveram como foco o próprio trabalho de encenações, realizado nas aulas de artes dramáticas. Os estudantes realizavam representação corporal de ilustrações recolhidas, considerando temáticas de interesse. Pesquisaram os temas tendo como objetivo coletar imagens a serem representadas.

Então nesse movimento, surgem os atravessamentos escolares que insistem em reposicionar o currículo nos moldes tradicionais. O caso em questão refere-se à data comemorativa da Semana da Consciência Negra. Os professores foram chamados a produzir atividades que remetessem à referida data, conforme destaca o professor 1. Prepararam uma ação que considera a temática do negro, tendo em vista ser essa uma das datas “comemorativas” promovidas na escola, entretanto, adaptaram-na para uma proposta específica de representação corporal. O professor conta que

[...] apresenta-se aos alunos quadros de Debret sobre a escravidão no Brasil no período colonial (conforme pesquisa no livro: Viagem Pitoresca e História do Brasil de Jean Baptiste Debret), solicitando-se que realizassem o trabalho de reprodução corporal das obras enquanto as mesmas iam sendo projetadas em uma tela (Relato do professor 1. Diário de campo, setembro de 2017).

Os estudantes são mobilizados a pensar sobre cenas em que os negros são personagens marcantes, dentre as ilustrações que traziam a temática da escravidão no Brasil, apresentadas pelos professores. O exercício corporal incita a reflexão, promove deslocamentos no pensamento e desencadeia curiosidades sobre a temática do negro. As imagens transformadas em representações corporais, “desencadeiam uma série de questionamentos sobre o tema da escravidão, da situação do negro na África, no Brasil atual e, de forma genérica, no contexto mundial”, explica o professor 1 (Diário de Campo, agosto de 2017). As questões suscitam muitas indagações, gerando um ambiente favorável à investigação, porque a pluralidade dos possíveis caminhos que se avizinham, torna a temática interessante. O professor prossegue explicando:

Nesse momento alguns alunos sugerem usar os computadores para realização de uma pesquisa sobre as questões levantadas e, após um tempo aproximado de 50 minutos, inicia-se um debate sobre tais questões (Relato do professor 1. Diário de campo, setembro de 2017).

A narrativa permite compreender o que acontece com a “aula de História”. Ela se transforma, se organiza e reconstrói a partir dos encaminhamentos dos estudantes. Eles atuaram no sentido de direcionar seus interesses e curiosidades, redefinindo os rumos da proposta pedagógica, inicialmente emanada dos professores. E esse processo se amplia para outras ações. As intencionalidades primeiras dos professores foram contempladas, mas os estudantes dobraram a temática e recriaram outra possibilidade de aprender os conhecimentos, tradicionalmente propostos nas “comemorações do 20 de novembro”. A dobra tem força e promove transformações nas práticas cotidianas dando outros/novos rumos para o currículo.

Nessa perspectiva percebe-se que a ação dos estudantes interfere, de forma marcante no currículo, ampliando a compreensão dos contextos porque não se limita a pensar a escravidão do período colonial, mas contextualiza o negro no cenário local, nacional e mundial. Desta forma, os referidos estudantes percebem-se incluídos, como sujeitos do processo, já que ao refletirem sobre a temática, o fazem também acerca da própria condição. Essas práticas reafirmam que o “Currículo é território político, ético e estético incontrolável que, se é usado para regular e ordenar, pode também ser território de escapes de todos os tipos, no qual se definem e constroem percursos inusitados [...]” (PARAÍSO; CALDEIRA, 2018, p. 13. Grifos das autoras).

Chama atenção, como o redimensionamento da proposta vai se constituindo a partir da ação dos estudantes. Eles interferem não só nos conteúdos propostos, mas também nas metodologias de trabalho. As práticas pedagógicas se movimentam e a aula deixa de ser mera apresentação de imagens trazidas pelo professor, para criar outras possibilidades, encaminhadas por meio da investigação/pesquisa. Rompe-se com as formas tradicionalmente idealizadas para aprender, ou seja, aquelas que emanam do professor, e criam-se espaços interessantes para promover aprendizagens. Há um deslocamento do currículo quando os estudantes são chamados a participar, pois os mesmos incluem interesses e curiosidades, traçando outros/novos caminhos para construir conhecimentos.

As análises realizadas até então permitem perceber desencaixes curriculares. A temática negra, proposta inicialmente pelos professores, parece ter possibilitado pensar a releitura de um texto clássico, usando os orixás como personagens, símbolo das divindades africanas, bem como aproveitar a mata contígua à escola, como possibilidade de cenário. Percebe-se a expressividade da religiosidade de matriz africana manifesta no número de terreiros de umbanda do lugar, comunidade onde a escola está inserida. Esse processo considera o contexto de vivência dos envolvidos, o lugar do professor, dos estudantes, da comunidade e potencializa o aprender. Professores e estudantes pensam propostas mais ousadas, aproximando os conhecimentos de ambos. A releitura de ‘Sonhos de uma Noite de Verão’ é a expressão dessa ousadia.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escrita deste artigo foi mobilizada por um olhar atento às possíveis ações de contraconduta operacionalizadas no currículo escolar, diante do contexto neoliberal que estamos vivenciando no Brasil. Ao realizar este exercício analítico com as lentes do princípio do comum aprendido, com Dardot e Laval e da contraconduta, com Michel Foucault, percebeu-se a força das propostas que emanam dos estudantes, no coletivo, não como forma primeira sem que a ação do professor seja intencional, mas como possibilidade de produzir um currículo em movimento que fissura o currículo tradicional, incluindo outras, novas e numerosas possibilidades de produzir aprendizagens. O movimento do dobrar e redobrar as propostas pedagógicas engendra forças que agem sobre elas mesmas, para produzir múltiplos caminhos, ações abertas, que adquirem independência constituindo singularidades.

As singularidades se produzem porque a proposta do Projeto tem como foco os sujeitos e seus potenciais de aprendizagem. As ações propostas se constituem no movimento e estão recorrentemente se redimensionando para atender interesses e curiosidade dos estudantes. Por não seguir um conjunto de conteúdos fixos listados nos currículos, percebe-se a dimensão ativa da contraconduta em que professores e estudantes, ao agirem sobre o currículo, agem sobre si mesmos. Isto mobiliza aprendizagens. Assim, aqueles que educam, conforme destaca Gallo (2010), o fazem para que os estudantes venham a ser aquilo que não são. Isto é, há aqui uma noção ambivalente: se para o sistema escolar o estudante se adequa ao fluxo ao finalizar o Projeto Trajetórias Criativas e seguir para o Ensino Médio, também o próprio processo do aprender assumido no Projeto, por mobilizar ações de contraconduta, inventa outro/novo currículo. Um currículo que produz um sujeito que ele não é mais o que era, distorcido/fracassado, ele se torna alguém que aprende no movimento. E isso faz com que cada um se constitua na singularidade de cada processo. Daí depreende-se a educação como um processo conjunto, inapropriável de formar pessoas a partir de suas potencialidades, as quais acontecem no movimento do ir aprendendo e o torna singular.

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Trajetórias Criativas: jovens de 15 a 17 anos no ensino fundamental: uma proposta metodológica que promove autoria, criação, protagonismo e autonomia: caderno 1: proposta [organizadores, Italo Modesto Dutra... et al.]. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16320-seb-traj-criativas-caderno1-proposta&Itemid=30192 . Acesso em: 27 maio 2018. [ Links ]

CASTELS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar , 2018. [ Links ]

COSTA, Helrison. O Lugar das Contracondutas na Genealogia Foucaultiana do Governo. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília: UNB, v.7, n.1, p. 61-78. Abr. 2019. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/20767/21829 . Acesso em: 30 jul. 2019. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian - O Comum é a revolução, dizem Dardot e Laval. IHU on line. UNISINOS: São Leopoldo, 26 out. 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573045-o-comum-e-a-revolucao-dizem-dardot-e-laval . Acesso em: jun. 2018. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian . Anatomia do novo neoliberalismo. Artigo de Pierre Dardot e Christian Laval. IHU on line. UNISINOS: São Leopoldo , 25 jul. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591075-anatomia-do-novo-neoliberalismo-artigo-de-pierre-dardot-e-christian-laval . Acesso em: 02 jun. 2019. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova Razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. [ Links ]

DIAS, Karina de Araújo. A formação continuada de profissionais da Rede Municipal de Florianópolis: governamento e constituição de subjetividades docentes. 2017. Tese (Programa de Pós Graduação em Educação). Florianopolis: UFSC, 2017. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/180702 . Acesso em: 20 ago. 2019. [ Links ]

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-278. [ Links ]

FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, v. 84, n. 2, p. 35- 63, avril/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Disponível em: Disponível em: http://www.filoesco.unb.br/foucault . Acesso: 26 maio 2010. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: Curso no Collège de France (1977-1978). 1 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 572p. [ Links ]

GALLO, Silvio. Educação: entre a subjetivação e a singularidade. Educação. Santa Maria, v. 35, n. 2, p. 229-244, maio/ago. 2010. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/2073 . Acesso em: 30 jun.2019. [ Links ]

GOULART, L. B.; SAENGER, L.. Trajetórias Criativas: abordagem metodológica para inserção de estudantes em processo de exclusão escolar. In: XIII Congresso do SPCE, 2016, Viseu - Portugal. XIII SPCE: fronteiras, diálogos e transições na educação. Viseu: Instituto Politécnico de Viseu. Escola Superior de Educação, 2016. p. 469-478. [ Links ]

GRABOIS, P. F.. Resistência e revolução no pensamento de Michel Foucault: contracondutas, sublevações e luta. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v. 19, n. 2, p. 7-27, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cefp/article/view/55736 . Acesso em: 15 ago. 2019. [ Links ]

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP. Painel Educacional, Brasília, 2018. Disponível em: Disponível em: http://portal.inep.gov.br/painel-educacional . Acesso em: 25 jun.2019. [ Links ]

LAVAL, Christian. Os Estados construíram o atual sistema neoliberal. Entrevista com Christian Laval. IHU on line. UNISINOS: São Leopoldo , 24 mar. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518704-os-estados-construiram-o-atual-sistema-neoliberal-entrevista-com-christian-laval . Acesso em: 02 jun. 2019. [ Links ]

LOCKMANN, Kamila. A BNCC e os processos de in/exclusão: novas reconfigurações? Mesa redonda: BNCC e as políticas de inclusão na Educação Básica no Brasil. 2019. Colóquio Internacional de Educação Especial e Inclusão Escolar- UDESC. Florianópolis- SC, 25 a 27 de junho de 2019. [ Links ]

LORENZINI, Daniele. Foucault, la contro-condotta e l’atteggiamento critico - Materiali Foucaultiani, v. IV, n. 7-8, pp. 137-147. Gennaio-dicembre 2015. Disponível em:Disponível em: https://issuu.com/materialifoucaultiani/docs/materiali_foucaultiani_iv_7-8 . Acesso: 31 jul. 2019. [ Links ]

MARÍN-DÍAZ, Dora Lília. A antropotécnica que molda o indivíduo pela educação. IHU On Line. São Leopoldo-RS: UNISINOS, n. 472, ano XV, 14/09/2015, p. 33-37. Disponível em: Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/472 . Acesso: 21 ago. 2019. [ Links ]

PARAÍSO, M.; CALDEIRA, M. C. Currículos, gêneros e sexualidades para fazer a diferença. Pesquisas sobre currículos, gêneros e sexualidades. (Orgs.). Belo Horizonte: Mazza, 2018, p.13-22. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Colégio de Aplicação. Programa jovens de 15 a 17 anos no Ensino Fundamental/MEC. Relatório final 2014 - 2018. Porto Alegre, 2018. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. Águas claras, águas turvas. In: XI Colóquio Internacional Michel Foucault: Foucault e as Práticas de Liberdade, 2018, Florianópolis: UFSC, 2018. [ Links ]

Recebido: 30 de Agosto de 2019; Aceito: 30 de Novembro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons