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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.17 no.4 São Paulo oct./dic. 2019  Epub 27-Ene-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2019v17i4p1759-1780 

Artigos

EDUCAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA BNCC

FULL-TIME EDUCATION IN THE CONTEXT OF THE BNCC

EDUCATIÓN INTEGRAL EN EL CONTEXTO DE LA BNCC

Jane BITTENCOURTi 

i Doutora em Educação. Professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática e suas multidimensões (GEPDim). E-mail: jane.bittencourt@ufsc.br.


RESUMO

Este trabalho analisa a questão da educação integral diante da organização curricular proposta pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em sua versão final, publicada em dezembro de 2018, com o intuito de apontar limitações e possibilidades para a implementação de projetos de educação integral nesse novo contexto. Definiu-se como foco de análise um aspecto considerado comum entre as diversas propostas educativas recentes em educação integral baseadas nos programas governamentais publicados durante a década de 2000: a ampliação curricular. Considerando que a ampliação curricular se refere à questão dos tempos, dos espaços educativos, à diversificação e à integração dos saberes escolares, procurou-se identificar esses elementos na BNCC. Conclui-se afirmando que a viabilidade de implementação de projetos educativos em educação integral com a adoção dessa base comum curricular é bastante limitada, tendo em vista que os diversos fatores que caracterizam a ampliação curricular em projetos de educação e de formação integral não são enfatizados na opção curricular da BNCC.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Integral; Formação integral; Ampliação curricular; Integração curricular

ABSTRACT

This work analyzes the issue of full-time education in view of the curricular organization proposed by the National Common Curricular Base (known as BNCC), in its final version, published in December 2018, with the aim of pointing out limitations and possibilities for the implementation of full-time education projects in this new context. We defined as a focus of analysis an aspect considered common among the several recent educational proposals in integral education based on the governmental programs published during the decade of 2000: the curricular expansion. Considering that the curricular expansion refers to the expansion of time, educational spaces and diversification and integration of the school knowledge, we tried to identify these elements in the BNCC. We conclude by stating that the feasibility of implementing educational projects in full-time education, with the adoption of this common curricular base, is quite limited, considering that the several factors that characterize the curricular expansion in projects of full-time education and integral development are not emphasized in the curricular option of the BNCC.

KEYWORDS: Full-time education; Integral development; Curricular expansión; Curricular integration

RESUMEN

Este trabajo analiza el problema de la educación integral delante de la organización curricular propuesta por la Base Nacional Común Curricular BNCC, en su versión final, publicada en diciembre de 2018, con el propósito de señalar limitaciones y posibilidades para la implementación de proyectos de educación integral en este nuevo contexto. Se definió como foco de análisis un aspecto considerado común entre las diversas propuestas educativas recientes en educación integral basadas en los programas gubernamentales publicados durante la década de 2000: la ampliación curricular. Considerando que la ampliación curricular se refiere a la de los tiempos, de los espacios educativos y a la diversificación y a la integración de los saberes escolares, se procuró identificar estos elementos en la BNCC. Concluimos afirmando que la viabilidad de implementación de proyectos educativos en educación integral con la adopción de esta base común curricular es bastante limitada, teniendo en cuenta que los diversos factores que caracterizan la ampliación curricular en proyectos de educación y de formación integral no son enfatizados en la opción curricular de la BNCC.

PALAVRAS-CLAVE: Educación integral; Formación integral; Ampliación curricular; Integración curricular

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho procura discutir as limitações e as possibilidades para a educação integral no contexto da política curricular atualmente vigente para a Educação Básica, após a aprovação da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em dezembro de 2018. Compreendemos a educação integral como um conjunto de iniciativas educacionais que dizem respeito tanto à ampliação da jornada escolar, quanto a projeto educativos que visam ao desenvolvimento integral dos estudantes.

A questão das limitações e das possibilidades da educação integral para os próximos anos, no contexto da BNCC, é especialmente relevante se considerarmos que a meta de implementação gradativa do turno integral em parte das escolas públicas, conforme está previsto no Plano Nacional de Educação - Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (BRASIL, 2014a), com vigência até 2024, permanece um desafio. Considerando que a opção curricular da BNCC é o currículo por competências associado ao propósito de educar para a cidadania global, cabe questionar qual é a relevância e a viabilidade das atuais propostas e experiências educativas em turno integral, com o propósito de uma formação humana integral neste novo contexto. Esse é o principal objetivo deste trabalho.

Como se trata de uma questão muito ampla, limitamos esta análise a alguns dos elementos que têm constituído os pilares das propostas governamentais para uma escolarização em tempo integral a partir dos anos 2000. E, ainda, devido à amplitude da Educação Básica e à particularidade da Educação Infantil do ponto de vista da organização curricular, as considerações deste trabalho a respeito da BNCC se referem sobretudo ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio.

Inicialmente, analisamos tendências presentes na discussão e na implementação de propostas de educação integral, com o intuito de identificar alguns elementos característicos, com ênfase na organização curricular, foco principal da análise desenvolvida neste trabalho. Em seguida, buscamos caracterizar o desenho curricular da BNCC, de modo a considerar as relações entre os elementos apontados anteriormente e o que se propõe como currículo a partir da Base. Tecemos considerações finais tendo em vista indicar antagonismos, incompatibilidades e possibilidades em torno da implementação efetiva de uma escolarização integral neste contexto.

2 EDUCAÇÃO INTEGRAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS: O CURRÍCULO AMPLIADO

Mesmo se as iniciativas recentes de educação integral no Brasil datam dos anos 2000, sob influência de programas governamentais, como indicam diversos trabalhos (COELHO; CAVALIERE, 2002; COELHO, 2009; CAVALIERE, 2010), a educação integral no Brasil não é recente, se considerarmos as propostas de Anísio Teixeira, na primeira metade do século XX, materializadas na Escola Parque de Brasília ou, ainda, posteriormente, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) do Rio de Janeiro, nos anos de 1980. Embora muito significativas, essas experiências mantiveram-se, por força de seus proponentes e das conjunturas políticas da época, restritas a certas regiões do país.

Em âmbito nacional, a temática da escolarização em tempo integral é retomada a partir da década de 1990, quando o termo “integral” começa a se fazer mais presente na legislação educacional brasileira, como é o caso do princípio de “proteção integral” defendido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. O Estatuto considera a educação um direito fundamental da criança e do adolescente e afirma que a garantia da proteção integral, associada às metas de educar e cuidar, como a principal finalidade da educação, tem em vista a construção da cidadania (BRASIL, 1990). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 - segue essa orientação e articula os fins da educação à ampliação progressiva da jornada escolar, com ênfase na formação integral dos estudantes (BRASIL, 1996).

Seguindo essas diretrizes, a partir dos anos 2000, podemos identificar a consolidação de propostas educativas que têm por objetivo viabilizar a ampliação da jornada por meio de programas governamentais. É o caso do Programa Mais Educação, instituído em 2007 (BRASIL, 2007), assim como o Programa Ensino Médio Inovador, destinado ao Ensino Médio (BRASIL, 2009a), e as sucessivas reformulações de ambos os programas (BRASIL, 2014b; 2016).

Esses programas, a partir dos quais derivaram diversos projetos educativos em vários estados brasileiros, foram bastante significativos, pois incitaram a retomada e o aprofundamento do tema, serviram de incentivo à pesquisa em educação integral e promoveram a divulgação de práticas pedagógicas em tempo integral.

Desde então, neste período de quase 20 anos, ou seja, dos anos 2000 até a atualidade, evidenciamos que não há uma proposta única de educação integral na Educação Básica, nem um modelo a seguir, mas uma multiplicidade de alternativas de organização curricular. Esse indicativo, talvez um dos aspectos mais positivos das experiências educativas contemporâneas em educação integral, foi possível porque os próprios programas governamentais dos anos 2000 se apresentaram como um conjunto de possibilidades, para que cada escola ou cada rede de ensino pudesse tomar suas próprias decisões curriculares, de acordo com as suas condições de gestão, de infraestrutura e de demandas das respectivas comunidades de atendimento escolar.

Apesar da diversidade de propostas e possibilidades de implementar a jornada ampliada, ao menos no que diz respeito à organização curricular, foco desta análise, podemos identificar alguns traços gerais do que consideramos um aspecto comum às diversas iniciativas: a ampliação curricular.

Embora existam diversas definições do que seja currículo1, estamos considerando uma concepção ampla, que diz respeito não só à seleção e ao modo de organização das disciplinas escolares, mas ao conjunto de atividades educativas intencionais, que configuram, em certa instituição, o trabalho pedagógico. Essa concepção, que afirma a multidimensionalidade do currículo, aproxima-se dos estudos curriculares com ênfase no cotidiano, no modo como os conhecimentos são tecidos nas práticas escolares e nos modos de regulação dos saberes no conjunto das práticas pedagógicas, como sugerem Alves (1998) e Alves e Oliveira (2010).

Nessa concepção, um aspecto característico dos currículos em educação integral, como procuraremos elucidar a seguir, refere-se à ampliação curricular tendo em vista oportunizar novas aprendizagens. A ampliação do currículo incide nos tempos e nos espaços educativos, assim como na ampliação dos saberes escolares, conjuntamente às possibilidades de organização desses saberes na escola.

De fato, um primeiro aspecto da ampliação curricular na construção de uma escolarização integral diz respeito, obviamente, à ampliação do tempo de permanência na escola. No caso brasileiro, a LDB já havia estabelecido, em seu Artigo 34, a ampliação progressiva da jornada escolar (BRASIL, 1996). Em seguida, o Plano Nacional de Educação, com vigência de 2001 a 2010, definiu, em sua meta 21, referente ao Ensino Fundamental: “Ampliar, progressivamente a jornada escolar visando expandir a escola de tempo integral, que abranja um período de pelo menos sete horas diárias, com previsão de professores e funcionários em número suficiente” (BRASIL, 2001, n.p.). A meta 22 determinou a finalidade educativa do tempo ampliado:

Prover, nas escolas de tempo integral, preferencialmente para as crianças das famílias de menor renda, no mínimo duas refeições, apoio às tarefas escolares, a prática de esportes e atividades artísticas, nos moldes do Programa de Renda Mínima Associado a Ações Sócioeducativas (BRASIL, 2001, n.p.).

Ao final da vigência do Plano Nacional de Educação, em 2010, a Resolução que definiu Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica - Resolução Nº 4, de 13 de julho de 2010 (BRASIL, 2010) - instituiu o mínimo de sete horas para o turno integral e sugeriu a revisão do currículo no contexto de uma política educacional centrada na consolidação da organicidade da Educação Básica:

Art. 12. Cabe aos sistemas educacionais, em geral, definir o programa de escolas de tempo parcial diurno (matutino ou vespertino), tempo parcial noturno, e tempo integral (turno e contra-turno ou turno único com jornada escolar de 7 horas, no mínimo, durante todo o período letivo), tendo em vista a amplitude do papel socioeducativo atribuído ao conjunto orgânico da Educação Básica, o que requer outra organização e gestão do trabalho pedagógico (BRASIL, 2010, p. 4).

Atrelada à ampliação do tempo de permanência na escola, coloca-se a questão do espaço escolar, assim como de outros espaços educativos, como sugere o parágrafo 1º deste mesmo artigo das Diretrizes Curriculares: “§ 1º Deve-se ampliar a jornada escolar, em único ou diferentes espaços educativos, nos quais a permanência do estudante vincula-se tanto à quantidade e qualidade do tempo diário de escolarização quanto à diversidade de atividades de aprendizagens” (BRASIL, 2010, p. 4).

É importante salientar que essa indicação de diferentes espaços educativos não se relaciona somente à necessidade de repensar a viabilidade do uso do espaço escolar para um atendimento em tempo ampliado. Refere-se também a um ponto de vista pedagógico em torno da questão da aprendizagem, sob influência de algumas vertentes de argumentação, desde os anos de 1990. Uma dessas vertentes argumentativas é a afirmação da ideia de aprendizagem ao longo da vida.

Desde o Relatório Delors (UNESCO, 2010), elaborado em 1996, o pressuposto de que as aprendizagens transcendem o tempo e o espaço escolar, são múltiplas e se desenvolvem ao longo da vida foi indicado como uma diretriz educacional para a educação mundial. Esse pressuposto, juntamente aos quatro pilares da educação (Aprender a conhecer, a fazer, a viver com os outros, a ser), também sugeridos pelo mesmo documento, foram incorporados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) como uma de suas principais diretrizes pedagógicas.

O documento Introdução dos PCN (BRASIL, 1998, p. 16) afirma que “a análise da conjuntura internacional” indica algumas recomendações, tais como: “[...] os tempos e os campos da educação devem ser repensados, completar-se e interpenetrar-se, de modo que, cada indivíduo, ao longo de sua vida, possa tirar o melhor proveito de um ambiente educativo em constante transformação”.

A educação ao longo da vida tem por base outro pressuposto importante, o aprender a aprender como finalidade da educação. Esse pressuposto foi elaborado, inicialmente, na Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem, conhecida como Declaração de Jomtien (UNESCO, 1990), documento que serviu de alicerce para a reestruturação curricular proposta pelos Parâmetros Curriculares brasileiros.

Dessa maneira, não só no Brasil, mas em âmbito internacional, ao longo dos anos de 1990 e 2000, pudemos acompanhar a consolidação argumentativa em torno da afirmação do aprender a apender, por meio de múltiplas aprendizagens, em diferentes espaços educativos, em diferentes temporalidades e ao longo da vida2. Paralelamente, nesse mesmo contexto argumentativo e propositivo, outra vertente significativa a respeito da consideração de múltiplos espaços de aprendizagem, para além da escola, é o movimento “cidade educadora”, que surgiu nos anos de 1990, centrado na cidade de Barcelona, a partir de um debate que se desencadeou ainda no início da década de 1970, por iniciativa da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), com o intuito de repensar os propósitos da educação em nível mundial.

Essa proposta, entretanto, permaneceu latente na década de 1980 e foi retomada somente na década seguinte, como atesta a consolidação da proposta no Congresso Internacional das Cidades Educadoras, promovido pela UNESCO, realizado em Barcelona em 1994. Nesse Congresso, a ideia de cidade educadora é retomada e oficialmente assumida como diretriz, oficializada em uma carta de princípios, esboçada em 1994. Reelaborada em 2004, a Carta das Cidades Educadoras (2006) expressa já com bastante clareza todos os princípios a serem adotados pelas cidades que venham a fazer parte do programa das Cidades Educadoras em todo o mundo.

A Carta (2006) defende, como ponto de partida, a ideia de cidade educadora como um direito, uma extensão do direito à educação. Seus argumentos estão baseados na consideração de processos educativos formais e não formais, atrelados ao estabelecimento da democracia e da plena cidadania, ambas compreendidas em um âmbito global. O documento expressa seus propósitos em três eixos principais, a saber: o direito a uma cidade educadora, o compromisso da cidade e o serviço integral às pessoas. Nestes, destacam-se princípios educativos que foram adotados em diversas propostas curriculares brasileiras nos anos 2000, tais como: a educação na diversidade; educação inclusiva e acolhedora; projetos educativos baseados no diálogo entre gerações; corresponsabilidade na proposição e gestão dos processos educativos; desenvolvimento sustentável; participação cidadã, crítica e responsável.

No contexto das proposições de educação integral, como atestam os documentos de divulgação do Programa Mais Educação (BRASIL, 2009b, 2009c), todos os princípios educativos mencionados, inclusive a ideia de cidade educadora, são adotados. O programa prevê a partilha de responsabilidade dos processos educativos entre os entes sociais envolvidos, em seus respectivos lugares de atuação, e apostam na possibilidade de se estabelecerem redes de colaboração (as chamadas “redes de aprendizagem”) entre os diversos setores sociais (o princípio de “intersetorialidade”).

Nesse contexto, sob influência de diretrizes educativas internacionais, a ampliação da jornada escolar é atrelada à consideração de outros espaços educativos, supondo novas condições de gerenciamento e de infraestrutura, para além das condições da própria escola. Para isso, espera-se contar com o envolvimento de setores públicos e privados como forma de sustentar os projetos de educação integral.

Como indicamos até agora, a ampliação curricular para a educação integral tem por base tanto a ampliação do tempo escolar quanto dos espaços educativos, ambos aliados a uma concepção de aprendizagem que revela a influência de diretrizes internacionais para a educação no novo milênio. Esses fatores, por sua vez, remetem a um terceiro aspecto, a possibilidade de novas aprendizagens, ou seja, a ampliação dos saberes veiculados pela escolarização. Não se trata apenas de viabilizar a jornada escolar ampliada, mas, sim, de oportunizar um conjunto de aprendizagens que possam assegurar a formação integral aos estudantes.

É importante salientar que, embora não haja consenso sobre o que seria uma formação integral, a consideração dos múltiplos aspectos característicos do desenvolvimento humano, e não só do aspecto cognitivo, parece ser um argumento bastante aceito, ao menos do ponto de vista dos documentos curriculares que mencionam esta questão.

É o caso, por exemplo, da Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que afirma:

Art. 3. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990, p. 13563).

Como sugere Guará (2009) a respeito do que seria o desenvolvimento integral:

A associação entre educação integral e desenvolvimento integral se ancora na oferta regular e contínua de oportunidades para um crescimento humano tecido na experiência socioistórica, na articulação das diversas dimensões da vida e na interdependência entre processos e contextos de vida. Neste mundo real a criança precisa adquirir competências sociais, físicas, intelectuais e emocionais, engajando-se com confiança em projetos cada vez mais complexos e em relações ampliadas (GUARÁ, 2009, p. 78).

Nesse sentido, promover o desenvolvimento integral implica possibilitar aos estudantes experiências educativas diversificadas, tendo em vista contemplar, além do desenvolvimento cognitivo, outras dimensões fundamentais do desenvolvimento humano, como é caso das dimensões ética e estética, que já estavam previstas nos PCN.

Portanto, tendo em vista compor projetos educativos voltados à formação integral, torna-se crucial rever os saberes veiculados pela escolarização. Nesse debate complexo, situado na intersecção dos campos do Currículo e da Didática, com influência de diversas vertentes teóricas, identificamos três eixos importantes: a busca pela ampliação do repertório dos saberes escolares; a diversificação das referências culturais desses saberes e a questão de sua integração.

Em relação à ampliação do repertório de saberes, é bastante evidente que as atuais experiências de educação integral têm enfatizado, em seus currículos de jornada ampliada, principalmente no contraturno, atividades artísticas e culturais, assim como atividades desportivas e corporais. O próprio Programa Mais Educação sugere que uma de suas finalidades é

[...] promover a formação da sensibilidade, da percepção e da expressão de crianças, adolescentes e jovens nas linguagens artísticas, literárias e estéticas, aproximando o ambiente educacional da diversidade cultural brasileira, estimulando a sensorialidade, a leitura e a criatividade em torno das atividades escolares (BRASIL, 2007, p. 2).

É interessante observar, como atesta um balanço dos resultados do Programa realizado a partir de pesquisa em diversas regiões do país em escolas que aderiram ao Programa Mais Educação, publicado no documento Tendências em Educação Integral (UNICEF, 2011), que as atividades relacionadas à arte e à cultura foram de fato, no período considerado, de 2007 a 2011, as mais predominantes na organização curricular em jornada integral das escolas de redes públicas:

As atividades são desenvolvidas por meio de vivências nas múltiplas linguagens artísticas (dança, música, teatro, artes visuais) e partem da noção de que a arte potencializa o desenvolvimento cognitivo, afetivo e simbólico envolvido no ato de conhecer, bem como potencializa o desenvolvimento individual a partir de processos de identificação cultural (UNICEF, 2011, p. 48).

De acordo com o documento, destacam-se, em segundo lugar, as atividades associadas ao esporte e à educação do movimento, com ênfase no desenvolvimento de atitudes:

As diversas modalidades ofertadas buscam, além de ampliar o repertório motor das crianças e adolescentes, propiciar vivências para o desenvolvimento de valores e atitudes como respeito, cooperação, solidariedade, confiança, senso crítico; atitudes positivas em relação ao ambiente escolar e à convivência coletiva; além de incutir noções de saúde, higiene, participação e cidadania (UNICEF, 2011, p. 50).

Como vemos nesses exemplos e na vasta bibliografia voltada às análises das experiências educativas atuais (MOLL, 2012; COELHO, 2012; GALIAN; SAMPAIO, 2012); trata-se de não só de uma ampliação, mas de uma mudança de ênfase nos currículos, ao menos no contraturno, dos saberes escolares tradicionais, veiculados pelas disciplinas escolares, a componentes curriculares transversais, a aspectos atitudinais e ao reconhecimento do papel formativo das artes e da cultura no desenvolvimento humano. Estes parecem constituir tendências importantes da tentativa de ampliação do repertório de saberes e de experiências educativas tendo em vista uma formação integral.

Ressaltamos ainda que a diversificação dos saberes remete a um outro aspecto bastante significativo, a ampliação das referências culturais desses saberes. Esse tema, que não se limita à educação integral, pois corresponde ao próprio movimento curricular brasileiro nas últimas décadas, incorpora, gradativamente, reinvindicações de diversos grupos sociais até recentemente ausentes dos currículos, como atestam as diversas inserções no texto original da LDB (BRASIL, 1996) em torno da consideração da diversidade cultural, social, étnica e racial. Citamos, por exemplo, a indicação, no artigo 26, de que o currículo abarque “[...] características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (BRASIL, 1996, n.p.); o artigo 26-A, que torna “[...] obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 1996, n.p.); a indicação, no § 2º do artigo 26-A, de que: “Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras” (BRASIL, 1996, n.p.).

No caso da educação integral, em consonância com esse movimento de diversificação das referências culturais nos currículos, destacamos a ênfase na valorização dos saberes locais, na cultura e na história local, como atesta claramente a proposta da inserção dos chamados “saberes comunitários”, conforme sugerido pelo Programa Mais Educação (BRASIL, 2009c). Neste, encontra-se um menu de saberes3, que considera as diversas práticas socioculturais relevantes na comunidade de atendimento escolar, tendo em vista oportunizar não só novas aprendizagens, mas principalmente aproximar as comunidades da escola, gerando, desse modo, processos de identificação a partir da consideração, no currículo, de elementos das culturas locais e regionais.

Finalmente, além da ampliação do repertório de saberes e de suas referências culturais, de modo a compor currículos multi ou interculturais, é necessário que os saberes escolares tradicionais possam dialogar com outros saberes, como é o caso dos saberes comunitários.

Essa questão também não é exclusiva do debate em torno da educação integral, pois a integração curricular é um tema já bastante discutido em educação. A interdisciplinaridade como fator de integração entre as disciplinares escolares, por exemplo, é princípio educativo que já havia sido assumido pelos PCN, principalmente para o Ensino Médio.

Entretanto, no caso da educação integral, tendo em vista o desenvolvimento integral dos estudantes, a integração entre os saberes torna-se uma premissa fundamental, já que a fragmentação característica do modelo estritamente disciplinar, predominante nos modelos tradicionais de escolarização, certamente não contribui para uma formação ampla, contextualizada e capaz de fornecer aos estudantes uma compreensão abrangente dos fenômenos.

Essa argumentação, atrelada à busca pela formação integral, é mencionada nos diversos programas governamentais de educação integral. Um bom exemplo é o Programa Ensino Médio Inovador, instituído em 2009 pelo Governo Federal, cuja proposta, sistematizada alguns anos depois, é apresentada no Documento Orientador, publicado em 2014. O documento esclarece a proposta de currículo integrado para o Ensino Médio:

O redesenho curricular que se pretende, reafirma a importância dos conteúdos específicos de cada componente curricular, mas transcende as fragmentações frequentes com o padrão constituído apenas por disciplinas e tempo de 50 minutos, apontando a necessidade de diálogo entre componentes e áreas que compõem o currículo para pensar ações e respectivas atividades dentro de cada macrocampo. (BRASIL, 2014b, p. 8).

Os macrocampos4 do Programa são definidos como

[...] um eixo a partir do qual se possibilita a integração curricular com vistas ao enfrentamento e à superação da fragmentação e hierarquização dos saberes. Permite, portanto, a articulação entre formas disciplinares e não disciplinares de organização do conhecimento e favorece a diversificação de arranjos curriculares. (BRASIL, 2014b, p. 8).

Pretende-se, portanto, uma ampliação curricular baseada na articulação entre as disciplinas tradicionais do Ensino Médio e práticas interdisciplinares, ou mesmo não disciplinares, favorecendo novos arranjos curriculares.

No Programa destinado ao Ensino Fundamental, também há uma preocupação em assegurar formas de integração curricular, tanto entre os saberes escolares tradicionais e os saberes comunitários propostos, quanto entre as disciplinares escolares e suas respectivas áreas de conhecimento e os novos saberes introduzidos pela proposta do Programa.

De modo a viabilizar esses diversos níveis de integração, é proposta uma metodologia especialmente concebida para essa finalidade, as Mandalas dos Saberes (BRASIL, 2009c), que pretende ser uma ferramenta no planejamento do trabalho pedagógico, que possa viabilizar composições curriculares alternativas e integradoras entre o turno escolar, composto pelas disciplinas tradicionais, e o contraturno, composto por outros saberes e referências culturais.

Como indicam diversas pesquisas de análise a respeito da ampliação da jornada escolar (MOLL, 2012), o desafio de integrar, entre o turno e o contraturno, os saberes e as experiências educativas introduzidas pelos projetos de educação/formação integral, persiste e constitui a principal barreira para uma educação efetivamente integral e integrada.

Procuramos argumentar, até agora, com base em exemplos dos programas governamentais, que a educação integral tem por característica a ampliação curricular, tanto no que diz respeito à ampliação dos espaços/tempos escolares, quanto em relação à ampliação e à diversificação dos saberes, tendo em vista não só a jornada integral, mas projetos formativos que atendam ao desenvolvimento integral dos estudantes. É importante salientarmos que esses eixos de ampliação têm se deparado, do ponto de vista da sua implementação efetiva, com as formas tradicionais de organização do trabalho pedagógico escolar, que geram empecilhos para exploração de outros espaços educativos, para a inserção de atividades artísticas e culturais integradas às demais atividades, assim como para lidar com múltiplas aprendizagens e com novos referentes culturais. A maior parte dessas dificuldades acaba incidindo na necessária integração entre turno e contraturno.

Dessa maneira, com base nestes quase 20 anos de experiência de educação integral nos tempos atuais, é evidente que não basta ampliar o currículo, é necessário viabilizar outro modo de funcionamento da escola, com soluções operacionais e de infraestrutura, assim como uma dinâmica de trabalho mais coletiva, mais integrada, mais cooperativa. Com base nos elementos apontados até agora, que servirão de indicativos de análise, passaremos a considerar o desenho curricular proposto pela BNCC.

3 A BNCC E A EDUCAÇÃO INTEGRAL

A BNCC brasileira parte de um pressuposto curricular que não é novo no Brasil, a organização do currículo por competências. Essa opção foi adotada pelos PCN, publicados no final da década de 1990, com mais ênfase nos documentos voltados ao Ensino Médio, e nas reformulações curriculares do Ensino Médio e da Educação Profissional desde então.

O debate sobre a adoção das competências em educação remete ao final dos anos 1990, associado a uma conjuntura social e econômica atrelada às mudanças e às necessidades do mundo do trabalho em âmbito internacional, em um cenário de crise, como caracterizou Deluiz (2001):

Esta crise se expressa pelo esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista; pela hipertrofia da esfera financeira na nova fase do processo de internacionalização do capital; por uma acirrada concorrência intercapitalista, com tendência crescente à concentração de capitais devido às fusões entre as empresas monopolistas e oligopolistas; e pela desregulamentação dos mercados e da força de trabalho, resultantes da crise da organização assalariada do trabalho e do contrato social (DELUIZ, 2001, p. 1).

No contexto de transferência das exigências do mundo do trabalho à esfera educacional e curricular, busca-se uma formação na qual a aprendizagem remete ao desempenho do sujeito atrelado à aquisição de uma competência. Como sinaliza Ramos (2001), em relação a este mesmo período de consideração da noção de competências em educação, a validação de um conhecimento adquirido se dá, na pedagogia das competências, a partir de sua utilização em contexto, em uma perspectiva pragmática e utilitária.

É importante salientarmos que a noção de competências, diretamente relacionada às exigências do mundo do trabalho no século XXI e a um novo perfil de trabalhador, sugere, nos processos educativos, a consideração de diversos aspectos do desenvolvimento humano, abarcando os cognitivos, assim como os psicomotores e os socioafetivos. Trata-se, portanto, de uma perspectiva global de formação, baseada na aquisição de informações e de conhecimentos, mas também de habilidades, de atitudes e de valores, cuja integração é fundamental para a garantia de um bom desempenho profissional. Por essa razão, a organização curricular por competências é considerada, como sugerem Lopes e Macedo (2002), uma das possibilidades de integração curricular.

No entanto, embora seja uma perspectiva global, sua finalidade é pragmática, pois o objetivo nessa formação ampla dos sujeitos é a eficiência e a eficácia do trabalhador no desempenho de suas atividades laborais. Trata-se de uma concepção de formação ampla, flexível, baseada na autonomia e na capacidade dos estudantes de aplicar os conhecimentos adquiridos tendo em vista a tomada de decisões em situação.

As implicações da adoção da noção de competências continuaram a repercutir no Brasil, sob influência cada vez mais marcante dos organismos internacionais de acompanhamento, controle e regulação da educação em nível mundial, como é o caso da ONU, da UNESCO desde o início dos anos 1990, e, mais recentemente, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A concepção de competências, adotada pelos PCN para o Ensino Médio e pelas reformulações curriculares da Educação Profissional, que marcaram a década de 2000, foi redefinida pela OCDE, em parceria com a UNESCO, para o contexto contemporâneo, como atesta o documento Global Competency for an Inclusive World (OCDE, 2016). Neste, encontra-se a caracterização das competências de acordo com os propósitos da denominada Educação para a Cidadania Global (ECG)5, finalidade da educação mundial de acordo com a OCDE, o que constitui o princípio norteador da organização curricular adotada pela BNCC.

Em sua versão final, o documento (BRASIL, 2018) afirma a adoção da noção de competências em sua organização curricular como:

Ao adotar esse enfoque, a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BRASIL, 2018, p. 13).

O desenho curricular segue a mesma organização que já havia sido proposta pelos PCN, ou seja, a definição de quatro grandes áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas), cada uma delas composta por seus componentes curriculares, que remetem às disciplinas escolares. Em relação aos PCN, a Base apresenta um maior grau de detalhamento das competências, pois são definidas dez competências gerais para a Educação Básica, competências específicas de cada uma das áreas e competências específicas de cada um dos componentes curriculares de cada área, para cada grau de ensino.

Os princípios educativos gerais, já adotados em documentos curriculares orientadores desde os PCN, reafirmados nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2010), estão reunidos na apresentação do documento e constituem seu arcabouço propositivo: os princípios éticos, políticos e estéticos; os princípios de igualdade, de diversidade e de equidade; e, ainda, a formação integral.

Em seu texto de Introdução, a BNCC afirma o compromisso com a educação integral da seguinte maneira:

[...] a Educação Básica deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades (BRASIL, 2018, p. 14).

A concepção de educação integral na BNCC adotada

[...] se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea (BRASIL, 2018, p. 14).

A partir dessas definições do documento, podemos identificar algumas contradições. Inicialmente, destacamos que, embora o documento reafirme a busca pelo desenvolvimento humano integral na perspectiva da aquisição de competências, a sintonia com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, esta não constitui a característica principal do seu desenho curricular, já que se trata de um documento curricular que especifica previamente todos os objetos de conhecimento de todas as áreas, em cada grau de ensino, cada qual com seus respectivos objetivos de aprendizagem, denominados de “habilidades”.

Uma outra contradição da BNCC em relação ao compromisso com uma formação integral diz respeito às possibilidades de integração curricular, um requisito importante em currículos de educação/formação integral. As habilidades correspondentes a cada componente curricular definido referem-se a diversos tipos de objetivos (conceituais, procedimentais e atitudinais). Assim sendo, nem sempre são de fato habilidades, que deveriam se referir apenas aos objetivos procedimentais, isto é, à utilização dos conhecimentos em situação. Essa confusão na terminologia em um currículo organizado por competências remete à falta de distinção entre os elementos que constituem uma competência (conhecimentos, habilidades, atitudes e valores), o que corresponde, por sua vez, à falta de distinção entre os tipos de conteúdo (conceitual, atitudinal ou procedimental). Disso, resultam listas de objetivos de aprendizagem (as chamadas habilidades) fragmentadas e misturadas, para cada componente curricular, dentro de cada uma das áreas.

Portanto, se há, nesse desenho curricular, como se pressupõe em um currículo por competências, conhecimentos, habilidades ou atitudes comuns, que poderiam, eventualmente, ser compartilhadas entre as áreas, de modo a assegurar algum eixo de integração curricular, é bastante difícil de identificá-los nessa formulação de uma base curricular. Além disso, a própria concepção de integração curricular, como já assinalava Lopes (2002) em suas análises a respeito dos PCN para o Ensino Médio, que também adotaram o currículo por competências, a integração curricular, via interdisciplinaridade, é submetida à lógica das competências, que atribuiu à integração entre os componentes curriculares apenas uma função instrumental.

A partir dessa concepção, que já era evidente nos PCN e agora se confirma na BNCC, aliada ao elevado grau de detalhamento das habilidades em cada componente curricular, podemos pressupor que aquisição de competências gerais, que deveriam resultar em currículos organizados por competências, da integração entre as competências específicas, mostra-se muito pouco plausível. Temos um desenho curricular marcado por listagens de objetivos de aprendizagem (as denominadas habilidades) diversificados, bastante delimitados dentro de cada área de conhecimento, de natureza estritamente disciplinar.

Portanto, sem eixos claros de integração (que poderiam ser, como no caso dos programas governamentais direcionados para a educação integral, os macrocampos), podemos presumir que, com a adoção da BNCC, a formação dos estudantes continuará bastante fragmentada, centrada ora na busca pela aquisição de um conhecimento, ora no desenvolvimento de uma atitude ou no desempenho de uma habilidade6.

Em relação à questão da ampliação dos saberes, incluindo componentes curriculares artísticos e culturais, saberes comunitários e extraescolares, que, como vimos, caracterizam a tendência à diversificação e à ampliação da gama de saberes veiculados pela escolarização em projetos de educação integral, não encontramos essa ênfase nos objetos de conhecimento propostos pela BNCC. O olhar pragmático predominante na Base tende a apresentar uma ênfase muito maior nas possibilidades de utilização dos conhecimentos, das habilidades ou dos valores em situação, o que de fato caracteriza o currículo por competências, do que apostar no valor formativo intrínseco dos saberes.

Nesse sentido, componentes curriculares mais diretamente associados à dimensão estética, por exemplo, com alto valor formativo do ponto de vista dos sujeitos, mas com baixa aplicabilidade, como é o caso de componentes curriculares artísticos e culturais, não são enfatizados em todas as áreas, mas se encontram bastante restritos à grande área das Linguagens, que comporta os componentes curriculares Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Artes e Educação Física.

Essa característica não indica uma organização curricular marcada pela busca pelo desenvolvimento integral dos estudantes, compreendido em sua multidimensionalidade. Em se tratando apenas de uma base, como afirma o próprio documento, podemos inferir que esse aspecto do currículo estaria reservado à parte diversificada. Esse argumento fortalece ainda mais o fato de que não temos um currículo comum fundamentado no pressuposto de uma formação integral dos estudantes.

A questão da diversidade cultural, tendo em vista currículos de orientação multi ou intercultural, tendência bastante forte nos currículos que visam à formação integral, embora mencionada entre os princípios educativos da BNCC, não ganha destaque nas habilidades enunciadas para os componentes curriculares, nem mesmo na área das Ciências Humanas, nas quais esse aspecto do currículo ganharia mais facilmente relevo. Certamente a parte diversificada, caso as instituições optem por uma educação integral, deverá comtemplar a ampliação dos saberes, tanto no que diz respeito à inclusão de novos saberes, não disciplinares, não escolares ou do campo artístico e cultural, menos privilegiados no currículo, como quanto à diversificação das referências culturais que estes outros saberes acarretam.

Em relação aos tempos e aos espaços educativos ampliados, indicativos da ampliação curricular almejada em propostas de educação/formação integral, embora haja o reconhecimento do compromisso com a educação integral, não há menção nenhuma ao longo do documento de como será organizado o tempo ampliado. Na única parte do documento a respeito da educação integral, no capítulo “Introdução”, é afirmado que há um compromisso com a educação integral, “independentemente do tipo de jornada escolar” (BRASIL, 2018, p. 14).

Quanto à ampliação dos espaços educativos, não há menção no documento à consideração de aprendizagens extraescolares ou do potencial educativo da cidade ou de outros espaços sociais7.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como procuramos indicar neste artigo, a BNCC, embora afirme o compromisso com a educação integral e acate todas as orientações dos documentos curriculares vigentes, não apresenta um desenho curricular nem baseado, nem favorável à educação integral e integrada. Isso se dá devido à organização curricular por competências que foi adotada, além da desconsideração do tempo ampliado, dos espaços ampliados de aprendizagem, assim como da ampliação dos saberes, tanto no que tange à sua diversificação como à sua integração.

Assim sendo, ao analisarmos a BNCC em relação às experiências educativas mais recentes, podemos afirmar que as possibilidades de implementação de uma educação integral (do ponto de vista da formação integral dos estudantes) e integrada (do ponto de vista da integração curricular e da ampliação de tempos e espaços educativos), a partir da adoção dessa base comum curricular, são bastante limitadas.

Resta o argumento de que, em se tratando apenas de uma base, que pretende definir uma parte do currículo, a parte diversificada, a ser complementada de acordo com as necessidades de cada rede de ensino, poderia assumir a tarefa de complementar o currículo com novos saberes, novas referências culturais, assim como temáticas sociais e culturais relevantes para os estudantes e as coletividades. Poderia prever outros espaços de aprendizagem, assim como a inserção das atividades artísticas e culturais que têm fortemente caracterizado o contraturno da educação integral até o momento.

Nesse caso, entretanto, corremos o risco de aprofundar ainda mais a dicotomia entre o turno, voltado à aquisição de competências, em um formato disciplinar, e o contraturno, voltado à diversificação e à ampliação curricular. Bastante contraditórios, como poderiam conviver, na escola, esses dois tipos de currículo? Estaríamos ainda mais longe de uma escolarização integral e integrada.

Finalizamos esta análise lembrando que a BNCC, assim como outras diretrizes curriculares e tantos outros documentos oficiais, são apenas indicações curriculares que correspondem a uma das dimensões do currículo, o currículo prescrito (GIMENO SACRISTÁN, 1998). Sua força de penetração dependerá dos diversos outros mecanismos de regulação destinados ao acompanhamento, à vigilância e ao ordenamento de sua implementação, de fato, nas práticas pedagógicas escolares.

Acreditamos que um documento curricular não fala por si só, mas se produz na práxis educativa, pelo engajamento dos profissionais da educação, na tessitura dos espaços/tempos/saberes que permeiam o cotidiano escolar. Por isso, a educação/formação integral, embora não tenha sido devidamente contemplada no documento final da BNCC, nem esteja favorecida na opção por este desenho curricular, talvez ainda possa encontrar suas possibilidades, mesmo que seja na perspectiva da contraposição, da contestação, da resistência e, certamente, da necessária invenção.

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NOTAS

1Como salientam Lopes e Macedo (2011) a respeito da definição do que seria currículo, há diversas concepções, desde uma concepção técnica, passando pela concepção crítica, recontextualizadora, problematizadora, discursiva. Cada uma destas define currículo de acordo com sua própria perspectiva teórica.

2Um exemplo dessa argumentação está no Dossier especial publicado em 2013 pelo Institut Français de l´Éducation, denominado Aux frontières de l’École ou la pluralité des temps éducatifs, que traz uma síntese desses argumentos e indica uma vasta produção bibliográfica a esse respeito.

3Os saberes comunitários propostos no Programa Mais Educação são: alimentação, corpo e vestuário, habitação, organização política, brincadeiras, condições ambientais, mundo do trabalho, curas e rezas, expressões artísticas, narrativas locais, calendário local.

4Os macrocampos obrigatórios propostos na primeira versão do Programa Ensino Médio Inovador, em 2009, são: Acompanhamento Pedagógico (Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da Natureza); Iniciação Científica e Pesquisa e Leitura e Letramento. Os outros, eletivos, são: Línguas Estrangeiras; Comunicação, Cultura Digital e uso de Mídias; Participação Estudantil, Cultura Corporal; Produção e Fruição das Artes.

5Embora não haja uma diferença significativa em relação à noção de competências nesta atualização conceitual por parte da OCDE, nota-se uma ênfase individualista e humanista, centrada na aquisição de competências de modo a garantir o desenvolvimento sustentável em nível planetário, assim como a atuação profissional em contextos sociais e econômicos instáveis, globais, interconectados e permeados por meios de comunicação e de tecnologias digitais.

6Esta conclusão em relação ao desenho curricular da BNCC não é nova. Em análises a respeito dos PCN para o Ensino Médio, Lopes (2002) já havia apontado que a integração curricular, embora proposta, não é viabilizada, de fato, em um documento curricular que apresenta listas de competências de modo bastante disciplinar.

7A questão da cidade, por exemplo, está presente na BNCC, como no caso do componente curricular de História. Entretanto, a cidade é considerada não em seu potencial educativo, mas como objeto de conhecimento, como constam nas habilidades EF03HI01 a EF03HI12, voltadas ao terceiro ano do Ensino Fundamental, no eixo “Lugar em que vive”.

Recebido: 11 de Março de 2019; Aceito: 15 de Agosto de 2019

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