SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número1GESTÃO CURRICULAR NO ENSINO SUPERIOR: CONTEXTOS DE DESENVOLVIMENTOINTEGRAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE REDE AO CURRÍCULO: O PROTAGONISMO DOCENTE NO CICLO DA POLÍTICA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.1 São Paulo jan./maio 2020  Epub 30-Set-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i1p63-84 

Artigos

DOSSIÊS DA ABDC E TCI: CARTOGRAFIA DOS ENUNCIADOS DISCURSIVOS AGENCIADOS NAS TEMÁTICAS DOS ARTIGOS

ABDC AND TCI DOSSIERS: CARTOGRAPHY OF DISCURSIVE STATEMENTS ORGANIZED IN THE THEMES OF THE ARTICLES

DOSSIERS DE LA ABDC Y TCI: CARTOGRAFÍA DE LOS ENUNCIADOS DISCURSIVOS GESTIONADOS EN LAS TEMÁTICAS DE LOS ARTÍCULOS

Terezinha Maria SCHUCHTERi 
http://orcid.org/0000-0002-2873-9830

Juliana PAOLIELLOii 
http://orcid.org/0000-0002-6820-2245

Nilcéa Elias Rodrigues MOREIRAiii 
http://orcid.org/0000-0002-8609-9595

1 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Grupo Com-versações. E-mail: terezaschuchter@yahoo.com.br.

i Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa Docência, Currículo e Processos Culturais. Professora no curso de Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá Vitória; Gestora escolar no Centro Municipal de Educação Infantil “Vovó Enadina Francisca Porciliana” em Serra, ES. Membro do Grupo Com-versações. E- mail: julianapaoliello@yahoo.com.br.

ii Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Pedagoga na Secretaria Municipal de Educação de Vitória - ES; Professora da Educação Básica - Educação Infantil e Anos Iniciais - Secretaria de Educação da Serra - ES. E-mail: nermoreira@gmail.com.


RESUMO

Neste artigo, analisam-se práticas discursivas do periódico Transnational Curriculum Inquiry, no período de 2010 a 2016, e dos dossiês organizados pela Associação Brasileira de Currículo, publicados nos periódicos e-Curriculum, Currículo sem Fronteiras e Teias, entre 2012 e 2016. O objetivo foi mapear as temáticas abordadas nos artigos. Utiliza-se como metodologia a análise da discursividade, a partir do mapeamento cartográfico-discursivo, de modo a problematizar os enunciados que marcaram os discursos dos autores, as temáticas que emergem nesses discursos, as regularidades e as irregularidades que os marcam e quais são as aproximações entre os discursos manifestados nos quatro periódicos. Apresenta-se um agrupamento com 34 eixos temáticos, com destaque para: as políticas educacionais atuais e suas implicações para a escola, o trabalho docente e o currículo; a profissionalização docente, o currículo e a formação de professor; os temas contemporâneos como cosmopolitismo, transnacionalização, desconstrução e reconceitualização curricular, multiculturalismo, diversidade cultural, políticas de inclusão, diferenças, gênero, feminismo e sexualidade. Destacam-se, ainda, trabalhos relacionados à Base Nacional Curricular Comum; ao currículo-afeto, ao currículo-redes de conversações coletivas e à produção de desejo; às relações entre currículo, cultura, cotidiano, diferenças, entre outros. As temáticas abordadas nos artigos retratam o movimento histórico, político, educacional e econômico em que se está imerso e são reveladoras da organização molar que tenta se impor, mas apontam que isso não impede as afecções, os afetos felizes, os bons encontros, as energias moleculares, as linhas de fuga. Os resultados mostram, ainda, que sempre vaza alguma coisa; há sempre algo que escapa à máquina de sobrecodificação. Os artigos são reveladores desse movimento.

PALAVRAS-CHAVE:  e-Curriculum; Teias; Currículo Sem Fronteiras; Transnational Curriculum Inquiry; Temáticas

ABSTRACT

In this paper, the discursive practices of the journal Transnational Curriculum Inquiry between 2010 and 2016, and the dossiers organized by the Brazilian Association of Curriculum, published in the journals e-Curriculum, Currículo Sem Fronteiras and Teias, between 2012 and 2016, are analyzed. The aim was to map the topics covered in the articles. The methodology used is the discourse analysis, based on cartographic-discursive mapping, in order to problematize the statements that marked the discourses of the authors, the themes that emerge in these discourses, the regularities and irregularities that mark them and what are the approximations between the discourses expressed in the four journals. A cluster with 34 thematic axes are presented, highlighting: current education policies and their implications for school, teaching work and curriculum; teacher professionalization, curriculum and teacher training; contemporary themes such as cosmopolitanism, transnationalization, deconstruction and curriculum reconceptualization, multiculturalism, cultural diversity, inclusion policies, differences, gender, feminism and sexuality. It is also emphasized works related to the National Common Curricular Base; to the curriculum-affection, curriculum-networks of collective discussions and production of desire; to the relations between curriculum, culture, daily life, differences, among others. The themes reported in the articles portray the historical, political, educational and economic movement in which we are immersed and reveal the molar organization that tries to impose itself, but they point out that this does not prevent affections, happy affections, good meetings, molecular energies and the escape lines. The results show that there is always something leaking; there is always something that escapes the overcoding machine. The articles are revealing of this movement.

KEYWORDS: e-Curriculum; Teias; Currículo Sem Fronteiras; Transnational Curriculum Inquiry; Themes

RESUMEN

En este artículo se analizan prácticas discursivas del periódico Transnational curriculum Inquiry, en el período 2010 a 2016, y de los dossiers organizados por la Asociación Brasileña de Currículo, publicados en los periódicos e-Curriculum, Currículo sem Fronteiras y Teias, entre 2012 y 2016. El objetivo fue mapear las temáticas estudiadas en los artículos. Se utiliza como metodología el análisis de la discursividad, basada en el mapeamento cartográfico-discursivo, de modo a problematizar los enunciados que marcaron los discursos de los autores, las temáticas que resultan de esos discursos, las regularidades e irregularidades que los marcan y cuáles son los acercamientos entre los discursos manifestados en los cuatro periódicos. Se presenta un agrupamiento con 34 ejes temáticos, con énfasis en: las políticas educacionales actuales y sus implicaciones para la escuela, para el trabajo docente y el currículo; la profesionalización docente, el currículo y la formación de profesor; los temas contemporáneos como cosmopolitismo, transnacionalización, deconstrucción y reconceptualización curricular, multiculturalismo, diversidad cultural, políticas de inclusión, diferencias, género, feminismo y sexualidad. Se destacan, aún, trabajos relacionados a la Base Nacional Curricular Común; al currículo-afecto, al currículo-redes de conversaciones colectivas y a la producción de deseo; a las relaciones entre currículo, cultura, cotidiano, diferencias, entre otros. Las temáticas trabajadas tratadas en los artículos retratan el movimiento histórico, político educacional y económico en el que se está inmerso y son reveladoras de la organización molar que intenta imponerse, pero apuntan que eso no impide las afecciones, los afectos felices, los buenos encuentros, las energías moleculares, las líneas de fuga. Los resultados muestran, aún, que siempre que se escapa alguna cosa; y hay siempre algo que escapa a la máquina de sobrecodificación. Los artículos son reveladores de ese movimiento.

PALABRAS CLAVE: e-Curriculum; Teias; Currículo Sem Fronteiras; Transnational Curriculum Inquiry; Temáticas

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo intitulado Práticas discursivas sobre currículo da comunidade acadêmico-científica vinculada às associações do campo e veiculada em periódicos nacionais e internacional1, que teve como objetivo cartografar os enunciados discursivos que compõem os arquivos sobre pensamentos práticas2 e políticas curriculares em diferentes perspectivas, buscando compor os arquivos dessa discursividade (CARVALHO, 2015). Para tanto, foram utilizados como fontes periódicos nacionais e internacional vinculados às mais expressivas associações do campo curricular: a Associação Brasileira de Currículo (ABdC) e a International Association for the Advancement of Curriculum Studies (IAACS).

No âmbito internacional, foram cartografados os artigos publicados durante os anos de 2010 a 2016, no periódico Transnational Curriculum Inquiry (TCI), por se constituir em um “[...] veículo para o estabelecimento de redes transnacionais, em que estudiosos de currículo de diferentes localidades colaboram na descentralização de conhecimentos em trabalho compartilhado” (CARVALHO, 2015, p. 8). Em âmbito nacional, ABdC, desde 2012, publicou, anualmente, dossiês temáticos: nos periódicos Teias, e-Curriculum e Currículo Sem Fronteiras. Os dossiês produzidos no período de 2012 a 2016 constituíram-se em fontes da pesquisa.

Durante esta pesquisa, foi feito o mapeamento da representatividade dos artigos publicados, com o intuito de identificar a origem e a filiação institucional dos autores, as temáticas analisadas, as perspectivas teórico-epistemológicas e metodológicas, as referências mais utilizadas e como são expressas, com o objetivo de compor os arquivos dessas discursividades. Neste trabalho, discutiremos, especificamente, as temáticas enfocadas nos artigos que compõem os periódicos descritos, conforme a Tabela 1 a seguir.

Tabela 1. Periódicos, período, quantidade de artigos 

Periódico Período Quantidade de artigos
TCI 2010 a 2016 66
Teias 2013 a 2016 26
e-Curriculum 2012 a 2016 50
Curriculum Sem Fronteira 2012 a 2016 62
Total de artigos 204

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir da análise dos artigos que compõem os periódicos.

Foi utilizada como abordagem metodológica a análise da discursividade, a partir do mapeamento cartográfico-discursivo, em busca de problematizar: Que enunciados marcaram os discursos dos autores? Que temáticas emergem desses/nesses discursos? Que regularidades e irregularidades marcam os discursos? Quais as aproximações entre os discursos manifestados nos quatro periódicos? A opção por essa abordagem justifica-se pelo fato de a pesquisa procurar tecer relações entre as práticas discursivas, a partir dos enunciados expressos nos periódicos, de modo a produzir uma análise arqueológica que propicie a compreensão do engendramento de regimes de verdade que vão se consolidando ao longo do tempo e produzindo determinados significados e verdades historicamente localizadas (CARVALHO, 2015). Assim, por meio da cartografia dos enunciados discursivos, buscamos as regularidades, as aproximações e os distanciamentos, o que possibilitou o agrupamento de 34 eixos temáticos, que se repetem com maior ou menor intensidade (ver Tabela 2 mais adiante).

2 AS MARCAS DOS PERIÓDICOS: AS TEMÁTICAS E OS CAMPOS DE DEBATE

O periódico TCI traz como proposta a reivindicação de um cenário cosmopolita e o debate acerca da internacionalização dos estudos no campo do currículo, no intuito de provocar novas e possíveis discursividades. Assim, os artigos trazem, de forma proeminente para o debate, temáticas ligadas a essas questões, como cosmopolitismo e globalização; internacionalização dos estudos curriculares; desconstrução curricular, colonialismo e pós-colonialismo; história e teorias do currículo; impactos das políticas atuais no campo do currículo; Ensino Superior, entre outros.

Já a ABdC propõe, nos dossiês que organiza, publicações que atendam ao que é estabelecido no artigo 5º de seu Estatuto (ABDC, 2012, n.p.) que é, entre outros, “[...] realizar e fomentar estudos no campo do Currículo; [...] com vistas à atualização do conhecimento e à socialização das experiências realizadas no campo do Currículo”. Nesse sentido, os artigos publicados nesses dossiês são uma busca de, principalmente, disseminar o debate no campo do currículo, fomentando a socialização das diferentes proposições no campo curricular.

O periódico Teias definiu as seguintes temáticas: Currículo, conhecimento e experiências (2013), Currículo, políticas e trabalho docente (2014), A produção biopolítica das definições curriculares no Brasil contemporâneo (2015), O avanço do conservadorismo nas políticas curriculares (2016). Observamos, nesse periódico, um foco nas questões do campo do currículo e da política. As temáticas dos artigos vão transitar entre as questões relativas ao Ensino Superior; os impactos das políticas atuais na organização da escola, no currículo e na prática e na formação docente; a biopolítica e a governamentalidade; as diferenças, a desconstrução curricular e o colonialismo, entre outras.

O periódico e-Curriculum estabeleceu como temáticas: Currículo: políticas e cotidianos (2012), Políticas de responsabilização, gerencialismo e currículo (2013), Debates em torno da ideia de bases curriculares nacionais (2014), Formação Docente frente às políticas no cenário de centralização curricular (2015) e Aqui já tem currículo: produções e experiências educativas pelo direito à diferença e à justiça social e cognitiva (2016). O periódico busca, também, conciliar diferentes perspectivas teóricas, trazendo ao debate as implicações das políticas atuais para os currículos e a formação docente e os desafios que se apresentam às instituições de ensino. As temáticas vão se desdobrar em torno da centralização curricular, ensino e pesquisa na Educação Superior; tradução cultural, currículo e diferenças, entre outras.

No periódico Currículo sem Fronteiras, as temáticas foram as seguintes: Contribuições aos sentidos sem fronteiras do currículo (2012), Políticas e práticas curriculares - diferentes perspectivas de análise (2013), Práticas curriculares e docência em distintos contextos (2014), Currículo, identidade e diferença (2015) e Perspectivas teóricas das pesquisas em currículo (2016). Não se diferindo da proposta dos periódicos anteriores quanto à socialização de trabalhos de diferentes matrizes teóricas, Currículo sem Fronteiras problematiza, também, as políticas atuais no campo do currículo, a profissionalização docente e a Educação Superior. Entretanto, percebemos, nesse periódico, um foco em questões ligadas à cultura, ao currículo e ao cotidiano; ao gênero; à desconstrução curricular; à identidade e diferença, entre outros.

É comum, nos artigos dos três periódicos, o debate em torno das implicações das políticas atuais no campo da educação de forma geral, bem como nas políticas de centralização curricular e na estandardização da avaliação; desse modo, apontam para a força da máquina sobrecodificante, em sua segmentaridade dura. Constata-se a denúncia de uma perspectiva dogmática e representativa de um currículo prescritivo que não afirma a vida na sua dimensão cosmopolítica. Percebemos, nesse sentido, a vontade de alguns autores em mostrar a força da educação maior que “[...] quer instituir-se, fazer-se presente, fazer acontecer” (GALLO, 2003, p. 78). Entretanto, os dossiês têm como proposta apresentar os possíveis que não se cansam de emergir e a força daqueles que incessantemente querem apontar as diferentes formas de resistência nessa conjuntura. Eles nos propõem mover o pensamento e nos indagam sobre como resistir à educação maior que busca se constituir como uma máquina de controle, de subjetivação e de produção de indivíduos em séries (GALLO, 2003).

Como afirmado, depois de mapear as temáticas, foi feito um agrupamento a partir das aproximações, regularidades e similitudes. Essas temáticas foram, ao longo do período analisado, manifestando-se nos periódicos, apresentando uma ênfase maior ou menor em cada volume, dependendo da temática proposta na edição ou da perspectiva teórica assumida na linha editorial. Elas podem ser assim apresentadas, conforme Tabela 2.

Tabela 2. Quantitativo das temáticas abordadas nos artigos 

Temáticas Quant.
Políticas educacionais atuais e suas implicações para a escola, o trabalho docente e o currículo 23
Profissionalização docente / formação de professor / currículo e formação de professor / políticas educacionais e formação docente 23
Desconstrução curricular /reconceitualização curricular /Pós-colonialismo / Multiculturalismo / educação intercultural / pós-estruturalismo 20
Diversidade cultural / políticas de inclusão / diferenças / gênero/ Narrativas feministas / feminismo / sexualidade / educação de surdos 13
Ensino-pesquisa na Educação Superior / avaliação Ensino Superior / gerencialismo e universidade 12
Desterritorialização curricular / internacionalização curricular / transnacionalização 10
Biografia / autobiografia / escrita de vida / história oral 9
Cidadania e cultura / ética / democracia social / justiça social e cognitiva 9
Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e centralização curricular 9
Currículo-relação / currículo-afeto / currículo-redes de conversações coletivas / currículo e produção de desejo 8
Currículo, cultura e cotidiano / currículo, diferenças e identidades / Currículos praticados / currículos instituídos e currículos produzidos 8
Avaliação estandardizada / currículo e avaliação externa / avaliação externa e trabalho docente 7
Currículo e TICs /EAD / web currículo e narrativas digitais/ TICs e produção de materiais/ tecnologias e redes de agenciamento 7
Educação indígena / políticas curriculares indígenas / saberes indígenas / diversidade cultural aborígene 6
História das políticas curriculares / história do currículo / mapeamento curricular e fenomenologia 5
Cosmopolitismo e hospitalidade 4
Formação de professor e TICs / EAD / UAB 3
Currículo, narrativas fílmicas e tradução cultural / relação cultura e conhecimento escolar / currículo e fotografia 3
Biopolítica e currículo / Biopolítica e política educacional / Biopolítica e escola 3
Currículo e Educação Infantil / Proinfantil 3
Práticas educacionais 2
Currículo e relações étnico raciais - africana 2
Etnografia educacional / currículo e etnometodologia 2
Pensamento de Paulo Freire na educação brasileira / Influência de Paulo Freire nas políticas e práticas educativas 2
Prática curricular cotidiana e formação de professor 2
Conhecimento e sujeitos em privação de liberdade 1
Projeto político pedagógico 1
Currículo, violência curricular 1
Ensino religioso 1
Movimentos sociais e processos identitários e diferenciais 1
Pensamento de Certeau e movimentos políticos atuais 1
Contribuição dos estudos culturais ao currículo 1
Ocupações escola Rio de Janeiro 1
Educação integral 1
34 eixos temáticos 204

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir da análise dos artigos que compõem os dossiês.

3 A POLÍTICA EDUCACIONAL EM DEBATE: PROBLEMATIZAÇÕES E IMPLICAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR, NA FORMAÇÃO E NO TRABALHO DOCENTE, NA AVALIAÇÃO E NA ORGANIZAÇÃO DA ESCOLA

Os artigos compõem um arquivo a partir de uma formação discursiva, pois apresentam certas regularidades. Assim, podemos observar que as temáticas agrupadas em eixos - políticas educacionais atuais e suas implicações para a escola, o trabalho docente e o currículo; profissionalização e formação docente; formação de professor e TICs; avaliação no ensino superior e gerencialismo e universidade; avaliação estandardizada, currículo e avaliação externa e trabalho docente; políticas curriculares indígenas; BNCC e centralização curricular; biopolítica e política educacional - poderiam estar agrupadas em um único eixo, que é o das políticas educacionais. Essas temáticas juntas compõem mais de 50% de toda a produção analisada. Entretanto, apesar de considerarmos as aproximações entre essas temáticas, nós as tratamos de forma separada, pelas especificidades que carregam. Os trabalhos que abordam essas questões trazem como foco a centralidade das políticas públicas, quer dizer, a Política consolidando-se como um campo de estudo. Nesse sentido, há fortes aproximações entre os artigos produzidos, tanto no âmbito nacional como no internacional.

Lopes e Macedo (2011) explicam essa centralidade, apontando que o nascimento desse campo no Brasil e nos Estados Unidos ocorreu nos anos de 1990, quando se ampliaram os estudos sobre o tema. Nesse momento, multiplicaram-se as pesquisas sobre os vários documentos curriculares produzidos a partir da implementação das reformas neoliberais. Assim, uma temática comum a essas publicações e que se repete em quase todo o período em análise é a questão das políticas educacionais posteriores à década de 1990 e as questões de cunho político, econômico e cultural que as têm marcado, bem como suas implicações no que se refere à organização do trabalho da escola, à formação e ao trabalho docente e ao currículo.

Durante a realização da primeira fase da pesquisa, observamos a prevalência de trabalhos fundamentados nas Teorias Críticas e Pós-críticas, tendo uma oscilação para mais ou para menos, dependendo do periódico. Isso se manifestou nos trabalhos que versavam sobre as políticas, pois havia, de um lado, artigos voltados ao desenvolvimento de uma análise de cunho estrutural, com críticas aos documentos, aos programas e aos projetos governamentais em curso, sendo a política pensada como um guia ou conjunto de diretrizes, investigando-se sua pertinência, suas finalidades, seus traços e suas implicações para a prática - análises em que prevalecem, ainda, as dicotomias entre teoria e prática, planejamento e execução, entre outros. São trabalhos que também apontam para a urgência de intervenções visando à transformação social. De outro lado, em quantidade menor, mas com grande expressividade, ocorreram trabalhos que buscaram superar essas dicotomias e discutir as políticas como campo de produção de discursos, espaços de poder (LOPES; MACEDO, 2011).

Do total de artigos, 23 abordaram, especificamente, a questão das políticas educacionais, discutindo os diversos programas federais e o neoliberalismo como fundamentação dessas políticas e suas implicações para a educação de uma forma geral. Parte dos trabalhos busca analisar essas políticas, discutindo: a pouca participação da sociedade nas reformas educacionais, a necessidade de expandir o engajamento público; o distanciamento entre a prática curricular na escola e os documentos oficiais; a lógica positivista de pensamento que prevalece nos desenhos curriculares; a gestão curricular na Educação Básica e no Ensino Superior; a discussão a partir do conceito gramsciano de intelectual orgânico, sobre as funções dos professores na elaboração de projetos contra-hegemônicos; as relações entre gestão, formação de professor, sistemas de avaliação e políticas curriculares. Alguns dos autores denominam essas políticas de narrativas redentoras do modelo neoliberal e acreditam que isso tem se tornado o modus operandi das escolas públicas. Apontam, assim, que as políticas curriculares são marcadas por essas estratégias globalizantes neoliberais.

Há artigos que também problematizaram os diversos documentos e programas governamentais nacionais e internacionais e suas implicações no atual contexto de governança transnacional e nacional. Dentre esses documentos, destacamos: o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo); o Programa Ensino Médio Inovador (Pro-EMI), o Pacto pela Aprendizagem na Idade Certa (PNAIC) e Aprendizagem para Todos: Estratégia de Educação 2020 do Grupo Banco Mundial/2011.

Ainda há os trabalhos que discutem a política como uma ciência social, que envolve negociação, luta e disputa por hegemonia, ou seja, avançam no sentido de problematizar por que as políticas funcionam da forma como funcionam. Apesar de não se afastarem do enfoque centrado na ideia da solução de problemas, a investigação gira em torno das considerações sobre a necessidade da distribuição equitativa de bens econômicos e sociais e do desvelamento das desigualdades e das injustiças provocadas por essas políticas. Alguns trabalhos defendem que as propostas curriculares precisam se caracterizar como conjunto de ideias e práticas que dialogam com as políticas globais e que se voltam às realidades locais.

Dessa forma, as escolas devem ganhar centralidade na materialização dessas propostas, que não podem, portanto, ser uma construção fechada, algo elaborado por especialistas. Outros discutem a emergência do atual espírito conservador que se manifesta nos anúncios de inovações curriculares. Entretanto, mostram que as questões curriculares atuais são identificadas com ordens discursivas finalistas e totalizantes, em nome dessas inovações. Por isso, convocam para que estejamos atentos aos réquiens que, atualmente, ameaçam a democracia.

Lopes e Macedo (2011) ainda nos mostram que esse enfoque vem sendo redefinido com o advento das teorias pós-estruturais - o foco da hegemonia política permanece, mas se modifica em decorrência de uma articulação que constrói um discurso provisório e contingente. Modifica-se, também, a concepção de poder. Enquanto os estudos estruturais valorizam a concepção do poder centralizado como decorrente da estrutura econômica, os estudos pós-estruturais entendem o poder como difuso.

Com base nessa perspectiva, alguns trabalhos discutem: os impactos das atuais políticas curriculares na escola, concluindo que, na dinâmica de implementação das propostas curriculares, ações se sobrepõem com velhas formas de gestão e práticas pedagógicas, produzindo uma hibridação de significados ou uma recontextualização; a relação entre perspectiva antifundacional e o incremento de proposições curriculares de interesse privado; a ideia de esvaziamento de sentidos para projetos de futuro para a formação humana. Outros artigos tecem problematizações sobre as políticas educacionais a partir dos conceitos foucaultianos de poder, de governamentalidade, de governamentação, de biopoder, de biopolítica, entre outros. Buscam discutir a política como uma forma de gestão da população e de seus corpos, como algo imprescindível aos modos de controlar/moldar a população. São políticas em consonância com projetos governamentais voltados à aprendizagem e ao investimento do/no sujeito como aprendente, de forma que ele possa participar do jogo do mercado neoliberal. Discute-se, também, o conceito de currículo como artefato educacional nas atuais sociedades de controle, apontando as relações entre os currículos em contextos biopolíticos, em que primam por uma formação pautada no empreendedorismo, na competência e na qualidade (SCHUCHTER; MOREIRA; PAOLIELLO, 2019).

Assim, apesar de ainda percebermos nesses trabalhos um foco nas implicações dessas políticas, notamos a preocupação em discutir a educação na contemporaneidade entrelaçada com os processos vitais, apontando-a como uma espécie de potencial vetor de mais-vida. As relações entre conhecimento, educação e controle da vida e dos corpos, os novos sentidos nas sociedades do cuidado e a emergência do biocurrículo - quer dizer, do corpo - são tomadas como questão política e curricular. O cuidado de si, do outro e dos corpos vem ganhando uma centralidade nos debates a partir dessa perspectiva teórica.

Intimamente relacionada ao eixo das políticas educacionais, mas tratada separadamente pela sua especificidade, está a questão do campo da formação e da profissionalização docente. Do total de artigos, 23 abordaram essa temática. Dentre os aspectos neles destacados, ressaltamos: a história da profissão docente e as demandas sociais impostas ao trabalho docente em diferentes períodos históricos; a interdisciplinaridade e os percursos de um projeto de pesquisa colaborativa na formação continuada de professores; as políticas de currículo; formação de professores no Brasil em períodos específicos; as múltiplas funções que a escola e o professor assumem no contexto atual, tendo em vista a ideia de educação que contribua na formação de sujeitos capazes de conduzir e de governar a própria vida, e isso relacionado à elaboração de uma base nacional comum para o currículo escolar e ao ataque generalizado ao ensino público, bem como às avaliações de desempenho; à baixa remuneração de professores, como fator que limita a autonomia e a própria formação de professores e, ainda, às problematizações acerca de proposições de um currículo único para formação de professores em alguns países.

É recorrente o debate acerca da influência das políticas atuais no campo da formação e exercício docente, com ênfase nos estudos em torno da constituição da identidade docente. Alguns trabalhos apontam para as políticas que buscam consolidar projetos identitários de perfil docente como portadores de uma essência ou como projetos universais, discutindo, também, essa identidade atrelada a conceitos da administração gerencial, relacionando o trabalho do professor à crise de ineficiência do sistema educacional. Entretanto, há trabalhos que vão apontar para como a formação docente pode ser orientada no sentido de produzir a construção de resistências e re-existências em um contexto de estandardização curricular.

Esse número aumenta quando somamos três artigos que trouxeram ao debate as questões do campo da política, bem como seus impactos, mas que são tratados aqui de forma específica, por se relacionarem com o campo da formação de professor inter-relacionado com as tecnologias da informação e comunicação (TICs), educação aberta e a distância (EaD) ou Universidade Aberta do Brasil (UAB). Os trabalhos discutem desde a versatilidade dessa modalidade de educação, até os desafios de sua efetivação como possibilidade de potencializar os processos de ensino e de aprendizagem e como os professores aprendem ou deveriam aprender no contexto da sociedade da informação e da tecnologia. A concepção dos professores da Educação Básica quanto às suas práticas pedagógicas diante dos diferentes programas governamentais de garantia de computador e outras tecnologias na escola, como, por exemplo, o programa Um computador por aluno (UCA), são temáticas exploradas no conjunto de artigos relacionados à formação docente e às TICs.

Ainda no campo da educação e TICs ou EaD, outro eixo temático foi constituído a partir de sete trabalhos que discutiram currículo e TICs ou EaD; currículo e ensino EaD; web currículo e tecnologias e redes de agenciamento. Esses trabalhos contribuíram no sentido de pensar as TICs integradas ao currículo, ou gerando o que foi denominado de web currículo3. Problematizou-se também as relações entre as tecnologias e as redes de agenciamento contemporâneas.

Ainda no campo das políticas educacionais, outro eixo temático constituído por doze artigos se volta para o ensino e a pesquisa na Educação Superior, avaliação no Ensino Superior e gerencialismo e universidade. Os artigos voltam-se ao estudo de cursos específicos e aos processos de reconceitualização curricular; à análise das condições de produção e circulação do conhecimento no campo do currículo, em universidades de determinadas regiões; às políticas gerencialistas e suas implicações no trabalho dos professores; ao estudo comparativo entre os currículos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), buscando traços do eurocentrismo, de colonialidade e das possibilidades interculturais; ao cenário de reformas transnacionais e suas consequências na autonomia docente.

Ainda no campo da política, mas considerando sua especificidade temática, agrupamos os sete artigos que trataram da avaliação estandardizada, da relação entre currículo e avaliação externa e trabalho docente. Esses trabalhos buscam, entre outros aspectos, discutir os resultados das avaliações externas em alguns estados e fornecer subsídios para compreensão de seus efeitos na prática docente e discente; discutir o lugar do Brasil no ranking produzido a partir dos resultados do Programme for International Student Assessment (PISA); o protagonismo docente e discente diminuído frente às avaliações de larga escala; e a estratificação das escolas e o alto índice de suicídios entre adolescentes que não suportam a pressão por um bom desempenho nos testes padronizados em determinadas sociedades. Um trabalho propõe-se a produzir uma análise dos relatórios sobre resultados do PISA, problematizando-os a partir das teorizações foucaultianas, como uma estratégia de pensamento e como uma prática de ordenação. Outro artigo analisa o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), tendo por base a teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2015).

Merecem destaque, no contexto atual, os nove artigos que discutem a BNCC e a centralização curricular, problematizando os argumentos apresentados em defesa da necessidade de um currículo nacional como garantia da qualidade do ensino, apontando que a Base é um instrumento de homogeneização de desempenho dos alunos. E, ainda, discutem as articulações políticas que se formam em torno do significante currículo e como essas articulações influenciam no projeto de uma base nacional comum curricular, transformando esse campo em um terreno de constante disputa em torno do que é adequado ou não para ser ensinado nas escolas pelos professores.

A Política tem uma centralidade nos discursos expressos nos artigos cartografados e, como já afirmado, os trabalhos vão se distinguir a partir das abordagens epistemológicas. Nos trabalhos fundamentados nas Teorias Críticas, a política é analisada por meio de um enfoque estrutural e determinada pelas relações econômicas, tendo em vista a legitimação e a manutenção do status quo, ainda que apontem para buscas de superação, enfrentamento e a manifestação de interesses divergentes. Já nos estudos com base nas Teorias Pós-críticas, as dicotomias dominação/resistência, dominantes/dominados, Estado/sociedade, teoria/prática, política/currículo e outros são problematizadas e não se confere uma predominância de poder a uma determinada instância, seja ela o Estado ou a sociedade civil. Nessa perspectiva, o poder é difuso (LOPES; MACEDO, 2011).

Ainda nesse eixo temático, podemos somar a esses artigos que se dividem entre essas duas perspectivas de abordar a política outros oito artigos que buscaram discutir questões ligadas à cidadania e cultura, à ética; à democracia social e justiça social e cognitiva.

4 QUESTÕES DO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: MOVIMENTANDO O PENSAMENTO PARA POSSÍVEIS E DIFERENTES SIGNIFICAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES NO CAMPO DA EDUCAÇÃO E DO CURRÍCULO

Como pôde ser observado na Tabela 2, uma média de 88 trabalhos, além de três que foram agrupados no eixo temático das políticas educacionais, fundamentaram-se em perspectivas denominadas neste artigo de Teorias Pós-críticas. Desse total, 20 trataram de temas relacionados à desconstrução curricular, ao pós-colonialismo, ao multiculturalismo, à educação intercultural e ao pós-estruturalismo. Esses artigos discutiram: a possibilidade de desconstrução do currículo de dominância a partir de materiais, filmes, histórias antirracistas, entre outros; a mudança paradigmática nos currículos em diferentes países; a comparação dos currículos a marionetes que produzem o colonialismo; os diferentes sistemas de ensino que podem ser comparados a uma única e semelhante imagem; os efeitos do eurocentrismo na história do desenvolvimento colonial e científico, entre outros. Outros artigos discutiram a impossibilidade de um currículo único; a linearidade das análises curriculares, da produção de conhecimento, a fixidez de uma memória representacional e os ditames da recognição; a necessidade da criação de uma teoria curricular itinerante que se comprometa na luta contra o epistemicídio; e relatos de práticas pedagógicas interculturais.

Há, ainda, 20 trabalhos que tinham em comum: o debate em torno da necessidade da reconceitualização curricular a partir de conceitos e autores específicos; o legado da obra de Paulo Freire para o campo curricular; o conceito de recontextualização de Bernstein, de tradução de Derrida e de discurso de Laclau para a compreensão e a investigação das diferentes significações do currículo; a recuperação no debate foucaultiano de questões no campo curricular que se referem a processos de subjetivação e experiência de si; o repensar a ideia de sujeito, cultura e diferença, a partir de conceitos como fluxo e hibridismo, para descontruir binarismos e essencialismos; a relação entre as filosofias das diferenças, educação e currículo a partir da obra de Deleuze, entre outros.

Ao apresentar algumas regularidades e aproximações com esse debate, 13 trabalhos trouxeram discussões no campo do currículo, em torno de questões ligadas à desterritorialização, à internacionalização e à transnacionalização dos estudos e ou teorias curriculares, de uma forma geral, ou em países específicos. Essa foi uma pauta muito forte no periódico TCI. Um dos trabalhos teceu problematizações em torno da questão da autoria dos artigos desse periódico, discutindo se a ordem de acolhimento ao estrangeiro se ajustaria somente àqueles oriundos de países com crescente influência no cenário mundial e se a hospitalidade e o acolhimento ao outro não estaria sendo prejudicada pela pequena presença de autores de países latino-americanos e africanos nesse debate. Problematizam, ainda, questões em torno da globalização e do cosmopolitismo, situando-o como lugar de crítica e de repúdio à globalização macroeconômica e suas consequências. Destacam, também, que o currículo cosmopolita é inter e transcultural, visto que deve ser proposto em termos de um currículo inclusivo, ou seja, antirracista, antissexista, antiopressivo, etc. É comum entre os autores o conceito currículo de refúgio e a utilização de Derrida como fundamento das problematizações/provocações.

Merecem destaque nove artigos do periódico TCI que discutem: biografia, autobiografia, escrita de vida e história oral. Os autores exploram as histórias de vida como possibilidade de reflexão sobre a educação. Apontam que essas histórias podem se constituir como possibilidades metodológicas para conhecimento de si, da realidade, da sociedade e da escola. Retomam obras no campo da educação, da literatura e do cinema, relacionando-as com suas próprias vidas, confrontando-as, ainda, com questões da formação docente, do currículo e práticas pedagógicas ocorridas nas escolas.

Já nos periódicos nacionais, sete artigos discutiram sobre possibilidades do currículo-relação, currículo-afeto, currículo-redes de conversações coletivas, currículo e produção de desejo, apontando para a potência das redes de conversações na constituição das relações práticaspolíticas que articulam o comum nos currículos; as práticas curriculares atravessadas por agenciamentos molares do desejo que sobrecodificam por meio do processo de rostificação, as relações entre professores e alunos; a vida escolar conectada com a produção de processos de significância e de subjetivação de alunos e de coordenadores, das escolas em suas possibilidades de composição de vida nua e vida política; o poder dos afetos nas práticas discursivas curriculares como possibilidades de desenvolvimento de um currículo-relação no qual linguagens, saberes, fazeres e poderes são transgredidos e transgridem corpos, entre outros.

Nove artigos problematizaram: questões do campo da diversidade cultural; políticas de inclusão; educação de surdos; diferenças; gênero, narrativas feministas, feminismo e sexualidades. Destacamos, dentre as questões levantadas em oito artigos, a produção dos femininos e da feminilidade no magistério a partir dos estudos de gênero e sexualidade. Dentre outras temáticas, destacamos a prática de “embichamento” do currículo; a produção da heterossexualidade e o esforço do mundo branco, científico e burguês de classificar e tentar moldar uma suposta homossexualidade; articulações entre gênero e currículo nas perspectivas dos Estudos Feministas e de Gênero, dos Estudos Curriculares e do Pós-Estruturalismo. Dos outros cinco artigos, três ressaltam os debates em torno da diversidade cultural na escola; as discussões sobre as questões de gênero, raça e credo, que se encontram em evidência e as dificuldades das escolas em lidar com as diferenças. Finalmente, dois artigos tematizam sobre o ensino de Matemática e práticas visuais nas aulas de matemática com alunos surdos e as implicações curriculares.

No intuito de abordar as diferenças, seis artigos trataram da educação das relações étnico-raciais, com foco em: educação indígena; políticas curriculares indígenas; saberes indígenas, importância dos saberes e práticas indígenas e diversidade cultural aborígene. Cinco desses artigos são do periódico TCI. Um único artigo do periódico Currículo Sem Fronteiras discorre sobre as implicações do pensamento hegemônico moderno, colonial, eurocentrado e o que essa forma de pensamento produziu e vem produzindo na contemporaneidade e seus impactos, sobretudo no que tange à educação indígena. Problematiza os processos que envolvem a concretização da Lei No 11.645, de 10 de março de 2008, no cotidiano da escola, a partir de uma análise do currículo de uma rede municipal de educação na Baixada Fluminense. Apenas dois artigos - dos periódicos Teias e e-Curriculum - discutem a educação das relações étnico-raciais com ênfase na história e cultura africana e afro-brasileira.

Os estudos dos/nos/com os cotidianos foram contemplados especificamente por oito artigos que tratam das relações entre currículo, cultura e cotidiano e entre currículo, diferenças e identidades; as possibilidades dos estudos do cotidiano como postura politicoepistemológica no contexto de internacionalização curricular; os currículos e as culturas praticados em redes nos cotidianos das escolas e as relações entre clichê, identidade e diferença; as redes tecidas entre os currículos e as culturas praticados nos cotidianos das escolas; as experiências curriculares que têm sido produzidas a partir do encontro com as Filosofias das Diferenças, especialmente com o pensamento de Deleuze e Guattari. Exploram, ainda, a potência do pensamento nômade, que é um pensamento em constante devir, e a inter-relação entre os currículos e os processos cotidianos de aprendizagem e ensino, políticas e práticas cotidianas. Um artigo específico traz o relato de uma entrevista realizada com José Machado Pais, o qual aborda questões sobre a sociologia da vida cotidiana, nas dimensões epistemológica e metodológica, e faz pontuações sobre a aprendizagem e o desenvolvimento da interconectividade entre escola e sociedade como princípio orientador para o currículo escolar.

Nessa mesma linha teórica, há artigos que abordam questões relacionadas à prática curricular cotidiana e à formação do professor, de forma a apontar os processos de produção de subjetividades por meio de diferentes interlocuções na produção ordinária dos modos de compreender e praticar a docência nos currículos produzidos. As relações entre currículo, narrativas fílmicas e tradução cultural; currículo e fotografia, cultura e conhecimento escolar foram temáticas de três artigos. O uso de filmes/clichês nos processos de formação de professores e como são incorporados aos processos curriculares também se constituiu em objeto de estudo. Um artigo problematizou o conceito de enunciação na teorização curricular, observando o conceito de criança na literatura e no cinema, utilizando-o para discutir a composição de um currículo, tendo a arte como referência. Outros três artigos propõem uma reflexão sobre os movimentos sociais e processos identitários e diferenciais, o pensamento de Certeau e movimentos políticos atuais e a contribuição dos estudos culturais ao currículo.

Observamos, assim, que há um forte movimento no sentido de romper com as produções fundamentadas apenas nas Teorias Críticas e um esforço de fazer “[...] emergir possibilidades que escapem a qualquer controle [...], de produzir diferenças. Desterritorializar. Sempre.” (GALLO, 2003, p. 81).

5 CURRÍCULO COMO CAMPO PERMANENTE DE DEBATE E DE DISPUTAS E OUTROS TEMAS

Entendemos que, quando discutimos políticas educacionais e questões do pensamento contemporâneo, estamos inevitavelmente incluindo o currículo. Entretanto, como fizemos com outros temas, agrupamos, neste eixo temático, cinco artigos que conceberam aspectos da história das políticas curriculares e/ou história do currículo. Os artigos que tratam especificamente de questões da história do currículo produzem uma reflexão sobre o conhecimento, tendo em vista a centralidade do tema na estruturação dos currículos na educação formal e não formal; apontam momentos importantes para as definições curriculares que se tornaram hegemônicas na tradição pedagógica ocidental; apresentam propostas pedagógicas desenvolvidas nas últimas décadas, com destaque para autores brasileiros e latino-americanos; discutem os modelos subjacentes às propostas curriculares no Brasil e o impacto desses modelos nos sistemas de ensino; analisam a evolução da tensão no campo curricular entre o desenvolvimento de uma conceitualização teórica e a necessidade de orientação da prática educativa; a delimitação de tópicos da história das políticas curriculares no Brasil, com pontuações que vão desde a racionalidade tyleriana até concepções pós-estruturalistas.

Incluímos, nesse agrupamento, dois trabalhos sobre o legado do pensamento de Paulo Freire para as políticas de currículo e de ensino no Brasil. Os artigos analisam a influência de Paulo Freire em sistemas públicos de ensino, com a intenção de possibilitar a criação/recriação de políticas e práticas curriculares na perspectiva crítico-emancipadora.

Outros eixos temáticos que aparecem em menor intensidade são: currículo, educação infantil e Proinfantil (3); práticas educacionais (2); etnografia educacional e currículo e etnometodologia (2). E aparecem uma vez: conhecimento e sujeitos em privação de liberdade; projeto político pedagógico; currículo e violência curricular; ensino religioso; ocupações nas escolas do Rio de Janeiro e educação integral.

A história do currículo é, assim, um campo ainda explorado nas produções da área. E é fundamental que seja mesmo, inclusive para que observemos o constante movimento de articulações, rompimentos, ressignificações e desterritorializações que caracterizam o pensamento curricular, que não é homogêneo, mas híbrido.

O movimento que caracteriza a história dos estudos e das políticas curriculares no Brasil parece acompanhar o que Lopes e Macedo (2011) indicam, pois os debates transitam em torno do conceito de currículo, como algo prescrito ou oficial, como algo vivido e experienciado, ou, simplesmente, currículo como texto, como prática discursiva.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não tivemos como intenção produzir uma descrição epistemológica, mas uma análise arqueológica, uma vez que ela se exerce em uma multiplicidade de registros; percorre interstícios e desvios (FOUCAULT, 1987). Sequer quisemos produzir tabulações, quantificações, categorizações ou comparações. Essa forma de análise “[...] não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem delinear a unidade que deve totalizá-los, mas sim repartir a diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito unificador, mas multiplicador” (FOUCAULT, 1987, p. 183). Buscamos, assim, observar os movimentos de rupturas, ressignificações, desconstruções, reconstruções e voltas operadas pelos autores. Isso nos possibilitou compreender que estamos distantes de um pensamento único no campo de produção das pesquisas em educação, currículo, formação de professores e outros.

Observamos, nessa produção, o enredamento de diferentes abordagens teórico-epistemológicas. Não se trata de “[...] um avanço linear, não é uma evolução ou uma superação a supor que os traços do movimento ou da escola de pensamento questionados são apagados” (LOPES, 2013, p. 11). Trata-se da busca de linhas de fuga, de atravessamentos de muros, da saída de buracos e de se conectar com outras linhas no sentido de aumentar suas valências (DELEUZE, 2006). Mesmo os trabalhos que apostam em uma perspectiva teórico-crítica se esforçam no sentido de produzir e agenciar bifurcações que escapam a segmentaridades duras, hegemônicas “[...] fazendo vacilar os dualismos que as organizam e abrindo uma nova distribuição de possíveis [...] pluralizando os possíveis” (LAZZARATO, 2011, p. 14).

Schuchter, Moreira e Paoliello (2018) apontam que, diante do conservadorismo, do projeto de nação embutido nas políticas públicas, esse esforço se faz mais do que necessário, pois precisamos apostar nas políticas, nos processos de formação, nas proposições curriculares como acontecimentos que rompam com as durezas instituídas e abram possíveis para que a vida se expanda no seu mais alto grau de potência e se paute nas diferenças. Seria isso possível? Ousamos responder: pode a vida, em seus devires em tempos de catástrofe, vazar/romper/seguir linhas de fuga, porque “[...] sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação [...]” (DELEUZE, 2006, p. 103).

Produzir discursos que se oponham, que resistam. Isso importa. Para Foucault (1988), o discurso é veiculação e produção de poder. Pode tanto reforçar esse poder quanto miná-lo ou debilitá-lo. Os discursos são elementos ou estratégias no campo das correlações de força. Nesse sentido, podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma formação discursiva.

Isso foi o que observamos. Para não repetirmos o que já discutimos no decorrer deste trabalho, faremos algumas pontuações sobre questões que chamaram nossa atenção em toda produção cartografada. Como afirmamos, não tivemos como objetivo quantificar ou categorizar; entretanto, é importante destacarmos que há um equilíbrio entre os trabalhos, no que tange à fundamentação teórica utilizada pelos autores - Teorias Críticas e Pós-críticas - e, em cada uma dessas perspectivas, uma grande diferenciação, ou seja, diferentes formas de pensamento se revelaram. Não há um padrão epistemológico hegemônico.

O mesmo pode ser afirmado em relação às temáticas. Ao todo foram 34 agrupamentos. O número poderia ser bem maior, uma vez que em alguns desses agrupamentos colocamos temáticas que se aproximavam. São temáticas que se desdobraram em torno da macropolítica, com problematizações acerca de documentos internacionais e suas implicações para o currículo, formação docente, programas educacionais e gestão da escola; programas de avaliação em larga escala internacional; internacionalização curricular, transnacionalização e outros. No entanto, alguns trabalhos foram desde a autobiografia e inter-relações com o fazer cotidiano de um professor, currículo e redes de conversação ou redes de afetos em salas de aula à prática curricular cotidiana. Assim sendo, não querendo produzir dicotomias, são temáticas que se ligam à esfera da micropolítica, do cotidiano.

No campo da análise das políticas educacionais, predomina um enfoque de cunho crítico e/ou estrutural. Observamos, em grande parte desses artigos, uma forte crítica no que tange às implicações das políticas neoliberais nos projetos, nos programas e nos ordenamentos educacionais e suas consequências no campo do currículo, da avaliação, da gestão, da formação e do trabalho docente.

Há uma mudança nesse enfoque, principalmente, em dois dossiês: A produção biopolítica das definições curriculares no Brasil contemporâneo (2015) e Aqui já tem currículo: produções e experiências educativas pelo direito à diferença e à justiça social e cognitiva (2016), dos periódicos Teias e e-Curriculum respectivamente. Esse segundo dossiê tem uma grande importância, em virtude do momento que a implementação da BNCC vem sendo discutida em municípios e estados. Os artigos indicam a recusa generalizada de uma Base, em virtude da possibilidade de regulação, uniformização, limitação da autonomia docente, da escola e dos sistemas em eleger e organizar seus currículos, a determinação de privilégio de determinados conhecimentos em detrimento de outros, uma vez que, em se tratando de um padrão nacional, já é sabido o que vai prevalecer e, ainda, a problematização em torno do conceito de direitos de aprendizagem e aprendizagem para quem. Finalmente, indicam que houve, na versão homologada pelo Conselho Nacional de Educação, a substituição de direitos por competências e habilidades, o que revela a dimensão economicista que impregna esse documento.

Nas problematizações fundamentadas nos enfoques pós-estruturais, percebemos a busca em discutir essas políticas que vêm sendo implementadas como formas de controle das populações a partir da ideia de competência, de qualidade e de investimento do/no sujeito como aprendente, de forma que ele possa participar do jogo do mercado; o conceito de currículo como artefato educacional nas atuais sociedades de controle; as relações entre conhecimento, educação e controle da vida e dos corpos; os novos sentidos nas sociedades do cuidado e a emergência do biocurrículo, dos possíveis e das diferentes e outras formas de continuar resistindo.

Quanto às temáticas das diferenças, podemos dizer que há um repertório abrangente, como: políticas de inclusão, gênero, sexualidades, educação especial (especificamente surdos), educação indígena e/ou aborígene, educação das relações étnico-raciais, processos identitários e diferenciais, diferenças e identidades, educação intercultural, entre outros. Um fato que chamou nossa atenção é que tivemos oito artigos que tratam da educação indígena. Desse total, cinco são do periódico TCI e apenas um é do Currículo Sem Fronteiras. E somente dois, um do periódico Teias e outro do e-Curriculum, tratam da educação das relações étnico-raciais, com foco na questão da história e da cultura africana. Considerando as Leis Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. e nº 11.645/2008, que tornam as histórias e as culturas africana e indígena como conteúdo obrigatório em todo o currículo das escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio, deveríamos ter mais trabalhos voltados a explorar e a disseminar experiências nesse campo e contribuir para consolidar as prescrições das leis. Extraindo do total de 204 artigos analisados, os 66 que compõem o periódico TCI, restam 138 dos periódicos nacionais. Os três artigos que trataram dessa temática equivalem a 2% do total.

As temáticas abordadas nos artigos retratam o movimento histórico, político, educacional, econômico e cultural a que estamos imersos. Trazemos aqui essas dimensões especificadas no sentido de salientar que as temáticas abordam um conjunto de questões muito amplas, mas sabemos que tudo é político, e toda Política é ao mesmo tempo macro e micropolítica. E as temáticas são reveladoras da organização molar, da segmentaridade dura que tenta se impor, mas isso não impede as afecções, os afetos felizes, as boas conversas, os bons encontros, as energias moleculares, as linhas de fuga. Com isso, queremos dizer que sempre vaza alguma coisa. Há sempre algo que escapa à máquina de sobrecodificação (DELEUZE; GUATTARI, 2012).

REFERÊNCIAS

ABDC. Associação Brasileira de Currículo. Estatuto da Associação Brasileira de Currículo. 2012. Disponível em: Disponível em: http://associacaobrasileiradecurriculo.blogspot.com/p/estatuto.html . Acesso em: 8 jun. 2018. [ Links ]

CARVALHO, Janete Magalhães. Discursividade sobre currículo da comunidade acadêmico-científica vinculada às associações do campo e veiculada em periódicos nacionais e internacional. Projeto de pesquisa. Vitória, 2015. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. [ Links ]

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 3. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. [ Links ]

GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. [ Links ]

LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios, 2015. [ Links ]

LAZZARATO, Maurizio. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCAR, 2011. [ Links ]

LOPES, Alice Cassimiro. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, Porto, n. 39, p. 7-23, 2013. [ Links ]

LOPES, Alice Cassimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011. [ Links ]

OLIVEIRA, Inês Barbosa; SGARBI, Paulo. Estudos do cotidiano & Educação. Belo Horizonte: Autêntica , 2008. [ Links ]

SCHUCHTER, Terezinha. Maria; MOREIRA, Nilcéa Elias Rodrigues; PAOLIELLO, Juliana. Cosmopolítica e potência de vida: o acontecimento como força para um currículo da diferença. Linha Mestra, Campinas, n. 35, p. 233-238, maio/ago. 2018. [ Links ]

SCHUCHTER, Terezinha. Maria; MOREIRA, Nilcéa Elias Rodrigues; PAOLIELLO, Juliana. O periódico Teias como espaço de produção no campo da educação, currículo e formação docente. Teias, Rio de Janeiro, v. 20, n. 56, p.322-345, jan./mar. 2019. [ Links ]

NOTAS

1 Coordenado pela Professora Dra. Janete Magalhães Carvalho - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ).

2 A junção de conceitos que apresentam entre si relações de reciprocidade é um princípio constitutivo do campo dos estudos com os cotidianos (OLIVEIRA; SGARBI, 2008).

3 Expressão criada pela professora Dra. Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Recebido: 19 de Dezembro de 2018; Aceito: 20 de Setembro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons