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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.1 São Paulo jan./maio 2020  Epub 30-Set-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i1p137-157 

Artigos

“I’M GONNA LEAVE YOU WITH THE BACKLASH BLUES1”: UMA ANÁLISE ACERCA DA CONCEPÇÃO DO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR SOB O VIÉS DA PEDAGOGIA CRÍTICA

“I’M GONNA LEAVE YOU WITH THE BACKLASH BLUES”: AN ANALYSIS ON THE CONCEPTION OF ENGLISH LANGUAGE TEACHING IN THE NATIONAL COMMON CORE CURRICULUM THROUGH THE LENSES OF CRITICAL PEDAGOGY

“I’M GONNA LEAVE YOU WITH THE BACKLASH BLUES”: UN ANÁLISIS ACERCA DE LA CONCEPCIÓN DE LA ENSEÑANZA DE LENGUA INGLESA EN LA BASE NACIONAL COMÚN CURRICULAR DESDE LA PERSPECTIVA DE LA PEDAGOGÍA CRÍTICA

Priscila Fabiane FARIASi 
http://orcid.org/0000-0002-5189-904X

Leonardo da SILVAii 
http://orcid.org/0000-0001-7346-5966

i Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários (UFSC) com concentração em Estudos da Linguagem. Professora no Departamento de Metodologias de Ensino (MEN) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: priscila.farias@ufsc.br.

ii Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários (UFSC) com concentração em Estudos da Linguagem. Professor do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). E-mail: leonardo.silva@ifsc.edu.br.


RESUMO

Considerando a importância de reconhecer o aspecto político-ideológico inerente ao ensino-aprendizagem de inglês, este estudo buscou investigar de que forma a língua inglesa é concebida na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2017). Mais especificamente, pretendeu-se analisar se o ensino da língua inglesa preconizado na BNCC objetiva promover a conscientização crítica (FREIRE, 1970) de forma a contribuir com a formação de cidadãos que possam agir em seus contextos, tendo em vista a justiça social, conforme postulado pela Pedagogia Crítica (FREIRE, 1970; CROOKES, 2013) e enfatizado pelos documentos educacionais anteriores. Para tanto, analisou-se o documento da BNCC finalizado no ano de 2017, mais especificamente as seções que dizem respeito à língua inglesa no Ensino Fundamental. Trata-se, portanto, de uma pesquisa de ordem qualitativa, baseada na análise documental, à luz da teoria da Pedagogia Crítica (FREIRE, 1970; GIROUX, 1983; SHOR, 1992) e do Ensino de Inglês Crítico (CROOKES, 2013; PESSOA, 2014). A análise empreendida aponta que o documento da Base parece sugerir uma visão crítica com relação ao papel da língua inglesa (ao enfatizar seu status como língua franca, sua pluralidade e a valorização de seus diferentes registros), mas não verdadeiramente problematiza (ou discute como fazê-lo) de um viés crítico. Ainda, falha em apresentar definições claras para tais conceitos, explorando ideais de cidadania, tais como equidade e igualdade, de forma limitada e insuficiente. No que tange a questões político-sociais mais amplas, identificou-se um apagamento dos problemas sociais, que não são apresentados como objeto de estudo da unidade curricular.

PALAVRAS-CHAVE: Base Nacional Comum Curricular; Ensino de Inglês Crítico; Pedagogia Crítica

ABSTRACT

Considering the importance of recognizing the political-ideological aspect inherent to English language teaching and learning, this study aimed at investigating in which ways the English language is conceived in the National Common Core Curriculum - known by the acronym BNCC (BRASIL, 2017). More specifically, it analyzed whether the conception of English language teaching advocated by the BNCC aims to promote critical consciousness (FREIRE, 1970) so as to contribute to the education of critical citizens who can act upon their contexts, in view of social justice, as postulated by the Critical Pedagogy theory (FREIRE, 1970; CROOKES, 2013) and emphasized by previous educational documents. To this end, the BNCC document finalized in 2017 was analyzed, more specifically the sections that refer to the English language in Elementary Education. It is, therefore, a qualitative research, based on documentary analysis, in the light of the theory of Critical Pedagogy (FREIRE, 1970; GIROUX, 1983; SHOR, 1992) and Critical English Language Teaching (CROOKES, 2013; PESSOA, 2014). The analysis undertaken points out that the document seems to suggest a critical view regarding the role of the English language (by emphasizing its status as a lingua franca, its plurality, and the importance of its different registers), but it does not really problematize it (or discuss how to do it) from a critical perspective. Besides, it fails in presenting clear definitions for such concepts, and it explores ideas of citizenship, such as equity and equality, in a limited way. When it comes to wider social issues, an erasure of social problems was identified, which are not presented as an object of study of the curricular unit.

KEYWORDS: National Common Core Curriculum; Critical English Language Teaching; Critical Pedagogy.

RESUMEN

Considerando la importancia de reconocer el aspecto político-ideológico inherente a la enseñanza-aprendizaje de inglés, este estudio buscó investigar de qué forma la lengua inglesa es concebida en la Base Nacional Común Curricular - BNCC (BRASIL, 2017). Más específicamente, se pretende analizar si la enseñanza de la lengua inglesa preconizada en la BNCC objetiva promover la concienciación crítica (FREIRE, 1970) de forma a contribuir con la formación de ciudadanos que puedan actuar en sus contextos, teniendo en cuenta la justicia social, conforme postulado por la Pedagogía Crítica (FREIRE, 1970; CROOKES, 2013) y enfatizado por los documentos educacionales anteriores. Para ello, se analizó el documento de la BNCC finalizado en el año 2017 y, más especialmente, las secciones respectivas a la lengua inglesa en la Enseñanza Básica. Se trata, por lo tanto, de una investigación de orden cualitativa, basada en el análisis documental, bajo la luz de la teoría de la Pedagogía Crítica (FREIRE, 1970; GIROUX, 1983; SHOR, 1992) y de la Enseñanza de Inglés Crítica (CROOKES, 2013; PESSOA, 2014). El análisis llevado a cabo muestra que el documento de la Base parece sugerir una visión crítica con relación al papel de la lengua inglesa (al enfatizar su estatus como lengua franca, su pluralidad y la valoración de sus diferentes registros), pero no lo problematiza verdaderamente (o discute cómo hacerlo) desde una mirada crítica. Aún, falla en presentar definiciones claras para tales conceptos, explorando ideales de ciudadanía, como equidad e igualdad, de forma limitada e insuficiente. En lo que concierne a las cuestiones político-sociales más amplias, se identificó una supresión de los problemas sociales, que no son presentados como objeto de estudio de la unidad curricular.

PALABRAS CLAVE: Base Nacional Común Curricular; Enseñanza de Inglés Crítica; Pedagogía Crítica.

1 INTRODUÇÃO

Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de uma forma neutra.

(FREIRE, 1996, p. 77).

Considerando que ensinar e aprender é um ato político, destacamos a importância de conceber o ato pedagógico como sendo constantemente carregado ideologicamente, mesmo quando se proclama (e mesmo se acredita) estar sendo neutro. O ensino de uma língua adicional (no caso deste estudo, a língua inglesa) não pode ser concebido, portanto, de um viés instrumentalista, já que há relações de poder imbricadas em todo evento comunicativo.

De acordo com Moita Lopes (1996, p. 183), “[...] ignorar o aspecto sócio-político da linguagem implica em negar sua própria natureza social”. No entanto, é comum observarmos, no campo do ensino de línguas adicionais, concepções e práticas pedagógicas que visam desenvolver os conhecimentos linguísticos sem considerar como a linguagem perpassa, reproduz e também cria relações de (des)igualdade. Esse parece ser o caso da abordagem comunicativa (ao menos da maneira como ela tem sido operacionalizada), uma vez que, ao focar no desenvolvimento da competência comunicativa (CANALE; SWAIN, 1980; LEFFA, 1988), frequentemente cria-se a ilusão de um “mundo perfeito”, em que problemas sociais são simplificados ou apagados, e aprende-se uma língua para viajar, conseguir um emprego, entre outros.

De acordo com Crookes (2010), abordagens comunicativas de ensino de língua parecem ter como foco principal a classe média, indivíduos, portanto, com uma facilidade em termos de mobilidade global. Bernstein et al. (2015) explicam que esse fenômeno está ligado às influências do neoliberalismo, contexto em que o aprendizado de línguas e a cultura tornam-se uma commodity que é vendida por meio da estereotipagem e da essencialização, em que professores tornam-se trabalhadores técnicos (e não crítico-reflexivos, podendo ser facilmente treinados e substituídos), e aprendizes são vistos como consumidores e empreendedores.

A importância de reconhecer o aspecto político-ideológico inerente ao ensino-aprendizagem de inglês torna-se ainda mais evidente ao considerarmos o contexto da Educação Básica. Isso porque o currículo escolar, embora fragmentado e organizado por meio da divisão de disciplinas, partilha de objetivos comuns que, de forma simples, podem ser entendidos como a formação cidadã e a inserção de um sujeito autônomo e crítico na sociedade. Essa concepção fica clara ao observarmos alguns documentos oficiais que regem a educação brasileira.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (BRASIL, 1998), por exemplo, ao abordarem o ensino de línguas adicionais, enfatizam que o ensino-aprendizagem deve focar em “[...] aumentar a autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão” e “[...] no engajamento discursivo do aprendiz, ou seja, em sua capacidade de se engajar e engajar outros no discurso de modo a poder agir no mundo social” (BRASIL, 1998, p. 15). Ainda de acordo com o documento, cidadania e consciência crítica em relação à linguagem e seus aspectos sociopolíticos são os pilares que devem sustentar o ensino-aprendizagem da língua adicional.

Da mesma forma, o documento Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) discute a falta de clareza sobre os objetivos do ensino de línguas adicionais na escola regular, destacando que, enquanto o objetivo linguístico é lembrado com maior frequência por muitos, “[...] a disciplina Línguas Estrangeiras na escola visa a ensinar um idioma estrangeiro e, ao mesmo tempo, cumprir outros compromissos com os educandos, como, por exemplo, contribuir para a formação de indivíduos como parte de suas preocupações educacionais” (BRASIL, 2006, p. 91). Dessa maneira, o documento enfatiza a relevância de desenvolver cidadania bem como uma consciência social nas aulas de línguas adicionais, dando destaque a propostas de multiletramentos para atingir tal objetivo. Ainda, o Decreto No 6.755, de 29 de janeiro de 2009, que institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, destaca, em seu artigo 2, parágrafo II, que a formação dos profissionais do magistério tem “[...] compromisso com um projeto social, político e ético que contribua para consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais” (BRASIL, 2009, p. 1).

Apesar da recomendação clara em diversos documentos oficiais para uma educação crítica que promova cidadania e consciência social na Educação Básica, inúmeros acontecimentos e transformações políticas que vão contra esses objetivos marcaram o cenário educacional brasileiro nos últimos anos. Como exemplo, destacamos o projeto Escola Sem Partido (PL 867/2015), que almeja uma (irreal) educação neutra e percebe práticas de reflexão crítica como ações de doutrinação, promovendo a intolerância em frente a diferenças (FRIGOTTO, 2017); e o projeto Novo Ensino Médio (Lei No 13.415/2017), que dá ênfase ao ensino de algumas disciplinas em detrimento a outras, com a premissa de maior flexibilidade aos estudantes, quando, na verdade, desvaloriza o educador e reforça uma visão tecnicista de educação (RAMOS; HEINSFELD, 2017).

Diante do drástico cenário que tais mudanças trazem para a educação brasileira, e tendo em vista a importância dos documentos que norteiam a Educação Básica, justifica-se investigar de que forma a disciplina de língua inglesa é concebida na Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2017), documento que se propõe a atualizar e avançar o desenvolvimento da Educação Básica no país para os próximos anos. Assim, mais especificamente, pretendemos analisar, neste artigo, se a língua inglesa na BNCC é entendida em seu aspecto político-ideológico e se seu ensino objetiva promover a conscientização crítica (FREIRE, 1970), de forma a contribuir com a formação de cidadãos que possam agir em seus contextos, tendo em vista a justiça social, conforme postulado pela Pedagogia Crítica (FREIRE, 1970; CROOKES, 2013) e conforme enfatizado pelos documentos educacionais anteriores.

Para tanto, analisar-se-á o documento da BNCC, finalizado no ano de 2017, e, mais especificamente, as seções que dizem respeito à língua inglesa no Ensino Fundamental. Trata-se, portanto, de uma pesquisa de ordem qualitativa, baseada na análise documental, à luz da teoria da Pedagogia Crítica (FREIRE, 1970; GIROUX, 1983; SHOR, 1992) e do Ensino de Inglês Crítico (CROOKES, 2013; PESSOA, 2014). Reconhecemos que documentos como a BNCC não definem o que é de fato feito em sala de aula, mas ressaltamos que se trata um documento norteador importante e que deve ser, por conseguinte, avaliado. Procuramos, dessa forma, contribuir para discussões do futuro do ensino das línguas adicionais no Brasil, bem como informar o (até então polêmico) desenvolvimento e a implementação da BNCC nas escolas básicas do país.

2 “EMANCIPATE YOURSELVES FROM MENTAL SLAVERY2”: A PEDAGOGIA CRÍTICA E O ENSINO DE INGLÊS CRÍTICO

Giroux (2016) explica que a Pedagogia Crítica teve como um de seus precursores o educador brasileiro Paulo Freire, que defendia que a pedagogia deveria estar conectada à mudança social, sendo então “[...] um projeto e uma provocação que desafiam alunos a se engajarem criticamente com o mundo para então agir sobre ele” (GIROUX, 2016, p. 298, tradução nossa). Nesse sentido, a Pedagogia Crítica “[...] daria aos alunos a oportunidade de ler, escrever e aprender a partir de uma posição de agência”(GIROUX, 2016, p. 299, tradução nossa), negando então métodos e técnicas pré-fabricados de ensino. Nessa perspectiva, em que o objetivo da educação é engajar o aluno em um processo de desenvolvimento de sua consciência crítica para que possa melhor compreender sua realidade e possivelmente transformá-la, torna-se fundamental “[...] mudar a ênfase de professores para alunos e tornar visíveis as relações entre conhecimento, autoridade e poder” (GIROUX, 2016, p. 300, tradução nossa).

hooks3 (1994) argumenta que a Pedagogia Crítica engloba ensinar novas formas de pensar e de perceber o mundo (ou seja, de questionar o status quo e o senso comum) que possam levar a novas formas de viver. A autora defende, ainda, que, para que a educação seja uma prática transgressiva e uma prática libertária, é necessário ressignificar as concepções tradicionais de relações na sala de aula. Assim como Freire (1970), hooks (1994) critica a concepção bancária de ensino, que se baseia na ideia de que o conhecimento é transmitido daquele “que tudo sabe” para sujeitos “vazios” que recebem a informação de forma acrítica.

Podemos notar, dessa forma, que, ao ressignificar as relações do processo de ensino-aprendizagem, a Pedagogia Crítica reconhece a centralidade do aluno no ato pedagógico, conforme aponta Giroux (2016). Por conta disso, o contexto de ensino e a experiência do educando são fundamentais e precisam ser o ponto de partida do educar. Já um dos papéis fundamentais do educador é “[...] garantir que o futuro aponte para um mundo mais socialmente justo, um mundo em que crítica e possibilidade - juntamente aos valores de razão, liberdade e igualdade - funcionem de forma a aprimorar os modos de vida” (GIROUX, 2016, p. 300, tradução nossa). Da mesma forma, Shor (1992) explica que o currículo deve encorajar os estudantes a questionar o conhecimento, a sociedade e as experiências que endossam e dão suporte ao status quo. Ainda, Giroux (2016, p. 12, tradução nossa) ressalta que “[...] um currículo que não desafia o padrão e as condições sociais informam aos alunos que conhecimento e mundo são fixos e estão bem do jeito que estão, sem espaço para que os alunos desempenhem o papel de transformadores, sem necessidade de mudança”.

Embora os trabalhos de Freire, Giroux e Shor não tratem especificamente sobre o ensino de línguas adicionais, há pesquisadores (CROOKES, 2013; PESSOA; URZÊDA-FREITAS, 2012; PESSOA, 2014; SILVA; FARIAS; D’ELY, 2017) que, partindo das teorias educacionais advindas desse campo, postulam a necessidade de uma perspectiva crítica para o ensino de língua inglesa. Para Crookes (2013), ensinar nessa perspectiva é ensinar de forma a promover a justiça social, apoiando o

[...] desenvolvimento de cidadãos engajados que poderão, de acordo com as circunstâncias, se questionarem criticamente sobre o porquê de a vida de tantos seres humanos ser material, psicológica, social e espiritualmente inadequadas - cidadãos que estarão preparados para procurar soluções para os problemas que definem e encontram, e agir de maneira apropriada sobre eles (GIROUX, 2016, p. 8, tradução nossa).

É possível questionarmos, nesse sentido, como se pode ensinar uma língua de forma crítica. Visto que o ensino é concebido como contextual e que as experiências e as subjetividades daqueles envolvidos no processo de ensino-aprendizagem são de fundamental importância, podemos concluir que o ensino de línguas crítico não é uma lista estanque de procedimentos ou técnicas. Conforme defendem Pessoa e Urzêda-Freitas (2012, p. 774, tradução nossa), trata-se de “uma maneira de pensar, viver e fazer”. A sala de aula de línguas pode ser, então, o local em que, por meio do diálogo que desenvolve a reflexão crítica, se trabalha de forma contra-hegemônica, questionando a produção e a reprodução das ideologias tidas como inquestionáveis na esfera social (PESSOA; URZÊDA-FREITAS, 2012).

É inegável que, para ensinar de um ponto de vista crítico, o professor precisa ter uma perspectiva crítica (EDELSKY; JOHNSON, 2004). Nesse sentido, é fundamental que uma perspectiva crítica, que leve o professor a desenvolver sua capacidade crítico-reflexiva para além dos procedimentos e técnicas empregados em sala de aula, permeie as formações iniciais e continuadas docentes, conforme defendem Silva, Silva e Rocha (2017). Além disso, é importante destacar que o ensino crítico de línguas precisa ser visto como dependendo de uma série de fatores que vão além da criticidade do professor e de sua disposição em abordar a língua a partir de uma visão crítica do mundo.

Crookes (2013) defende que precisamos também de administrações e administradores críticos. Mais ainda, é necessário que as políticas linguísticas sejam discutidas e implementadas com um viés crítico, já que elas norteiam o processo de ensino-aprendizagem nas salas de aulas. Acreditamos, nesse sentido, na importância e no impacto dos documentos norteadores da Educação Básica, já que eles representam e (re)criam as bases ideológicas sob as quais o fazer educacional se sustenta. Daí a relevância de investigarmos a concepção do ensino-aprendizagem de língua inglesa que subjaz à BNCC (2017), documento sobre o qual nos debruçamos na seção seguinte.

3 “OLD PIRATES, YES THEY ROB I4”: A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

É possível falar em um “currículo nacional” sem recair na ideia de uma determinação que desconsidera a realidade que insiste em ser não linear e desigual?

(SILVA, 2015, p. 375)

De acordo com o texto de apresentação da própria BNCC, o documento “[...] inicia uma nova era na educação brasileira e se alinha aos melhores e mais qualificados sistemas educacionais do mundo” (BRASIL, 2017, p. 5). É interessante notarmos, nesse sentido, que o documento reconhece seu objetivo de buscar avanços no sistema educacional do país espelhando-se em modelos educacionais advindos de outros contextos. Embora o texto também explicite que ele tenha sido criado de forma colaborativa com especialistas, professores e membros da sociedade civil, é importante apontarmos que a forma como tal regime de colaboração ocorreu não parece estar muito clara. Isso porque, nas suas últimas versões publicadas no ano de 2016-2017, o documento sofreu alterações sem consulta a todos aqueles (que deveriam estar) envolvidos no processo de sua concepção, a exemplo dos termos “gênero e sexualidade” que foram excluídos do documento. Marsiglia et al. (2017) atentam, nessa perspectiva, para os interesses daqueles envolvidos no processo de construção do documento:

Fundação Itaú Social, Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, CENPEC, além é claro do organismo Todos pela Educação, são alguns dos aparelhos privados de hegemonia da classe empresarial que se articularam no chamado Movimento pela Base Nacional Comum (MARSIGLIA et al., 2017, p. 114).

Para os autores, o documento busca dar conta das demandas do capitalismo neoliberal, e está voltado para “[...] atender os interesses empresariais e para a adaptação dos indivíduos ao capitalismo do século XXI” (MARSIGLIA et al., 2017, p. 119).

Diante de tal cenário, a BNCC tem sido entendida como contraditória não só pela forma como foi construída, mas também pelo seu conteúdo que é, certamente, uma consequência do seu processo de construção (cujo aspecto democrático pode ser considerado questionável). Silva (2015) explica que a Base parece consistir em uma “listagem de objetivos sequenciados temporalmente”, o que expressa uma

[...] dimensão regulatória e restritiva, e reforça a ideia de que se trata de algo que conduz a uma formação administrada, que é justamente o oposto do que está anunciado nos textos das atuais Diretrizes Curriculares Nacionais, isto é, a possibilidade que a escola vá ao encontro de uma formação crítica e emancipatória (SILVA, 2015, p. 375).

A autora defende que a concepção da Base parece estar vinculada também ao controle por meio das avaliações, em que exames “[...] incidem diretamente sobre as escolhas de currículo [...]” (SILVA, 2015, p. 375), desvinculando a escola, portanto, de uma “[...] perspectiva de formação humana que [...] visa a propiciar uma genuína experiência formativa” (SILVA, 2015, p. 375).

Em sua Introdução, no entanto, a BNCC enfatiza, ao mencionar a legislação e os documentos educacionais norteadores anteriores, um compromisso com uma “formação humana integral” (BRASIL, 2017, p. 7). Seu objetivo seria o de criar um “patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes” (BRASIL, 2017, p. 8), de forma a atender competências gerais da Educação Básica. A partir de uma breve análise das dez competências apresentadas pelo documento para serem desenvolvidas nos três níveis da Educação Básica, podemos notar uma preocupação com o desenvolvimento crítico que possa contribuir para a “[...] construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2017, p. 9).

Destacamos, assim, a importância de utilizar as “[...] tecnologias de informação e comunicação de forma crítica [...]”, “[...] de valorizar a diversidade de vivências e saberes culturais [...]”, de “[...] defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta [...]”, de “[...] exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação” (BRASIL, 2017, p. 9-10), entre outros.

Embora tais competências pareçam evidenciar um ensino compromissado com a justiça social, há de observarmos a falta de discussão acerca do que se quer dizer com tais competências e com os conceitos nelas apresentados. No que exatamente consiste, por exemplo, conceber tecnologias de uma forma crítica? Qual é o nível de criticidade implícito aqui? Ainda, qual a definição do ser “crítico”? Ferreira (2015) aponta que o discurso da inclusão e da diversidade são, por vezes, assimilados pela agenda neoliberal, inclusive na construção de currículos:

Aplicado ao currículo nacional, o conceito de diversidade não pode ser apenas um jargão, porque incorporar esse conceito sem fundamentá-lo teoricamente, ou apenas como um conteúdo curricular ou tema transversal, significa esvaziá-lo e reduzi-lo à retórica política, que desconsidera e negligencia questões sociais, econômicas e culturais prementes existentes no cerne desse conceito, porque refletem a luta em promoção de direitos e chances igualitárias para todos os membros da sociedade, independentemente de sua origem, raça, gênero, posição social, renda, orientação sexual, papel social, condição física, cognitiva ou intelectiva, motora, neurológica, sensorial etc. (FERREIRA, 2015, p. 307).

Faz-se necessário observarmos, nesse sentido, em que medida o documento da Base, por meio das diferentes disciplinas e ao longo dos três níveis da Educação Básica, potencializa uma educação verdadeiramente calcada no desenvolvimento de sujeitos emancipados, autônomos e capazes de refletir e agir sobre a própria realidade. Afinal de contas, o documento menciona um compromisso com a formação integral e com a “[...] não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidade” (BRASIL, 2017, p. 15). Além disso, apresenta a importância de reconhecer as desigualdades educacionais para construir um planejamento buscando “[...] reverter a situação de exclusão histórica que marginaliza grupos” (BRASIL, 2017, p. 15).

Por fim, o documento relega aos sistemas e às redes de ensino bem como às escolas a tarefa de “[...] incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora” (BRASIL, 2017, p. 17). Dentre esses temas estão:

[...] direitos da criança e do adolescente (Lei no 8.069/1990), educação para o trânsito (Lei no 9.503/1997), educação ambiental (Lei no 9.795/1999, Parecer CNE/CP no 14/2012 e Resolução CNE/CP no 2/2012), educação alimentar e nutricional (Lei no 11.947/2009), processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso (Lei no 10.741/2003), educação em direitos humanos (Decreto no 7.037/2009, Parecer CNE/CP no 8/2012 e Resolução CNE/CP no 1/2012), educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena (Leis no 10.639/2003 e 11.645/2008, Parecer CNE/CP no 3/2004 e Resolução CNE/CP no 1/2004), (Parecer CNE/CEB no 11/2010 e Resolução CNE/CEB no 7/2010) (BRASIL, 2017, p. 17-18)

Nesse sentido, o documento apresenta temas de ordem social, definidos por leis específicas, como tendo de configurar o currículo escolar. Se, por um lado, esses temas são de extrema importância para uma educação emancipadora do ponto de vista da Pedagogia Crítica (PENNYCOOK, 1999; PESSOA, 2014); por outro, a mera incorporação ou menção deles no documento em si não garante sua abordagem de uma perspectiva que promova o desenvolvimento crítico. Novamente, o documento não discute como tais temas podem fazer parte da base comum, afirmando que as diferentes temáticas “[...] são contempladas em habilidades dos componentes curriculares” (BRASIL, 2017, p. 20).

Ao não abordar tais temáticas com o cuidado e a profundidade adequados, o documento parece mencioná-los como uma mera formalidade, fazendo com que se corra o risco de que eles sejam trabalhados, portanto, de forma acrítica (por exemplo, ao trabalhar-se com questões étnico-raciais reforçando estereótipos e concepções hegemônicas e etnocêntricas). Dessa forma, cabe investigarmos, como faremos na próxima seção, se (e de que forma) os princípios de uma educação pautada nos princípios da Pedagogia Crítica (e, portanto, objetivando a justiça social e não uma mera assimilação e inserção no sistema capitalista neoliberal) estão presentes no cerne da Base Nacional Comum Curricular e, mais especificamente, no que tange à unidade de língua inglesa no ensino de nível fundamental.

4 “MR. BACKLASH, MR. BACKLASH5”: A LÍNGUA INGLESA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

De acordo com a seção da Base que trata da unidade curricular de língua inglesa,

[...] o estudo da língua inglesa pode possibilitar o acesso aos saberes linguísticos necessários para o engajamento e participação, contribuindo para o agenciamento crítico dos estudantes e para o exercício da cidadania ativa, além de ampliar as possibilidades de interação e mobilidade, abrindo novos percursos de construção de conhecimento e de continuidade nos estudos (BRASIL, 2017, p. 239, grifo nosso).

Enfatizamos, nesse sentido, que a finalidade dessa unidade curricular é uma educação “linguística, consciente e crítica” (BRASIL, 2017, p. 239). No entanto, como veremos a seguir, o documento sugere que a unidade curricular de língua inglesa pode, por meio dos saberes linguísticos, instrumentalizar os alunos para que possam ser cidadãos conscientes e críticos, como se a criticidade fosse uma simples consequência do processo educacional focado no desenvolvimento linguístico. Dessa forma, a visão de criticidade da Base - considerando que é comum que o documento mencione o termo “crítico” sem defini-lo ou explicá-lo - parece distanciar-se da visão de conscientização crítica (FREIRE, 1970) defendida da perspectiva da Pedagogia Crítica. Isso porque, enquanto, para Freire (1970), o desenvolvimento de uma consciência crítica implica um processo de reconhecimento das condições sociais e de engajamento transformador de ação sobre elas, a visão expressa na BNCC concebe a criticidade como um fim (e não como um meio ou um processo) que poderia ser garantido pela educação linguística. É possível questionarmos, nesse sentido: Desenvolver a competência linguística (ou a competência comunicativa) garantiria, nessa lógica, um pensar e um fazer crítico?

Por outro lado, podemos argumentar que o documento traz uma visão crítica acerca da língua inglesa ao questionar o conceito de língua estrangeira, por exemplo, desvinculando-a da visão eurocêntrica de que há um inglês correto, geralmente “aquele falado por estadunidenses e britânicos” (BRASIL, 2017, p. 239). Além disso, ao questionar o fato de a língua inglesa estar vinculada a um território específico, o documento se propõe a desenvolver

[...] uma educação linguística voltada para a interculturalidade, isto é, para o reconhecimento das (e o respeito às) diferenças, e para a compreensão de como elas são produzidas nas diversas práticas sociais de linguagem, o que favorece a reflexão crítica sobre diferentes modos de ver e analisar o mundo, o(s) outro(s) e a si mesmo (BRASIL, 2017, p. 240, grifo nosso).

No entanto, observamos que o documento sugere que o trabalho com as diferentes culturas, por meio do respeito à diversidade, pode levar ao desenvolvimento crítico (que seria, novamente um fim) - o que pode ser considerado perigoso se considerarmos que o trabalho com cultura não necessariamente promove ou favorece a criticidade, muitas vezes perpassando o estereótipo e a essencialização. Nesse caso, o trabalho não é verdadeiramente intercultural e, consequentemente, pode funcionar contra o próprio processo de desenvolvimento crítico.

Siqueira (2016) defende a necessidade de uma pedagogia intercultural crítica, que reconheça a “[...] prática educacional em termos sociais, culturais e políticos mais amplos, tendo em mente que o ensino de língua inglesa está longe de ser ideologicamente neutro” (SIQUEIRA, 2016, p. 196, tradução nossa), de forma que “[...] nossas salas de aula possam servir como o espaço ideal para que professores e alunos empoderem-se e relacionem o ensino de inglês ao mundo real, buscando uma participação mais ativa e mais crítica na crescente comunidade planetária” (SIQUEIRA, 2016, p. 196, nossa tradução). É importante, nesse sentido, que tanto a interculturalidade (da qual trataremos mais a seguir) e a criticidade não sejam tratadas apenas como buzzwords frequentemente utilizadas de forma simplista, esvaziando seu significado.

Da mesma forma, ao abordar outros termos - tais como “multiletramento” ou “inglês como língua franca” - o documento parece, mais uma vez, trazer uma visão superficial de seus significados. Nessa acepção, a ideia de multiletramento é reduzida a ideia de que há “[...] diferentes semioses e linguagens” no processo de construção de sentidos (BRASIL, 2017, p. 240), e o conceito de língua franca é relacionado à pluralidade/diversidade da língua, que seria um “[...] bem simbólico para falantes de todo o mundo” (BRASIL, 2017, p. 240). Assim, embora o documento traga uma perspectiva de “[...] legitimação de diferentes formas de expressão na língua” (BRASIL, 2017, p. 240), buscando combater, portanto, o preconceito linguístico e mitos como o do “falante nativo”, ele ainda parece fomentar uma visão de língua e cultura baseada na troca entre diferentes culturas, que vivem harmoniosamente e cujo acesso à língua inglesa possibilita uma participação efetiva na sociedade.

Essa visão idealista e, de certa forma, simplista, acerca da língua, provoca o apagamento de questões sociais, culturais e políticas mais amplas (SIQUEIRA, 2016) que perpassam a linguagem e, mais especificamente, a língua inglesa e sua carga histórica. De uma perspectiva intercultural verdadeiramente crítica, por exemplo, caberia questionar as desigualdades sociais, de forma a perceber as relações de poder imbricadas em todo e qualquer encontro (inter)cultural. Mais do que isso, caberia refletir sobre formas de desestruturar tais relações de poder, buscando então a justiça social (CROOKES, 2013).

Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito ao fato de o documento da Base apresentar o componente de língua inglesa a partir de eixos organizadores, a saber: oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e dimensão intercultural. Dessa forma, a organização é bastante semelhante à ideia das quatro habilidades da perspectiva da abordagem comunicativa; nela, reúne-se audição e fala no eixo “oralidade”, cria-se um eixo específico para conhecimentos linguísticos e outro para a dimensão intercultural. O que esses eixos parecem enfatizar é uma visão de língua como instrumento de comunicação, destacando a importância do uso de diferentes gêneros textuais multimodais. Embora o documento afirme novamente a importância de uma “leitura crítica” e a “reflexão crítica/problematização dos temas tratados” (BRASIL, 2017, p. 242), o foco dado à leitura ainda parece estar relacionado somente à perspectiva cognitiva do ler, de modo a enfatizar a importância de desenvolver diferentes habilidades como, por exemplo, localizar informações específicas e gerais em um texto e a necessidade do trabalho pré-leitura, durante a leitura e pós-leitura.

Nesse sentido, o documento parece contraditório, uma vez que, por um lado, repetidamente menciona a importância do viés crítico para o ensino da língua, mas, por outro, ao discutir a operacionalização do ensino da língua (ou seja, como o trabalho do ensino da língua pode realmente ocorrer no nível da sala de aula), acaba por basear-se em uma concepção de língua como instrumento comunicativo, cujo domínio linguístico garantiria, por si só, a conscientização crítica. A própria discussão do eixo “dimensão intercultural” - que poderia ser entendido como um eixo inovador da proposta - se restringe a um parágrafo, enfatizando novamente a pluralidade cultural e o status do inglês percebido como língua franca. Fica evidente, como o próprio documento explicita, que se trata de um ensino da “língua em uso, sempre híbrida, polifônica e multimodal” (BRASIL, 2017, p. 243). Não há, nessa perspectiva, uma verdadeira preocupação com questões maiores de ordem política e ideológica, o que parece promover um retrocesso em relação a documentos norteadores anteriores, que apresentavam um trabalho mais apurado com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica.

De fato, as competências específicas para o ensino de língua inglesa no ensino fundamental apontados na Base revelam uma visão mais instrumental da língua, enfatizando sua importância (comunicativa) em um contexto social plural, multicultural e multimodal. Dessa forma, encontram-se, dentre as competências listadas: 1) “identificar o lugar de si e do outro em um mundo plurilíngue e cultural [...]”; 2) “comunicar-se na língua inglesa, por meio do uso variado de mídias impressas e digitais [...]”; 3) “identificar similaridades e diferenças entre a língua inglesa e a língua materna/outras línguas [...]”; 4) “elaborar repertórios linguístico-discursivos da língua inglesa, usados em diferentes países e por grupos sociais distintos dentro de um mesmo país [...]”; 5) “utilizar novas tecnologias, com novas linguagens e modos de interação [...] de forma ética, crítica e responsável”; e 6) “conhecer diferentes patrimônios culturais, materiais e imateriais, difundidos na língua inglesa” (BRASIL, 2017, p. 244). Embora os objetivos mencionem a reflexão crítica no que concerne ao uso da língua como meio de acesso ao mundo globalizado e ao mundo do trabalho, bem como ao uso das novas tecnologias, o foco principal recai em usar a língua de forma a comunicar-se com o outro, já que se objetiva entender a si e ao outro, usar diferentes textos para se comunicar, reconhecer e utilizar variedades diferentes da língua, utilizar a língua para ter acesso a diferentes modos de comunicação e ter acesso a diferentes bens culturais na língua alvo. Faz-se necessário questionarmos, portanto, se esses objetivos expressam uma preocupação com a justiça social, cerne de qualquer proposta educacional da perspectiva da Pedagogia Crítica.

Esse viés da língua sendo instrumento para comunicação fica ainda mais evidente na seção do documento que trata das habilidades a serem desenvolvidas em cada ano do ensino fundamental. A proposta, ao apresentar uma lista de habilidades que devem ser trabalhadas ao longo dos anos, assemelha-se mais a um currículo prescrito do que a uma base nacional comum curricular. Além disso, tais habilidades espelham os objetivos mencionados anteriormente, uma vez que praticamente não há habilidades relacionadas ao desenvolvimento da consciência crítica. A título de exemplo, o documento menciona como habilidades a serem desenvolvidas: “[...] produzir textos que revelem posicionamento crítico” (BRASIL, 2017, p. 261) ou mesmo “[...] debater sobre a expansão da língua inglesa pelo mundo, em função do processo de colonização das Américas, África, Ásia e Oceania” (BRASIL, 2017, p. 261).

Todavia, não fica claro, a exemplo do restante do documento, de que forma ser crítico é entendido aqui. Além do mais, o documento não discute como esse posicionamento crítico pode ser desenvolvido, tampouco discute se a expansão da língua inglesa e a colonização devem ser debatidas de uma perspectiva contra-hegemônica. Posicionar-se ou debater, não garantem, por si só, o desenvolvimento de um posicionamento crítico ancorado em uma perspectiva emancipadora e baseada na justiça social. Ainda, acentua-se a problemática da exploração rasa (ou falta dela) de conceitos chaves como o conceito de criticidade pois, conforme ressaltam Pessoa, Andrade e Ferreira (2018), documentos educacionais que não são claros acabam por confundir professores de Educação Básica que não se sentem preparados para adaptar materiais ou implementar princípios teóricos na sua prática diária de sala de aula.

Dessa forma, podemos afirmar que o documento da Base, no que tange ao ensino de língua inglesa, sugere uma visão crítica com relação ao papel da língua inglesa (ao enfatizar seu status como língua franca, sua pluralidade e a valorização de seus diferentes registros), mas não verdadeiramente problematiza (ou discute como fazê-lo) de um viés crítico. Ainda, falha em apresentar definições claras para tais conceitos, de modo a explorar ideais de cidadania, tais como equidade e igualdade, de forma limitada e insuficiente. No que tange a questões político-sociais mais amplas, há uma espécie de apagamento dos problemas sociais, que não são apresentados como objeto de estudo da unidade curricular. De forma semelhante, não há menção sequer de questões identitárias como classe, raça, gênero e sexualidade - o que parece contraditório em um projeto que diz ter como objetivo o olhar para si e para o outro em um mundo “intercultural”. Parece haver um retorno à visão simplista do ensino comunicativo, com a diferença de que buzzwords como “interculturalidade” e “multiletramentos” são incorporados de forma a configurar uma suposta mudança ou avanço na maneira como se entende o ensino de línguas.

Talvez um dos principais problemas apresentados pela Base seja a falta de diálogo com os saberes advindos da área da educação. Afinal de contas, quais são os pressupostos pedagógicos que devem embasar um currículo? Nesse sentido, conforme explica Crookes (2013), o ensino de inglês crítico parte de teorias pedagógicas (mais especificamente, a pedagogia crítica) para pensar sobre a sala de aula. Desse ponto de vista, muito mais importante do que definir uma lista de conteúdos a serem trabalhados - que é o que a Base apresenta na forma de “habilidades” - é pensar no próprio processo pedagógico. Não há discussão, por exemplo, acerca da centralidade do aluno no processo de ensino e aprendizagem.

Embora a Base mencione que o documento é apenas norteador e que pode ser adaptado e/ou reorganizado na elaboração dos currículos, a tendência é que, ao buscar seguir suas orientações, acabe-se por partir das habilidades apresentadas pelo documento em vez de construir um currículo para e com os alunos, que reflita suas necessidades e seja adequado ao seu contexto. Conforme defende Crookes (2013), nesse sentido, o currículo não deve ser fixo nem determinado pelo professor somente, já que deve emergir das preocupações e das necessidades dos alunos. Ensinar a partir das necessidades e do contexto imediato dos alunos implica também conceber novas formas de ensinar que resultarão no reconhecimento do papel central que o diálogo tem no desenvolvimento crítico (HOOKS, 1994). Ensinar, na perspectiva da Pedagogia Crítica, não é, portanto, um mero transmitir conhecimento.

Uma última questão que precisa ser problematizada é a própria definição da língua inglesa como língua adicional obrigatória no Ensino Fundamental. A exclusão da língua espanhola (em um país situado dentre tantos cuja língua materna é o espanhol), ou mesmo de outras línguas adicionais que poderiam ser consideradas relevantes pela comunidade escolar para cada contexto específico, também precisa ser percebida como um projeto ideológico. Projeto esse que, mais uma vez, ao negar a premissa básica do ensino crítico - que é o processo educacional contextualmente relevante e que promova a agência daqueles que dele fazem parte -, acaba subscrevendo a uma visão de ensino que parece colocar o aluno em segundo plano, bem como relegar à língua inglesa um papel tecnicista e acrítico, podendo então acabar por reforçar seu caráter hegemônico e colonialista.

5 “TELL ME WHAT WE’RE GONNA DO NOW6”: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 1973, Freire destacava inúmeras posições irracionais tomadas pela sociedade Brasileira, consequências de mudanças políticas e sociais abruptas e profundas, dando ênfase para a urgência de uma educação que pudesse “[...] ajudar homens a assumir uma atitude crítica em relação ao mundo de forma a transformá-lo” (FREIRE, 1973, p. 34, tradução nossa). Mais de 40 anos depois, Souza e Monte Mór (2018) tentam responder a inquietante pergunta que questiona por que ainda precisamos defender uma educação crítica na terra de Freire com outra pergunta: “É possível que tenhamos medo de uma educação crítica no Brasil? Por quê? Quem não estaria interessado nela?” (SOUZA; MONTE MÓR, 2018, p. 447, tradução nossa).

Frente às problemáticas mudanças e polêmicas ações políticas que marcam o cenário educacional brasileiro nos últimos quatro anos, a Base Nacional Comum Curricular parece seguir um caminho similar, repaginada por uma agenda neoliberal que prioriza a preparação dos estudantes para o mercado de trabalho, revestindo-se de palavras e ideias que, embora possam parecer revolucionárias na superfície, são abordadas de maneira rasa e limitada. Dessa forma, a língua adicional na BNCC, diferentemente do que muitas vezes o próprio documento propõe, não é percebida sob um viés político-ideológico e seu ensino não prioriza a formação de cidadãos críticos que venham a agir em seus contextos almejando a justiça social.

Ainda assim, é possível enxergar um futuro para a educação crítica na sala de aula de língua adicional do Brasil. Afinal, conforme ressalta Pennycook (2016, p. 34, tradução nossa), “[...] em vez de fazermos suposições sobre dominação, sobre alguns terem o poder e outros não, ou assumirmos que o Ensino da Língua Inglesa é inevitavelmente uma ferramenta do neoliberalismo, precisamos explorar outras formas nas quais o poder opera em contextos locais”, na tentativa de promover mudanças sociais por meio de pequenas ações direcionadas à promoção da justiça social. Nesse sentido, é no professor e nos alunos críticos, em cada sala de aula, que mora a esperança.

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NOTAS

“Backlash Blues” é o título de uma canção lançada em 1967 pela artista Nina Simone como forma de protesto ao retrocesso nas políticas raciais. Neste artigo, utilizamos um verso da canção no título por entendermos que a análise do documento aqui empreendida pode servir também como uma forma de protesto aos retrocessos educacionais no contexto brasileiro.

2 Verso da canção “Redemption Song”, lançada em 1980 pelo artista Bob Marley.

3 A autora, por questões políticas, utiliza seu nome em letras minúsculas.

4 Verso da canção “Redemption Song”, lançada em 1980 pelo artista Bob Marley.

5 Verso da canção “Backlash Blues”, lançada em 1967 pela artista Nina Simone.

6 Verso e título de canção lançada pela artista Joss Stone em 2007.

Recebido: 09 de Setembro de 2019; Aceito: 14 de Janeiro de 2020

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