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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.1 São Paulo jan./maio 2020  Epub 30-Set-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i1p221-235 

Artigos

TOTALITARISMO DE MERCADO E RACIONALIDADE NEOLIBERAL NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

MARKET TOTALITARIANISM AND NEOLIBERAL RATIONALITY IN BRAZILIAN EDUCATION

TOTALITARISMO DE MERCADO Y RACIONALIDAD NEOLIBERAL EN LA EDUCACIÓN BRASILEÑA

i Doutorado em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: carlosbetlinski@ufla.br.

ii Doutorado em Letras-Literatura pela Universidade Mackenzie. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: dalva.lobo@ufla.br.

iii Doutorado em Educação na área de Filosofia, História e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: luizroberto.gomes@gmail.com.


RESUMO

Neste ensaio, abordamos o tema da educação e elegemos como objeto de investigação as reformas educacionais brasileiras das últimas três décadas, buscando compreender os fundamentos e as intencionalidades que as direcionam. O problema que orientou nossas análises foi a questão: como interpretar as recentes reformas educacionais a partir dos conceitos de totalitarismo de mercado, racionalidade neoliberal e estado de exceção? Conceitos que foram referenciados em Dardot e Laval, Benjamin e Agamben. Como objetivos, propomos caracterizar o totalitarismo de mercado e indicar como essa forma econômico-política afeta os serviços públicos e o funcionamento do próprio Estado; e interpretar algumas das recentes reformas educacionais brasileiras, referenciadas no conceito de racionalidade neoliberal. Como resultados de investigação, argumentamos que as reformas educacionais se aproximam da lógica empresarial, e aquilo que se apresenta como progresso leva à regressão; portanto, à exclusão econômica e cultural de toda a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Totalitarismo de mercado; Racionalidade neoliberal; Estado de exceção; Reformas educacionais; Educação empresarial

ABSTRACT

In this essay, we approach the subject of education and chose the Brazilian educational reforms of the last three decades as object of investigation to understand the foundations and intentionality that direct them. The question that guided our analysis was: How could we interpret the recent educational reforms from the concepts of market totalitarianism, neoliberal rationality and state of exception? Concepts referenced in Dardot and Laval, Benjamin, and Agamben. We aimed at characterizing the market totalitarianism and to show how this economic-political form affects public services and the functioning of the State itself; and to interpret some of the recent Brazilian educational reforms, referenced by the concept of neoliberal rationality. As a result, we argue that educational reforms actually approach business logic, and what presents itself as a progress leads to regression; therefore, to the economic and cultural exclusion of all society.

KEYWORDS: Market totalitarianism; Neoliberal rationality; State of exception; Educational reforms; Business education

RESUMEN

En este ensayo, abordamos el tema de la educación y elegimos como objeto de investigación las reformas educacionales brasileñas de las últimas tres décadas, buscando comprender los fundamentos e intencionalidades que las conducen. El problema que orientó nuestros análisis fue ¿cómo interpretar las recientes reformas educacionales a partir de los conceptos de totalitarismo de mercado, racionalidad neoliberal y estado de excepción? Conceptos que fueron referenciados en Dardot y Laval, Benjamin y Agamben. Como objetivos proponemos caracterizar el totalitarismo de mercado e indicar cómo esa forma económico-política afecta a los servicios públicos y al funcionamiento del propio Estado; e interpretar algunas de las recientes reformas educacionales brasileñas, referenciadas en el concepto de racionalidad neoliberal. Como resultados de investigación, argumentamos que las reformas educacionales se aproximan a la lógica empresarial, y aquello que se presenta como progreso lleva al retroceso; por lo tanto, a la exclusión económica y cultural de toda la sociedad.

PALABRAS CLAVE: Totalitarismo de mercado; Racionalidad neoliberal; Estado de excepción; Reformas educacionales; Educación empresarial

1 INTRODUÇÃO

O totalitarismo de mercado é a força político-econômica que se apresenta como avassaladora sobre os direitos sociais, trabalhistas e à própria noção de Estado de direito democrático no cenário brasileiro do tempo presente. O golpe jurídico-parlamentar ao governo eleito soberanamente pelo povo brasileiro, ocorrido em 2016; a reforma trabalhista recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, que “flexibiliza” os direitos trabalhistas; a redução dos direitos previdenciários e sua “inevitável reforma”; a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional Nº 55, que impõe um teto aos investimentos estatais nos serviços públicos por um período de 20 anos; as recentes reformas educacionais do Ensino Médio e a definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica, são algumas evidências de que vivemos em um verdadeiro estado de exceção na sociedade brasileira. Poderíamos, categoricamente, afirmar que estamos no tempo do último ataque do capital aos direitos e ao patrimônio público brasileiro. O que restará fora das garras do mercado?

Este ensaio trata das reformas educacionais implementadas no Brasil nas últimas três décadas. A partir de referenciais teóricos da Teoria Crítica da Sociedade, mobilizamos o pensamento para entender o significado de totalitarismo de mercado e a racionalidade neoliberal existentes no discurso que fundamenta as políticas públicas educacionais que promoveram as recentes reformas. Ao recuperarmos o pensamento de Walter Benjamin (2005), que entende o estado de exceção como regra, ao pensar o tempo presente a partir das memórias e das experiências do passado, dos vencidos, daqueles que foram ou permanecem excluídos, daqueles que resistem e não aceitam a integração à lógica do mercado, poderemos contribuir para a leitura crítica da relação que se estabelece entre a lógica empresarial e suas manifestações no campo da educação escolar.

O problema que constituiu o eixo central de nossas análises foi a seguinte indagação: como interpretar as recentes reformas educacionais brasileiras a partir dos conceitos de totalitarismo de mercado e estado de exceção? O contexto histórico e político que gerou essa problematização foi uma série de reformas educacionais, iniciadas ainda na década de 1990, que foram direcionadas especialmente para mudanças nas práticas curriculares da Educação Básica, introdução de sistemas de avaliações externas e de mecanismos gerenciais que interferiram no trabalho docente.

Como objetivos e como forma de organização deste trabalho, propomos iniciar com uma breve apresentação da concepção de estado de exceção, em Benjamin (2005) e Agamben (2004a); no segundo momento, trataremos da caracterização do totalitarismo de mercado e de como essa forma econômico-política afeta os serviços públicos e as instituições sociais; por último, interpretaremos algumas das recentes reformas educacionais brasileiras, referenciados pelo conceito de racionalidade neoliberal.

Como procedimento metodológico, adotamos a produção deste ensaio a partir de referências bibliográficas, com o intuito de apropriarmo-nos dos conceitos já anunciados, com destaque para Benjamin (2005), Agamben (2004a), Dardot e Laval (2016). Posteriormente, à luz desses conceitos, analisamos algumas das recentes reformas educacionais brasileiras. De forma crítica, evidenciamos as diretrizes das reformas educacionais e construímos argumentos que podem contribuir como fundamentos filosóficos dos projetos educativos que têm como perspectiva a qualidade social e a racionalidade estética para as políticas públicas educacionais.

2 ESTADO DE EXCEÇÃO EM WALTER BENJAMIN E GIORGIO AGAMBEN

A partir da compreensão e do sentido dado à expressão “estado de exceção” pelo viés do conceito de soberania de Agamben, e de “exceção como regra” em Benjamin, podemos entender a forma de exercício de governo de muitos Estados ditos democráticos, na contemporaneidade. Esse dispositivo de governabilidade sempre elege o que se pode denominar de “inimigo do Estado”, ou seja, uma ameaça que justifique a sua implantação. Fora da normalidade jurídica constitucional, impõem-se, em muitos casos, longos períodos de exceção como técnica de governo.

Foi analisando a história da Alemanha nazista que Agamben (2004a) encontrou os traços marcantes de um verdadeiro estado de exceção. Quando Hitler assumiu o poder, logo de início, em fevereiro de 1933, ele emitiu um decreto em favor da proteção do povo e do Estado, suspendendo todos os artigos da Constituição da República de Weimar que garantiam as liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que se pode, do ponto de vista jurídico, considerar o conjunto do Terceiro Reich como um estado de exceção que teve duração de 12 anos. Por isso, o filósofo define o totalitarismo moderno como “[...] a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político” (AGAMBEN, 2004a, p. 12).

Inicialmente, o recurso jurídico do estado de exceção foi tomado como ferramenta extrema para a garantia do estado de direito, mas essa possibilidade tornou-se o “[...] paradigma de governo dominante na política contemporânea” (AGAMBEN, 2004a, p. 13). Aquilo que, nos chamados Estados democráticos, por definição, deveria constituir-se como exceção, desvio, anormalidade, passa a ser a norma, a regra aceitável, a técnica de governo preferencial: “O estado de exceção não é um direito especial (como o direito de guerra, ocorrência de catástrofe natural), mas enquanto suspensão da própria ordem jurídica define seu patamar ou seu conceito-limite” (AGAMBEN, 2004a, p. 15). A suspensão de garantias individuais, do ordenamento social baseado na presunção de inocência, da inviolabilidade do lar e da liberdade de movimentos sociais, o apelo de governos à militarização, enfim, da garantia da vida e da estabilidade das relações entre o Estado e os cidadãos são alguns dos sintomas do estado de exceção.

No Brasil, a imposição de períodos ditatoriais (com a aparência e estrutura legal), a repetição de chacinas, a manutenção de dispositivos jurídicos excepcionais (os chamados “autos de resistência” da Polícia Militar e a Lei de Segurança Nacional), a ocupação militar de partes do território, como estratégia de controle social, são algumas evidências significativas de que vivemos em um estado de exceção permanente.

Os golpes políticos e as interferências na ordem constitucional em períodos como o do Estado Novo, em 1937, o Golpe Civil-Militar de 1964, o Golpe Parlamentar de 20161, constituem, sem dúvida, e em que pesem as suas inúmeras diferenças, os momentos que a suspensão do Estado democrático de Direito foi justificada pela necessidade da preservação da comunidade e da soberania da nação, ganhando formas comuns de perseguição violenta, realizada pelos agentes do Estado aos que foram considerados inimigos da sociedade. A legalização da tortura, do exílio, da perseguição ideológica, a prisão e a eliminação dos inimigos em nome da doutrina da segurança nacional são memórias e práticas jurídico-políticas que marcam a nossa história e o tempo presente do nosso país.

Na atual conjuntura do capitalismo globalizado, com seus poderes predatórios, o Estado acaba funcionando como exceção permanente, ativando-se e desativando-se as instituições e as propriedades de controle constitucional-legal, de acordo com a vontade soberana do mercado. Este é representado pelas autoridades públicas e grupos de governantes a seu serviço, em uma espécie de democracia sem povo, pois a decisão sobre o estado de exceção é tomada, na verdade, pelas forças do mercado. Os interesses e as leis de mercado prevalecem, portanto, sobre as leis e os fundamentos constitucionais.

Basta uma análise política simples da sociedade brasileira e perceberemos que há uma crise político-econômica sempre em curso, que ela é o motor interno do capitalismo em sua fase atual, assim como o estado de exceção é, hoje, a estrutura normal do poder político. E, assim como o estado de exceção requer que haja porções sempre mais numerosas de massas populacionais desprovidas de direitos políticos e que, no limite, a massa populacional de cidadãos seja reduzida à vida nua; do mesmo modo, a crise, tornada permanente, exige, não apenas que os povos do Terceiro Mundo sejam sempre mais pobres, mas também que um percentual crescente de cidadãos das sociedades industriais seja marginalizado e permaneça sem trabalho. Nesse sentido, a democracia representativa e o Estado de direito constituem-se, atualmente, uma máquina, em uma forma deliberada de fabricação da miséria humana, conforme assegura Agamben (2004b).

De acordo com Benjamin (2005), em suas teses sobre a filosofia da história, a versão oficial da história reduz-se a uma forma enviesada, a uma escritura triunfalista, à versão oficial dos vencedores. Isso porque a historiografia tendeu, ao longo do tempo, a narrar os grandes feitos dos grupos ou classes dominantes. Nesse contexto, o papel de analisá-la é, de acordo com Benjamin, o de contradizer as representações da história vulgarmente aceitas e estabelecidas. Daí que Benjamin (1994, p. 161) apela a que se erga outra interpretação, incitando a “escovar a história a contrapelo”, reiterando a inexorável necessidade de não confundir a história com a narrativa dos grupos dominantes.

É indispensável, diz-nos o autor alemão, reconstruir o passado dos silenciados, dos esquecidos, enfim, dos espoliados da história. Por conseguinte, os propósitos da filosofia benjaminiana são claros: ela ambiciona fazer a história dos sem-história, dar voz aos sem-voz; deseja reescrever a narrativa oficial, erguendo uma contra-história: a história dos vencidos.

Nessa perspectiva, Benjamin nega a linearidade da história, afirmando que ela é marcada por rupturas e permanências, e que, portanto, devemos pô-la em análise, a partir dos vencidos. A partir dessa visão, a catástrofe não é o que está por vir, não está restrita ao futuro, mas é o que está dado em cada tempo da história. O presente é, pois, um processo de geração de vítimas do agora, processo no qual, para os oprimidos, o Estado de exceção é a regra ao longo da história, a das guerras mundiais e dos regimes totalitários: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 2005, p. 226).

Do mesmo modo, Agamben (2004b, p. 186) reafirma o diagnóstico de Benjamin, ressaltando que o projeto democrático-capitalista que patrocina a eliminação das classes pobres nada mais faz do que transformar as populações do terceiro mundo em vida nua, uma vida indigna de ser vivida ou em licença para aniquilação da vida sem valor de vida, pois o Direito e o Estado estão permitindo a acumulação infinita de capitais, produzindo desigualdade social em nível muito superior à escravidão ou ao feudalismo, com controle da vida política pelo mercado e pelo capital financeiro especulativo.

3 TOTALITARISMO DE MERCADO E RACIONALIDADE NEOLIBERAL

Partimos do entendimento de que o neoliberalismo não é apenas a doutrina do capitalismo, mas uma forma de governo que faz da adesão a essa doutrina o meio privilegiado de exercício de poder. Como forma de poder, o sistema neoliberal apoia-se, sobretudo, na coerção que exerce sobre os indivíduos por meio das situações de concorrência que coloca ativamente em prática. É por isso que é adequado falar de uma racionalidade que comanda as práticas sociais e econômicas desde o seu interior, e não apenas no sentido de uma motivação ideológica ou intelectual. Segundo Dardot e Laval (2016), essa racionalidade do mundo é global, ela atravessa todas as esferas da existência humana, sem se reduzir à esfera propriamente econômica.

Não é a esfera econômica que tende a absorver, espontaneamente, todas as outras esferas, como poderíamos pensar, mas percebemos uma extensão da lógica de mercado e do modelo empresarial para o conjunto de reformas dos serviços públicos, em que se impõem novos dispositivos de gestão, semelhantes às práticas mercadológicas. É nesse sentido que podemos falar de capitalismo mundial ou “cosmocapital”, para designar não somente o caráter internacional do capitalismo, mas de certo tipo de sociedade: a sociedade capitalista atual, uma sociedade que conhece um processo de transformação global, devido à extensão da racionalidade neoliberal a todas as atividades e instituições, e das relações que se estabelecem entre o Estado e os cidadãos. Desse modo, podemos afirmar que o modelo de racionalidade neoliberal mina a concepção e as práticas republicanas de Estado e de sociabilidade. Todas as instituições, inclusive a escola pública estatal, passam a funcionar segundo o modelo da empresa capitalista.

Não se trata agora de resgatar o pensamento liberal vigente no século XIX, em que o Estado era o guardião que assegurava a livre concorrência e expansão da liberdade de mercado no plano internacional. Mesmo a ideia de Estado mínimo entrou em crise profunda e não faz mais sentido para explicar a realidade econômica e política atual. Segundo a racionalidade neoliberal, não se trata de limitar, mas de expandir. Nesse caso, é necessário estender a lógica do mercado para além da esfera restrita da economia e, para isso, reformar o funcionamento interno do Estado, de modo a torná-lo a alavanca dessa expansão do mercado. O Estado neoliberal é “governamentalizado”, no sentido de que os novos dispositivos institucionais que o consubstanciam visam criar situações de concorrência, introduzir lógicas de escolha, desenvolver medidas de desempenho, cujo efeito é modificar a conduta dos indivíduos, mudar sua relação com as instituições e, mais precisamente, transformá-los em consumidores e empreendedores. As políticas educacionais e acadêmicas recentes são exemplos perfeitos dessa dinâmica.

No livro A nova razão do mundo, Dardot e Laval (2016) tomam como eixo central a questão da racionalidade neoliberal para compreender o funcionamento do Estado contemporâneo e o funcionamento das instituições sociais. As bases de seu fundamento estão ancoradas na concorrência integral em todos os âmbitos, que adquire uma dimensão totalizadora, da qual nada escapa, abarcando o Estado e todas as esferas da existência humana. A construção dessa nova racionalidade, ou razão-mundo, nos termos dos autores, segue, basicamente, estes passos:

Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação e, por fim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 379).

A compreensão da nova razão do mundo parte da análise das mudanças históricas ocorridas na própria concepção de Estado que se deu entre as décadas de 1960 e 1980. O discurso contra o intervencionismo estatal ganhou o centro do debate, especialmente após a década de 1970, quando se iniciaram os governos neoliberais de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, na Inglaterra. Apesar de haver um forte e contínuo discurso contra o Estado, na realidade, o neoliberalismo nunca vislumbrou o seu fim, mas a sua transformação.

Além da mudança de concepção, houve orientação dos países centrais do capitalismo e de suas entidades representativas (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional - FMI) para direcionar a ação dos Estados, especialmente aos países periféricos. E isso aconteceu por meio de sua reestruturação externa, com as privatizações das empresas públicas; e interna, já que o Estado passou a ser um avaliador e regulador. Conforme apontam Dardot e Laval (2016), isso mobiliza novos instrumentos de poder e, com eles, estrutura novas relações entre governo e sujeitos sociais, além de produzir mudanças lexicais no vocabulário político.

Para citar um exemplo de mudança lexical e de seus desdobramentos no cenário político, Dardot e Laval (2016) analisam o termo “governança”, que se tornou palavra-chave no vocabulário neoliberal para pensar a condução das empresas e dos Estados. No âmbito político, a palavra “governança” passou a substituir a palavra “soberania”. Essa mudança é importante de ser notada, pois resultará, não apenas em mudanças na relação interna do Estado, isto é, dentro de seu território e com a sua população, mas na esfera internacional, geopolítica e geoeconômica, em que, claramente, fica entendido que os Estados nacionais perdem a sua soberania diante da governança internacional do mercado.

A racionalidade neoliberal afeta a própria forma de funcionamento do Estado, que passa a ser guiado pela lógica empresarial e concorrencial. Os países passam a concorrer globalmente pelos capitais estrangeiros e os grandes oligopólios internacionais exercem influência nessa disputa. Essa concorrência faz com que legislações sejam revistas, acordos entre sindicatos e empresas sejam revogados e que o papel do Estado como entidade integradora de todas as dimensões sociais seja alterado; dessa forma, ele próprio passa a funcionar como uma entidade-empresa que precisa maximizar seus resultados.

Desse modo, o Estado não é considerado uma entidade “exógena” à ordem do mercado, mas uma entidade totalmente integrada ao espaço e às leis das trocas, pois ele é mais uma empresa que está em concorrência no mercado global. Por isso, a reforma dos aparelhos do Estado é apresentada como um processo neutro, ideologicamente isento, com vistas apenas a critérios técnicos. Esse discurso que surgiu no seio da direita neoliberal norte-americana e inglesa, durante os governos de Reagan e Thatcher, será adotado pela socialdemocracia e pela esquerda europeia, na década de 1990 em diante. Esses governos e seus sucessores defenderam com vigor o programa neoliberal, mas sempre com um discurso acerca da necessidade de modernização do Estado.

Essa reconfiguração no modo de funcionar do Estado tem como consequência a perda de significado dos serviços públicos, influenciando, consequentemente, a própria ideia de sujeito político. Em última instância, o que está em jogo é a própria dimensão do que é política, uma vez que a esfera do coletivo, do bem comum e do espírito republicano é abandonada.

Não é apenas o Estado que se adequa a essa nova racionalidade neoliberal, mas toda a sociedade passa a ser concebida como um mercado, no qual cada sujeito é uma empresa que está em contínua concorrência. Essa nova racionalidade passa a ser a mediadora de todas as relações sociais: “[...] o homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial” (DARDOT; LAVAL, p. 322). A competição introjeta-se até na esfera da subjetividade dos indivíduos. A vida passa a ser mediada pela lógica empresarial, um capital a ser continuamente valorizado, na qual o indivíduo é empreendedor de si mesmo.

4 REFORMAS EDUCACIONAIS E RACIONALIDADE NEOLIBERAL

No campo da educação, especialmente no que se refere à compreensão das recentes reformas promovidas na esfera do Governo Federal, que é nosso foco de análise, observa-se uma guinada voltada às políticas mercadológicas. Os fundamentos da racionalidade neoliberal direcionam a gestão da educação e promovem a implantação de mudanças, nos sistemas educacionais brasileiros, as quais são coerentes com seus objetivos ideológicos. As constantes mudanças curriculares da Educação Básica; a consolidação do sistema de avaliação que constitui o Índice de Desenvolvimento Educacional Brasileiro (Ideb); a redução drástica dos recursos para o Ensino Superior público estatal; os projetos de cobrança de mensalidades para estudantes de universidades públicas; e de contratação de funcionários/docentes terceirizados, já em vias de aprovação no Congresso Nacional, são resultado da ação do capital e da racionalidade neoliberal sobre o setor da educação nacional, as quais são patrocinadas pelo próprio Estado. O que se observa são arranjos nas políticas públicas educacionais tendencialmente programadas para a construção de um grande mercado educacional na Educação Básica (FREITAS, 2014), já que, no Ensino Superior, mais de 84% das matrículas dos estudantes pertencem à iniciativa privada, com significativo aporte financeiro dos últimos governos.

Quando interpretamos as reformas educacionais ocorridas nas últimas três décadas, percebemos que quase todas elas são marcadas pelos princípios gerenciais da empresa capitalista. Essas reformas sempre estão acompanhadas pelas ideias de progresso, de inovação, de eficiência, de melhoria da qualidade e de avanços tecnológicos na gestão dos sistemas e dos processos educativos.

O cálculo econômico, o gerencialismo, a padronização dos processos e serviços, os resultados quantitativos, a concorrência, os treinamentos ou as capacitações fazem parte de um grande movimento político-administrativo que afeta todos os setores e as instituições públicas e privadas. A lógica de funcionamento das instituições que ofertam os serviços sociais se organiza a partir desses ordenamentos da racionalidade neoliberal. Portanto, podemos afirmar que estamos em um tempo de totalitarismo de mercado.

Também podemos considerar que a racionalidade neoliberal está na raiz das recentes reformas do Ensino Médio e da BNCC e do sistema de avaliações externas implementadas na última década. Essa lógica própria do neoliberalismo é evidenciada de maneira contundente na pedagogia das competências que direciona a BNCC, assim como nas avaliações quantitativas de aprendizagens organizadas e aplicadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que incidem sobre as escolas do país.

Outras características dessa racionalidade neoliberal podem ser observadas nos processos de padronização da gestão escolar, no controle externo do trabalho educativo docente, que se dá em duas pontas: os controles de entrada e de saída do sistema. O programa de livros didáticos, apostilas e, em breve, a venda de acessos on-line a material didático e programas pedagógicos padronizados, que serão comercializados para prefeituras e estados da federação, possibilitam o controle de entrada do sistema e incidem, por conseguinte, sobre questões curriculares, direcionando as práticas escolares a questões como a definição do que e do como ensinar.

Controlando o currículo e as metodologias de ensino, na outra ponta controla-se, também, a saída do sistema, mediante os processos de avaliações externas, como forma de garantia de “qualidade da educação”. Portanto, mediante o direcionamento do trabalho docente, prioritariamente incidindo sobre o currículo escolar, somado à imposição dos sistemas de avaliações externas que medem apenas resultados da aprendizagem e estabelecem a concorrência entre escolas, conclui-se que há fortes evidências de que a educação escolar tende a funcionar de acordo com a racionalidade neoliberal.

Tais reformas, na lógica do pensamento empresarial, representam as ideias de progresso, de inovação e de qualidade na educação. Contudo, contrariando esse pensamento e apoiando-nos nos dizeres de Benjamin (2005), é necessária a interrupção, tirar dos trilhos, “escovar a história a contrapelo”, pois esse sistema totalitário está deixando ruínas sociais, marcas de barbárie cultivada na formação dos estudantes e no trabalho docente. Esse movimento impede o desenvolvimento democrático e a qualidade social da educação.

Todo pensamento educacional crítico, que tem como proposta a formação cultural e a emancipação dos estudantes mediante a sua passagem pela instituição escolar, fundamenta-se em uma racionalidade estética, pelo sentido humanista e republicano do trabalho docente. Portanto, uma educação direcionada pelo tecnicismo da gestão pedagógica, pela retomada da pedagogia cognitivista, pelo pragmatismo e pela padronização curricular reduz e empobrece o processo de aprendizagem e contraria os ideais humanistas e republicanos.

Poderíamos relacionar o estado de exceção, segundo a concepção de Walter Benjamim, ao contexto da educação mercadológica vigente no Brasil? Que marcas ou consequências o projeto educativo da racionalidade neoliberal está produzindo? Como afirmar perspectivas da educação como experiência estética? Como praticar a educação como bildung vinculada aos ideais republicanos e da constituição de subjetividades plenas de cultura e de atividade política?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar o estado de exceção e a sua relação com o campo da educação, na perspectiva do pensamento de Benjamin, significa opor-se ao totalitarismo de mercado, à retirada de garantias constitucionais, como a liberdade do pensamento, das práticas pedagógicas e de um fazer educativo vinculado ao projeto de construção de uma sociedade democrática e republicana.

Em relação ao nosso objeto de análise, significou a compreensão das reformas educacionais interpretadas a partir da racionalidade neoliberal, que, retoricamente, apresenta o discurso de inovação, da qualidade na educação, de gestão escolar modernizante que se aproxima da lógica empresarial. Deduzimos que essas frequentes transformações patrocinadas por políticas educacionais que afetam o trabalho docente têm gerado uma abominável violência, uma espécie de barbárie cultivada em relação aos processos formativos e à liberdade de construção curricular e atuação pedagógica dos professores. Consequentemente, a população de estudantes, do mesmo modo, é vitimada pelo estelionato da semiformação praticada pelo mercado educacional. A consequência mais evidente dessa concepção educacional, guiada pela racionalidade neoliberal, será a adaptação dos indivíduos aos esquemas ideológicos e ao padrão de vida mercantilizado.

Se, por um lado, as políticas públicas educacionais fundamentadas na racionalidade neoliberal representam a pobreza da experiência, a exclusão do plano da formação cultural da população; por outro lado, uma educação pautada nos princípios da racionalidade estética e na dimensão da qualidade social da educação figura como esperança de construção de um projeto social utopicamente capaz de redenção dos oprimidos e dos excluídos da história.

Ao interpretar nosso objeto de análise à luz da tese nº 8, publicada em Teses sobre história (BENJAMIN, 1994), entendemos que aquilo que se apresenta como progresso, gerencialismo produtivo, eficiência, resultados, aquilo que se apresenta como inovador, leva à regressão, promove a pobreza de espírito e, consequentemente, a exclusão econômica e cultural, tanto de professores quanto de estudantes.

A partir das teses benjaminianas sobre a história, reafirmamos o pensamento que tem como fundamento central a interrupção do fluxo da história, e, por extensão, um projeto educativo assentado na racionalidade estética, em oposição à racionalidade neoliberal. A necessidade de andar na contramão da chamada educação para o progresso, vinculada unicamente aos princípios mercadológicos, impõe-se como emergência diante do cenário nacional. A continuidade da racionalidade neoliberal, no campo da educação, significa adaptação e autoconservação dos docentes e dos estudantes submetidos às regras sacralizadas do mercado.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Homo Sacer II. Tradução Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004a. [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004b. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Obras escolhidas, vol. 1. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense , 2005. p. 222-234. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo - ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016. [ Links ]

FREITAS, Luiz Carlos de. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817 [ Links ]

i O Congresso Nacional, com o aval do poder judiciário, aprovou, em setembro de 2016, o chamado golpe jurídico-parlamentar sobre a presidente eleita democraticamente em 2014.

Recebido: 14 de Maio de 2019; Aceito: 25 de Novembro de 2019

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