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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.1 São Paulo jan./maio 2020  Epub 30-Set-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i1p350-371 

Artigos

CONVERGÊNCIAS E TENSÕES NA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

CONVERGENCES AND TENSIONS IN ACADEMIC PRODUCTION ABOUT EARLY CHILDHOOD EDUCATION CURRICULUM

CONVERGENCIAS Y TENSIONES EN LA PRODUCCIÓN ACADÉMICA SOBRE EL CURRÍCULO DE EDUCACIÓN INFANTIL

Sandro Vinicius Sales dos SANTOS1 
http://orcid.org/0000-0002-9666-3639

Fabiana Pinheiro BARROSO2 
http://orcid.org/0000-0002-9330-0592

Jessica Mayara NASCIMENTO3 
http://orcid.org/0000-0001-8567-2508

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas (MPICH) ambos da UFVJM. E-mail: sandrovssantos@gmail.com.

2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd-UFVJM). Supervisora Pedagógica da Educação Infantil no Município de Turmalina, Minas Gerais. E-mail: fa_pb@yahoo.com.br.

3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd -UFVJM). Supervisora Pedagógica da Educação Infantil no Município de Diamantina, Minas Gerais. E-mail: mayaradtna2008@hotmail.com.


RESUMO

Este texto analisa a produção acadêmica brasileira que, entre os anos de 2009 e 2018, investigou a temática do currículo para as instituições de Educação Infantil. Nesse período, foram encontrados 10 artigos publicados nas revistas Qualis A1 e A2 do campo educacional - corpus de análise que, após ser estudado, foi agrupado nas seguintes categorias: contributos das crianças para o currículo da Educação Infantil; análises de políticas de currículo em creches e pré-escolas; e revisões teóricas, históricas e/ou de literatura. A análise evidenciou, por um lado, que os artigos consideram a organização do currículo por campos de experiência como um arranjo curricular que respeita as especificidades das instituições que compõem a primeira etapa da Educação Básica. Por outro lado, a produção apresenta tensões e dispersões que ressaltam aspectos ainda pouco explorados da organização do currículo para creches e pré-escolas.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Infantil; Produção acadêmica; Currículo; Campos de experiência

ABSTRACT

This text analyzes the Brazilian academic production that, between 2009 and 2018, investigated the theme of the curriculum for Early Childhood Education institutions. During this period, ten articles were found published in Qualis A1 and A2 journals of the educational field - corpus of analysis that, after being studied, was grouped into the following categories: children’s contributions to the curriculum of Early Childhood Education; curriculum policy analysis in daycare centers and preschools; and theoretical, historical and/or literature reviews. On the one hand, the analysis showed that the articles consider the organization of the curriculum by fields of experience as a curricular arrangement that respects the specificities of the institutions that make up the first stage of Basic Education. On the other hand, the production presents tensions and dispersions that highlight aspects still little explored in the organization of the curriculum for daycare centers and preschools.

KEYWORDS: Early Childhood Education; Academic production; Curriculum; Field of experience

RESUMEN

El texto analiza la producción académica brasileña que, entre los años 2009 y 2018, investigó la temática del currículo para las instituciones de Educación Infantil. En ese período, fueron encontrados 10 artículos publicados en las revistas Qualis A1 y A2 del campo educativo - corpus de análisis que, luego de ser estudiado, fue agrupado en las categorías: contribuciones de los niños al currículo de la Educación Infantil; análisis de políticas curriculares en guarderías y centros preescolares; y revisiones teóricas, históricas o de literatura. El análisis mostró, por un lado, que los artículos consideran la organización del currículo por campos de experiencia como una disposición curricular que respeta las especificidades de las instituciones que componen la primera etapa de la Educación Básica. Por otro lado, la producción presenta tensiones y dispersiones que resaltan aspectos aún poco explorados de la organización del currículo para guarderías y centros preescolares.

PALABRAS CLAVE: Educación Infantil; Producción académica; Currículo; Campos de experiencia

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta resultados de um estudo que analisou a produção acadêmica brasileira que, entre os anos de 2009 e 2018, investigou a temática do currículo para as instituições de Educação Infantil. Elaborado a partir de dados procedentes de um programa de pesquisa mais amplo, o texto analisa os artigos publicados em periódicos Qualis A1 e A2 do campo educacional, nos últimos 10 anos, que discorreram sobre as especificidades do currículo para creches e pré-escolas.

Embora se trate de uma discussão cujos contornos se delineiam recentemente no cenário educacional brasileiro, a proposta de elaboração de bases conceituais para orientar as práticas curriculares em creches e pré-escolas de norte a sul do país não é nova, tampouco dispõe de uma trajetória retilínea. Pelo contrário: a discussão sobre os limites e as possibilidades do currículo da Educação Infantil é marcada por avanços e retrocessos que evidenciam posicionamentos nem sempre consensuais no interior da área da educação da criança de zero a seis anos.

Compreendemos, desse modo, que, apesar de cíclica, a história recente da Educação Infantil de nosso país evidencia que a proposição de um currículo para creches e pré-escolas gira em torno da construção de um arranjo curricular estruturado a partir das situações cotidianas vivenciadas pelas crianças. Tal proposta consiste em nuclear o projeto educativo das instituições de cuidado e de educação nas experiências sociais das crianças, expressas em suas ações, em suas falas, em seus saberes e em seus fazeres que, quando decodificados pelos/as profissionais de Educação Infantil, dão visibilidade a novas situações potencialmente educativas, capazes de amplificar o desenvolvimento infantil. Ao produzir um currículo pautado nas experiências dos pequenos, a área da Educação Infantil ratifica que os direitos de aprendizagem das crianças, bem como os princípios éticos, estéticos e políticos previstos nas DCNEI, “[...] tanto do ponto de vista de seu desenvolvimento, quanto de sua relação com a sociedade, passam a ser pontos de referência dos projetos educativos” (SACRISTÁN, 2000, p. 42) desenvolvidos no interior de creches e pré-escolas.

O currículo das instituições de Educação Infantil, quando centrado na experiência das crianças, compreende muito mais do que mera seleção de conteúdos escolares. Para Sacristán (2000), o currículo é concebido como um artefato sociocultural complexo que, no caso da Educação Infantil, compreende simultaneamente: as escolhas daqueles/as que o formulam, as inúmeras disputas entre diferentes grupos sociais, bem como as necessidades de desenvolvimento das crianças de até seis anos de idade. Essa forma de organização curricular compreende a expressão do projeto cultural e de formação humana que as instituições educativas afirmam considerar pertinentes ao desenvolvimento das crianças (SACRISTÁN, 2013, p. 23-24). Assim sendo, no contexto brasileiro, o debate sobre o currículo da Educação Infantil, além de articular as disputas de diferentes grupos na construção coletiva de um projeto educativo para creches e pré-escolas, articula-se igualmente aos princípios de uma Pedagogia da Infância que se ocupa teórica e conceitualmente da criança e da plenitude de seu desenvolvimento. Isso tudo, levando em consideração “[...] seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais” (ROCHA, 1999, p. 62).

Diante desse cenário, e frente à parte significativa da produção acadêmica nacional, este texto objetiva responder às seguintes questões: O que os artigos científicos do campo educacional publicados no último decênio têm discutido sobre a proposição do currículo da Educação Infantil? Quais os pressupostos teórico-metodológicos da investigação sobre currículo em creches e pré-escolas? Quais as principais tendências das investigações que são inauguradas com as pesquisas recentes sobre currículo na Educação Infantil? Quais são as tensões e as convergências presentes nessa parcela da produção científica do campo educacional?

Para cumprir os objetivos propostos, foram selecionados artigos publicados nos últimos dez anos em revistas científicas do campo da educação classificadas pelo Qualis Periódicos1 como A1 e A2, corpus de análise que evidencia um refinamento das formas de compreender as especificidades do currículo de creches e pré-escolas.

2 CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL: A QUESTÃO E O DEBATE

O debate em torno da proposta de construção de uma organização curricular condizente com as especificidades pedagógicas relativas aos cuidados e à educação das crianças de até seis anos de idade em creches e pré-escolas demanda um exame crítico acerca dos modos como a questão se delimita no contexto histórico de estruturação da política de Educação Infantil brasileira.

Em nosso país, o debate sobre a proposição de um currículo para as instituições de Educação Infantil surge no período em que creches e pré-escolas passaram efetivamente a compor os sistemas de ensino, momento que se registra a emergência de uma nova doutrina jurídica em relação à criança que, desde então, passa a concebê-la como cidadã de direitos (CRAIDY, 2001). No plano legal, é a partir da Constituição Federal de 1988 que as crianças são elevadas à condição de seres contextualizados que agem no e sobre o mundo, apropriando-se e ao mesmo tempo produzindo cultura. Essa compreensão ultrapassa representações anteriormente presentes no imaginário social, que concebiam a Educação Infantil como uma tarefa meramente assistencial e não como um direito da população brasileira de até seis anos de idade (VIEIRA, 1986; SILVA, 2008).

As transformações no marco regulatório do campo da educação, ocorridas a partir de 1996, ano da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei Nº 9.394/1996 - (BRASIL, 1996), ratificam e dão forma à ideia da criança como sujeito de direitos. Creches e pré-escolas passam, juntas, a compor a primeira etapa da Educação Básica, o que é previsto na LDBEN, ampliando a necessidade de compreensão acerca de como devem ser realizadas as práticas de educação e de cuidados destinadas às crianças de até seis anos.

Com a inserção no campo educacional, as instituições de Educação Infantil, juntamente às escolas de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, passaram oficialmente a ter como desígnio o desenvolvimento do educando, o que nosso arcabouço jurídico compreende ser condição sine qua non para o exercício pleno da cidadania, fornecendo-lhe subsídios para progredir, seja no âmbito do mundo do trabalho, seja em estudos posteriores, tal como proposto no artigo 22 da LDBEN (BRASIL, 1996). Contudo, as especificidades pedagógicas das instituições destinadas às crianças de até seis anos de idade impõem a urgência de revisão criteriosa desse objetivo da LDBEN - deveras amplo - no sentido de adequá-lo às propostas curriculares de creches e pré-escolas (OLIVEIRA, 2010). Não se pode perder de vista que a função social das instituições de Educação Infantil envolve a articulação de situações de cuidados e de educação comprometidas com o paradigma do desenvolvimento integral das crianças dessa faixa etária e não a preparação delas para a escolarização futura. Dessa forma, os processos pedagógicos de creches e de pré-escolas não vislumbram a construção do ofício de aluno (SACRISTÁN, 2005), mas a centralidade da experiência social de meninos e de meninas.

Desse modo, a política de Educação Infantil que começa a ser implantada em nosso país a partir da década de 1990 reivindica um arranjo pedagógico que articule o currículo oficial/prescrito ao currículo vivido por meninos e meninas no contexto de creches e de pré-escolas - cuja organização prevê modelos integrados e flexíveis, pautados na interdisciplinaridade e “[...] no qual os conteúdos aparecem uns relacionados aos outros de forma aberta” (SACRISTÁN, 2000, p. 76).

A Lei Nº 12.796, promulgada em 2013, traz mudanças substanciais na compreensão da educação pública, gratuita e de qualidade. Dentre outras provisões, a referida lei insere a Educação Infantil na definição de uma Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica (BRASIL, 2013), fator que intensifica e acirra os debates e as discussões no interior da área, sobre a legitimidade (ou não) de uma proposta curricular nacional para as instituições de cuidado e de educação. Essa lei altera o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases, compreendendo que os currículos das instituições de Educação Infantil, assim como os das escolas de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, devem ter “[...] uma base nacional comum, a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (BRASIL, 2013, p. 1).

A proposta de inserção de creches e pré-escolas em uma Base Nacional Comum fundamenta-se, também, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), que inicialmente foram publicadas em 1999 e passaram por um processo de revisão e ampliação ao longo de dez anos, sendo reeditadas em 20092, por meio da Resolução Nº 5, de 17 de dezembro. Esse documento, de caráter mandatório, concebe que o currículo da Educação Infantil surge da conjugação de saberes e de experiências das próprias crianças com conhecimentos de diferentes ordens (culturais, artísticos, científicos e tecnológicos) e que foram historicamente sistematizados pela humanidade (BRASIL, 2009). Importa esclarecermos que as referidas Diretrizes consideram as brincadeiras e as interações das crianças (entre si e com os adultos) como eixos estruturantes das práticas pedagógicas vivenciadas no interior das instituições que ofertam práticas de cuidados e de educação à população de até seis anos de idade.

O currículo da Educação Infantil, apesar de imerso na proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica, possui peculiaridades que não desconsideram as especificidades etárias das crianças, já que não se define por conteúdos e/ou disciplinas, mas por centros, módulos ou campos de experiência que necessitam se alinhar aos princípios, às condições e aos objetivos expressos nas Diretrizes. Essa prerrogativa conquistada pela área da educação da criança de zero a seis anos salvaguardou as particularidades dos currículos de creches e pré-escolas na proposição da Base, assegurando que as propostas curriculares das instituições de Educação Infantil de nosso país devem ser estruturadas por campos de experiência - fator que as distingue, na medida em que as distancia das formas curriculares do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

No texto oficial da BNCC, os campos de experiência são definidos como “[...] um arranjo curricular adequado à educação da criança de 0 a 5 anos e 11 meses quando certas experiências, por ela vivenciadas, promovem a apropriação de conhecimentos relevantes” (BRASIL, 2016, p. 62). Tal definição não permite aos profissionais, tampouco aos pesquisadores da Educação Infantil, produzir sentidos e significados acerca das peculiaridades que envolvem o currículo por campos de experiências. Desse modo, endossamos a crítica recente de que:

Com esta definição, o texto da Base Nacional Comum Curricular não evidencia o que, de fato, são os campos de experiência - impasse que tem gerado diferentes questionamentos entre professores/as de Educação Infantil, militantes e pesquisadores/as da área, tais como: quais experiências são relevantes e, desse modo, quais passam a ser promotoras do desenvolvimento de meninos e meninas no contexto de creches e pré-escolas? As experiências meramente escolares ou aquelas vivenciadas no âmbito da vida social mais ampla? Quem decide sobre a relevância da experiência passível de ser ampliada? O/a profissional de Educação Infantil (adulto/a) ou as crianças? (SANTOS, 2018, p. 4-5).

Embora recomende que, para a construção de práticas pedagógicas em creches e pré-escolas, o ponto de partida sejam as interações e as brincadeiras das crianças, concebendo-as como formas de ação próprias de meninos e de meninas, por meio das quais as crianças produzem sentidos sobre o mundo à sua volta - o que já era previsto nas DCNEI -, o texto da BNCC furta-se de conceituar o que são os campos de experiência.

3 CONTEXTUALIZANDO O PROCESSO DE SELEÇÃO DOS ARTIGOS

Do ponto de vista metodológico, estudos de mapeamento da produção acadêmica (estado da arte, estado do conhecimento, revisão de literatura, balanço da produção acadêmica, dentre outros), embora recentes, têm proliferado no cenário da investigação científica brasileira. Tais estudos objetivam descrever a produção científica possibilitando um inventário do estado atual do conhecimento, evidenciando os avanços e as eventuais lacunas da produção recente de um campo de estudos ou de determinado setor das publicações relativas à temática em análise (FINK, 1998).

Na acepção de Fink (1998, p. 3), a revisão de literatura compreende “[...] um método sistemático, explícito e reproduzível para identificar, avaliar e interpretar o corpus existente de trabalhos produzidos por pesquisadores, acadêmicos e profissionais”. Consiste na sistematização e no exame crítico da produção acadêmica disponível sobre um determinado tema, contendo dados e levantando evidências que permitam compreender diferentes pontos de vista sobre a temática em questão, paralelos e disparidades que elucidem como ela vem sendo investigada no âmbito da produção recente (FINK, 1998).

No período compreendido entre os anos de 2009 e 2018, foi possível identificar um quantitativo de 36 artigos publicados em diferentes periódicos do campo educacional (cujas classificações variam entre “A1” - maior fator de impacto; a “C” - menor fator de impacto em termos de publicações). Foram utilizados, no processo de seleção dos trabalhos, os descritores: “currículo” e “Educação Infantil”, tendo sido associados termos correlatos a essa última palavra-chave (como, por exemplo, creches, pré-escolas, jardim de infância, escola maternal).

A escolha pelo referido recorte temporal (a partir do ano de 2009) na busca pelos trabalhos acadêmicos sobre currículo da Educação Infantil, justifica-se por diferentes motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de que, nesse ano, conforme apontado anteriormente, foram promulgadas as DCNEI, que constituem documento mandatório que regula a organização dos currículos de creches e pré-escolas brasileiras. Em segundo lugar, concomitantemente, esse mesmo período compreende um momento de ampliação e de consolidação de investigações científicas sobre a criança pequena em programas de Pós-Graduação em Educação, acarretando consecutivamente, aumento das pesquisas sobre o currículo da Educação Infantil.

Cumpre esclarecermos que o levantamento do referido corpus de análise foi realizado durante o segundo semestre de 2018, partindo da classificação Qualis Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), sendo muitos dos downloads dos textos realizados no site da SciELO Brasil3, no site Periódicos Capes4 e no Scholar Google5.

O processo de captação dos artigos foi realizado em duas fases. Na primeira, os 36 trabalhos foram organizados em planilhas do Microsoft Excel, nas quais foram distribuídos por sua classificação no Qualis Periódicos: um primeiro plano agrupou todos os 36 artigos que foram inicialmente selecionados; um segundo plano congregou os artigos avaliados como A1; o terceiro plano somente os artigos A2; o quarto plano da planilha apenas artigos classificados como B1; seguido de um plano que aditou os artigos avaliados como B2; assim sucessivamente, até o plano que agregou os artigos avaliados com a classificação C. Nesse primeiro momento, deu-se preferência à leitura dos títulos, dos resumos e das palavras-chave dos trabalhos e, a partir de então, optamos pelos artigos avaliados como A1, A2, B1 e B2, chegando ao número de 20 artigos.

Na segunda fase, os 20 trabalhos inicialmente selecionados foram lidos na íntegra. Essa leitura permitiu-nos focalizar os artigos publicados nos periódicos A1 e A2 (que juntos somam um total de dez artigos). A leitura minuciosa dos artigos possibilitou compará-los, classificá-los e interpretá-los à luz dos objetivos propostos no âmbito deste levantamento. Tais agrupamentos foram produzidos com o objetivo de estabelecer um quadro comparativo que permitiu identificar tanto pontos de interseção quanto de dispersão na produção acadêmica, evidenciando regularidades e tendências sem, contudo, deixar de atentar para o assimétrico e o peculiar.

No que diz respeito ao quantitativo de artigos publicados por ano nos periódicos A1 e A2 do campo educacional, os estudos encontram-se distribuídos conforme apresentado na Tabela 1 a seguir.

Tabela 1 Artigos publicados por ano que versam sobre currículo da Educação Infantil 

Ano de publicação Quantidade de pesquisas
2009 0
2010 1
2011 0
2012 0
2013 0
2014 0
2015 3
2016 3
2017 1
2018 2
Total 10

Fonte: Os autores, dados da pesquisa.

De acordo com essa tabela, percebe-se que, embora existam variações na quantidade dos estudos produzidos por ano, há um progressivo aumento das publicações sobre currículo da Educação Infantil a partir de 2015 - ano em que se verifica a publicação de três artigos (ABUCHAIN, 2015; CARVALHO, 2015; PONCE; DURLI, 2015). Esse mesmo pico também é registrado no ano seguinte, em 2016 - que igualmente apresenta três artigos publicados em periódicos do campo educacional (ANDRADE VIEIRA; CÔCO, 2016; LIMA; PAES DE CARVALHO; MONTEIRO, 2016; PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016). No ano de 2017, registra-se um único artigo (PASUCH; FRANCO, 2017), seguido do ano de 2018, com dois artigos (CARVALHO; GUIZZO, 2018; SANTOS, 2018). Desse modo, desde 2015, a temática faz-se presente no âmbito das publicações acadêmico-científicas do campo educacional, haja vista que, a partir desse ano, pelo menos um trabalho foi publicado nos periódicos do campo da educação distribuídos pelo país. O Gráfico 1, a seguir, evidencia esse crescimento.

Fonte: Os autores, dados da pesquisa.

Gráfico 1 Variação da produção acadêmica no período analisado 

A oscilação em termos de publicação de artigos por ano pode ser explicada pelos momentos de recuo e avanço da compreensão e aceitação (ou não) da ideia de um currículo para creches e pré-escolas. Conforme buscamos elucidar em seção anterior, 2009 é um momento que a área celebra importante conquista: a revisão e a ampliação das DCNEI, documento que expressa maturidade das discussões em torno do currículo de creches e de pré-escolas. Assim, identificamos um único artigo (RITCHER; BARBOSA, 2010) no ano subsequente - importa destacarmos que a referida publicação é de umas das consultoras do Ministério da Educação (MEC) à época de reedição das DCNEI. Há, contudo, uma estagnação na produção entre os anos de 2011 e 2014, sendo revigorada a partir do ano de 2015 - momento que se registra o início das discussões sobre a BNCC. Esses dados permitem inferir que a produção acadêmica sobre currículo da Educação Infantil, em nosso país, é impulsionada pelos avanços e pelos recuos da política curricular para creches e pré-escolas no âmbito da legislação educacional.

Esse levantamento possibilitou uma dupla percepção acerca da produção acadêmica brasileira dos últimos dez anos, pois, por um lado, consentiu evidenciar características únicas das publicações relativas ao tema, permitindo, igualmente, problematizar o material pesquisado, fatores que, quando combinados, resultaram em um olhar possível, singular e historicamente situado sobre a produção recente da área da educação da criança de zero a seis anos sobre o currículo para creches e pré-escolas.

4 A PRODUÇÃO ACADÊMICA DO CAMPO EDUCACIONAL SOBRE CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL (2009-2018)

Lima, Paes de Carvalho e Monteiro (2016), em artigo no qual apresentam uma análise da produção acadêmica publicada nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), que, entre os anos de 2003 e 2012, investigaram a temática do currículo da Educação Infantil, afirmam que existe uma dispersão conceitual no que concerne às concepções de currículo orientando tais investigações. As autoras identificaram que, nos cinco trabalhos que elas localizaram, há pouco aprofundamento teórico em torno da discussão conceitual sobre o currículo para creches e pré-escolas. Em nosso estudo, diferentemente do estudo de Lima, Paes de Carvalho e Monteiro (2016), dos dez artigos identificados no período de seleção dos textos, apenas um não apresenta fundamentação teórica no campo dos estudos sobre currículo.

A análise que empreendemos no estudo dos artigos avaliados como Qualis A1 e A2 permitiu verificar não só o quadro teórico dos textos, mas consentiu evidenciar os percursos metodológicos empreendidos nos dez artigos analisados. Do ponto de vista das metodologias empregadas nos artigos, os textos apresentam aportes variados tendo uma maior concentração de análises de políticas públicas como principal orientação metodológica:

Tabela 2 Relação de metodologias indicadas nos artigos 

Metodologias empregadas nos artigos Quantidade de artigos que fazem menção à metodologia
Análise de políticas públicas 4
Revisão Teórica/literatura 3
Estudo de caso 2
Observação participante 1
Total 10

Fonte: Os autores, dados da pesquisa.

Em nosso corpus de análise, há uma predominância de estudos que analisaram políticas públicas de currículo direcionadas à Educação Infantil. Poucos são os estudos que fazem referência a trabalhos de campo empíricos. Desse modo, evidencia-se uma predominância da análise de políticas públicas como a principal metodologia de investigação das questões curriculares presentes nos dez artigos encontrados no período de levantamento de dados para esta revisão. Em seguida, três outros estudos apresentam a revisão de literatura (revisões históricas ou ainda o ensaio) como forma de discutir as especificidades do currículo da Educação Infantil. Dois artigos apresentam o estudo de caso como metodologia empregada na análise das questões curriculares em creches e pré-escolas e um único artigo assume a observação participante como metodologia de investigação nas instituições de Educação Infantil. É importante destacarmos que estes três últimos trabalhos são os únicos artigos que fazem menção a trabalho de campo empírico.

Em função da preponderância dos artigos que metodologicamente realizam análises de políticas de currículo no contexto da Educação Infantil, no que concerne aos recursos ou aos instrumentos de produção de dados presentes nos artigos analisados, há uma predominância da análise documental, seguida da análise de conjuntura, da observação e das entrevistas, o que é evidenciado pelo Quadro 1 a seguir.

Quadro 1 Instrumentos de produção de dados de pesquisa 

Instrumento de produção de dados Artigos que fazem menção aos instrumentos
Revisão teórica, histórica e ou de literatura 2
Observação 3
Produção de imagens (fotografias e desenhos) 2
Entrevistas 3
Análise documental 4
Análise de conjuntura 3

Fonte: Os autores, dados da pesquisa.

É preciso considerarmos que alguns/umas autores/as dos artigos afirmaram utilizar mais de um instrumento de produção de dados. Coincidentemente, também foram os/as três autores/as que apresentaram resultados de trabalho de campo empírico, que articularam mais de um instrumento de produção de dados. Desse modo, foi possível identificar três artigos que apresentaram mais de uma estratégia de produção de dados.

Quanto às categorias temáticas, os trabalhos podem ser subdivididos conforme evidencia a Tabela 3 a seguir.

Tabela 3 Temáticas abordadas nos artigos 

Categoria Quantidade de artigos
Contributos das crianças para o currículo da Educação Infantil 2
Análises de políticas de currículo na Educação Infantil 5
Revisões teóricas, históricas e ou de literatura 3
Total 10

Fonte: Os autores, dados da pesquisa.

Essa organização dos artigos em categorias permitiu compreender melhor as especificidades de cada estudo, evidenciando, desse modo, a forma como os campos de experiência que organizam o currículo da Educação Infantil são compreendidos pelos/as autores/as, bem como o lugar que a criança e os/as docentes ocupam em tal organização curricular.

Os artigos que evidenciam os contributos das crianças para o currículo da Educação Infantil (PASUCH; FRANCO, 2017; SANTOS, 2018) concebem os campos de experiência como uma forma de organização das situações de aprendizagem condizentes com o desenvolvimento das crianças. Nessa perspectiva, o currículo organizado por campos de experiência não pode ser compreendido na acepção de uma trajetória linear, cuja avaliação pressupõe produtos finais, mas uma forma curricular a ser constituída “[...] pelos diferentes percursos narrativos das experiências que acontecem no encontro cotidiano” (PASUCH; FRANCO, 2017, p. 383) de crianças e adultos no contexto de creches e pré-escolas. Dessa forma, tais campos de experiência vão além de um mero arranjo curricular, pois as experiências vividas pelas crianças no contexto educacional articulam-se a diferentes situações vivenciadas no passado (ou desejáveis de serem vividas em momentos futuros). Desse modo, os campos de experiência devem ser planejados a partir da observação atenta das ações, das falas e dos gestos das crianças, distanciando-se de organizações curriculares apriorísticas e de práticas pedagógicas marcadas pelo espontaneísmo (SANTOS, 2018).

Tais artigos entendem que, na proposição de um currículo por campos de experiência, as crianças precisam ser vistas como seres que possuem modos peculiares de perceber a própria experiência no contexto da instituição de Educação Infantil, evidenciando suas ideias sobre o espaço físico, os adultos, os pares, as situações e as condições de aprendizagem a elas oferecidas. Dessa maneira, as crianças formulam sentidos e significados sobre as próprias experiências sendo os saberes que emergem dessas vivências a garantia de novas situações de aprendizagens (PASUCH; FRANCO, 2017; SANTOS, 2018). Os professores, na perspectiva dos campos de experiência, conformam-se como mediadores, isto é, organizadores de novas experiências; aprendizes que também se desenvolvem a partir das necessidades das crianças.

Os artigos que apresentam análises de políticas de currículo na Educação Infantil (ABUCHAIN, 2015; CARVALHO, 2015; PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016; ANDRADE VIEIRA; CÔCO, 2016; CARVALHO; GUIZZO, 2018) constituem o grupo com a maior quantidade de trabalhos (cinco artigos). Nesses textos, o currículo por campos de experiência é uma forma de organização curricular que tem como parâmetro o reconhecimento do nível de desenvolvimento das crianças, a diversidade social, cultural e os conhecimentos a serem abordados. Essa organização preconiza o contexto de vida das crianças, assim como as situações com as quais se deparam no cotidiano, como propulsores para novas experiências, desde que tal currículo respeite as especificidades da infância (CARVALHO; GUIZZO, 2018).

Os artigos reunidos nessa categoria, apesar de não serem consensuais, consideram que o debate sobre currículo da Educação Infantil é marcado por certo nível de complexidade, envolvendo “[...] a participação de distintos interlocutores, com diferentes, e por vezes tensionantes, mensagens circulantes” (ANDRADE VIEIRA; CÔCO, 2016, p. 814). De acordo com Ponce e Durli (2015), o debate sobre currículo para e na Educação Infantil causa certo desconforto em parte da comunidade epistêmica da área da educação da criança de zero a seis anos. Apesar de o termo já fazer parte do vocabulário de professores, pesquisadores e dos textos oficiais da área da Educação Infantil, seu uso é bastante controverso.

Há, na visão das autoras, razões históricas que justificam tal fenômeno e que se encontram na encruzilhada da história do currículo com a história da Educação Infantil no Brasil. Ponce e Durli (2015) encontram duas raízes para a não aceitação da ideia de currículo pela área da educação da criança de zero a seis anos. A primeira tem vínculo com a própria origem do termo currículo, pois o conceito, em suas acepções mais tradicionais, remete à prescrição de conteúdos. De acordo com as autoras, a história das teorias de currículo evidencia que “[...] o vínculo entre currículo e prescrição foi construído desde muito cedo e, ‘com o passar do tempo, sobreviveu e fortaleceu-se’” (PONCE; DURLI, 2015, p. 777). A segunda diz respeito ao processo de institucionalização da Educação Infantil - marcado pela transição de creches e pré-escolas do campo da assistência social para o campo da educação -, que se encontra fortemente tensionado por suas origens históricas, assentadas em duas lógicas distintas e em certo sentido opostas: a função assistencialista e a lógica escolarizante.

Ponce e Durli (2015) consideram que, na década de 1980, período histórico em que tanto militantes quanto intelectuais se organizavam em prol da construção de uma nova função social para creches e pré-escolas, tanto os textos oficiais quanto as práticas realizadas nos contextos educativos ainda eram fortemente atravessados por tendências pedagógicas tecnicistas, embora se registre, no mesmo período, a chegada ao Brasil de referências bibliográficas alinhadas com as pedagogias críticas, o que também impulsiona a produção de uma literatura crítica em nosso país. Nessa perspectiva, as autoras consideram que o currículo estava implicado “[...] na regulação dos conteúdos de ensino e de aprendizagem, dos tempos, dos espaços e dos sujeitos, vinculado aos princípios de eficiência e eficácia do ensino. Essa vinculação não correspondia à identidade que se pretendia construir à Educação Infantil” (PONCE; DURLI, 2015, p. 777).

Tais estudos demonstram que os currículos oficiais têm papel importante na construção da identidade da Educação Infantil (tanto em âmbito nacional quanto local), embora seja preciso reconhecer que a identidade não está contida no documento em si, mas se constitui no processo de “[...] elaboração e de implantação na rede, vivenciada no cotidiano anônimo de cada instituição” (ABUCHAIM, 2015, p. 263). Desse modo, a proposição da organização do currículo da Educação Infantil em campos de experiência requer que, no cotidiano, os/as docentes de creches e pré-escolas construam uma concepção de educação que compreenda a experiência como forma privilegiada de viver a infância e rica possibilidade de as crianças elaborarem sentidos e significados sobre o mundo (PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016).

Os artigos agrupados nessa categoria também compreendem as crianças como o centro do processo educativo cujas interações, brincadeiras e linguagens permeiam as práticas sociais de cuidado e educação - considerados meios privilegiados pelos quais, desde bebês, elas expressam sentimentos, exploram o mundo, estabelecem relações que implicam em conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social, natural e cultural. O/a docente é considerado/a como parceiro/a mais experiente, que, no espaço da Educação Infantil, observa, acolhe, valoriza as ações e as falas das crianças, reestruturando sua atuação docente de modo a garantir os direitos de aprendizagem, fator que demarca a especificidade do trabalho docente na Educação Infantil (PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016; ANDRADE VIEIRA; CÔCO, 2016).

A última categoria que compõe nosso corpus de análise reúne os artigos que apresentam revisões de literatura (LIMA; PAES DE CARVALHO; MONTEIRO, 2016), revisões históricas (PONCE; DURLI, 2015) e ensaios teóricos (RITCHER; BARBOSA, 2010). Tais artigos corroboram as perspectivas conceituais das categorias anteriores compreendendo que o currículo organizado por campos de experiência se conforma como tempo e espaço de encontro entre adultos e crianças. Tais campos se configuram como um modelo curricular baseado em processos, ou seja, que precisam ser produzidos pelos docentes por meio de uma reflexão sobre a prática que resulte do encontro com as crianças, com suas experiências (RITCHER; BARBOSA, 2010). Na visão de Lima, Paes de Carvalho e Monteiro (2016, p. 120), o currículo da Educação Infantil considera que as práticas pedagógicas vivenciadas por crianças e adultos em creches e pré-escolas se concretizam “[...] por meio de relações sociais que as crianças estabelecem com os professores e as outras crianças”.

Nos artigos dessa categoria, os/as professores/as são visto/as como profissionais que oferecem experiências educativas às crianças promovendo a aprendizagem e “[...] considerando o contexto social, histórico e cultural, através de práticas que cuidem e eduquem por meio das múltiplas linguagens, exercendo suas funções sociais, políticas e pedagógicas” (LIMA; PAES DE CARVALHO; MONTEIRO, 2016, p. 120). Consecutivamente, as crianças são concebidas como seres que, desde o nascimento, apropriam-se ativa e interativamente da cultura em seu entorno por meio das mediações do outro e que interrogam a própria pedagogia (RITCHER; BARBOSA, 2010). Nesse sentido, quanto menor a criança, mais ela questiona a instituição educacional e o currículo.

5 TENSÕES E CONVERGÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO POR CAMPOS DE EXPERIÊNCIA

A leitura dos artigos que compõem o corpus de análise deste estudo evidenciou aspectos ainda pouco explorados pela comunidade epistêmica da área da Educação Infantil - fator que possibilita e amplia os debates sobre a organização curricular para as instituições educativas que, na atualidade, constituem a primeira etapa da Educação Básica.

Durante muito tempo, a área da Educação Infantil buscou distanciar-se da ideia de currículo para sistematizar o cotidiano de creches e pré-escolas e, desse modo, toda tentativa de sistematização do conhecimento da área pode ser falha ou incompleta. A área da Educação Infantil possui variados estudos que têm como foco de análise os processos educativos que envolvem as complexidades, as especificidades, as sutilezas e as singularidades da educação da criança de zero a seis anos, envolvendo temas como: sujeitos, espaços, tempos e conhecimentos - experiências de pesquisa ricas, contudo invisibilizadas nas discussões sobre currículo (PONCE; DURLI, 2015). Em função dos descritores utilizados em nosso levantamento, tais estudos, embora relevantes e congruentes com os artigos sobre currículo da Educação Infantil, não puderam ser aqui analisados.

Do nosso ponto de vista, isso reforça a necessidade de a área da Educação Infantil assumir as teorizações sobre currículo em seu interior. É preciso considerar que a investigação científica e a política de Educação Infantil avançaram, assim como as teorias de currículo também progrediram de uma tradição que prescrevia conteúdos, para uma leitura crítica do cotidiano educacional. Desse modo, considera-se que, no contexto de creches e pré-escolas, “[...] não há espaço para um currículo prescrito que se imagina ‘pronto’”, pois este já estaria ‘desqualificado, em seu ponto de partida, como prática social’” (CHIZZOTTI; PONCE, 2012, p. 34 apud PONCE; DURLI, 2015, p. 786).

A organização curricular por meio de campos de experiência que estrutura o texto da BNCC para creches e pré-escolas se conforma como uma proposta educacional potente, embora tenha de ser ressaltado que a noção de experiência presente neste documento é imprecisa e vaga (PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016; SANTOS, 2018). Todavia, faz-se necessário qualificarmos a experiência que se vive na escola e, desse modo, Pandini-Simiano e Buss-Simão (2016) sugerem que o adjetivo “educativo” componha a nomenclatura dos campos. As autoras afirmam que a expressão campos de experiência educativa “[...] sustenta a especificidade da Educação Infantil e marca algo que para nós é muito caro, pois a educação das novas gerações, como todo processo educativo, é social e prescinde da perspectiva relacional” (PANDINI-SIMIANO; BUSS-SIMÃO, 2016, p. 82).

Embora pareça tratar-se de questão meramente gramatical, a apropriação do adjetivo “educativo” na nomenclatura dos campos de experiência evitaria três riscos que a proposta da BNCC pode ocasionar para a Educação Infantil: i) que a Base seja compreendida como espaço e tempo de transmissão de conteúdo e não como espaço de articulação de saberes de crianças e adultos nas práticas pedagógicas; ii) alimentar uma falsa ideia de que a educação pela experiência seja sinônimo de educação pela experimentação; e iii) uma educação focalizada na avaliação apenas no desenvolvimento da criança e não do contexto educacional no qual ela se insere. Desse modo, um currículo organizado a partir das ações, dos gestos e das falas das crianças permite compreender a experiência educativa como dimensão do contexto sociocultural de meninos e meninas e “[...] não uma fragmentação disciplinar e racionalizada da vida e da própria experiência educacional” (SANTOS, 2018, p. 28).

Acreditamos que assumir os campos de experiência como “campos de experiência educativa” possibilita conectar aquilo que as crianças vivenciam no contexto da instituição de Educação Infantil com as situações e as experiências vividas no contexto social mais amplo. Trata-se, assim, de uma organização curricular que direciona os profissionais de Educação Infantil para a experiência da criança permitindo-lhes compreendê-la, conferindo-lhe sentido para ampliá-la de modo a promover o desenvolvimento integral dos/as pequenos/as (SACRISTÁN, 2013).

Se, por um lado, a organização do currículo de creches e pré-escolas por campos de experiência garante a inserção da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, reconhecendo, de igual modo, as especificidades em torno das práticas de cuidado e de educação (PONCE; DURLI, 2015; ANDRADE VIEIRA; CÔCO, 2016), por outro, não se pode desconsiderar que não existe proposta curricular alheia às relações de poder, dado que o currículo é “[...] um campo de produção e criação de significados que se encontra centralmente implicado naquilo que somos, naquilo que nos tornamos e naquilo que nos tornaremos” (CARVALHO, 2015, p. 467).

Enquanto campo de produção de significados, o currículo idealiza modos de subjetivação que fabricam sujeitos do processo pedagógico; nesse caso, a criança e o/a professor/a da Educação Infantil. Em certo sentido, o currículo da Educação Infantil produzido no contexto educacional brasileiro promove uma virada epistemológica para a educação da criança de zero a seis anos, pois tem a capacidade de fabricar novas subjetividades no contexto pedagógico de creches e pré-escolas já que produz outras possibilidades de pensar o conhecimento, a criança e a docência na Educação Infantil. No entanto, não se pode desconsiderar, como enfatiza Carvalho (2015, p. 475), os “imperativos pedagógicos” que constituem as DCNEI de Educação Infantil, que, como mecanismos discursivos, prescrevem modos de ação docente que desvelam “[...] um processo de redenção e salvacionismo por meio da formação ‘integral’ da criança” (CARVALHO, 2015, p. 475).

Assim, acreditamos que um documento curricular (seja de abrangência nacional como a BNCC, seja no âmbito dos estados ou dos municípios) pode se configurar como horizonte no qual as professoras de Educação Infantil construam padrões mínimos de qualidade. Entretanto, a mera existência desses documentos não garante a constituição dos arranjos curriculares, “[...] pois é apenas no cotidiano de trabalho de uma instituição, com o protagonismo dos diversos sujeitos que dela fazem parte, mas, sobretudo, do professor, que o currículo se transforma em ação e passa de fato a existir” (ABUCHAIM, 2015, p. 253). Desse modo, reiteramos a necessidade de dar conteúdo ao que se entende por campos de experiência educativa na perspectiva de assumir a discussão do currículo de creches e pré-escolas, suas especificidades e suas idiossincrasias de uma perspectiva crítica desde a formação inicial e continuada de professores/as de Educação Infantil.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto objetivou apresentar uma revisão dos artigos científicos publicados em periódicos avaliados como Qualis A1 e A2 do campo da educação que, no período compreendido entre 2009 e 2018, analisaram a proposição do currículo para a Educação Infantil, evidenciando um refinamento nas formas de conceber o debate, assim como as tensões a ele inerentes.

Embora tenha-se de considerar o tamanho do recorte temporal (trabalhos realizados no ultimo decênio), bem como a quantidade de artigos que compõem o corpus de análise, este estudo permitiu-nos compreender algumas das especificidades que envolvem a organização do currículo por campos de experiência para creches e pré-escolas, bem como as concepções neles presentes, de criança e de papel do/a professor/a.

Os trabalhos reunidos neste levantamento são unânimes em considerar que a organização do currículo por campos de experiência é um arranjo curricular que considera e respeita as especificidades da Educação Infantil. Tais artigos concebem a proposta dos campos de experiência como um arranjo curricular aberto que compreende a criança, suas experiências, suas falas e suas ações como o ponto de partida para a elaboração de práticas pedagógicas que tenham como eixos estruturantes as brincadeiras e as demais formas de interação de meninos e de meninas. E, igualmente vislumbra o professor como um profissional atento e sensível às experiências, direitos de aprendizagem e necessidades de desenvolvimento das crianças. Por outro lado, essa mesma produção apresenta tensões e dispersões que ressaltam aspectos ainda pouco explorados da organização de currículo por campos de experiência, presentes na BNCC para a Educação Infantil.

Consideramos, em suma, que, apesar de ainda existirem reservas em relação ao uso do termo “currículo” no interior da área da Educação Infantil, já não é mais possível evitar as questões concernentes à organização curricular, que são fulcrais no processo de construção da identidade da Educação Infantil. Não há dúvidas de que tal identidade encontra-se em constante processo de disputa no âmbito das discussões travadas no interior da área da educação da criança de zero a seis anos e que envolvem a definição de uma BNCC para a Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 O Qualis-Periódicos consiste em um sistema de classificação da produção científica dos Programas de Pós-Graduação no que se refere aos artigos publicados em revistas científicas. Segundo consta no sítio eletrônico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes), tal processo “(...) foi concebido para atender às necessidades específicas do sistema de avaliação e é baseado nas informações fornecidas por meio do aplicativo Coleta de Dados. Como resultado, disponibiliza uma lista com a classificação dos veículos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da sua produção”. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/index.jsf;jsessionid=qI5l3tTH6e1Tqx58gpMGEuC9.sucupira-204. Acesso em: 20 jul. 2018.

2 Não se pode desconsiderar que o processo de formulação dessas Diretrizes, seguindo tendências pedagógicas internacionais como as de algumas cidades da Itália, da Bélgica e da Suécia, por exemplo, propõe uma abordagem curricular para a Educação Infantil comprometida com o desenvolvimento pleno das crianças, distinguindo-se radicalmente de abordagens envolvidas com a antecipação de processos de escolarização vindouros (HADDAD, 2010).

3 Disponível em: http://www.scielo.br/?lng=pt. Acesso em: 20 jul. 2018.

4 Disponível em: http://www.periodicos.capes.gov.br/. Acesso em: 20 jul. 2018.

5 Disponível em: https://scholar.google.com.br/. Acesso em: 20 jul. 2018.

Recebido: 29 de Setembro de 2019; Aceito: 18 de Dezembro de 2019

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