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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.1 São Paulo ene./marzo 2020  Epub 30-Sep-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i1p372-390 

Artigos

RAPUNZEL E ENROLADOS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

RAPUNZEL AND TANGLED: SIMILARITIES AND DIFFERENCES

RAPUNZEL Y ENREDADOS: APROXIMACIONES Y DISTANCIAMENTOS

1 Doutorado em Letras pela PUCRS. Pós-doutorado em Educação pela FaE/UFMG. Atua como Docente no PPGEd e PPGLet e nos cursos de graduação em Letras, Bibioteconomia e Pedagogia na Universidade de Caxias do Sul - UCS. E-mail: ramos.fb@gmail.com.

2 Doutorado em Letras pela UCS. Professora na Universidade FEEVALE. E-mail: lovaniv@feevale.br.

3 Doutorado em Educação pela UFRGS. Professora na Universidade de Caxias do Sul nos cursos de Psicologia e no PPG em Psicologia. E-mail: vebohm@bol.com.br.


RESUMO

A relação simbiótica entre cinema e literatura ultrapassa a organização narrativa, pois envolve igualmente aspectos relativos às linguagens verbal e visual, o que confere sentidos aos textos. Assim, este artigo discute, por meio de uma análise comparativa, a temática e a construção discursiva e simbólica de dois produtos culturais dirigidos ao público infantil: o conto de fadas Rapunzel, escrito pelos irmãos Grimm no século XIX, e o filme Enrolados, baseado no mesmo conto, produzido pela Disney, em 2010. Para tanto, discorre-se acerca da infância e da produção cultural infantil, assim como sobre a linguagem fílmica e a literatura, considerando aspectos em que se assemelham e se diferenciam. Nos resultados, aponta-se a interdependência entre os dois produtos no que se refere ao universo diegético e às personagens, mas o filme, adaptado aos interesses da sociedade atual, ao abordar temas que apontam o novo papel da mulher na sociedade, assim como os extremos da vaidade, a independência e o livre arbítrio, sofre modificações profundas e traz ao público infantil, nos interstícios narrativos, posições axiológicos, conceitos e preconceitos.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Infância; Produção cultural

ABSTRACT

The symbiotic relationship between cinema and literature, apart from the organization of the narrative, also involves aspects related to verbal and visual languages, which gives meanings to texts. Therefore, this article discusses, through comparative analysis, the themes and the discursive and symbolic construction of two cultural products oriented to children: Rapunzel fairy tale, written by the Grimm Brothers in the nineteenth century, and the movie Tangled, based on the same story, produced by Disney in 2010. Thus, the text discusses on childhood and cultural production for children, as well as on film language and literature, considering aspects in which they are similar and where they differ. As for the results, it is pointed out the interdependence between the two products when referring to the diegetic universe and the characters, adapted to the interests of today's society. However, the film, when talking about themes that point out women's new role in society, as well as the extremes of vanity, independence and free will, goes through deep changes. It also brings the child spectators, on the narrative interstices, axiological positions, concepts and prejudices.

KEYWORDS: Childhood; Cultural production; Identity

RESUMEN

La relación simbiótica entre cine y literatura sobrepasa la organización narrativa, pues involucra igualmente aspectos relativos a los lenguajes verbal y visual, lo que confiere sentidos a los textos. Así, por medio de análisis comparativo, el artículo discute el tema y la construcción discursiva y simbólica de dos productos culturales dirigidos al público infantil: el cuento de hadas Rapunzel, escrito por los hermanos Grimm en el siglo XIX, y la película Enredados, basada en el mismo cuento, producido por Disney en 2010. El presente artículo: el cuento de hadas. Para ello, analiza la producción cultural así como el lenguaje fílmico y literatura, en los aspectos en que se asemejan y se diferencian. Entre los resultados, se apunta la interdependencia entre los dos productos en lo que se refiere al universo diegético y los personajes, pero la película, al abordar temas que apuntan al nuevo papel de la mujer en la sociedad, así como a los extremos de la vanidad, la independencia y el libre albedrío, sufre modificaciones profundas, adaptados a los intereses de la sociedad actual, y aporta al público infantil, en los intersticios narrativos, posiciones axiológicas, conceptos y prejuicios.

PALABRAS CLAVE: Identidad; Infancia; Producción cultural

1 INTRODUÇÃO

O homem, ao longo de sua história, criou e ouviu narrativas. Inicialmente, elas foram produzidas para explicar fenômenos da natureza cuja razão desconhecia, depois, para compartilhar as experiências daqueles que saíam de suas aldeias e viajavam pelo mundo, cujos relatos alimentavam a imaginação dos ouvintes, que, por sua vez, recontavam aquilo a outros, em um processo constante de ressignificação.

As histórias que, no princípio, eram transmitidas oralmente, passaram a ser compartilhadas por meio de outros suportes, como a pintura, a escrita e, ainda, a imagem em movimento, adequando a linguagem ao público-alvo. A produção cultural infantil acompanhou essa evolução e, na atualidade, contempla oferta cada vez maior de produtos direcionados a esse público.

Nesse sentido, este estudo, a partir do conto de fadas Rapunzel, publicado pelos Irmãos Grimm no século XIX, e do filme Enrolados, produzido pela Disney em 2010, objetiva analisar a construção discursiva e temática desses produtos, como também possíveis aproximações e distanciamentos entre eles. Para tanto, por meio da reflexão acerca de categorias definidas a priori, presentes no discurso narrativo, e de outras que emergiram, principalmente, no estudo temático de cada um dos produtos, foi tecida a análise. Com o intuito de elucidar as questões postas, retomam-se, inicialmente, alguns aspectos acerca da infância e da formação cultural da criança, assim como do livro e do filme como produtos culturais, discutindo a linguagem literária e a fílmica, nos pontos em que se assemelham e se diferenciam.

2 INFÂNCIA E PRODUÇÃO CULTURAL

Os conceitos de infância e de produto cultural vão sendo construídos conforme a sociedade vai criando demandas que os tornam necessários. Nesse contexto, a noção de infância surgiu primeiramente na burguesia, no século XVII, quando o sujeito era considerado como pertencente à idade infantil enquanto era dependente. No mesmo período, a palavra "infância" era usada para designar a primeira idade. Essa fase da vida não tinha visibilidade social até a modernidade, de modo que as crianças eram vistas como adultos em miniatura. Apenas no século XIX, tornaram-se foco de atenções, em virtude da escolarização e da criação da estrutura familiar pautada na união conjugal (ARIÈS, 1981).

Até a Idade Média, como não existia o conceito, não havia um vocábulo específico para designar “infância”. Portanto, a criança era vista como um adulto menor, e a meta era integrá-la o mais rápido possível na vida adulta. Zilberman (1981, p. 15) afirma que essa

[...] faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como um espaço separado. Pequenos e grandes compartilhavam dos mesmos eventos, porém, nenhum laço amoroso os aproximava. A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções.

A concepção de infância, tal como a conhecemos, caracteriza-se, em diferentes contextos históricos, como um vir-a-ser, explicitando que o mundo do adulto se diferencia significativamente do mundo da criança. Essa distinção no modo de entendê-la não considera mais a criança como um adulto em miniatura. Nesse contexto, a criança passa gradativamente de uma posição subjetiva e egocêntrica para outra, mais objetiva e científica. Esse processo é classificado por Piaget (1980) como períodos de desenvolvimento, que, em sua concepção, seriam quatro: período sensório-motor (0-2 anos), período pré-operacional (2-7 anos), período operacional-concreto (7-11 anos) e período de operações formais (11-15 anos).

Na história da humanidade, as ideias, o pensamento, as produções e as representações são determinadas, em cada período histórico, pela classe dominante vigente. Neste início de século XXI, a formação cultural das crianças tende a estar associada à classe social a que pertencem; a cultura é coisificada, contribuindo tanto para a distinção de classes como para a alienação e para a dominação das maiorias. Culturalmente, hoje, ao mesmo tempo em que há uma distinção entre o mundo infantil e o adulto, há certa tendência a reproduzir para a criança aquilo que é pensado para os mais velhos, em termos de vestuário, cosméticos, livros, filmes, entre outros.

A coisificação da cultura, segundo Perroti (1990), determina a inserção da criança no mundo da produção capitalista, no qual se quantificam, secularizam, normatizam e mercantilizam os bens produzidos nas relações de trabalho humanamente significativas. Sem que as pessoas se deem conta, de acordo com Bauman (2008), nessa lógica capitalista, antes mesmo de se tornarem consumidoras, as pessoas são transformadas em mercadorias, tornando imperativo o consumo de produtos e de serviços para continuar sendo, ou tornar-se, uma mercadoria interessante para os outros.

Desse modo, a cultura exerce uma função domesticadora e repressiva nas sociedades divididas em classes, veiculando conteúdos ideológicos das classes dominantes para todas as classes sociais. Assim, a criança assume o papel de consumidora de bens culturais impostos socialmente, pois somente dessa maneira poderá tornar-se um “ser humano evoluído”, adaptado às regras da sociedade e capaz de desempenhar suas funções sociais para que a sociedade funcione em harmonia.

Conforme Umberto Eco (1976), criam-se “estruturas de consolação”, pois se oferece às crianças a possibilidade de viverem, por meio de produtos culturais, aquilo que a expansão capitalista lhes nega no real: o roubo do espaço e o bloqueio do lúdico. Dessa forma, tenta-se compensar o real com o simbólico. Em outras palavras, a indústria cultural, que ajuda a construir significados simbólicos, está intimamente vinculada aos ditames impostos pelas leis de mercado.

Com o advento do neoliberalismo e da globalização do capital, o mercado passa a incorporar todos os segmentos da sociedade sob a lógica do consumo, desde recém-nascidos até idosos, independentemente de etnia, raça, credo, classe ou gênero. O mercado observa no público infantil, por exemplo, um consumidor potencial de mercadorias culturais e não culturais, gerando condições para consolidar uma rede de comércio que atenda à demanda de consumo desse novo público.

O mercado infantil, por sua vez, constitui-se de produtos tradicionais (brinquedos, e livros) à adaptação de artigos do universo adulto e de objetos de consumo familiar. A indústria cultural assimilou o mercado infantil, que tem se expandido após a década de 1980, para a comercialização de bens simbólicos pela segmentação dos meios de comunicação, por exemplo.

Na atualidade, os produtos culturais comercializados para esse público formam uma cadeia inesgotável de produção e massificação de mercadorias. Exemplo disso são os desenhos animados explorados pela mídia, gerados a partir de agenciamento de empresas que elaboram, produzem e comercializam uma infinidade de produtos timbrados com o nome dos mais recentes ídolos infantis. Essa moda, cabe destacar, não pode ser duradoura, uma vez que a indústria necessita de produtos datados, ou seja, com relativa brevidade, pois precisam ser substituídos por outros, para manter a engrenagem do mercado em funcionamento (BAUMAN, 2001).

Nesse contexto, a adaptação de contos de fadas tradicionais tem-se apresentado às produtoras culturais como uma possibilidade de criação fílmica para o público infantil. Esse novo produto, neste estudo, tende a ser visto como um enunciado, na concepção bakhtiniana, que nunca é neutro e está inserido na cadeia da comunicação verbal. Cada enunciado é, pois, uma resposta explícita ou implícita às palavras do outro, trata-se de um elo dessa cadeia que pode ser entendido como momento presente na situação de enunciação. O espectador, contudo, não é passivo, pois, conforme argumenta Bakhtin (2003), “[...] toda a compreensão é prenhe de resposta” (p. 271). Dessa forma, tanto o conto como o filme promovem uma “reação responsiva ativa”1 nos sujeitos, que podem concordar ou opor-se às ideias do discurso, às atitudes dos personagens, à representação da realidade mostrada nos enredos. No caso das adaptações de narrativas, em geral, são mantidas as personagens principais do texto fonte. Entretanto, o enredo sofre modificações profundas, e é adaptado aos interesses da sociedade capitalista, que traz ao público infantil seus valores, conceitos e preconceitos. Um exemplo dessa produção cultural contemporânea para crianças é o filme Enrolados, que tem por base o conto de fadas Rapunzel, dos irmãos Grimm.

3 LITERATURA E CINEMA: LEITURAS CRUZADAS

A criação do cinema está associada a outras formas artísticas, mas a descoberta do cinematógrafo relaciona-se ao desenvolvimento da fotografia. Essa tecnologia influenciou diretamente a produção dos escritores no século XIX, que procuraram transferir para o discurso literário reflexos da linguagem fotográfica. Os realistas, por exemplo, dedicaram páginas à descrição do ambiente e das personagens, detalhando elementos como em uma fotografia. Além disso, como se fosse uma câmera a captar as imagens, o olhar guiava a narrativa, ou seja, “[...] a natureza da literatura não passou incólume pelas gradativas e profundas transformações que se efetivaram, como resultado das novas técnicas introduzidas pelos novos modos de produção e reprodução de cultura, baseados, sobretudo, na imagem” (PELLEGRINI, 2003, p. 33).

Em 1895, os irmãos Lumiére patentearam o cinematógrafo, inventado anteriormente por Léon Bouly, em 1892, e passaram a registrar cenas do cotidiano, como o trem chegando à estação, por exemplo. No entanto, em função do desconhecimento dessa nova linguagem - a imagem movente - e pelo efeito de realidade, inicialmente, quando da exibição, os espectadores fugiram da sala de projeção.

As cenas do cotidiano não seduziam o espectador, desejoso de histórias, que poderiam conduzi-lo ao mundo do “como se”, ou seja, ao mundo da ficção. Assim, fez-se necessário encontrar narrativas para filmar e a literatura que, segundo Antônio Cândido (1995), tem o poder de humanizar as pessoas, passou a ser fonte de enredos para o cinema, o qual estabeleceu forte relação com o espectador e, inclusive, em sentido inverso, atuou como mediador entre o leitor e a literatura.

A relação simbiótica entre cinema e literatura ultrapassa a organização narrativa, pois envolve igualmente aspectos associados às linguagens verbal e visual, o que orienta os sentidos do texto. De um lado, o texto literário vale-se do signo linguístico para configurar mundos possíveis que se apresentam em forma de narrativa, de outro, o cinematográfico harmoniza signos de diferentes linguagens: o imagético, o musical e o verbal, bem como as demais informações que a imagem transmite, como a gestualidade e a caracterização das personagens, a iluminação e o enquadramento, entre outros aspectos.

Cada um a seu modo, literatura e cinema acionam distintas cognições no processo de recepção. O texto literário narra para mostrar; já o fílmico, mostra para narrar, o que faz com que o leitor/espectador atue de modos distintos diante de cada uma das linguagens. O espectador percebe diferentes recursos colocados em ação ao longo da projeção, verificando se são diegéticos ou extradiegéticos. Assim, a música, por exemplo, compõe a diegese, enfatiza momentos cruciais da história e representa o estado anímico das personagens, suscitando no espectador a adesão ao universo diegético.

Na transposição do literário ao cinematográfico, como no caso de Enrolados, o filme é um novo produto, constituindo-se uma releitura de seu hipotexto, ou seja, o texto que a ele subjaz, segundo conceito elaborado por Gerard Genette (s.d.). Sendo um novo texto, a narrativa fílmica abdica da fidelidade ao literário, podendo se afastar dele em diferentes aspectos. O que garantirá qualidade estética é a coerência interna da narrativa e o emprego da linguagem fílmica. Não deve, pois, ser julgado em termos de fidelidade ao enredo literário, mas pelo modo como a narrativa é criada, uma vez que

[...] um texto (literário ou cinematográfico) fala por seus procedimentos estilísticos e não pelo eventual caráter fotográfico de sua escrita. Ver um filme não se reduz a uma leitura direta do que vemos na tela no momento da projeção, nem ler um livro se reduz à imediata identificação das palavras impressas no papel. Cinema e literatura não são apenas estas coisas concretas que efetivamente temos diante dos olhos. São a estrutura que organiza o que é imediatamente visível e também o que se constrói no imaginário estimulado pelo que se movimenta na imagem e palavra [...] (AVELLAR, 2007, p. 55-6).

Além disso, como obra marcada pelo valor semântico procedente do texto literário, do qual herda reflexos dos juízos da crítica, em contraponto, o filme pode lhe atribuir novos lampejos de significação, reforçando ou não o significado original. A nova obra permite outro(s) olhar(es) e olhares renovadores sobre a obra literária, em um jogo de intertextualidade. Esse outro olhar pode advir de uma elaboração inusitada da linguagem fílmica para narrar a diegese literária original, a qual pode ser abreviada ou estendida, tratada a partir de um novo foco narrativo ou mesmo narrada por outro tipo de narrador. As possibilidades são múltiplas. Cada nova versão caminha ao encontro de “soluções fílmicas” para representar o literário, ou seja, explorar, por meio da heterogeneidade sígnica, que lhe é própria, os sentidos a serem construídos.

É necessário, portanto, enfatizar o papel fundamental do leitor/espectador na construção das significações do texto e na identificação de suas possíveis articulações com o contexto estético-histórico-cultural da produção e da recepção, bem como do próprio momento histórico interpretado. Literatura e cinema inscrevem-se, dessa forma, no processo sócio-histórico, constituindo-se como representações e reflexões sobre o momento vivido, com um olhar artístico e crítico. As linguagens literárias e fílmicas relacionam-se tanto com elementos sócio--históricos do contexto de produção quanto da recepção, tendo em vista que são sistemas de significação que dão sentido ao passado. O sentido e a forma não estão nos fatos em si, mas nos sistemas de significação que presentificam os fatos.

A literatura e o cinema, por meio da mise en intrigue, reescrevem fatos, inclusive, históricos e os organizam no universo diegético, alterando-os muitas vezes, para instaurar reflexão crítica sobre o que ocorreu, tendo em vista que não há necessidade de fidelidade histórica. Com isso, podem desvendar o que frequentemente não é abordado pela historiografia, por ser demasiadamente microscópico ou individual, como o sofrimento incorporado pelas personagens diante dos acontecimentos, alcançando, com isso, o nível do humano. Assim, a ficção pode sensibilizar por sua diegese, convidando o receptor ao questionamento e à reflexão sobre a história, mesmo sem pretender alcançar a verdade.

Toda narrativa, ainda, como ato comunicativo, pressupõe um narrador que se encarregue da apresentação do conflito. Se, na literatura, a presença dos diferentes tipos de narrador é consenso, no cinema, tal estratégia ainda não recebeu nomeação ou conceituação definitiva2. Como o cinema é resultado da harmonização de diferentes linguagens, o ato narrativo dá-se, também, de modo diverso, ou seja, o olhar do espectador é guiado, ao mesmo tempo em que os aspectos sonoros convergem para o que é mostrado. É, pois, ao mostrar (ou deixar de mostrar) que se narra a história.

O enunciador fílmico é encarregado de instituir o relato, organizando e articulando entre si todas as matérias da expressão que o compõem. Essa entidade textual apresenta o texto fílmico, principalmente, por uma mirada, seu olhar guia o do espectador, levando-o a ver e a ouvir apenas o que lhe interessa. Dessa forma, o enunciador fílmico é, soberanamente, o responsável pela organização da narrativa na película, pois arranja os fatos e escolhe como contará a história. Salientamos que, por vezes, pode se valer de uma voz in off, a qual introduz os fatos mostrados na tela.

Outra noção narrativa importante no nível da enunciação é o modo como os acontecimentos são mostrados ao receptor, isto é, qual é o ponto de vista, no caso do filme, que enuncia imagem e sons. Podemos considerar os fatos como apreendidos por uma ou mais personagens ou por uma instância externa à história, assumida pelo enunciador fílmico. Por fim, é possível, ainda, tentar apagar a presença do enunciador. Essa noção é fundamental, uma vez que instaura diferentes significados e expectativas no receptor, contribuindo, igualmente, para a verossimilhança dos fatos narrados.

Após esse cotejo entre literatura e cinema, o texto traz, a seguir, como objeto de estudo e análise, o conto Rapunzel e o filme produzido a partir dele, Enrolados.

4 O PONTO DE PARTIDA: RAPUNZEL

O conto de fadas Rapunzel foi editado pela primeira vez em 18123, na Alemanha, pelos irmãos Grimm, que o adaptaram do conto de fadas Persinette, escrito por Charlotte-Rose de Caumont de La Force e publicado originalmente em 1698. Neste estudo, usa-se a versão da editora Kuarup, a qual foi traduzida do original para o português.

No conto, a história é revelada por um narrador observador e parte de uma situação real, restrita ao universo familiar: um casal que deseja ter um filho. Segundo o narrador, Deus estava prestes a lhes conceder o desejo, pois a esposa, ao olhar pela janela, sentiu vontade incontrolável de comer rapunzéis, plantados nos fundos de sua casa, em terreno protegido por muros. Considerando-se os estudos de Chevalier (1986) sobre o significado dos símbolos, percebe-se que não é por acaso que a esposa olhou pela janela e viu um jardim repleto de legumes e verduras. A janela é a abertura para o novo, para a fertilidade, representada pelo jardim de rapunzéis. Para que esse desejo se concretizasse, entretanto, era preciso passar por obstáculos, aqui representados pelo muro, que, conforme Chevalier (1986), é um limitador, indica até onde é possível ir e vir, sem sofrer sanções.

O marido, preocupado com o bem-estar da amada, pulou o muro e trouxe-lhe um punhado da salada, que foi devorado pela esposa. No dia seguinte, o desejo por rapunzéis triplicou, e o marido, novamente, pulou o muro para o terreno vizinho, transgredindo, outra vez, a norma. Desta vez, entretanto, foi surpreendido pela dona da plantação, uma feiticeira. Como a regra do ir e vir tinha sido descumprida, o marido, que pulou o muro e invadiu uma propriedade, foi castigado pela infração: em troca do perdão pelo crime, a bruxa (opressora) exigiu-lhe a criança, logo que nascesse.

Assim, a feiticeira criou a menina como sua filha e deu-lhe o nome de Rapunzel. Quando a garota completou doze anos, a vilã a pôs em uma torre alta, sem portas ou janelas, somente com uma abertura no topo, que servia para Rapunzel jogar suas longas tranças para puxar a bruxa até seu quarto. As tranças eram, inicialmente, o único contato de Rapunzel com o mundo externo e demonstram o quanto estava presa à feiticeira; seus cabelos longos, marca de sua identidade, não eram soltos, mas trançados, aprisionados, tal como a garota. Os cabelos longos simbolizam apropriação (CHEVALIER, 1986). Além disso, Chevalier salienta que, em algumas regiões da Alemanha, não se cortava o cabelo das crianças antes de elas completarem um ano de idade, pois acreditava-se que, se isso fosse feito, ficariam azaradas. Portanto, ao não cortar os cabelos de Rapunzel, a bruxa mantinha a moça sob sua tutela e a protegia dos males do mundo. Essa proteção também se evidencia no fato de a personagem estar trancada em uma torre. Para Chevalier (1986), esse elemento denota o resguardo da menina, que mantém sua ingenuidade infantil, explicitando, conforme Vygotsky (2003), o quanto o meio constitui o ser humano.

Rapunzel vivia confinada, mas cantarolava, o que fez com que fosse percebida por alguém fora da torre: um príncipe que passeava pela floresta escutou a linda voz. Encantado com o que ouviu, voltava lá todos os dias, para escutá-la. Certa ocasião, viu a bruxa subindo a torre e aprendeu como chegar até Rapunzel. Em uma noite, resolveu subir e pediu a jovem em casamento. Inicialmente, a moça assustou-se, mas, encantada com o sentimento e com a beleza do príncipe, logo aceitou o pedido. A partir daquele dia, todas as noites o príncipe ia até a torre e levava uma meada de seda a Rapunzel, para que ela tecesse uma escada de pano e, assim, pudesse descer para, juntos, fugirem em seu cavalo.

O fato de tecer a escada de seda indica, nesse sentido, preparação para a vida fora da torre, o tempo de amadurecimento. Já o encontro das duas personagens, novamente se dá pelo fato de o príncipe ter corrido risco, tal qual o pai no início da história, aliado à persistência. Com olhos do século XXI, diríamos que Rapunzel foi muito ingênua, ao aceitar o convite de casamento do moço e confiar nele, seguindo apenas seu coração: “certamente ele gostará mais de mim do que a velha madrinha” (GRIMM; GRIMM, 1985, p. 15).

Certo dia, porém, Rapunzel foi traída por sua ingenuidade, ao perguntar à antagonista por que ela demorava tanto para subir, já que o príncipe subia mais rápido. Simbolicamente, a bruxa representava um fardo, enquanto o príncipe proporcionava prazer, era-lhe, portanto, leve. A bruxa soube imediatamente que estava sendo enganada e, como castigo, cortou as tranças e abandonou Rapunzel em um deserto. Cortar as tranças simboliza o rompimento entre as duas personagens, a passagem da protagonista para a vida adulta. A partir disso, Rapunzel teria de enfrentar a vida sozinha. Para reiterar essa ideia, a bruxa a abandona no deserto, ambiente que se opõe a tudo que já vivera.

À noite, como de costume, o príncipe apareceu. A bruxa, então, soltou-lhe as tranças. Ao chegar ao topo e receber a notícia do que acontecera com sua amada, desesperado, jogou-se da torre. Ele sobreviveu, mas caiu com o rosto sobre espinhos, que o cegaram, afinal, Rapunzel era a sua luz. Restava ao jovem vagar pela floresta, pois sua vida não tinha mais sentido.

Rapunzel, no deserto, deu à luz gêmeos. Dar à luz em um lugar tão pouco provável, como o deserto, pode representar esperança. E, onde há esperança, há vida. Para alegrar os filhos, ela cantava. Sua bela voz, mais uma vez, tal qual a das sereias de Ulisses, atraiu o príncipe e conduziu-o à vida: ao reencontrar sua amada, reencontrou a luz e teve sua cegueira curada. Por fim, viveram felizes para sempre no reino do príncipe, o que sugere ao leitor que a superação de obstáculos conduz à felicidade.

5 A RELEITURA FÍLMICA ENROLADOS

O filme em questão, como já foi dito, baseia-se em uma história já conhecida pelo público em outro suporte, o livro, introdutor da produção cultural para a criança e uma das primeiras manifestações baratas e acessíveis de entretenimento (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996). Se antes o passatempo das crianças era ouvir contos pela voz de um adulto, hoje elas assistem a filmes em cinemas ou mesmo em outros espaços mais privados, liberando o adulto de dar-lhes uma atenção mais pontual.

A 50ª animação produzida pela Walt Disney Pictures foi a versão fílmica do conto de fadas Rapunzel, que recebeu o título de Enrolados. A narrativa fílmica, todavia, não se limita a reproduzir o conto; apresenta olhares renovadores e novos lampejos de significação ao texto dos irmãos Grimm.

Assim como no conto, não aparece o nome do país ou da cidade onde os fatos acontecem; o filme inicia com a fórmula “Era uma vez...”, assinalando a entrada no mundo ficcional, remetendo a um tempo indefinido, eterno. As cenas iniciais são narradas por uma voz masculina in off, que introduz a história e guia o olhar do espectador, orientando-o sobre o enredo, ao explicar que se trata da história de sua morte, mas acrescenta que, na verdade, a história é sobre uma garota chamada Rapunzel e pede ao ouvinte que preste bastante atenção na imagem de uma velha (a mamãe Gothel e oponente da heroína). A parte introdutória assume postura explicativa acerca do filme.

Importante salientar que esse enunciador fílmico é Flynn, o mocinho que, mais tarde, salva Rapunzel da bruxa. Comparando a animação ao conto, tem-se aí a primeira mudança: na narrativa dos irmãos Grimm. A história chega até o leitor, conforme propõem os estudos de Genette (s/d), por meio de um narrador extradiegético, que não participa da história; enquanto na abertura do filme, ao dialogar com o espectador contemporâneo, o narrador é autodiegético. Flynn, mobilizando o narrador, suscita sua adesão ao universo diegético, usando não apenas o código linguístico mas também o cinético, o dramático e o fonético.

A narrativa fílmica, assim como ocorre no conto de fadas, também parte de uma situação “real”: o livro começa com um casal de camponeses que desejava muito ter um filho; no filme, a rainha está grávida e doente, e, em ambos os casos, a “cura” deu-se pelo poder mágico de uma planta. Na trama atualizada, há uma bruxa velha que usa uma flor mágica para permanecer jovem; ela canta para a flor e rejuvenesce. Os guardas do rei encontram a flor mágica, que a bruxa mantém sob seus cuidados, e com ela fazem um remédio para a rainha, que se cura e dá à luz uma menina. A princesa recebeu o nome de Rapunzel.

Os cabelos da princesa4 eram dourados e mágicos como a flor. Como a bruxa queria sua fonte da juventude de volta e não adiantava cortar os cabelos de Rapunzel - porque eles ficariam castanhos e perderiam a magia -, raptou-a e trancafiou-a em uma torre. Na atualidade, cada vez mais, as pessoas buscam o rejuvenescimento, que, no filme, desencadeia toda o conflito. Desse modo, a ideia que esse produto cultural traz é de que velho é sinônimo de maldade, de feiura, de ser bruxa, enquanto o jovem é sedutor, bonito, corajoso, ou seja, não basta ser bruxa, precisa ser feia e velha. Assim, diferentemente do que ocorre no conto, na animação, a bruxa rouba a criança por causa do poder de seus cabelos mágicos, os quais assegurariam à feiticeira a beleza e a juventude, apesar da idade. Isso evidencia uma atitude individualista por parte da raptora, que não consegue considerar o outro, priorizando a satisfação própria a qualquer custo, buscando a felicidade por meio de um corpo que atenda a determinado padrão vigente de beleza (NOVO; LOPES, 2010).

A tentativa da "bruxa" de reverter um processo biológico natural, o envelhecimento, pode ser compreendido, embora não justificado, a partir do lugar que a velhice ocupa na sociedade contemporânea. Há uma forte tendência a relacionar tudo o que é positivo à juventude, e qualquer aspecto indesejado à velhice. Segundo Medeiros (2004), a juventude tem sido um valor para as pessoas, e a velhice, ou os sinais que remetam a essa fase da vida, algo a ser intensamente evitado. Esse lugar de valor contribui para que as pessoas tenham dificuldade de refletir sobre suas ações, pois está introjetado como um norteador da maneira de se posicionar no mundo, tal como honestidade, fidelidade e outros valores que só serão abalados perante situações críticas que possibilitem um recolocar-se diante de si e da vida. Essa postura remete novamente a Bauman (2008), uma vez que, na lógica capitalista, faz-se necessário tornar-se uma mercadoria interessante para os outros.

Prestes a completar 18 anos e sem nunca ter deixado a torre, a inocente jovem, que tinha um enorme cabelo dourado (21 metros de comprimento), sonhava em deixar seu confinamento para ver as luzes que sempre surgiam no céu no dia de seu aniversário. Luzes, de acordo com Chevalier (1986), simbolizam a vida, a felicidade, são determinantes no enredo, pois são o elemento externo que desperta na inocente moça o desejo de conhecer o novo, mesmo sem qualquer contato humano além da bruxa, ou seja, as luzes aparecem como a possibilidade de salvação.

Como toda princesa Disney e grande parte dos possíveis espectadores, que, na atualidade, costumam ter animais de estimação que consideram amigos, a protagonista tinha um amigo do reino animal, um camaleão, Pascal, com quem conversava e passava seus dias. Esse camaleão - metáfora da transformação sofrida pelos jovens protagonistas - no início da trama, estava entediado e convidou a protagonista para sair da torre e brincar, porém, Rapunzel, obediente e ingênua, afirmou que havia muitas diversões no lugar onde vivia, permanecendo na torre.

Até ter o confinamento invadido por Flynn Rider, o jovem bandido procurado no reino, as cenas mostram a rotina da protagonista. Na narrativa original, a heroína ocupava seus dias cantando. Já no filme, lia, cozinhava, varria, pintava, entre outras ações. Embora a protagonista esteja oculta na torre, desempenha atividades mais ativas, mesclando tarefas práticas a ações culturais, o que vai ao encontro de muitas jovens na atualidade.

Nesta releitura de Rapunzel, que representa uma transição entre o passado e o presente, é possível identificar o quão complexo continuam sendo as relações de poder entre os sexos, aparecendo, de forma sutil, o controle do masculino sobre o feminino. Essa sutileza faz com que tal aspecto passe despercebido para a maioria dos espectadores e, dessa forma, seja mais facilmente introjetado e aceito. A história, embora sendo de Rapunzel, é narrada pela voz de um homem, não pela protagonista ou por alguém pertencente ao universo feminino. No filme, Rapunzel segue impossibilitada de verbalizar sua narrativa.

No entanto, o desejo de ir além do que está posto para Rapunzel também atravessa o filme. A jovem apreciava o céu pela janela e, por meio da pintura, registrava aquilo que observava durante as noites, ora as estrelas, que sempre apareciam, ora as luzes coloridas, que iluminavam o céu apenas no dia de seu aniversário e despertavam-lhe o desejo de sair da torre para apreciar o espetáculo de perto.

Importante considerar que Flynn não era príncipe e, após roubar uma coroa de um castelo e ser perseguido, procurou a torre para se esconder. A história, entretanto, toma outro rumo, e Rapunzel torna o jovem seu prisioneiro e guia. Ele é o responsável pela saída da jovem do confinamento, após um acordo selado entre ambos: ele a levaria para ver o espetáculo das luzes brilhantes, e ela lhe devolveria a coroa de diamantes que escondera. Flynn, ao ver a imagem pintada por Rapunzel, identificou a cena das luzes como as lanternas coloridas e as significou, dizendo que eram largadas em homenagem à princesa perdida.

No decorrer da trama, o guia de Rapunzel contou-lhe sobre sua verdadeira identidade - chamava-se José Bezerra e era órfão. Nas peripécias enfrentadas, a protagonista conquistou cada um dos inimigos de Flynn, ou José Bezerra, e eles se transformaram em aliados para que ela realizasse seu sonho de ver as lanternas de perto. Entre os novos auxiliares, estava o cavalo Maximus.

Entretanto, a bruxa entra em ação mais uma vez e os jovens, novamente vítimas de suas trapaças, acabam se separando. A jovem torna-se, mais uma vez, prisioneira na torre. Com o apoio do cavalo Maximus, porém, o jovem consegue regressar à torre para salvar Rapunzel, quando a bruxa o atinge. Na luta, foi quebrado um espelho, com o qual José libertou Rapunzel, ao cortar seus cabelos, que se tornaram castanhos. Ele acaba morrendo. Mas, assim como no conto, o amor de Rapunzel trouxe o amado de volta à vida, pois, nessa versão da Disney, uma lágrima da jovem cai sobre o rosto do rapaz e restitui a vida dele.

Após diversas aventuras, a princesa e o mocinho puderam finalmente, em paz, viver, no castelo, felizes para sempre. Destaca-se que, diferentemente do que ocorre no conto, em que há amor à primeira vista, no discurso contemporâneo, o amor entre os dois acontece aos poucos, conforme vão se ajudando e compartilhando experiências. A bruxa, por sua vez, virou pó, assim que a princesa perdida teve seus cabelos cortados. Rapunzel sacrifica-se por Flynn e ele sacrifica-se por ela, simbolizando o amadurecimento de ambos. Apesar de uma situação diferente daquela do conto, em que as personagens estão no deserto, os ideais de cura e de salvação permanecem e são protagonizados por Rapunzel. Além disso, Flynn, ao cortar o cabelo de Rapunzel, termina de vez com qualquer relação entre ela e a bruxa; é como se fosse o corte do cordão umbilical, protagonizado pela feiticeira no conto. Agora nada mais os impede de serem felizes (para sempre), ou seja, Rapunzel não é mais a mocinha ingênua e Flynn se regenera, deixa de ser um bad boy. O corte do cabelo de Rapunzel também traz a realidade do envelhecer à bruxa, uma vez que, tal como no mundo real, não há possibilidade de reverter o envelhecimento, tendo em vista que é um processo natural, heterogêneo, finito e irreversível (BALTES, 1987).

A jovem descobre por si mesma que é a princesa perdida, ou melhor, roubada, e volta ao reino, onde assume seu lugar e usa a coroa que lhe pertence por direito e que já estivera em suas mãos quando roubada por Flynn. O mocinho é um homem de ação no filme e também a personagem que sofre mais transformações (inclusive mudança de nome), passando de ladrão interesseiro a herói protetor e, finalmente, a par romântico de Rapunzel e príncipe. Por se tratar de um produto cultural produzido para ser comercializado, possivelmente a inclusão de Flynn tenha se dado para que o filme fosse também apreciado por meninos, que poderiam não se identificar com um filme de princesa.

Juntos, Rapunzel e Flynn passaram por muitos obstáculos, demonstrando que há adversidades no caminho, mas que é possível vencê-las, especialmente com bom humor e persistência. Nesse sentido, o filme oferece às crianças a possibilidade de viver aquilo que a expansão capitalista lhes nega no real: o roubo do espaço e o bloqueio do lúdico, o que Umberto Eco (1976) chama de “estruturas de consolação”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atualidade, deparamo-nos com uma oferta cada vez maior de produções culturais direcionadas ao público infantil, acompanhadas de inovações tecnológicas. Os filmes, nesse sentido, podem ser uma ferramenta útil para o (auto)conhecimento das crianças e para sua inserção no mundo. É importante, assim, possibilitar a interação com produtos culturais que potencializem a imaginação.

Ao analisar o conto Rapunzel e o filme Enrolados, destaca-se que existe uma relação dialógica entre os textos, uma vez que, em ambas as narrativas, têm-se a presença de Rapunzel e da bruxa, assim como da torre, onde se desenvolve grande parte da trama. Nos dois produtos, a bruxa passa-se pela mãe verdadeira de Rapunzel. No filme, contudo, há a bruxa travestida de mãe superprotetora e amável, que busca, aparentemente, o bem da filha, disfarçando seu egoísmo em querer a menina trancada sob seu domínio para se manter sempre jovem, quase uma exigência para continuar tendo lugar na sociedade contemporânea.

Já a Rapunzel do século XXI, é mais determinada e corajosa, o que não seria possível no conto dos irmãos Grimm, por não estar de acordo com os padrões socioculturais da época. No texto fonte, o príncipe escuta Rapunzel e entra para salvá-la. No filme, o rapaz invade a torre para se salvar, esconder-se; o desejo de sair é de Rapunzel. A jovem é ativa, ao contrário de como se mostra no conto, e decide que vai sair da torre, chantageando Flynn, pois escondeu a coroa roubada. Enfim, em Enrolados, a atitude da moça não surpreende e retrata seus interlocutores, que, no geral, já não são tão submissos às vontades dos mais velhos e nem sempre medem as consequências de seus atos, tal qual Rapunzel, ao pensar apenas em ver as luzes que brilhavam no céu e não ponderar as adversidades que poderia encontrar no caminho.

Nesse sentido, a versão fílmica aborda temas que apontam para um novo papel da mulher na sociedade, assim como os extremos da vaidade, a independência e o livre arbítrio. Rapunzel chega a ser uma caricatura do comportamento estereotipado das princesas disneyanas, normalmente belas, magras, meigas, inocentes, mas nada atrapalhadas. O produto cultural contemporâneo, contudo, ainda reitera o silêncio da mulher, ao conferir a voz narrativa da história da princesa a Flynn.

No filme, há a introdução de novos elementos, especialmente porque o contexto de criação de cada produto cultural não é o mesmo, o público-alvo, apesar de ser infantil, é outro, pois a infância atual alterou-se em relação àquela prevista pelos irmãos Grimm, e os recursos de que dispõe a “imagem movente” são diversos. Em contrapartida, continua evidenciando que pode haver amor sincero, que o bem vence o mal e que, no fim, tudo fica bem, explicitando que o filme dialoga com a narrativa do conto e, ainda, com o contexto de produção da obra e os recursos disponíveis para criação.

Todavia, há de se ter responsabilidade ao criar e/ou ofertar esses artefatos culturais às crianças. Os discursos produzidos e disseminados são importantes agentes no processo de subjetivação, moldando formas de agir e de se sentir no mundo, produzindo e/ou reproduzindo modos de viver. Tratam de questões que estão em pauta na vida, quando da sua criação ou abordam conteúdos que dão sustentação à própria condição da vida em sociedade. Atuam, ainda, como potencializadores de processos de socialização, pelos quais temas existenciais, como morte, envelhecimento, amizade, amor, superação, trabalho, são abordados e vão sendo introjetados pelas crianças, os quais contribuirão para a construção tanto de valores como de identidades.

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NOTAS

1 Para Bakhtin, como o interlocutor não é um destinatário pacífico que se limita a compreender o locutor, um enunciado é sempre acompanhado de uma atitude responsiva, ou seja, pressupõe uma resposta do(s) outro(s) a quem o enunciado se dirige. Segundo Bakhtin, “o ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso adota simultaneamente, para este discurso, uma atitude responsiva ativa” (1997, p. 290). Essa atitude pode ocorrer imediatamente após a compreensão de um enunciado como pode também permanecer muda durante um tempo. Entretanto, “cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p. 291). É o que chama de compreensão responsiva de ação retardada.

2 Há várias definições e denominações para o responsável pela enunciação fílmica diferentes da usada neste texto. Metz (1973), inicialmente, defende a existência de um gran imagier externo ao filme, mas, posteriormente, afirma que o filme se narra a si mesmo; Jost (1992) defende a existência de uma entidade antropomórfica responsável pela enunciação; Gaudrealut e Jost (1995) consideram que há um meganarrador, que possui até funções extratextuais; José Maria Paz Gago (2001) institui, ainda, o cinerrador, responsável pela mirada do espectador.

3 A primeira versão do conto foi apresentada em 1812. A versão final, entretanto, os irmãos Grimm apresentaram apenas em 1857. Destaca-se que a versão mais conhecida é a final, com a qual trabalhou-se neste estudo.

4 De acordo com Chevalier (1986), a princesa é a idealização da mulher em relação à beleza, ao amor, à juventude e ao heroísmo.

Recebido: 02 de Junho de 2019; Aceito: 03 de Fevereiro de 2020

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