SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número2APRESENTAÇÃO À SEÇÃO ENSAIO CRÍTICOCIUDADANÍA Y ESCUELA EN EL CONTEXTO DIGITAL índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.2 São Paulo abr./jun 2020  Epub 15-Oct-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p489-500 

Ensaio Crítico

HUMANISMO, EDUCAÇÃO E TECNOLOGIA1

HUMANISM, EDUCATION AND TECHNOLOGY

EDUCACIÓN, TECNOLOGÍAS DE COMUNICACIÓN Y HUMANISMO

i Doutor em Educação: pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutor pelo Institut National de Recherche Pédagogigue de Paris. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP; Professor titular aposentado da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: anchizo@uol.com.br.


RESUMO

O ensaio analisa a construção de um novo humanismo, que assegure os valores e a importância da vida humana na revolução provocada pelos novos meios de comunicação. Apoiado em pesquisa bibliográfica, o texto analisa o sentido histórico do humanismo e suas versões, no decurso do tempo, para reconhecer os desafios atuais, que se impõem aos pesquisadores, com o advento das novas tecnologias, na garantia da relevância fundamental dos valores da vida humana.

PALAVRAS-CHAVE: Educação; Tecnologias da Comunicação; Humanismo

ABSTRACT

The essay analyzes the building of a new humanism, which ensures the values and importance of human life, in the revolution brought about by the new media. Supported by bibliographic research, the text analyzes the historical meaning of humanism and its versions, over time, to recognize the current challenges that are imposed on researchers, with the advent of new technologies, in guaranteeing the fundamental relevance of values of human life.

KEYWORDS: Education; Communication Technologies; Humanism

RESUMEN

El ensayo analiza la construcción de un nuevo humanismo, que garantiza los valores y la importancia de la vida humana, en la revolución provocada por los nuevos medios de comunicación. Con el apoyo de la investigación bibliográfica, el artículo analiza el significado histórico del humanismo y sus versiones, largo del tiempo, para reconocer los desafíos actuales que se imponen a los investigadores, con el advenimiento de las nuevas tecnologías, para garantizar la relevancia fundamental de los valores de la vida humana.

PALABRAS CLAVE: Educación; Tecnologías de comunicación; Humanismo

1 INTRODUÇÃO

O título Humanismo, educação e tecnologia é mais do que um título, é um desafio: somos instados a criar um novo humanismo e uma nova educação, com o incremento exponencial das tecnologias da informação e da comunicação.

O humanismo, com todos os significados e matizes históricos que o termo significou, é, em suma, assumido, neste texto, como a confiança perene no ser humano - o homem e a mulher - como o centro dos significados e a fonte dos valores dos quais dependem as esperanças e a capacidade de construção da vida.

2 O DESAFIO TECNOLÓGICO

A tecnologia trouxe um desafio inesperado: a possibilidade de construção de um novo modo de saber, de viver, de comunicar-se, de aprender e de construir a vida, com a invenção e o uso acelerado de novas tecnologias da comunicação e informação. Concomitantemente, a tecnologia impôs a urgência de reconstruir o modo e a importância de manter a posição ética no valor privilegiado do ser humano, acima de todos os meios, antigos e novos, de realizar a vida humana.

Esse desafio atual renova a questão onipresente em todos os períodos da história, das revoluções científicas, da criação e da expansão dos novos instrumentos e meios, que modificaram e afetaram, profundamente, a vida e o bem-estar humano, e que reflui em todos os contextos dilemáticos da experiência humana. É um desafio que cada geração está obrigada a realizar. As tecnologias da informação e comunicação atualizam, pois, a recriação da vida humana. Embora seja um tema recorrente na história, é preciso ter presente: as tecnologias da comunicação suscitam provocações nunca antes imaginadas.

É, porém, a renovação de um histórico universal, científico, cultural e político que, hoje, interfere e transforma todos os recantos da vida e da cultura dos indivíduos, das sociedades e do mundo globalizado.

3 HUMANISMO NA HISTÓRIA

Essa questão já está presente na grande convulsão científica e cultural da Magna Grécia, quando os meios, o comércio, os transportes e a sociedade, abalados pela profusão de técnicas, de novos meios, de instrumentos, criaram um novo modo de vida. Os educadores, alcunhados filósofos, foram provocados e tiveram de responder à questão: qual o lugar dos seres humanos e da vida humana na sociedade, diante desse inesperado universo infinito de coisas e de descobertas novas?

De modo particular, faz-se presente, em um fato histórico emblemático, e decisivo para a cultura ocidental, o episódio de Salamina. Como avaliar a batalha de Salamina, um dos mais épicos episódios da história bélica? Temístocles e seu pequeno exército derrotam o maior exército da história antiga: Xerxes e todos os seus aliados, que já haviam devastado o Norte da Ática.

Foram os navios, as espadas, as couraças que decidiram a guerra? Ou foi o gênio humano, perspicaz e engenhoso, que forjou a sabedoria necessária para, usando os meios, garantir a vitória com um punhado de guerreiros? Esse episódio dramático está no princípio histórico que forjou o nascimento da democracia grega, origem da democracia euro-ocidental.

Platão ensinara os benefícios do bem saber - a sofia - distinta da mera opinião. O saber é fundamental, pois a confusão entre o sujeito que sabe e o que é ignorante pode conduzir à tirania e à ruína, na vida como na guerra. E Aristóteles completa: a sofia gera o saber bem fazer: a techné. A techné é a sabedoria capaz de fazer: fazer os atos, os fatos para se construir a vida salutar na pólis grega. O bem fazer resulta, pois, do bem saber.

Em todos os períodos históricos da humanidade, a questão do saber e o saber fazer, como um produto novo, engendrado pela sabedoria e pela criação humanas, mudaram os rumos da história, com as mais engenhosas e originais criações do espírito humano. E ensina: sabendo bem fazer, os meios e os fins dos objetos levarão a novas dimensões da vida. Por isso, Protágoras de Abdera, um professor-filósofo, professa, com lucidez peremptória: o homem é a medida de todas as coisas: daquelas que são por aquilo que são e das coisas que não são por aquilo que não são.

Tema reavivado no alvorecer do humanismo do Renascimento, convulsionado pela caducidade das tradições medievais e expansão dos meios do comércio globalizado, com as conquistas náuticas e com os novos meios de viver. O humanismo renascentista reaviva a importância do homem culto na construção da vida burguesa nascente. Tema retomado no alvorecer da idade moderna, com os iluministas repondo a razão universal como princípio fundamental de toda a ação humana e dos valores humanos. Na síntese de Hegel: o mundo e todas as coisas tangíveis ou imagináveis têm realidade, graças à razão humana. Em sua síntese, tudo que é real é racional e tudo que é racional é real, ou seja, é a razão humana - do homem e da mulher - que dá sentido e significado a tudo que existiu, existe ou existirá.

No alvorecer do capitalismo, escapando ao ideário dos fisiocratas, que viam a riqueza como produto da natureza, os economistas ingleses, sobretudo Adam Smith (2009), procuram desvendar a natureza e as causas da Riqueza das Nações: é o volume de bens, terras, castelos, o ouro, que fazem as riquezas? Não, afirma Ricardo (2010), a riqueza é fruto do trabalho humano, gerada pelo trabalho dos habitantes do Estado. São homens e mulheres que constroem os produtos e a riqueza das nações.

Este tema conflagrou todo o século XX: a disputa ideológica, política e militar pela posse e justa distribuição da riqueza e o esforço para criar um novo humanismo, capaz de afrontar a acumulação exclusiva de bens, em favor do reconhecimento dos que produzem essas riquezas. Um humanismo capaz de desvendar a arrogância dos possuidores à custa do trabalho, com todas as consequências, políticas e militares, que animaram os dois conflitos bélicos no século XX.

O trabalho humano, os novos meios de prover a vida, de si e dos outros, dignifica a existência, transforma em bem-estar e edifica a realização pessoal e social da humanidade. Os meios não são os fins, e todo equívoco nessa asserção pode levar multidões aos extremos da indigência, da escravidão material e legal.

4 AS CIÊNCIAS HUMANAS E UM NOVO HUMANISMO

No século XX, o nascimento das ciências humanas foi o grande desafio de reedificar a existência humana nos escombros de duas guerras que devastaram muito mais vidas do que em séculos precedentes. Os meios podem criar um mundo venturoso, mas os fins podem comprometer a vida e a felicidade da existência humana.

O desenvolvimento de novos meios, no século passado, criou fundadas esperanças de construir um mundo novo, pleno de novas possibilidades de recriação do modo de viver; mas, se os fins não são justos, os meios, sem finalidades justas, podem provocar a devastação de multidões humanas.

Foram as interrogações sobre a ventura humana que suscitaram esperanças e coragens para dar nascimento e incremento às ciências humanas, em todo século XX, repondo a questão da vida e dos valores que edificam a felicidade e o bem-estar de homens e de mulheres. Um retrospecto histórico do desenvolvimento e a relevância das ciências humanas no século XX mostra a importância dessas nascentes ciências na construção e na reconstrução da vida humana, arruinada pelas duas grandes guerras (CHIZZOTTI, 2016).

As ciências humanas foram decisivas para repor a relevância da vida e da ventura humana sobre os escombros do engano, da aniquilação brutal com todos os meios de destruição deliberada de multidões inocentes. As ciências humanas nasceram do desejo de restabelecer a primazia da vida humana e da decisão de criar uma humanidade nova. As ciências nascentes e as ciências revolucionadas deram origem a um novo humanismo construído pela educação, pela sociologia, pela antropologia e pelo incremento de todas as ciências humanas, empenhadas na edificação de uma nova humanidade.

O tema do humanismo, que agitou o mundo ocidental capitalista no século XIX e XX, toma um significado muito relevante no século XXI com as novas tecnologias e o mundo da produção, em uma nova fase do capitalismo. Um capitalismo que se tornou global, o único sistema sociopolítico do planeta, abarcando todos os países, nações, instituições e todas as atividades humanas. Será sem perspectiva de uma possibilidade substitutiva, como ocorria no século passado? O domínio planetário do capitalismo foi alcançado por diversas variantes, dentre as quais o desenvolvimento exponencial das novas tecnologias de comunicação e informação.

A vida humana e social foi convulsionada por novos meios e instrumentos que multiplicaram as possibilidades de informação, de transmissão, de conservação, de reprodução e de criação de intercâmbio com a natureza, com as pessoas, com o passado e o presente. Esses novos meios de informação e comunicação permitiram o acesso surpreendente e instantâneo ao acervo de conhecimentos, de bens materiais e simbólicos, de memórias e de diálogos, traduzidos, instantaneamente, em qualquer língua, provocando um impacto inesperado na comunicação e em todas as formas de interação da vida humana.

5 IMPACTOS NO COTIDIANO CIENTÍFICO

São evidentes alguns aspectos que afetam o cotidiano da vida acadêmica: as tecnologias transformaram nosso tradicional modo de conhecer e comunicar, de aprender e de ensinar, de criar e de conservar os conhecimentos, os instrumentos e os meios de interagir.

O livro, por exemplo, discurso escrito por um autor, disposto em partes e posto à venda por um agente, suplantara, no século passado, todas as formas escritas precedentes: o rolo, o manuscrito, o livro de Gutenberg e as obras impressas. Foram construídas, também, grandes bibliotecas e centros de conservação e de disponibilização dessas obras em muitos países. A internet, nascida em 1969, com o nome de Arpanet, e ampliada e difundida na década seguinte, trouxe, inesperadamente, tudo que fora escrito e gravado para um computador disposto à nossa mesa.

O computador criou um novo patamar científico de produção, de disponibilização e de leitura de todo o acervo de conhecimentos produzidos pelo engenho humano, postos em circuitos eletrônicos e, como consequência, nunca se leu e se escreveu e se publicou tanto os textos escritos, as imagens e os sons, como neste começo de século.

Dentre os impactos trazidos por essa revolução, uma delas transmudou a consideração e a avaliação científica dos docentes na atividade acadêmica. Os intelectuais foram, abruptamente, atingidos. Viram mudar o modo de considerar-se o reconhecimento acadêmico: sua reputação científica deixou de ser a reverência pelos títulos e pelos louvores. O prestígio acadêmico tornou-se a quantidade de textos científicos, veiculados pelos periódicos científicos. O que Pierre Bourdieu (2011) anunciara sobre o “homo academicus”, isto é, a porfia do intelectual, para sustentar-se entre os pares em um campo científico, traduziu-se, com o advento da internet, no fragor das disputas pelo prestígio acadêmico, um novo preceito para atribuir-se consideração ao mérito acadêmico entre os pares: a veiculação e a quantificação da produção científica, atestada pelo número de artigos científicos, publicados em periódicos qualificados.

A urgência de garantir o reconhecimento da reputação na vida acadêmica, por meio da difusão de produções científicas, difundidas em periódicos qualificados, tornou-se absoluta. Assim, a internet trouxe um novo padrão de reputação acadêmica e deu azo a um modismo que se tornou internacional, o publish or perish, a compulsão por publicações, por vezes repetitivas, redundantes e pouco criativas, a fim de garantir o renome acadêmico por meio da publicação de textos científicos em periódicos qualificados.

A quantidade de produtos veiculados pelos meios tecnológicos tornou-se um padrão, quase absoluto, na confrontação pelo prestígio acadêmico, à custa de uma corrida aflitiva por publicações, de uma disputa feroz entre os pares e de estratagemas extravagantes de elevação do autorreconhecimento no universo científico.

6 AS TECNOLOGIAS E A EDUCAÇÃO

O advento de uma nova cultura, trazida pelas tecnologias da comunicação, abriu novos horizontes para a educação: o ensino e a aprendizagem, a docência e a pesquisa, os conteúdos e os currículos escolares, a formação e a avaliação, e as finalidades históricas dos sistemas nacionais de educação foram, decisivamente, provocados pelos novos meios de comunicação.

As novas tecnologias, pois, afetaram todos os horizontes da educação; elas, porém, não vieram para obscurecer a finalidade histórica da educação, constrangida, pela sua própria natureza, a criar uma via venturosa para todo educando e a edificar as bases para uma vida humana feliz e um virtuoso convívio solidário.

Nesses novos tempos, foram muitas as vidas dedicadas a construir a vida social. Uma das atividades mais dinâmicas na construção da vida foi e é a educação, estendida, e ampliada, na vida moderna, gratuitamente para todos os cidadãos. Convém que os bens culturais sejam disponibilizados, gratuitamente, para toda a sociedade e a todos deve-se garantir o acesso livre aos bens materiais e culturais por todos os meios, inclusive os digitalizados, para edificar-se um novo modo de viver, de comunicar-se e se conviver. Em suma: uma nova cultura e um novo humanismo, no qual a vida humana constitua a fonte dos valores e as bases para alcançar-se o mais alto grau de sua realização da existência humana.

É possível selecionar os rumores que trouxeram a questão do novo humanismo, provocado pelos novos conhecimentos difundidos pelas novas tecnologias. Em um primeiro instante, a questão de uma nova sociedade foi introduzida por Peter Drucker (2001), um perito administrador, que, extasiado, declarou, em A Sociedade, o começo de uma nova era, denominada por ele, uma nova sociedade do conhecimento.

Apesar do insucesso de universalização equânime dos bens nessa nova sociedade, nas últimas décadas do século passado, o Tratado da União Europeia, consagrado pelo Acordo de Lisboa no ano de 2000, assumiu, como objetivo básico dos países pertencentes ao bloco de nações, que compunham o tratado, tornar o conhecimento um patrimônio universal dos europeus - única garantia de criar um novo sentido comum e solidário, no século nascente, ao menos, entre as nações europeias, frente à crescente hegemonia norte-americana e asiática. O termo ganhou fortuna, com a ideia de que a velocidade de transformação dos novos meios criou uma nova cultura de comunicação, a partir de dispositivos miniaturizados, compactos, disponíveis e transportáveis.

As tecnologias transformaram os textos em imagens: o livro e todo material escrito, gravado ou esculpido, foram digitalizados, e um grande acervo de informações do passado e do presente foi conservado em bibliotecas e grandes centros de preservação de documentos, dispostos em bibliotecas nacionais, em museus e em bases de dados; foram digitalizados e disponibilizados, em grande parte, gratuitamente. As grandes obras atuais e seculares foram digitalizadas e disponibilizadas por meios tecnológicos, graças ao projeto Gutenberg e outros mais que se seguiram. Bibliotecas que tiveram decisiva importância nos séculos precedentes, para a conservação de acervos, digitalizaram, também, todos os documentos e, assim, entraram no circuito tecnológico e puderam estar à frente de qualquer pesquisador, sem que fosse preciso enfrentar os trâmites burocráticos de acesso aos centros de documentação ou mover-se em viagens longas e até impossíveis.

As transformações foram tão céleres e constantes que trouxeram interrogações sobre seus efeitos e suas possibilidades no presente e no futuro. Surgiram os tecnófilos e os tecnófobos, interrogando sobre os efeitos dessa transformação. Os tecnófilos exaltaram esse novo meio de conhecer e de produzir novos conhecimentos. Os tecnófobos argumentaram que os novos meios invadiram o recesso da vida, imantaram a imaginação, criaram múmias ambulantes com seu talismã, à mão, dialogando com suas fantasias particulares. A hostilidade à novidade desses novos meios, porém, tem sido, progressivamente, suplantada pelos benefícios trazidos pelas novas tecnologias.

A nova techné, retomando a noção aristotélica, o modo perfectível de fazer e de comunicar, revolucionou nossa vida nesse começo de século, tendo presente que ela está, também, concentrando, de modo inédito, o saber, a riqueza, os novos processos de acumulação do saber, de apropriação dos bens, e de um modo novo de produzir e de concentrar a riqueza e o poder, movendo, progressivamente, o centro do mundo da informação e do capitalismo para outro eixo geográfico - o Oriente - em processo capitaneado pela China e pela Índia.

7 HORIZONTES DE UMA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

Há dois eixos e efeitos da revolução científica que as tecnologias estão provocando: o incremento da inteligência artificial e a aceleração da concentração da riqueza. Primeiro, as tecnologias avançam na construção da Inteligência Artificial (IA), chamada pela Comissão Europeia de a nova eletricidade, pela similaridade do impacto transformativo que a eletricidade trouxe, no século passado, em todas as atividades humanas. Tanto a inteligência artificial neural, baseada na reflexologia behaviorística e mecânica dos instintos ou a baseada na lógica formal e, sobretudo, a inteligência artificial baseada no conhecimento, trarão um impacto profundo na cultura, na educação e no mercado de trabalho, assim como nas competências requeridas e nas práticas de ensino e de aprendizagem. Por isso, a inteligência artificial tornou-se prioridade cientifica da China, apoiada por grandes aportes de recursos públicos, para alcançar a hegemonia mundial nessa área científica, na próxima década. O desenvolvimento acelerado de novas e originais tecnologias transformará muito nosso atual modo de ensinar, de aprender e toda nossa cultura atual.

Sem criar expectativas hipotéticas ou imaginar um futurismo irrealista, a terceira geração da Inteligência Artificial prevê novos meios e novas aplicações na análise e na translação de processos e de imagens, promoverá a autonomização de automóveis, de trens, de máquinas agrícolas e militares; identificará a qualidade do solos, do clima e dos rios; dimensionará processos produtivos, as colheitas, os custos e os preços; e, enfim, dará nova dinâmica, em tempo instantâneo, às transações econômicas e financeiras e um avassalador meio de concentração capitalista, acompanhada pelo declínio de dois símbolos do capitalismo do século XX: o fim da supremacia do motor à combustão e a derrocada da hegemonia do petróleo, anunciando o fim de um período do capitalismo (MILANOVIC, 2019; BÉJAR, 2019) e o anúncio do nascimento de uma nova era de um novo capitalismo.

8 PERSPECTIVAS EM CURSO

Nesse universo de questões novas, uma interrogação pertinente é identificar se foram os novos meios tecnológicos que provocaram uma mudança social e cultural no modo de vida, na produção científica, na educação e na ciência e, em suma, na construção de um humanismo renovado, ou foram os desejos humanos que, usando novos meios, dinamizaram a produção e, sobretudo, a acumulação em um novo estágio do capitalismo. Em síntese: Foram os meios tecnológicos que promoveram esse novo estágio do capitalismo ou foi a dinâmica do capitalismo que propiciou o surgimento de uma nova cultura tecnológica para extremar a acumulação capitalista?

Uma avaliação consistente não pode desconhecer a força dos desejos, a lógica da produção, a utilidade dos meios para garantir um processo produtivo, apoiado na acumulação capitalista, para elevar as vantagens da acumulação. Os meios tecnológicos foram a pedra angular de uma nova dinâmica da produção e da acumulação capitalista. Não se pode desconhecer que foi o capitalismo renovado que criou novos meios de informações e de circulação financeira e imprimiu uma dinâmica nas informações instantâneas, nos processos produtivos e na dinâmica da acumulação de bens, mas também nas translações instantâneas de riquezas e de circulação de grandes capitais

9 OUTRAS PERSPECTIVAS

Como em outros tempos, as humanidades e a educação ingressam nesse confronto para reconhecer e edificar um novo humanismo no qual os novos meios permitam construir novos e originais meios de vida e todas as pessoas possam ter as informações verídicas para fazer suas opções fundamentais de vida venturosa: construir sua identidade humana, seus meios de realizar sua vida, manter a convicção ética no valor do outro e sua certeza de que a vida é um dom supremo e merece ser bem vivida, partilhada e, sobretudo, ser feliz.

Nesse momento histórico, surge a oportunidade, também histórica, dessa geração, dispondo de novos e inventivos modos de gerenciar as informações, escapar das ilusões propagadas pelos meios de circulação de informações e apropriar-se desses novos e inventivos meios de comunicação, difundi-las por multimeios, para edificar as bases de um novo humanismo. As vidas humanas têm o direito de ter informações fidedignas e meios tecnológicos para edificar uma nova etapa do bem-estar humano, dispondo, para isso, de um grande conjunto de informações que, outrora, compilados e armazenados em grandes edifícios inacessíveis, agora tornaram-se disponíveis sobre uma mesa ou miniaturizados em um iphone, à mão. O iphone, longe de ser um objeto devocionário de culto e de devoção, deve tornar-se um símbolo de edificação de um novo modo de vida - a partilha cotidiana de nossas vidas.

Não convém exaltar o incremento dos meios tecnológicos se eles não favorecerem a realização dos fins de toda vida humana: a participação efetiva nos bens necessários à realização de uma vida digna. O culto dos meios, meramente funcionais, pode extinguir a consciência dos fins de todas as vidas e apagar o objetivo de formar uma nova cultura do bem-estar humano, fundamento de um novo humanismo. Perder a finalidade universal de todas as vidas pode gerar uma hidra tentacular que concentra os conhecimentos e as riquezas produzidas em poucas e cultas mãos. A techné, a arte de bem fazer, não pode restringir-se aos resultados funcionais da ação: se restringir-se às finalidades funcionais do capitalismo e confinar-se ao lucro, passível de ser acumulado indefinidamente, estarão arruinadas as esperanças de um novo humanismo. As novas tecnologias, expressões máximas da arte de fazer moderna, não podem ser apropriadas para a arte de acumulação extrema da acumulação capitalista.

Um novo humanismo supõe, no mundo contemporâneo, que as riquezas produzidas pelo engenho humano devem destinar-se à felicidade de todos e não se restringir àqueles que agiram para alcançar o fim máximo da acumulação do esforço humano, transformado em capital, doravante, financeiro.

A construção de um novo humanismo supõe um esforço criador de utilizar o novo conhecimento trazido pelo incremento e pela difusão das novas tecnologias, criar um caminho virtuoso de repartição justa e universal de um novo conhecimento e uma nova cultura, que se traduza na justa repartição dos conhecimentos e da riqueza produzida por novos e originais modos de recriar a vida.

REFERÊNCIAS

BÉJAR, Ramón Casilda. Capitalismo, crisis y reinvención. Valencia: Tirant Humanidades, 2019. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Tradução Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Revisão técnica Maria Tereza de Queiroz Piacentini. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. [ Links ]

CHIZZOTTI, Antonio. História e atualidade das Ciências Humanas e Sociais. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 15, n. 2, p. 599-613, maio/ago. 2016. [ Links ]

DRUCKER, Peter F. A Sociedade. Barueri: Nobel, 2001. [ Links ]

MILANOVIC, Branko. Capitalism alone - the future of the system that rules the world. Cambridge: Harvard University Press, 2019. [ Links ]

RICARDO, David. On The Principles of Political Economy, and Taxation. The Project Gutenberg, EBook, 31 jul. 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/33310/33310-h/33310-h.htm . Acesso em: 23 abr. 2020 [ Links ]

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. São Paulo: Madras Editora, 2009. [ Links ]

NOTA

1 O ensaio resulta do texto apresentado na cerimônia de abertura do VI Seminário Web Currículo “Educação e Humanismo”, realizada em 04 de novembro de 2019, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Recebido: 24 de Abril de 2020; Aceito: 18 de Maio de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons