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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.2 São Paulo abr./jun 2020  Epub 15-Oct-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p827-846 

Artigos

OS CONTEÚDOS NO CURRÍCULO CULTURAL DA EDUCAÇÃO FÍSICA E A VALORIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS: ANÁLISES DA PRÁTICA PEDAGÓGICA

THE CONTENTS IN THE CULTURAL CURRICULUM OF PHYSICAL EDUCATION AND THE VALUATION OF DIFFERENCES: ANALYSIS OF PEDAGOGICAL PRACTICE

LOS CONTENIDOS EN EL CURRÍCULO CULTURAL DE LA EDUCACIÓN FÍSICA Y LA VALORIZACIÓN DE LAS DIFERENCIAS: ANÁLISIS DE LA PRÁCTICA PEDAGÓGICA

i Doutorado em Educação e Pós-doutorado em Currículo e Educação Física e Livre-Docência em Metodologia do Ensino de Educação Física. É Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde exerce a função de Diretor (2018-2022) e atua nos cursos de graduação e pós-graduação. Coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar: www.gpef.fe.usp.br. E-mail: mgneira@usp.br.


RESUMO

O artigo descreve uma pesquisa que investigou o que é conteúdo no currículo cultural da Educação Física e como ele é abordado. Apoiado nos argumentos do pós-estruturalismo, mais especificamente o papel exercido pela linguagem na produção da realidade, e da noção de diferença cultural extraída do pós-colonialismo, submeteu à análise 17 relatos de experiência produzidos por professores e professoras atuantes na Educação Básica e que afirmam inspirar-se na proposta. Os resultados evidenciam um rompimento com a visão tradicional do conhecimento e das atividades de ensino. Constatou-se que os conteúdos compreendem os discursos verbais e não verbais alusivos às práticas corporais, independentemente da fonte, acessados mediante encaminhamentos pedagógicos diversificados. Devido ao comprometimento ético-político da proposta, as situações didáticas problematizam as narrativas hegemônicas e desconstroem as representações pejorativas sobre as manifestações culturais corporais dos grupos minoritários. Consequentemente, valoriza-se o direito às diferenças com o recurso da etnografia, historiografia e arquegenealogia das brincadeiras, danças, lutas ou esportes tematizados nas aulas.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Física; Currículo; Cultura; Conteúdo; Diferenças.

ABSTRACT

The article describes a research that aimed to investigate what are the contents covered in the cultural curriculum of Physical Education and the way it happens. Supported by the arguments of post-structuralism, more specifically the role of language in the production of reality, and the notion of cultural difference extracted from post-colonialism, it submitted to analysis 17 experience reports produced by teachers working in Basic Education and who affirm be inspired by the proposal. The results show a break with the traditional view of knowledge and teaching activities. It was found that the contents comprise verbal and non-verbal speeches alluding to body practices, regardless of the source, accessed through diverse didactic situations. Due to the ethical-political commitment of the proposal, the didactic situations problematize the hegemonic narratives and deconstruct the pejorative representations about the minority groups’ bodily cultural manifestations. Consequently, it values ​​the right to differences with the use of ethnography, historiography and archegenealogy of games, dances, fights or sports themed in classes.

KEYWORDS: Physical Education; Curriculum; Culture; Content; differences.

RESUMEN

El artículo describe una investigación que tuvo como objetivo investigar cuáles son los contenidos cubiertos en el plan de estudios cultural de Educación Física y la forma en que sucede. Apoyado por los argumentos del postestructuralismo, más específicamente el papel del lenguaje en la producción de la realidad, y de la noción de diferencia cultural extraída del poscolonialismo, sometió a análisis 17 informes de experiencias producidos por maestros que trabajan en Educación Básica y que afirman inspírate con la propuesta. Los resultados muestran una ruptura con la visión tradicional del conocimiento y las actividades de enseñanza. Se encontró que los contenidos comprenden discursos verbales y no verbales alusivos a las prácticas corporales, independientemente de la fuente, a los que se accede a través de diversas situaciones didácticas. Debido al compromiso ético-político de la propuesta, las situaciones didácticas problematizan las narrativas hegemónicas y deconstruyen las representaciones peyorativas sobre las manifestaciones culturales corporales de los grupos minoritarios. En consecuencia, valora el derecho a las diferencias con el uso de etnografía, historiografía y arqueología de juegos, bailes, peleas o deportes temáticos en las clases.

PALABRAS CLAVE: Educación Física; Currículo; Cultura; Contenido; Diferencias.

1 INTRODUÇÃO

Entre os resquícios tecnicistas que assolam a Educação Física escolar consta a preocupação com a sistematização dos conteúdos, aspecto facilmente percebido na abundância de materiais dedicados ao tema. Não são poucos os trabalhos científicos ou propostas curriculares que se propõem a definir uma relação de conteúdos que os estudantes devem aprender. É interessante observar que, na sua quase totalidade, as produções sobre o assunto parecem ignorar a definição mais conhecida do termo. Segundo Gimeno Sacristán (1998), conteúdo é tudo aquilo que ocupa o tempo escolar. Logo, como construção social, o que se ensina extrapola o conhecimento formalizado nos planos de ensino ou nos documentos oficiais. A partir daí, qualquer tentativa de sistematizar a priori os saberes acessados durante as aulas redundará em fracasso, justamente porque, conforme se verificou no presente estudo, o conteúdo, em si mesmo, é algo fluido e volátil, não se deixa aprisionar.

Do ponto de vista da teorização curricular, Silva (2011) denominou “tecnicistas” aquelas propostas que intentam transmitir conhecimentos tidos como inquestionáveis. Herdeiros da tradição moderna, nelas os saberes são organizados conforme a lógica de desenvolvimento daquela área em específico e, para calibrá-los, o nível de maturação psicobiológica dos estudantes opera como fiel da balança. Lopes e Macedo (2011) explicam que essa concepção, baseada na seleção e organização de conhecimentos, vigorou no Brasil até a década de 1980, quando, diante dos movimentos de democratização da escola, passou a ser denunciada como forma de controle social. As propostas que surgiram naquele momento criticavam os conteúdos que a escola insistia em transmitir, pois encontravam-se embebidos na ideologia dominante.

Uma nova virada de mesa aconteceu na passagem para o século XXI, quando outras formas de análise do social passaram a influenciar a produção de currículos. Para Silva (2011), as chamadas teorias pós-críticas (pós-modernismo, pós-estruturalismo, pós-colonialismo, estudos culturais, estudos de gênero etc.) colocam em xeque a própria noção de currículo, pois questionam as metanarrativas da modernidade, denunciam o papel das relações de poder1 na configuração da experiência escolar e, principalmente, operam com outras concepções de cultura, linguagem e conhecimento. Para além da noção antropológica, a cultura passou a ser vista como toda produção de significados constantemente em disputa. A linguagem deixou de ser a representação da realidade para tornar-se um dispositivo que constrói a realidade. Por sua vez, a noção de conhecimento como decorrente do método científico foi substituída como resultado da construção social à mercê de inúmeros vetores de força.

Os currículos das disciplinas escolares foram impactados por essas ideias, e na Educação Física não foi diferente. Surgiu, desse movimento, a chamada perspectiva cultural, culturalmente orientada ou, simplesmente, currículo cultural (NEIRA; NUNES, 2006 e 2009). Em síntese, tal perspectiva busca a formação de um sujeito solidário, aqui entendido como aquele que compreende a importância de toda e qualquer pessoa na sociedade, independentemente da condição de classe, raça, etnia, gênero ou religião, logo, a favor das diferenças. A seleção das práticas corporais que serão tematizadas e os encaminhamentos pedagógicos dão-se sob influência de princípios ético-políticos: reconhecimento da cultura corporal da comunidade, descolonização do currículo, justiça curricular, rejeição ao daltonismo cultural, favorecimento da enunciação dos saberes discentes e ancoragem social dos conhecimentos. O ponto de partida dos trabalhos é sempre a ocorrência social da prática corporal em tela, com o objetivo de promover situações didáticas que estimulem os estudantes à vivência, leitura, ressignificação, aprofundamento e ampliação das brincadeiras, danças, lutas, ginásticas e esportes, tomados como objetos de estudo.

Em pesquisa recente (NEIRA, 2018), ampliou-se o foco dos trabalhos anteriores (NEIRA, 2011 e 2016) para abordar nuances metodológicas que haviam sido anunciadas por Bonetto (2016), Santos (2016), Müller (2016), Oliveira Júnior (2017), Neves (2018) e Nunes (2018). A investigação em questão detalhou e compreendeu a relevância das atividades de leitura das práticas corporais e os efeitos pedagógicos da problematização das vivências e dos discursos sobre as manifestações tematizadas. Os resultados alcançados reafirmam a importância do diálogo com as diferenças e destacam o compromisso político e pedagógico com as práticas corporais dos grupos minoritários.

Essas investigações chegam a mencionar o caráter singular que os conteúdos adquirem no currículo cultural da Educação Física, mas não aprofundam a questão. A constatação dessa lacuna fez surgir o interesse por investigar qual o conhecimento abordado nas aulas e o modo como isso acontece.

2 MÉTODO

A revisão sistemática dos estudos curriculares da Educação Física publicados em periódicos arbitrados entre 1990 e 2013, realizada por Rocha et al. (2015), identificou que a produção científica do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar (GPEF) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) concentra a maior quantidade de trabalhos que abordam a perspectiva cultural da Educação Física. Na consulta ao portal eletrônico do GPEF,2 para além de artigos, dissertações e teses, constata-se a publicação de mais de uma centena de relatos de experiência.

No entender de Suárez (2011), os relatos de experiência revelam uma parcela importante do saber pedagógico construído e reconstruído em meio à multiplicidade de situações e reflexões. Tomando contato com esses documentos, é possível compreender boa parte das trajetórias percorridas por seus autores, as concepções que influenciam sua docência, as certezas e dúvidas que os mobilizam, as ideias que perpassam suas convicções pedagógicas e também suas inquietações, desejos e realizações. A leitura e a análise desses materiais permitem conhecer uma visão da educação escolar bastante distinta daquela comumente veiculada nos meios de comunicação ou oficializada por intermédio dos informes das avaliações padronizadas. O que salta aos olhos é o currículo em ação, narrado justamente por aqueles que planejam, desenvolvem e avaliam o processo.

No ano de 2017,3 os membros do GPEF publicaram 17 relatos de experiências, entre elas 16 realizadas em escolas públicas e 1 em escola privada, todas situadas no Estado de São Paulo: 12 na capital, 2 no município de Sorocaba, 2 em Guarulhos e 1 em Barueri. Com relação às etapas da Educação Básica, desenvolveram-se 9 trabalhos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, 7 nos anos finais e 1 no Ensino Médio. Além disso, 16 documentam experiências no ensino regular e 1 na Educação de Jovens e Adultos.

Os textos elaborados por professores e professoras que colocam em ação o currículo cultural da Educação Física foram tomados como referencial empírico da presente pesquisa. Em seu conjunto, foram submetidos à análise cultural nos moldes propostos por Costa (2000, p. 24), para quem “a tarefa da análise cultural é o exame das significações e valores implícitos e explícitos em certo modo de vida, em uma certa cultura”, ou seja, a análise cultural busca entender como as práticas sociais são vividas e experimentadas pelos sujeitos.

Mediante a leitura da massa documental, os posicionamentos, discursos e saberes foram entremeados e confrontados com a teorização pós-crítica do currículo, com o intuito de melhor compreender as caraterísticas dos conteúdos no currículo cultural da Educação Física e as atividades de ensino que provocam sua emergência.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos relatos de experiência do currículo cultural da Educação Física mostra que os conhecimentos abordados nas aulas emergem à medida que se desenvolve a tematização das práticas corporais. Quando tematiza uma brincadeira, dança, luta, esporte ou ginástica, o professor ou professora emaranha a própria cultura experiencial e as dos estudantes com outros saberes (acadêmicos, do senso comum, populares etc.). No bojo da triangulação promovida pelas atividades de ensino, as práticas corporais são ressignificadas. O fragmento a seguir, extraído do registro da tematização da sofrência com uma turma do 7.º ano do Ensino Fundamental, explicita esse processo:

[...] passei a perguntar sobre as músicas que estávamos escutando. A turma percebeu que o sertanejo sofrência era o mais tocado. Questionadxs sobre o conteúdo das letras, responderam que falam de amor. Analisando os versos, percebemos que a maioria narrava um homem sofrendo de amor por uma mulher. Foi aí que um dos estudantes surpreendeu o grupo dizendo que “essas músicas não me representam, pois eu amo outros meninos”. Muitxs estudantes riram e o chamaram de veadinho. O fato levou-me a propor que buscassem músicas que pudessem representar o colega. Imediatamente, cedi o meu celular para que pesquisassem músicas do sertanejo gay. Enquanto algumxs ficaram quietxs, outrxs disseram “claro, vamos procurar prof”. Ao digitar no Google e no YouTube os termos “sertanejo gay”, apareceu uma dupla chamada Zé Barreiro e Catuaba. Ouvimos várias músicas. Também recorri ao grupo do WhatsApp de professorxs amigxs e perguntei se alguém conhecia alguma música sertaneja com essa temática. A querida amiga e professora Dayane indicou a dupla As bofinhas (RELATO 1).

Como se observa, a Educação Física cultural potencializa o contato com diversos conteúdos, não apenas os hegemônicos e legitimados que preenchem os currículos tradicionais. Se o que se pretende é combater a ascensão do fascismo social,4 não há valores e conhecimentos universais que devam ser exaltados, pois se sabe que essa condição é apenas discursiva e varia de acordo com a posição de poder de quem a enuncia. Um tema é legítimo quando emana da sociedade, o que abre caminho para que as práticas corporais pertencentes a todos os grupos sociais, independentemente da origem, sejam transformadas em objeto de estudo. A tematização das brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, com base em sua ocorrência social, e a problematização dos significados que lhes são atribuídos e postos em circulação por meio dos discursos objetivam imergir os estudantes nas águas da realidade.

Entre outros casos, o registro elaborado pelo professor que tematizou as brincadeiras com fantasias no 1.º ano do Ensino Fundamental demonstra que a efetivação desse processo depende de medidas analíticas e propositivas.

Na aula seguinte levamos tal consideração para uma conversa com todo o grupo e notamos que vários outros alunos da sala possuíam a mesma opinião da princesa, “uma personagem branca e magra”. Começamos a pensar em maneiras de conversar sobre o tema e instrumentos e materiais que pudessem ser utilizados. Por recomendação de uma professora da escola, recorremos ao livro infantil O capitão e a sereia, onde, nas ilustrações, a sereia é representada de uma maneira diferente daquela exposta pelas crianças: “era negra e não era magra”. Além disso, buscamos imagens que representassem as personagens de sereias e princesas de diferentes maneiras. Numa das aulas, fizemos a leitura do livro e focamos a discussão nas imagens da sereia. Muitas crianças deram risada e consideraram aquela sereia feia. Discutimos então sobre quais motivos nos levaram a pensar que ela era “feia” ou “engraçada”. Percebemos, mediante o diálogo e a leitura de outras imagens, que os diferentes textos e discursos apresentados às crianças durante toda a sua vida não representavam a sereia, e nem mesmo a princesa, da forma como aquele livro fazia. Muito pelo contrário. Além disso, tentamos compreender que a representação da sereia e da princesa não são as mesmas em todos os lugares e em todas as culturas, e aquilo que consideramos “feio” ou “engraçado” em uma determinada cultura, pode não ser em outra. Por isso, recorremos a outros materiais e fizemos a leitura de imagens de princesas africanas (RELATO 2).

As atividades de ensino culturalmente orientadas descrevem e examinam pontos de vista a favor e contra. Cada qual sofre influências das posições de lealdade aos grupos que pretende servir. Uma vez que não existem categorias individuais de significação, liberdade ou razão, pois são disseminadas pela linguagem e influenciam a configuração das subjetividades, a solidariedade desponta como referência para análise ideológica e se constitui no fundamento da tarefa educacional (NEIRA, 2016).

Na condição de artefato cultural, qualquer prática corporal veicula concepções que, sem a devida atenção, insuflam tendências segregacionistas ou integracionistas, que tanto podem reforçar o preconceito e a injustiça social quanto valorizar o direito à diferença (NUNES, 2018). Cabe ao docente e aos discentes analisar os signos do poder que impregnam as manifestações, examinar as relações de dominação e subjugação envolvidas e, consequentemente, observar quais identidades são exaltadas e quais são menosprezadas. Do relato de experiência de tematização do basquete no 1.º ano do Ensino Fundamental abstrai-se que a leitura crítica evita a fixação de significados de um grupo e suas práticas.

Na semana seguinte, contamos com a presença da Sarith Anischa, ex-atleta de basquete, irmã de outro atleta, Arthur Pecos (melhor sexto homem do NBB Caixa 16/17 pelo Paulistano) e atualmente técnica e responsável pelo projeto de basquete do Pirituba F. C. Logo que ela entrou na sala, alguns estudantes disseram que ela era pequena se comparada à Marta.5 Ela mede 1,60 m. Foi então que, após se apresentar, ela problematizou os corpos que atuam no basquete, explicando que o tamanho pode interferir na posição que x jogadorx ocupa na quadra e que pessoas pequenas ajudam o seu time em jogadas rápidas, por exemplo. Sorridente, disse que ao dar instruções para xs atletas solicita que elxs fiquem sentadxs para que possa ser vista e ouvida. Segundo ela, há diversos corpos atuando de forma diferenciada no basquete e suas funções são distribuídas a partir de suas qualidades físicas, técnicas, motoras, entre outras. Seu posicionamento contribui para desnaturalizar representações do tipo “pessoas pequenas não jogam basquete”, “basquete é para fortes”, abrindo espaço para novas possibilidades (RELATO 3).

Além de abrir espaço e assinalar os saberes que tradicionalmente foram renegados, a Educação Física cultural traz para o debate a variedade de significados atribuídos às práticas corporais e a quem delas participa. As representações elaboradas sobre os grupos minoritários e suas manifestações culturais precisam ser identificadas e examinadas, pois qualquer produção discursiva que desqualifique algo ou alguém contribui apenas para afirmar determinados grupos e negar outros, levantando muros entre as pessoas. Se forem transformadas em objeto de análise durante as aulas, será possível pontuar as origens desses significados, a serviço de quem se encontram e, o que é mais importante, desnaturalizá-los.

No processo de identificar a formação social das relações assimétricas, professor ou professora e estudantes terão, nos diferentes contextos históricos, elementos para análise crítica dos mecanismos de subjugação. Quando, por exemplo, as questões de gênero presentes na ginástica rítmica (RELATO 4), de etnia que perpassam o samba (RELATO 5), de religião que contaminam o maracatu (RELATO 6) e de classe que atravessam o tênis (RELATO 7) foram problematizadas nas aulas, os estudantes puderam identificar e examinar os aspectos que envolvem as práticas corporais para além da mera vivência. Eles passam a perceber nas situações observadas a construção, a afirmação e a exclusão de determinadas identidades. Infere-se, portanto, que a problematização dos marcadores sociais das diferenças presentes nas brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas fornece elementos importantes para compreender o funcionamento dos mecanismos regulatórios que formatam as opiniões das pessoas a respeito de si mesmas, das demais e de tudo o que as cerca. As mais variadas formas de discriminação contidas nos textos culturais (televisão, internet, livros, reportagens, propagandas etc.) não podem ser ignoradas, pois divulgam, o tempo todo, concepções de beleza, corpo, saúde, sexualidade, mulher, homem, ginástica, dança, esporte etc. que interessam a determina classe, etnia, raça, gênero e orientação sexual.

À mercê de uma indústria cultural disseminadora de significados que atendem aos interesses neoliberais de consumo e impõem padrões estéticos e performáticos no tratamento das práticas corporais, durante a tematização da dança sertaneja em uma turma do 4.º ano do Ensino Fundamental, a professora propõe a análise de como isso acontece e quem se beneficia, o que equivale a afrontar o pensamento hegemônico. Trata-se de uma forma de ação e luta política da qual o docente não pode abster-se. Afinal, como lembra Costa (2010, p. 146), “seremos cúmplices se permanecermos omissos”.

Mas a resistência em relação às vivências prosseguia: “Tem sanfonas e berrantes no sítio do meu avô, meu pai gosta de sertanejo, mas eu não”. Enquanto isso, outros alunos traziam passos que já conheciam ou pediram que os familiares lhes ensinassem. A partir daí, criavam coreografias, inspirando-se nos vídeos que mostravam danças agitadas, lentas, com giros, sem giros, nos bailes em frente a igrejas e nas baladas de diferentes épocas. Percebendo que as músicas eram diferentes, uma aluna perguntou: “quais são os tipos de sertanejo?”. Repeti a pergunta à turma, que respondeu com base nas músicas ouvidas: • Arrocha - Pantera cor de rosa; • Universitário - Camaro amarelo; • Romântico - Tudo que você disser; • Ostentação - Camaro amarelo. Após pesquisar o assunto, notamos que não existe um sertanejo “ostentação”, mas que no clipe o cantor ostenta o automóvel. Verificamos que o arrocha está contido no universitário e que existe o sertanejo de raiz, que todos os tipos falam sobre coisas da vida das pessoas, sobre seu contexto social. Traçamos uma linha do tempo mostrando como o sertanejo se modificou e como seria difícil elaborar uma classificação. Discutimos sobre os instrumentos que utiliza, as influências musicais e seus contextos sociais, entrelaçando tudo com os vídeos assistidos anteriormente. Buscamos apoio na obra De caipira a universitário, de Edvan Antunes. O autor explica a emergência do estilo e sua transformação de caipira a universitário, passando por raiz e romântico. Também abordamos a questão da mulher na música e as principais cantoras que penetraram num universo exclusivamente masculino (RELATO 8).

Engana-se quem pensa que a desigualdade, o preconceito ou a injustiça social interessam a alguém. Todos os grupos presentes nas instituições escolares precisam se unir na luta comum pelo fortalecimento da democracia. Uma pedagogia que ajuda a entender a produção das diferenças e apreciar os princípios da equidade não constrói consensos, pois prefere a noção de solidariedade, conceito bem mais inclusivo e transformador (NEIRA, 2019). Neves (2018) apurou que a reelaboração dos significados no currículo cultural da Educação Física não é exclusividade de uma atividade ou outra, pois, desde o início dos trabalhos, os alunos e alunas entram em contato com significados variados das práticas corporais e das pessoas que delas participam. É um equívoco supor que uma determinada visão sobre as coisas do mundo não possa ser alterada durante as vivências ou mediante a fala dos colegas de turma. O estudo citado reposiciona a importância das situações didáticas culturalmente orientadas e o papel dos sujeitos da educação no processo pedagógico. Ambos atuam na propagação de significados que podem desestabilizar as representações.

Os benefícios políticos e pedagógicos da valorização das diferenças podem se manifestar por meio da apresentação e discussão, durante as aulas, das concepções dos estudantes e do docente, examinando também a forma como são expressas. A análise dos relatos de experiência evidencia que as atividades de ensino promovem a exposição a um grande número de vozes divergentes, convidando a ver as coisas de outra maneira. O esforço de compreender os esquemas sociais daqueles que pensam e agem de forma distinta possibilita um conhecimento mais profundo dos próprios sistemas de crenças, conceitos e preconceitos. Sousa Santos (2010), por exemplo, exalta o potencial epistêmico das situações didáticas em que as representações dominantes se chocam com as visões dos setores desfavorecidos. Tal interconhecimento provoca a compreensão de outros saberes a partir dos próprios. No fim das contas, não pode haver nada mais nocivo do ponto de vista didático que a concordância silenciosa ou o pensamento homogêneo, isto é, ao apresentar aos estudantes um só ponto de vista sobre as coisas do mundo, corre-se o risco de padronizar as referências de análise, deixando de fora muitas outras possibilidades.

Sem esquecer que qualquer conhecimento sempre enfrentará outras formas de conhecimento, Bhabha (2014) explica que o trabalho nas fronteiras da cultura acaba por gerar a necessidade da tradução ou da negociação. No terreno pedagógico, isso significa combater a guetização dos conhecimentos constatada no tratamento exótico ou folclórico destinado a determinadas práticas corporais ou aos saberes de certos grupos. Não foi por acaso que o professor 4 criou condições para que sua aluna relatasse como ela e seu pai confeccionaram uma fita para a vivência da ginástica rítmica; os professores 9 e 10 deram importância à forma como os estudantes brincavam nos momentos livres; os professores 1, 11, 12 e 13 organizaram apresentações dos saberes da turma; as professoras 3 e 5 e os professores 3, 6, 14, 15 e 16 receberam membros da comunidade, cujos saberes anunciados sobre as práticas corporais não figuram entre os conhecimentos científicos.

Essas situações em que se favorece a enunciação dos saberes discentes (SANTOS JÚNIOR, 2020) exemplificam o que Sousa Santos (2010) denomina de pensamento pós-abissal, radicalmente distinto do pensamento abissal. Alicerçado no conhecimento científico, o pensamento abissal divide, regula e submete populações inteiras ao redor do globo. Por outro lado, o pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o Sul, mediante suas epistemologias. O pensamento pós-abissal confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia, porque se baseia na heterogeneidade dos conhecimentos (sendo um deles a própria ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre saberes populares, urbanos, camponeses, indígenas, tradicionais etc., sem comprometer as respectivas autonomias.

A ciência ocidental, fruto da ideologia europeia e do protagonismo masculino das classes abastadas, não é a única fonte à qual se pode recorrer. Os relatos de experiência evidenciam que os saberes relativos às práticas corporais se encontram à disposição nas mídias e nos espaços formais e informais como parques, praças, academias, escolinhas, clubes, centros esportivos, balneários, casas de cultura, praias, instituições de ensino ou qualquer outro lugar em que crianças, jovens, adultos ou idosos se reúnam para vivenciá-las, conversar sobre elas, observá-las ou apresentá-las. A partir dos conhecimentos acessados e devidamente documentados, é possível fazer análises e estabelecer conclusões que, se abordadas nas aulas, enriquecerão o percurso formativo tal como se observa no documento que narra a tematização da luta olímpica no 5.º ano do Ensino Fundamental.

Durante o projeto, buscou-se efetuar uma leitura cuidadosa dos elementos constituintes da luta elencada como temática de estudo. Essa leitura envolveu diversas atividades de vivência e ressignificação da luta olímpica, bem como pesquisa em grupo, análise de registros fotográficos, assistência a vídeos, filmes e curta-metragem sobre aspectos sócio-históricos da luta, entrevista com praticantes da modalidade, reflexões a respeito de algumas representações da prática corporal e produção final de um vídeo sobre as questões levantadas ao longo da tematização. A decorrência de todo esse processo forneceu o acesso a uma variedade de conhecimentos e reflexões que, acreditamos, possibilitou em alguma dimensão a produção de novas percepções e significações, levando as crianças a distinguir as diversas explicações sobre a luta estudada e, mesmo que de modo incipiente, a operar criticamente no que concerne a alguns de seus regimes discursivos (RELATO 17).

Tamanho conjunto de elementos e relações impossibilita a previsão de todas as condições do fenômeno educativo (atividades, respostas dos alunos, surgimento de novas ideias, modificações do contexto etc.), de modo a garantir um só percurso. Daí atribuir ao currículo cultural um caráter aberto, não determinista, não linear e não sequencial; limitado e estabelecido apenas em termos amplos, no qual se tece, ininterruptamente, uma rede de significados a partir da ação e interação de seus participantes (NEIRA, 2019).

Opondo-se à ramificação hierarquizada do saber, a análise dos relatos dá a entender que, na pedagogia culturalmente orientada, o conhecimento é tecido rizomaticamente. A visão rizomática não determina começo nem fim para o processo de conhecer. A multiplicidade surge como linhas independentes que representam dimensões, modos inventados e reinventados de construir realidades, que podem ser desconstruídos, desterritorializados. Conforme Deleuze e Guattari (2000), um rizoma se pauta pelos princípios de conexão e heterogeneidade, ou seja, os pontos de um rizoma podem e devem se conectar a quaisquer outros pontos. As coisas se relacionam. Pensar é estabelecer relações com múltiplos elementos e em diversos aspectos. A análise cria conexões, ligações, pontes de comunicação, evidencia qualidades, define ângulos de abordagem, institui olhares, sempre diferentes de outros. Pedagogicamente falando, o trabalho flui com o ensino e adoção de procedimentos que caracterizam a etnografia, aqui concebida como atividade didática. Para além da pesquisa bibliográfica ou da seleção e assistência a vídeos disponíveis na internet, em quase todas as experiências relatadas, os alunos, alunas e docentes coletaram informações preciosas sobre a prática corporal por meio de observações, relatos, narrativas, entrevistas e questionários com seus atores e atrizes. Na continuidade, discutiram os conteúdos presentes nos materiais reunidos, confrontando-os com as próprias experiências e buscando desvendar aqueles saberes que à primeira vista pareciam encobertos.

No dia agendado, iniciamos o encontro entrevistando o convidado, conhecido como “Alemão da luta”. O wrestler e coach abordou, entre outras questões, sua trajetória nas lutas, as lesões que sofreu ao longo de sua carreira, discorreu a respeito dos países de maior tradição na luta olímpica, sobre os lutadores mais conhecidos, bem como sobre a ausência de faixa de graduação na luta em questão - artefato tradicional em outras lutas, como o judô e o jiu-jítsu. Finalizando a entrevista, explicou o seu trabalho como coach. Praticamente, todos os atletas que o procuram pretendem aprender e/ou aprimorar a luta olímpica por conta do MMA. De acordo com o convidado, a modalidade é base da grande maioria dos campeões do UFC, daí a recente parceria com a organização mundial de wrestling. Como as crianças tinham acessado algumas dessas questões anteriormente, houve boa interação com o entrevistado. O segundo momento do encontro foi dedicado às vivências corporais. O convidado iniciou a aula com exercícios de aquecimento e demonstrou algumas posições em que geralmente se inicia um combate (clinch), que no wrestling é denominado de tie-up - posição em que os lutadores colocam ambas as mãos no ombro do oponente (drive truck) e forçam o peso dos braços para tentar desequilibrá-lo, ou colocam uma das mãos na nuca (collar tie) dele, com o objetivo de trazê-lo mais próximo para controlar seus movimentos. Na sequência, o atleta demonstrou uma série de golpes; alguns deles vivenciados anteriormente nas aulas e outros desconhecidos das crianças (RELATO 17).

Realizada a vivência de mais algumas partidas, nas aulas posteriores voltamos a tratar do acesso do negro ao tênis. Para iniciar o bate-papo com os educandos, levei dois textos: “Tênis e racismo” e “Serena Williams explica alguns aspectos de como o racismo funciona”. Respectivamente, o primeiro destaca a chegada do esporte inglês aos Estados Unidos; sua afirmação como esporte para pessoas brancas; barreiras sociais, econômicas e institucionais que impediam os negros de terem acesso aos clubes dos brancos; o acesso à modalidade, a superação e o sucesso de alguns atletas negros. No segundo texto, Serena Williams comenta algumas de suas experiências - seu início de carreira, preconceitos e dificuldades que os atletas amadores encontram para se profissionalizar na modalidade. Com os textos, os educandos puderam compreender um pouco da luta dos negros para terem acesso ao tênis e serem reconhecidos nesse esporte (RELATO 7)6.

A investigação etnográfica transformada em atividade de ensino multiplica as possibilidades de interagir com outros significados. A análise dos produtos culturais obtidos permite descortinar uma série de preconceitos que permeiam as práticas corporais e dificultam ou impedem sua presença na escola ou em outras instâncias sociais. Ademais, o acesso a modalidades diversificadas de saber desafia o predomínio da estrutura monolítica do conhecimento acadêmico e conecta os resultados das experiências dos estudantes a questões sociopolíticas, suscitando a vinculação entre o que se estuda na escola e o que ocorre fora de seus muros. A experiência de tematização do maracatu na Educação de Jovens e Adultos esmiúça esse processo:

Nessa altura já dispunha de várias informações sobre o assunto [maracatu]. A etnografia realizada me davam condições de problematizar aquelas representações. Havia me aproximado de alguns brincantes e buscava com eles responder às perguntas que emergiram na sala de aula, tal como aquela sobre a rosa branca na boca. Um dos brincantes explicou que no maracatu rural eles fazem isso para representar as baianas que acompanhavam o cortejo, também esclareceu a diferença entre nação e grupo, e a interface da prática com as religiões de matriz africana (jurema, xangô e candomblé) e a religião católica por conta das influências dos colonizadores europeus. A imersão no grupo de maracatu propiciou-me a leitura do cortejo e dos seus códigos e deu-me condições para discutir com os estudantes o contexto de emergência e criação daquela prática corporal (RELATO 6).

Constata-se que pedagogia cultural desatualiza o presente e coleta o vulgar e o trivial para examiná-los de outros ângulos, questionando tudo o que é dito a fim de ultrapassar visões estereotipadas. Inspirar-se nas teorias pós-críticas requer entender que as práticas corporais foram produzidas em um dado contexto sócio-histórico, com determinadas intenções, ressignificando-se com o passar do tempo pelas microrrelações travadas no seio da macroestrutura social. Com o propósito de analisar as razões que desencadearam as mudanças experimentadas por determinada prática corporal e as forças que incidiram nesse processo, docente e discentes convertem em atividade didática tanto a historiografia, conforme se observa nos registros de tematização do caratê e do samba, como a arquegenealogia,7 empregada pelo professor que tematizou o tênis.

A fim de contribuir para um melhor entendimento do caratê, estudamos a história do estilo Shotokan, sem deixar de explicar que existem outros. Percebemos o significado do nome caratê e do seu complemento, “do”, sendo sua tradução para o português: “o caminho das mãos vazias”. Reconhecemos também suas origens chinesas, indianas e japonesas e as mudanças de representação da luta com o passar do tempo (RELATO 14)8.

Naquele tempo, o samba era malvisto e quem o praticasse era perseguido pela polícia. Refletimos como a herança da escravidão marcou ex-escravizados e descendentes, sem trabalho e apoio, com títulos de “vagabundos”, “desordeiros”, “ladrões”… Com a ideologia da classe dominante (branca) ser superior à classe dominada (negros) institui-se a discriminação, o racismo e o processo de exclusão social. A figura do malandro (marginal, esperto), remetida ao sambista, nos instigou a investigar como essa representação foi construída e colada na identidade do brasileiro (RELATO 5)9.

Os textos auxiliaram os estudantes a perceber as diversas modificações que ocorreram ao longo do tempo, desde o jeu de paume até o tênis moderno: as primeiras partidas eram entre equipes, realizadas nos pátios dos mosteiros, e não era utilizado nenhum acessório ou equipamentos nas mãos. Ao longo do tempo, os praticantes passaram a utilizar luvas de couro, bastões de madeira e, finalmente, raquetes. Os textos relataram também a tentativa de alguns reis e da igreja de impedir a expansão desses jogos, quando as partidas passaram a ser realizadas nos castelos pelos nobres e jovens estudantes. Para atender ao entusiasmo esportivo dos burgueses, o jeu de paume passou por modificações e começou a ser praticado em diversos locais. Todas essas mudanças fizeram com que o jogo ficasse conhecido como tênis real ou real, e, por volta de 1870, surgiu uma nova versão portátil, que permitia às pessoas transportar todos os equipamentos (rede, bola e raquete, junto com um folheto de instruções) em uma caixa e praticar o esporte ao ar livre. Essa versão, agora conhecida como tênis, passou a ter o comportamento controlado por seus principais praticantes da classe alta (RELATO 7).

O acesso aos eventuais percursos histórico-sociais da manifestação tematizada tem mais sentido quando se entrecruza com sua presença na comunidade e na vida das pessoas. Com isso, prepara-se o terreno para que as os silenciados possam manifestar-se e ser ouvidos. Seus saberes, posicionamentos e sugestões merecem a mesma atenção que aqueles acostumados à evocação no ambiente escolar. No sentido foucaultiano, trata-se de transformar os saberes sujeitados em saberes das pessoas. Os saberes sujeitados são os conteúdos históricos que foram propositalmente sepultados, disfarçados e mascarados em sistematizações formais. São aqueles conhecimentos desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados, ingênuos, inferiores, abaixo do nível da cientificidade requerida. Foucault (1999, p. 12) não está falando de um saber comum ou do bom senso, “mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade”. São esses os conteúdos que emergem quando o educador ou a educadora estimula os estudantes a explorar os significados que as práticas corporais têm em suas vidas, ajudando-os a perceber o quanto suas condições de aproximação ou distanciamento com relação a uma brincadeira, dança, luta, esporte ou ginástica são marcadas pela história pessoal.

O cotejo do repertório de cada sujeito com a interpretação dos resultados da historiografia, arquegenealogia ou etnografia da prática corporal em foco permitirá situá-la no contexto global, local e pessoal. Esse processo é perceptível nas narrativas docentes. Enquanto um grupo dançou, os colegas observaram e registraram (relatos 1, 4 e 15). O mesmo aconteceu durante a prática esportiva (relatos 3, 7 e 11), experimentação de uma luta (relatos 14 e 17), vivência de uma ginástica (relatos 4 e 12) ou brincadeira (relatos 13 e 16). Os documentos escritos, filmados, gravados ou desenhados foram submetidos à análise coletiva para que os estudantes fizessem a leitura das vivências, acessassem conhecimentos de outras ordens e, também, identificassem como ecoam as visões hegemônicas no interior do próprio grupo. Uma vez registradas, as formas pejorativas de ver as práticas corporais e os grupos que as cultivam foram enfrentadas e desconstruídas por meio de atividades específicas. Afinal, se a intenção é varrer o preconceito e a discriminação da escola e da sociedade, é crucial que todas as pessoas entendam como os discursos que diminuem, maltratam, humilham, menosprezam e desqualificam são elaborados e disseminados, como se verifica na tematização da ginástica rítmica realizada em uma turma do 5.º ano do Ensino Fundamental.

O debate engendrado girou em torno dos discursos preconceituosos que cercam o gênero feminino e do fato de que isso foi algo construído culturalmente pelos sujeitos. Alguns meninos da turma, visivelmente incomodados com aqueles posicionamentos, falaram que as meninas já nascem fracas e “choronas” e que quando fossem trabalhar não aguentariam o trabalho, por isso mereceriam um salário menor que o salário dos homens. Nesse momento, uma menina rebateu com veemência a fala do colega de sala, argumentando que aquela notícia lida por mim dizia que o preconceito contra as mulheres ainda permanecia e que as mulheres ainda sofrem com pensamentos machistas. No calor da discussão, convidei as crianças a refletir e falar sobre algumas situações - que já tivessem vivido ou presenciado - em que elas, ou outras meninas ou mulheres, foram inferiorizadas por serem do gênero feminino. Algumas alunas começaram a contar, sob o olhar atento de toda a turma, algumas situações do cotidiano. Uma delas falou que isso acontece quando algumas meninas querem jogar futebol com os meninos no intervalo e alguns deles não deixam, alegando que futebol é pra homem. Outra narrou que uma vez estava andando de carro com a mãe e um homem em outro carro ultrapassou o sinal vermelho, quase ocasionando um acidente, e atribuiu a culpa da situação à sua mãe, ofendendo-a e dizendo em voz alta que local de mulher não era no volante, e sim na cozinha (RELATO 4).

O excerto supra não deixa dúvidas de que situações didáticas organizadas com o objetivo de desconstruir as representações acessadas pelos estudantes mobilizam saberes de todas as ordens, ampliando em muito o rol de conteúdos trabalhados no currículo cultural da Educação Física. Uma vez que as representações são ilimitadas, dado que abarcam desde as formas de execução de uma determinada prática corporal até sua classificação social, passando pelos eventuais efeitos nos praticantes, os saberes requisitados para desconstruí-las também o são.

4 CONCLUSÕES

A análise dos relatos de experiência elaborados pelos professores e professoras que colocam em ação o currículo cultural da Educação Física indica que não há como prever antecipadamente quais conhecimentos serão efetivamente abordados nas aulas. Em termos práticos, o docente toma nota dos pronunciamentos dos estudantes, organiza uma ou mais atividades para desconstruí-los e, nesse ínterim, recorre a discursos provenientes de variadas fontes. Os detalhes de um caso narrado por uma criança ou as informações contidas em uma notícia de jornal são saberes tão importantes quanto os conceitos obtidos por meio de pesquisas acadêmicas. Nietzsche (1983) compreende o conhecimento como acontecimento, uma invenção sem origem, sempre em perspectiva. Não está na natureza, no mundo ou nos homens e mulheres. Segundo o filósofo, a relação entre o conhecimento e as coisas a serem conhecidas é arbitrária e resulta de processos de dominação. Para Foucault (2001), o conhecimento não se adéqua ao objeto, e, em vez de uma relação de assimilação, o que existe é distância e um sistema de poder. É exatamente nessas relações de poder, na maneira como as pessoas querem dominar umas às outras, que reside o conhecimento.

Apesar do que possam pensar os setores conservadores, aqui considerados como aqueles contrários à transformação do desenho social, a Educação Física cultural não pretende trocar o centralismo da cultura corporal dominante por um centralismo da cultura corporal dos estudantes, muito menos desvalorizar o papel da escola na disseminação do conhecimento sistematizado. O que defende é que os saberes desdenhados ou tergiversados referentes às práticas corporais e seus participantes recebam a mesma atenção que os conhecimentos hegemônicos. Também espera que o capital dominante seja analisado com outros olhares, baseando-se em crenças epistemológicas pertencentes aos setores minoritários. Essa análise não tem intenção de demonizar as práticas corporais elitizadas ou tomá-las como conspiração contra os grupos desfavorecidos. Basta verificar o tratamento sério que o professor 7 destinou ao tênis, a professora 3 dedicou ao basquete e o professor 11 conferiu ao futsal. A proposta deseja abrir espaço para que os saberes historicamente vilipendiados possam dialogar em pé de igualdade com os saberes privilegiados. Incorporados ao currículo, os conhecimentos dos grupos minoritários são traduzidos em valiosos recursos na construção de um futuro melhor para todos, o que equivale a dizer um ambiente coletivo firmado nos princípios da solidariedade e do poder compartilhado. Parafraseando Sousa Santos (2010), não poderá existir justiça social, se não houver justiça cognitiva. Esta, por sua vez, não pode fundamentar-se na mera distribuição do conhecimento dominante. Como se observa nos relatos de experiência examinados, há que se fomentar a interação e interdependência entre os saberes de todos os tipos (hegemônicos, contra-hegemônicos, legitimados, marginalizados) para que o conhecimento seja compreendido como intervenção, acontecimento, e não como representação.

Entretanto, Nunes (2018) não deixa esquecer que intercambiar discursos que “cercam as práticas corporais não é uma tarefa das mais fáceis, requer atitude política e engajamento social, requer um certo gosto pelo conflito, uma vontade de desestruturar uma condição posta como normal” (p. 139). Após escrutinar as narrativas docentes, não resta alternativa a não ser concordar com ele. Os professores e professoras que colocam em ação o currículo cultural enfrentam os cânones da escolarização moderna e da Educação Física convencional quando mapeiam o patrimônio da comunidade, reconhecem seus saberes, favorecem sua enunciação e os incorporam ao currículo. O mesmo comportamento aguerrido transparece quando propõem situações didáticas para desconstruir e combater discursos negativos que invadem as escolas. Desafiam cotidianamente os “guardiões do currículo”10 e os defensores daquela visão de área centrada na execução de movimentos, ao promoverem situações didáticas que escampam da fixação de técnicas corporais ou comportamentos desejáveis. Em todos esses casos, sem exceção, os conhecimentos trabalhados extrapolam a gestualidade, o discurso da ciência, a lógica positivista e a intenção, nada inocente, de fazer valer uma só verdade, coincidentemente, aquela propagada pelos poderosos.

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NOTAS

1 Não se busca identificar o poder em atuação para tentar eliminá-lo, gerando uma situação de não poder. Entende-se que o poder não está centralizado nas mãos de uma instituição ou de alguém e que possa ser tomado, ele ocorre nas microrrelações da sociedade, está espalhado pela rede social, entre as diferentes identidades. Ele se transforma, mas não desaparece. Portanto, tem-se por objetivo combater o poder incessantemente para construir relações transformadas e mais democráticas (FOUCAULT, 1992).

2 Desde 2004, o Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar da FEUSP se reúne quinzenalmente para debater o ensino do componente na escola contemporânea, propor encaminhamentos para a prática pedagógica e analisar os resultados. Procurando colaborar com a produção científica da área, estabelece um diálogo com as teorias pós-críticas. Os professores e professoras participantes desenvolvem experiências didáticas e investigações que abrangem a Educação Básica e o Ensino Superior. Para compartilhar os conhecimentos produzidos e intercambiar trajetórias vividas, o GPEF organiza periodicamente o Curso de Extensão “Cultura corporal: fundamentação e prática pedagógica” e o Seminário de Metodologia do Ensino de Educação Física. Disponível em: www.gpef.fe.usp.br. Acesso em: 12 abr. 2020.

3 O ano em questão foi precedido por um período de estudos sobre a questão da diferença cultural, conforme agenda disponível em: www.gpef.fe.usp.br/index.php/reunioes. Acesso em: 13 abr. 2020. O presente estudo procurou identificar de que maneira essas discussões foram incorporadas pelos participantes.

4 Sousa Santos (2010) cunhou a expressão “fascismo social” como alusão a um regime de relações de poder extremamente desiguais que concedem à parte mais forte o privilégio de vetar a vida e o modo de viver da parte mais fraca.

5 A ex-atleta Marta Sobral visitara a escola a convite das professoras semanas antes.

6 Tematização realizada em uma turma do 5.º ano do Ensino Fundamental.

7 Arquegenealogia é um método que fornece a possibilidade da análise dos contextos de pensamento e do conjunto de verdades que validam ou negam as manifestações culturais. Foucault concebe a arqueologia como um método próprio de investigação e análise exaustiva dos documentos de época em busca de regras do pensamento e suas limitações. Para o filósofo francês, cada momento histórico produz o seu conjunto de verdades e falsidades que se materializam nos discursos e nas relações sociais. Nietzsche referia-se à genealogia como sua forma de estudo: analisar a transformação dos conceitos morais, suas origens e os modos como evoluíram.

8 Tematização realizada em uma turma do 5.º ano do Ensino Fundamental.

9 Tematização realizada em uma turma do 9.º ano do Ensino Fundamental.

10 Alguns relatos descrevem situações de enfrentamento com familiares, equipes gestoras e colegas, vividas pelos professores e professoras com relação aos temas abordados e às atividades propostas.

Recebido: 13 de Abril de 2019; Aceito: 14 de Abril de 2020

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