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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.2 São Paulo abr./jun 2020  Epub 15-Oct-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p847-865 

Artigos

MAGISTÉRIO INDIGENA TAMÎ’KAN: ASPECTOS FORMATIVOS E DESAFIOS CURRICULARES PARA FORMAÇÃO DE FORMADORES E PROFESSORES INDÍGENAS-RR

INDIGENOUS MAGISTORY TAMÎ'KAN: TRAINING ASPECTS AND CURRICULAR CHALLENGES FOR TRAINING INDIGENOUS TRAINERS AND TEACHERS-RR

MAGISORIA INDÍGENA TAMÎ'KAN: ASPECTOS DE FORMACIÓN Y DESAFÍOS CURRICULARES PARA LA FORMACIÓN DE FORMADORES Y PROFESORES INDÍGENAS-RR

Marilene Alves FERNANDESi 
http://orcid.org/0000-0002-6574-3476

Leila Maria CAMARGOii 
http://orcid.org/0000-0003-3920-4943

i Mestranda do Programa de Pós Graduação do Mestrado Acadêmico em Educação da Universidade Estadual de Roraima (UERR) em associação com Instituto Federal de Roraima (IFRR). Professora da Rede Pública Estadual de Roraima. E-mail: marilenefernandes2012@hotmail.com.

ii Doutora em Educação: Currículo, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2016). Pós-doutoranda na UFPA pelo PROCAD/AMAZÔNIA (2019-2020). Professora da Universidade Estadual de Roraima-UERR e da Rede Pública do Ensino do Estado e Roraima. E-mail: apolium522@hotmail.com.


RESUMO

O presente trabalho é fruto dos debates do Grupo de Estudo e Pesquisa “Educação Interculturalidade e Emancipação Humana” - GEEINEH - do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Roraima/UERR. Apresenta algumas considerações sobre os resultados das reflexões feitas no grupo a respeito da educação, relações interculturais e emancipação humana nos currículos da fronteira norte do Brasil. É fruto de uma pesquisa-ação que, por meio de uma oficina de intervenção, procurou coletar informações para este artigo sobre concepções curriculares dos professores indígenas que participam do Projeto do Magistério Indígena Tami’kan. O objetivo inicial era refletir sobre o entendimento dos professores indígenas a respeito do currículo intercultural, de forma que pudéssemos ter elementos para pensar as políticas de formação continuada, a fim de auxiliá-los na efetivação do currículo pretendido na prática das Escolas Indígenas do Estado de Roraima. Mas, com a experiência concreta das oficinas, outras reflexões surgiram, especialmente aos formadores de formadores e foi observado que, muitas vezes, ao adentrarmos o universo cultural dos professores indígenas e de outros coletivos sociais, há necessidade também dos formadores estarem abertos para serem mais “aprendentes” do que “ensinantes”, pois, no que tange ao diálogo intercultural e comunitário, ainda temos muito que aprender com os professores indígenas.

PALAVRAS-CHAVE: Magistério Tamî’kan; Políticas educacionais; Concepções curriculares.

ABSTRACT

The present work is the result of the debates of the Study and Research Group “Intercultural Education and Human Emancipation” - GEEINEH - of the Master in Education of the State University of Roraima -UERR. It presents some considerations about the results of the reflections made in the group about education, intercultural relations and human emancipation in the curricula of the northern border of Brazil. It is the result of an action research that, through an intervention workshop, sought to gather some information for reflection in this article on the curricular conceptions of indigenous teachers who participate in the Tami'kan Indigenous Teaching Project. The initial objective was to reflect on the understanding of indigenous teachers regarding intercultural curriculum issues, so that we could have elements to think about the continuing education policies in order to assist them in the realization of the intended curriculum in the practice of the Indigenous Schools of the State. from Roraima. But in view of the concrete experience through the workshops, many reflections have arisen, especially for the trainers of trainers and it has been observed that often, as we enter the cultural universe of indigenous teachers and other social collectives, they also need to be open to being more 'learners' than 'learners', as far as intercultural and community dialogue is concerned, we still have much to learn from indigenous teachers.

KEYWORDS: Tami'kan magisterium; Educational policies; Curriculum conceptions.

RESUMEN

El presente trabajo es el resultado de los debates del Grupo de Estudio e Investigación “Educación Intercultural y Emancipación Humana” - GEEINEH - del Máster en Educación de la Universidad Estatal de Roraima-UERR. Presenta algunas primeras consideraciones sobre los resultados de las reflexiones que se están haciendo en el grupo sobre educación, relaciones interculturales y emancipación humana en los planes de estudio de la frontera norte de Brasil. Es el resultado de una investigación de acción, que a través de un taller de intervención, buscó recopilar información para reflexionar en este artículo sobre las concepciones curriculares de los maestros indígenas que participan en el Proyecto de Enseñanza Indígena de Tami'kan. El objetivo inicial era reflexionar sobre la comprensión de los maestros indígenas sobre los temas del currículum intercultural para que pudiéramos tener elementos para pensar sobre las políticas de educación continua para ayudarlos, de hecho, en la realización del currículo previsto en la práctica de las escuelas indígenas del estado de Roraima. Pero en vista de la experiencia concreta a través de los talleres, han surgido muchas reflexiones, especialmente para los formadores de formadores y se ha observado que a menudo, a medida que ingresamos al universo cultural de los maestros indígenas y otros colectivos sociales, también deben estar abiertos a ser más 'aprendices' que 'aprendices', en lo que respecta al diálogo intercultural y comunitario, todavía tenemos mucho que aprender de los maestros indígenas.

PALABRAS CLAVE: Magisterio Tami'kan; Políticas educativas; Conceptos curriculares.

1 INTRODUÇÃO

Compreender a educação como um processo de permanente reflexão dos formadores de formadores é um desafio que está posto diariamente, ainda mais quando se trata da produção e formação de professores na perspectiva de um currículo diferenciado, intercultural, e que leve à emancipação humana dos sujeitos que vivem a realidade educacional da Amazônia Ocidental, no extremo norte brasileiro.

Este lócus, marcado e atravessado por múltiplas e distintas fronteiras, não apenas geográficas, físicas, políticas, mas também econômicas, sociais, simbólicas, linguísticas, culturais, étnicas e éticas. Tal desafio não é fácil e demanda constantes reflexões a respeito do papel de formadores para trabalhar em espaço plural e de múltiplas identidades em confronto.

Estas questões têm sido fruto de reflexões e debates no Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Educação, Interculturalidade e Emancipação Humana - GEEINEH, do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Roraima - UERR em associação com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima - IFRR. O grupo de pesquisa estuda o currículo na Amazônia numa perspectiva emancipatória, intercultural e de fronteiras e que atenda aos muitos sujeitos e à diversidade presente no estado de Roraima.

Ao abordar o currículo, além de discutir qual currículo, qual conhecimento e qual cultura, também se tem debatido sobre quem está formando o professor que trabalha na perspectiva emancipatória. Neste sentido é que o presente artigo toma como referência nossa experiência como formadora de professores indígenas do projeto Magistério Indígena Tamî’kan, em Roraima, no Brasil.

Desse modo, a partir de uma experiência formativa no Magistério Indígena Tami’kan, desenvolvido pelo Centro de Formação dos Profissionais de Educação do Estado de Roraima (CEFORR), discutimos os aspectos formativos e os desafios curriculares, sendo que estes são muito mais desafiadores para a formação de formadores do que para a formação de professores indígenas em si.

Esse processo de mão dupla pressupõe que antes de educar o outro, é preciso se educar para aprender com as diferentes culturas e visões de mundo, de modo a iniciar o caminho do diálogo com a diversidade. Esse trabalho demanda educar-se para ouvir o outro, buscando o significado do que o outro fala, as motivações, as implicações do que está sendo verbalizado durante o processo de formação para, desse modo, compreender as diferentes lógicas culturais, de forma que se possa estabelecer uma relação dialógica no ato de educar e ser educado também.

Começamos o artigo traçando um panorama sócio- histórico para possibilitar a compreensão referente às lutas políticas dos povos indígenas no Brasil em torno de seus direitos, especialmente para a manutenção da cultura e para uma educação formal específica e diferenciada. Em seguida, destacamos, de forma sucinta, o contexto histórico da luta dos povos indígenas em Roraima por meio de suas organizações, em busca de uma educação de qualidade e que atenda às necessidades e diferenças culturais.

Por último, tratamos de uma experiência formativa desenvolvida por meio de uma oficina com professores indígenas em formação, durante um curso de magistério destinado especificamente para esse público. Nessa oficina, se buscou compreender concepções sobre currículo e interculturalidade, de modo a fazer uma autorreflexão, enquanto formadores, dos desafios para realizar, de fato, o diálogo curricular entre culturas.

2 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA FRONTEIRA OCIDENTAL BRASILEIRA

Historicamente os povos indígenas no Brasil foram submetidos a um modelo de educação que serviu para descaracterizar e destruir seu modo próprio de viver. O currículo formal desconsiderou totalmente os conhecimentos destas populações, impondo uma visão eurocêntrica de mundo e, negando os saberes indígenas, suas culturas e tradições.

O que a escola chamou por muito tempo de conhecimento científico, tem sido apenas um recorte do conhecimento existente e que privilegiou as formas de ver o mundo baseadas apenas nas perspectivas europeia e americana (CAMARGO, 2016), caracterizado por um currículo monocultural, monolinguístico e integracionista.

Todavia, conforme observou Turner (1993, p. 43):

Muitas comunidades nativas têm oferecido uma resistência eficaz contra as agressões provenientes da sociedade nacional, aumentando sua população e demonstrando uma surpreendente capacidade de incorporar e dominar aspectos da cultura nacional, que vão da língua portuguesa à medicina e às telecomunicações, sem que com isso esteja ‘perdendo sua cultura’.

A luta empreendida nos anos 1970-1980 culminou com o reconhecimento e a garantia dos direitos dos povos indígenas na Constituição Federal de 1988- CF/1988, posteriormente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96) e nas Diretrizes Curriculares da Educação Escolar Indígena (1998), sendo garantida uma escola diferenciada, bilíngue, multilíngue, intercultural e comunitária. Observa-se, porém que, mesmo com a garantia desses direitos nos documentos oficiais, não houve efetivação de fato da maioria deles. Passados mais de trinta anos desde a promulgação da Carta Magna do País, a questão ainda está, em grande parte, presente apenas nos discursos das pautas educacionais na Amazônia Ocidental. Havemos de nos perguntar: como superar os currículos monoculturais, monolinguísticos e integracionistas, ainda hegemônicos?

Santos (2007) afirma que esse tipo de currículo, especialmente em Roraima, ocorre porque os povos indígenas não conseguiram romper com elementos tradicionais da educação imposta desde o século XVIII nas comunidades. Havemos de discordar em parte com Santos e percorrer um caminho inverso e levantar a seguinte questão: são os povos indígenas que não romperam com a educação tradicional a eles incutida durante séculos, ou são as políticas de formação de professores formadores que ainda estão presas a um currículo com visões eurocêntricas e americanas?

Neste sentido, propomos refletir sobre a experiência educacional dos povos indígenas no Brasil e a luta dos professores indígenas por um currículo diferenciado e específico em Roraima, ou seja, um currículo que realmente esteja voltado para um conhecimento científico sem perder de vista os conhecimentos ancestrais e tradicionais dos povos indígenas. A luta destes professores vem sendo mencionada como referência no Brasil desde os anos 1990. Todavia, os professores indígenas ainda enfrentam muitos desafios para relacionar e materializar o que é posto nas Diretrizes da Educação Escolar Indígena com a prática de sala de aula.

Para melhor compreensão da realidade do estado de Roraima, vamos situá-lo geograficamente. Localizado ao Norte do Brasil, faz fronteira internacional com a República Bolivariana da Venezuela e a República Cooperativista da Guyana e fronteiras nacionais com os estados do Pará e Amazonas. Além das fronteiras físicas e geográficas, também é marcado por outras fronteiras: as étnicas, linguísticas, simbólicas e culturais.

De acordo com o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram registrados no Brasil 896.9 mil indígenas, com 36,2%o deste total em área urbana, e 63,8% em área rural. Também foram contabilizadas 274 línguas indígenas faladas, excluindo as originadas de outros países, denominadas genéricas de troncos e famílias linguísticas.

O mesmo Censo revela ainda que o estado de Roraima, com 32 terras indígenas, abriga populações das etnias Makuxi, Wapixana, Ye'kuana, Yanomami, Taurepang, Wai-Wai, Waimiri-Atroari, Patamona, Maiongong e Ingarikó, representando 11% da população. Desse modo, Roraima é, proporcionalmente, o estado com maior percentual de indígenas em sua população. Os dados revelam que, ao contrário do que se previa sobre o desaparecimento dos povos indígenas no Brasil com sua diluição na cultura nacional, estes têm resistido e lutado por suas especificidades enquanto povo, mantendo vivas suas culturas e tradições diante do processo histórico de sua negação.

Historicamente os povos indígenas foram submetidos pelos colonizadores a projetos pedagógicos baseados na assimilação e integração destes à sociedade nacional, projetos estes que desvalorizaram suas formas de vida e língua, levando a negação dos modos de vida e o assujeitamento à cultura ocidentalizada. Munduruku (2012) destaca que a catequese e a educação ministrada aos povos indígenas se constituíram em grande violência praticada contra esses povos e sua cultura.

Essa “educação” imposta por um processo não pacífico foi responsável pelo genocídio de muitos povos, por meio da imposição de valores sociais, morais e religiosos que tiveram como consequência a desintegração e a destruição dos alicerces das sociedades indígenas. Embora subjugadas pela violência colonizadora sobre suas culturas, muitas sociedades indígenas se opuseram a esse processo de destruição. A resistência contribuiu para que fossem mantidas vivas suas culturas indígenas. Todavia, mesmo diante de tantas adversidades, os povos indígenas resistiram à dominação e muitos deles sobreviveram no Brasil.

Embora a cultura indígena tenha sido negada por alguns grupos, os povos indígenas deram uma grande contribuição à sociedade brasileira em todos os sentidos: culinária, saberes para as indústrias farmacêuticas e os princípios ativos de 70% dos remédios hoje consumidos (SHIVA, 2001). Se por um lado esse encontro de culturas e conhecimentos indígenas enriquecem as experiências, por outro, segundo Paladino (2012), também produzem tensões em razão do choque entre mundos culturais diferentes, onde há uma tentativa de dominação sobre o outro. Também é necessário destacar a existência entre as comunidades indígenas de uma diversidade de culturas internas e formas de pensar e estar no mundo, as quais não têm merecido destaque nas produções curriculares; e outra cultura externa baseada nas políticas financiadas pelo capital econômico.

2.1 O Estado, os Indígenas no Brasil e o Pan-Indigenismo

Somente no início do século XX o Estado brasileiro cria o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em 1967. Embora essas instituições tenham sido criadas como forma de proteger os indígenas, na verdade a finalidade das políticas indigenistas era converter e integrar os indígenas à sociedade nacional.

A resistência dos povos indígenas contra a política assimilacionista do Estado brasileiro é registrada mais fortemente nos anos 1970. Povos indígenas de diferentes etnias, na América Latina, se uniram politicamente no que ficou conhecido como movimento Pan-Indigenista, com a finalidade de lutar por seus direitos, culturas, terras e modos de vida (ORTOLON MATOS, 1999).

A organização política dos povos indígenas fez com que os constituintes reconhecessem, na Constituição Federal de 1988, os direitos destes povos. No artigo 231 da Constituição Federal de 1988-CF/88 ficou estabelecido que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A CF/1988 assegurou, também, a garantia de uma Educação Escolar Diferenciada, Intercultural, Bilíngue e Comunitária, referenciada num conjunto de documentos legais, desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96 e legislação específica destacando a importância da valorização da cultura dos povos indígenas na escola, garantido o uso da Língua Materna, além da Língua Portuguesa, bem como o respeito aos processos próprios de aprendizagem.

O Art. 3º da Resolução do Conselho Nacional nº 3, de 10/11/1999 (BRASIL, 1999), determina que a organização das escolas indígenas considere a participação da comunidade na definição do modelo de organização e gestão, bem como estruturas sociais, práticas socioculturais e religiosas, formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de ensino-aprendizagem, além de atividades econômicas.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o Referencial Curricular Nacional da Educação Escolar Indígena (RCNEI) (BRASIL, 1998), os referidos documentos se apresentam, ainda, como um instrumento para auxiliar a discussão e reflexão da Educação Escolar Indígena (EEI).

Em um primeiro momento, os documentos procuram tratar da base legal e da fundamentação teórica para orientar as políticas públicas educacionais sobre a estrutura e funcionamento das escolas indígenas. Enfatizam que essas escolas devem ser comunitárias, geridas pelas comunidades indígenas, de acordo com seus projetos, suas concepções e seus princípios. Destaca a interculturalidade como um princípio e o reconhecimento e manutenção da diversidade cultural e linguística, mas que se promovam experiências socioculturais, linguísticas e históricas diferentes, não se considerando uma cultura superior à outra.

Contudo, questiona-se: como promover um currículo diante dessas mudanças nas finalidades do processo de escolarização com os povos indígenas? Faustino (2008) nos instiga a pensar o que propõem as políticas públicas voltadas à educação nacional, em geral, e à Educação Escolar Indígena (EEI), em particular, qual seja:

Após séculos de políticas de colonização, conquistas, evangelização e de genocídios que exterminaram milhares de pessoas e civilizações, deparamos, nas últimas décadas, com a generosa oferta do reconhecimento, do respeito e da diversidade cultural, mutação ocorrida sem que as relações sociais tenham sido alteradas (FAUSTINO, 2008, p. 15).

Como observa Faustino (2008), a permanência das relações sociais indica que as contradições entre a teoria e a prática, entre os documentos legais, postas na realidade, demonstram ainda os limites e desafios para materialização, de fato, de uma educação escolar indígena, intercultural, diferenciada, bilíngue e multilíngue.

2.2 Desafios à Educação Escolar Indígena em Roraima

Com as políticas educacionais promulgadas a partir da década de 1990 referentes à EEI, os povos indígenas têm sido atores políticos ativos, buscando ser sujeito da própria história. Uma luta nada fácil, feita de avanços e retrocessos. Neste sentido, a implementação de ações práticas ainda é um desafio que precisa ser superado no campo da epistemologia, da teoria do conhecimento e da reflexão sobre a natureza, o conhecimento e as relações entre os sujeitos e a prática pedagógica.

Paladino (2012) nos convida a gerar novos processos de intervenção intelectual que poderiam incluir outras estratégias, a recuperação, a valorização e a utilização dos saberes indígenas, mas não como algo ligado a uma localidade e temporalidade do passado, e sim como conhecimentos que têm contemporaneidade para compreender, aprender e agir em um tempo presente em contínua mudança.

Conforme a autora, não se trata apenas de argumentar pela simples relação entre grupos à prática ou conhecimento, mas de refletir e reconhecer a importância de viabilizar e questionar as estruturas impostas dentro de uma lógica de mercado. Questões como conhecimento, cultura, individualismo, competição versus educação comunitária, conhecimento coletivo e interculturalidade começam a se contrapor em termos de valores educacionais.

Nesse contexto, a cultura global parece triunfar sobre as culturas locais, pela razão de que no mundo globalizado prevalecem o capital e as mercadorias que atravessam as fronteiras. Desse modo, o que está em jogo no cenário globalizado não é apenas a luta pela sobrevivência, material e física dos povos indígenas, marginalizados por uma sociedade injusta e excludente, e sim a luta pela própria possibilidade de existência e resistência.

Fleury (2012) diz também que a educação multicultural acabou se constituindo em arcabouço acadêmico intelectual, ou seja, o autor se reserva o direito de usar o termo multicultural para a designação ou constatação do fato que resulta dos conflitos das mais diferentes ordens de etnia, religião, cultura, tradição, hábitos, movimentos migratórios e também dos movimentos de transformação social existentes em praticamente todas as sociedades, mesmo que sejam de primeiro ou terceiro mundo.

Entretanto, podemos pensar em possibilidades de uma escola baseada nos princípios legais tratados nas Diretrizes Curriculares Nacionais, que dão ênfase a uma escola intercultural. Nesse caso, pensamos ser oportuno entender o conceito de interculturalidade pensado no contexto da América Latina.

Nesse sentido, Candau (2010) afirma que se faz necessário uma abordagem intercultural crítica, a fim de construir outros caminhos epistemológicos, onde os conhecimentos subalternizados possam estar numa relação de igualdade com os conhecimentos ocidentais. Segundo Candau (2008, p. 78), podemos conceituar interculturalidade como perspectiva de promover uma educação para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais.

3 A LUTA DOS POVOS INDÍGENAS DE RORAIMA POR DIREITOS À EDUCAÇÃO

A luta pelos direitos a uma educação diferenciada em Roraima tem como marca a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR). Esta organização teve origem na Missão Surumu, Centro de Educação ligado à Igreja Católica de Roraima, em 1990, onde quatro povos, Macuxi, Wapichana, Taurepang e Ingarikó, uniram-se com a finalidade de lutar por uma educação de qualidade para os povos indígenas de Roraima, criando a OPIRR (REPETTO, 2008).

A primeira reunião extraordinária na Missão Surumú, no município de Pacaraima, ocorreu nos dias 26 a 28 de outubro de 1990, contando com a presença de 84 (oitenta e quatro) professores indígenas. Repetto (2008, p. 4) informa que o objetivo da OPIRR era:

[...] viabilizar a realização de atividades necessárias ao processo de organização e de encaminhar as reivindicações por uma educação de qualidade para os povos indígenas. Desta forma, gradativamente, foi-se moldando uma nova concepção de educação indígena, na qual a educação escolar é feita prioritariamente por indígenas. Agora se tratava, então, de cunhar uma educação dos indígenas, e não mais para os indígenas, como vinha ocorrendo até então.

A luta política desenvolvida pela organização, a partir de então, conquistou a cooperação de algumas instituições da sociedade nacional, objetivando a formação de professores, o que resultou no projeto implantado em 1994, o Magistério Indígena Parcelado, para formação de professores em nível médio, que formou 470 (quatrocentos e setenta) novos professores indígenas (JULIÃO, 2014; GRUPIONI, 2008). De acordo com Grupioni (2008), a intenção do projeto era construir um currículo, voltado inicialmente para a revitalização da Língua Indígena na educação escolar, específico para a formação dos professores.

Nesse sentido, surgiram novos projetos e, na atualidade, em Roraima os povos indígenas conquistaram cursos de formações específicas. Podemos destacar: Curso de Magistério Indígena em nível médio, ofertado pelo Centro Estadual de Formação dos Profissionais da Educação do Estado de Roraima (CEFORR); e Licenciatura Intercultural em nível superior, ofertado pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) por meio do Instituto de Formação Indígena (INSIKIRAN).

Atualmente o CEFORR oferece três magistérios indígenas, o Tami’kan, o Amokoo IIsantan e o Yarapiari. No que diz respeito ao Magistério Indígena Tamî’kan, cuja experiência vamos descrever a seguir, os indígenas atendidos já atuam, na prática, exercendo a função de professor sem que tenham recebido qualquer tipo de formação em magistério, ou mesmo em nível superior, mas chegam com conhecimentos culturais riquíssimos que trabalham nas suas escolas.

Apesar da oferta de cursos de formação específica voltado para professores indígenas, estes ainda se deparam com grandes dificuldades na prática de sala de aula e têm observado que não basta somente formação específica para pôr em prática um currículo que contemple as especificidades. É necessário mais do que isso, ou seja, uma política educacional que contemple e respeite os anseios dos povos indígenas no sentido de ser realmente voltado para a qualidade do ensino nas comunidades indígenas.

4 UM BREVE HISTÓRICO DO MAGISTÉRIO INDÍGENA TAMÎ’KAN EM RORAIMA

O Projeto do Magistério Indígena Tami´kan é fruto da luta política educacional dos indígenas de Roraima e foi concebido como uma ação político-pedagógica da Divisão de Educação Escolar Indígena-DIEI da SECD/RR, com recursos oriundos do FNDE e é executado pelo CEFORR, ligado à Secretaria de Educação do Estado.

De acordo com a Proposta Pedagógica dos Magistérios indígenas, o Tami´kan surge para atender as necessidades dos professores indígenas que não tinham formação em nível médio, magistério, para atuarem em salas de aula das escolas indígenas. É um curso profissionalizante orientado para oferecer aos professores indígenas-alunos formação específica bilíngue (multilíngue) e intercultural, concebido em uma plataforma curricular correspondente ao Ensino Médio e com complementação de disciplinas específicas na Formação de Magistério Indígena.

As Diretrizes Curriculares do Curso de Magistério Indígena estão embasadas na Convenção nº 169 da Organização Nacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, como é o caso do Brasil que, além de Estado-membro da OIT com assento permanente em seu Conselho de Administração, na Convenção de julho de 2002 aderiu ao instrumento de direito internacional mais abrangente na matéria que trata de garantir aos povos indígenas e tribais os direitos mínimos de salvaguardar suas culturas e sua identidade no contexto das sociedades que integram. Tem base também no Artigo 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9.394/96) que trata da previsão de apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino com recursos ao provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

Atende ao Plano Nacional de Educação, (Lei nº 10.172/2001) e Parecer 14/99, do Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Básica que trata sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Escolar Indígena; da Resolução 03/99 da Câmara de Educação Básica que estabelece, no âmbito da Educação Básica, a estrutura e funcionamento das Escolas Indígenas, reconhecendo as condições de escolas com normas e ordenamento jurídicos próprios, e fixando as Diretrizes Curriculares do Ensino Intercultural e Bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos Povos Indígenas. A afirmação e manutenção de sua diversidade étnica estão respaldadas na Lei Complementar 041/01, que dispõe sobre o Sistema Estadual de Educação no Estado de Roraima, de 16 de julho de 2001, que assegura, nos capítulos 58 a 69, o direito dos povos indígenas a uma educação específica e diferenciada, de qualidade, que respeite e valorize seus conhecimentos, os saberes tradicionais e que os profissionais que nela atuam pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar.

O Projeto de Magistério Indígena atendeu uma demanda de formação inicial de 470 professores indígenas, possibilitando gradativamente a ocupação de espaços nas escolas das terras indígenas. Atualmente, segundo dados da Secretaria Acadêmica do CEFORR, no ano de 2018 o projeto atendeu um total de 200 alunos matriculados efetivamente.

O projeto do Magistério Indígena Tamî’kan traz uma concepção filosófica e metodológica centrada na investigação de aspectos culturais dos povos locais. A Proposta do Projeto Magistério Indígena apresenta-se como um instrumento para auxiliar a discussão e reflexão da EEI em Roraima, propondo ações concretas que distinguem as escolas indígenas de escolas não indígenas.

4.1 Concepções e Reflexões Curriculares dos Professores Indígenas sobre Interculturalidade, Bilinguismo e Educação Comunitária

De acordo com a Gerência de Formação Indígena do CEFORR - Centro Estadual de Formação de Roraima- na atualidade é atendida uma demanda de 200 professores indígenas que ainda atuam sem formação nas escolas indígenas no estado, possuindo somente o nível médio, e muitos somente o Ensino Fundamental. Esses professores, a grande maioria falantes da língua materna, são contratados em regime de processo seletivo pela Secretaria Estadual de Educação, por meio de Edital específico para atuarem temporariamente nas escolas indígenas, que geralmente são escolas das comunidades de difícil acesso.

As informações e reflexões aqui feitas são oriundas de pesquisa bibliográfica e das nossas experiências enquanto professoras formadoras do Projeto Magistério Indígenas Tamî’kan. As análises são feitas a partir de dados coletados em uma oficina pedagógica ministrada aos professores indígenas em formação, relacionada ao currículo da Educação Escolar Indígena, realizada na segunda etapa do Projeto Tamî’kan, no primeiro semestre do ano de 2018.

A oficina procurou refletir com estes professores a respeito das questões do currículo intercultural, de forma que pudéssemos ter elementos para pensar as políticas de formação continuada e auxiliar, de fato, na efetivação do currículo pretendido na prática das escolas indígenas do estado de Roraima, com uma reflexão sobre nossas práticas.

Os participantes da oficina cursaram o Ensino Fundamental e estavam iniciando seus estudos no Magistério Indígena Tamî’kan, com previsão de término para 2020. Esses profissionais, na sua grande maioria, são falantes das línguas maternas Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Wai Wai e Taurepang, e também são professores da disciplina língua materna nas suas comunidades.

A oficina realizada no Centro de Formação de Professores foi um complemento das atividades do currículo do Projeto Magistério Indígena Tamî’kan e tinha como tema: “O currículo da Educação Escolar Indígena em Roraima”. A oficina contou com a participação de trinta alunos de diversas etnias.

Metodologicamente, adotamos na oficina a técnica da roda de conversa, onde cada cursista se apresentava informando a que comunidade pertencia, de qual etnia fazia parte e a escola em que estava atuando como professor. O momento possibilitou um conhecimento diversificado entre professores formadores e professores cursistas, ou seja, o início de um diálogo intercultural entre os cursistas e formadoras.

A ideia do diálogo intercultural é bastante citada por muitos autores e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. Todavia, observamos que, na prática, esse diálogo raramente acontece, visto as imposições de um currículo educacional baseado na reprodução de conteúdos, em notas e resultados cobrados pelos órgãos oficiais.

Em uma segunda etapa da oficina, o diálogo se direcionou para questões a respeito da função social da escola e também sobre Educação Escolar Indígena. O outro ponto de reflexão foi sobre o que tem na escola indígena de hoje, e do mesmo modo, que alunos e professores indígenas pretendiam formar na escola indígena.

Ao iniciar as conversas um professor destacou que, segundo o seu entendimento sobre a importância da qualidade da educação escolar dos povos indígenas de Roraima, deu ênfase a uma Educação Escolar Indígena inclusiva, específica, ética, diferenciada, sem desigualdade em relação às escolas “ditas das cidades”. Destacou a necessidade de um currículo voltado para a realidade cultural, pois para esse professor “a escola indígena ainda enfrenta grandes dificuldades de pôr na prática o currículo que é tratado nos documentos de referência da Educação Escolar Indígena”.

E, por fim, chegamos ao ponto principal da oficina que era o entendimento dos cursistas a respeito do currículo, como ele era trabalhado nas escolas indígenas atualmente e como eles gostariam que fosse esse currículo. Os professores da etnia Wai-Wai entendiam a educação como “aquela feita pela família e por todos da sua comunidade”. De acordo com seus pensamentos, “os conhecimentos sempre foram transmitidos oralmente dos pais para os filhos e de avós para netos”. Um dos cursistas destacou que na escola onde atua o trabalho da Língua Materna é por série, sendo que o professor indígena utiliza materiais produzidos por ele em colaboração com a Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) que envia esse material para os povos Wai Wai, possibilitando que o professor elabore suas aulas na Língua Indígena Wai Wai. Esses materiais são cartilhas de texto, listas de animais e frutas.

O mesmo cursista destacou ainda que mesmo trabalhando com esses materiais, ainda sente grande dificuldade de pôr em prática o currículo nos moldes das Diretrizes Curriculares Nacionais. Ele ainda deu destaque ao curso Formação do Programa Saberes Indígenas na Escola, que é realizado em parceria com o Instituto Federal de Roraima (IFRR). Segundo o aluno, o Programa Saberes Indígenas tem conteúdos riquíssimos sobre Letramento e Numeramento.

Segundo o relato desse professor a linguagem é primordial para a resistência e garantia de suas identidades:

Antes da introdução da escola os povos indígenas elaboravam um sistema complexo de pensamento, modos próprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepções sobre homem, mundo e a sociedade, sendo uma sociedade indígena que dispõe de seus próprios processos de socialização e de formação mobilizando agentes para fins educacionais.

No processo de análise das falas dos participantes da oficina, fomos entendendo que nós, enquanto formadores, precisamos ouvir mais para entendermos e aprendermos com as culturas indígenas, visto que falamos de um currículo comunitário, e nem sempre percebemos que esses alunos demonstram a vivência de trabalhos e de uma vida em comunidade. Enquanto nós, formadoras, fomos educadas numa sociedade para sermos individualistas; eles, em suas sociedades, aprendem a viver desde cedo em comunidade, no coletivo.

Deram-nos uma aula sobre a importância da oralidade nas culturas indígenas e do processo pedagógico do que é aprender dentro da cultura indígena, que tem outro tempo e outro processo, diferente do nosso, regido pelo tempo do capital. Também demonstraram muito mais facilidade ao diálogo intercultural. O que nos levou a refletir sobre quem mais ensinou e quem mais aprendeu nesta relação de contato escolar e formativo.

Partindo do pressuposto da teoria do materialismo histórico-dialético, analisamos as respostas apresentadas como expansão de um modelo apresentado pela classe dominante e difundido pelas organizações étnicas e representativas dos povos indígenas, mesmo sendo recorrentes de grandes lutas históricas dos povos indígenas. Observamos nos discursos a reprodução do que está garantido nas Diretrizes Curriculares, documento este que surge para atender as políticas de Educação Escolar Indígena. Concordando com Faustino (2008), o documento surge para suprir a necessidade de sustentação dos novos planos da burguesia e de restruturação do capital por lugares ainda regidos por outras formas de organização social, mesmo baseando em suas demandas, uma linguagem política estruturada de acordo com a lógica dominante.

Macedo (2002) afirma que esta lógica está orientada por uma noção teórica representativa e, mesmo não formando parte da experiência política indigenista, supõe que eles devem se comportar de acordo com seus termos para negociar com o Estado. Assim, segundo a autora, pela lógica coorporativa e de capital faz acreditar que se resolve conjunturalmente, manipulando a mobilização, realizando um controle gerencial da etnicidade ou cooptando lideranças com promessas ou cargos políticos.

Para os povos indígenas, o que está escrito, tem que ser lei. Neste sentido, observávamos que os professores concretizavam na pratica do dia a dia o que é garantido nos documentos oficiais da Educação Escolar Indígena e demonstram preocupação com a precariedade do ensino nas comunidades. Sendo assim os professores:

Têm a difícil responsabilidade de incentivar as novas gerações para a pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aos membros mais velhos de sua comunidade, assim como para a difusão desses conhecimentos, visando sua continuidade e reprodução cultural; por outro lado, eles são responsáveis também por estudar e compreender, à luz de seus próprios conhecimentos e de seu povo, os conhecimentos tidos como universais reunidos no currículo escolar (BRASIL, 2002, p. 20-21).

Para eles, como diz uma grande liderança indígena de Roraima, o professor Sobral André, do povo Macuxi, “Se você falou, você falou” e não pode voltar atrás. Tem que cumprir com o dito. Aprendemos que a palavra na cultura indígena é algo ainda que tem valor e que precisa ser cumprida. Por isso, para os povos indígenas, a lei feita para eles por meio de muita luta, tem que se materializar nas ações cotidianas. Por isso, para eles, o direito é direito e se luta todo dia por ele. Deste modo, acreditamos que mais aprendemos sobre diálogo intercultural, vivência em comunidade e valores da cultura indígena, do que ensinamos.

5 CONCLUSÃO

O artigo teve como objetivo discutir e refletir sobre o entendimento dos professores indígenas no que se refere ao currículo intercultural, de forma que possamos ter elementos para pensar as políticas de formação continuada a fim auxiliá-los de fato na efetivação do currículo pretendido na prática das Escolas Indígenas do Estado de Roraima.

Discutimos sobre a luta dos povos indígenas para garantir, na forma da lei, acesso à Educação Escolar Indígena de forma diferenciada, diversificada, bilíngue e multilíngue. Nesse sentido, a realização das oficinas sobre o currículo da Educação Escolar Indígena é importante e de grande relevância social, na medida em que promove algumas reflexões que estão servindo como base para a formação de professores indígenas. Observamos a necessidade de fomentar discussões e contribuir para que os cursos de formação de professores indígenas sejam voltados para suas especificidades de produção escrita na Língua Indígena das comunidades e destacamos o conhecimento tradicional que estes professores cursistas trazem de experiência vivida. Observamos a necessidade de contribuir socialmente para a revitalização e preservação dos saberes tradicionais. É necessário construir com as comunidades indígenas um currículo que dialogue entre os saberes curriculares entre as diferentes sociedades, a indígena e a não indígena de forma a valorizar as identidades, saberes, conhecimentos, culturas e histórias indígenas.

Entendemos ainda que a relevância social desse trabalho vai além de fomentar discussões e contribuições com as formações de professores indígenas voltadas para suas especificidades, pois nas oficinas realizadas e nos estudos bibliográficos, se faz necessária a criação de espaços de discussão sobre o currículo da Educação Escolar Indígena, pois também temos dificuldade de dialogar com outras culturas que não a hegemônica em que fomos formados na nossa trajetória formativa. Temos que nos indagar, o quanto estamos preparados para o diálogo intercultural?

Temos centrado nossas formações reduzindo as discussões para a valorização da cultura, não a compreendendo em todas as suas dimensões no que diz respeito ao universo cultural indígena e suas inter-relações, como a forma de ser, estar no mundo e seus conhecimentos tradicionais. Temos levado mais a cultura escolar hegemônica, do que, de fato, dialogado com as culturas desses povos. Sendo assim, destacamos a importância de os formadores ampliarem suas reflexões, dialogando mais com a literatura antropológica de forma a possibilitar uma melhor compreensão do que seja trabalhar um currículo na perspectiva intercultural, comunitária, bilíngue e comunitária. Precisamos nos colocar numa posição muito mais de aprendizagem do que de “ensinagem”, para não corrermos o risco de formar para novas formas de colonialidades e compreender também compreender que as comunidades indígenas estão situadas em contexto histórico dos sistemas público, político, capitalista e de negação dos seus direitos.

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Recebido: 13 de Novembro de 2019; Aceito: 14 de Maio de 2020

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