SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número2RED DE EDUCACIÓN MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE: RESISTENCIAS Y LUCHA POR LA JUSTICIA SOCIAL Y CURRICULARFORMACIÓN Y ACTUACIÓN DEL PEDAGOGO A PARTIR DE LA LEY N. 9.394/96: CUESTIONES VIEJAS Y NUEVAS índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.2 São Paulo abr./jun 2020  Epub 15-Oct-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p889-910 

Artigos

AS TRAMAS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL NO PROGRAMA DE RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA (PEDAGOGIA)

THE TRANSFER OF TRAINING OF TEACHERS OF CHILD EDUCATION IN THE PROGRAM OF RESIDENCE PEDAGOGICAL (PEDAGOGY)

LAS TRAMAS DE LA FORMACIÓN DE PROFESORES DE EDUCACIÓN INFANTIL EN EL PROGRAMA DE RESIDENCIA PEDAGÓGICA (PEDAGOGÍA)

Claudia PANIZZOLOi 
http://orcid.org/0000-0003-3693-0165

Marineide de Oliveira GOMESii 
http://orcid.org/0000-0002-2929-4888

i Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP. Professora Associado I da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo- EFLCH / UNIFESP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo -UNIFESP. Docente do curso de Pedagogia, na área de Educação Infantil. E-mail: claudiapanizzolo@uol.com.br.

ii Doutora em Educação (FE-USP), com Pós-Doutoramento pela Universidade Católica Portuguesa (UCP- Lisboa). Professora-pesquisadora da Universidade Católica de Santos/SP (Programa de Pós-Graduação em Educação e Curso de Pedagogia); Líder do Observatório de Profissionais da Educação: Políticas e Pesquisa-Formação. E-mail: neide.ogomes@gmail.com.


RESUMO

Este artigo tem por objetivo o estudo do estágio curricular obrigatório denominado Programa de Residência Pedagógica - PRP. Essa experiência inovadora de estágio tem como premissas o diálogo próximo e constante com o sistema de ensino público e o princípio da imersão profissional em instituições de educação infantil, por um período de tempo ininterrupto, experienciando a unidade entre a teoria e a prática. Por meio de análise documental, o presente estudo toma como fonte a documentação do Programa de Residência Pedagógica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)e os relatórios produzidos pelos discentes. O texto apresenta as potencialidades do Programa em dar visibilidade às crianças, respeitando-as como sujeitos de direitos e em uma formação curricular reflexivo-emancipatória do futuro professor de crianças pequenas.

PALAVRAS-CHAVE: Estágio curricular; Programa de Residência Pedagógica; Formação de professores; Educação infantil; Pedagogia.

ABSTRACT

This article aims to study the compulsory curricular stage called Pedagogical Residence Program. This innovative experience of internship is based on the close and constant dialogue with the public education system and the principle of professional immersion in early childhood education institutions,for an uninterrupted period of time, experiencing the unity between theory and practice. Through documentary analysis it takes as a source the documentation of the Unifesp Pedagogical Residency Program and the reports produced by the students. The text presents the potential of the Program in giving visibility to children, respecting them as subjects of rights and in a reflective-emancipatory curriculum formation of the future teacher of young children.

KEYWORDS: Curricular stage; Pedagogical Residence Program; Teacher training; Childhood educacion; Pedagogy.

RESUMEN

Este artículo tiene por objetivo el estudio del curso curricular obligatorio denominado Programa de Residencia Pedagógica. Esta experiencia innovadora de práctica tiene como premisas el diálogo cercano y constante con el sistema de enseñanza públic y el principio de inmersión profesional en instituciones de educación infantil, por un período de tiempo ininterrumpido, experimentando la unidad entre la teoría y la práctica. Por medio de análisis documental toma como fuente la documentación del Programa de Residencia Pedagógica de la Unifesp y los informes producidos por los discentes. El texto presenta las potencialidades del Programa en dar visibilidad a los niños, respetando como sujetos de derechos y en una formación curricular reflexivo-emancipatoria del futuro profesor de niños pequeños.

PALABRAS CLAVE: Etapa curricular; Programa de Residencia Pedagógica; Formación de profesores; Educación Infantil; Pedagogía.

1 INTRODUÇÃO

O Programa de Residência Pedagógica (PRP) do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo - campus Guarulhos, cuja implantação ocorreu no ano de 2007, sustenta-se na compreensão da Pedagogia como ciência que estuda os fenômenos educativos em suas peculiaridades, de forma multidimensional (LIBÂNEO, 2006) representando um saber específico, oriundo de articulação singular e original entre práticas constitutivas e indispensáveis nas Ciências da Educação, com convicções e normativas ligadas a um sistema de proposições, escolhas e valores (HOUSSAYE, 2004). Ao formar professores para as etapas iniciais da educação básica de forma polivalente, o Programa assume a perspectiva reflexivo-emancipatória de formação, com o propósito de que os futuros professores também atuem dessa maneira com os estudantes da escola básica, sob suas responsabilidades.

O PRP - um Programa de estágios obrigatórios desenvolve-se em escolas públicas desde o ano de 2009 no município de Guarulhos, especificamente na relação com escolas públicas próximas ao campus, localizado no bairro dos Pimentas, uma região periférica da grande São Paulo, caracterizada pelo insuficiente acesso a serviços públicos, baixo nível socioeconômico de seus moradores e elevada densidade populacional.

Idealizado nos anos de 2007 e 2008, no âmbito do Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência) do Ministério da Educação, iniciaram-se estudos e pesquisas visando uma aproximação com professores e gestores de escolas públicas de Guarulhos, no intento de averiguar o grau de aceitação do Programa e também para incluir as contribuições desses profissionais, a fim de conhecer as demandas de Formação Contínua apontadas pelos professores e gestores dessas escolas e que pudessem se incorporar ao processo de implantação do Programa (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, 2010).

Com a opção política de reiterar o compromisso de seus docentes por uma educação pública de qualidade, decorre dessa premissa a escolha pelas redes públicas (municipal e estadual) para a realização do PRP, tratando-se de uma experiência diferenciada de estágio curricular que se baseia no diálogo próximo e constante com os sistemas de ensino público, ancorado na compreensão da complexidade do processo de ensino-aprendizagem que ocorre em situações específicas. Portanto é impossível ser prescrito a priori, sendo a essência do Programa o princípio da imersão profissional por meio da vivência sistemática dos estudantes, com os professores, coordenadores e diretores por um período de tempo ininterrupto, favorecendo a todos os envolvidos a reflexão acerca da indissociabilidade entre a teoria e a prática, em um processo de aprendizagem em situação (GIGLIO et al., 2011).

A partir da segunda metade do curso, os estudantes, denominados residentes, experimentam níveis e modalidades de Residência Pedagógica - na docência na Educação Infantil, Ensino Fundamental (anos iniciais), Educação de Jovens e Adultos e na Gestão Educacional, totalizando a carga horária de 300 horas - mínimo estabelecido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia e pela Lei Federal nº 11.788 de 2008. (BRASIL, 2006b).

Os estudantes residentes permanecem nas instituições educacionais, denominadas escolas-campo de Residência Pedagógica, em educação infantil (PRP-EI) e de ensino fundamental (PRP-EF), aproximadamente 80 horas por um período ininterrupto. A essas horas somam-se 25 horas destinadas às orientações e supervisões que ocorrem na Universidade, em um processo que totaliza 105 horas. Nas escolas-campo de Educação de Jovens e Adultos (PRP-EJA) permanecem 40 horas, somadas às 5 horas na Universidade para orientação e supervisão, perfazendo 45 horas. O mesmo número de horas, também por um período ininterrupto, ocorre na Residência Pedagógica de Gestão Educacional (PRP-GE), cujo foco são os processos de gestão educacional na educação básica, assim como nas demais instâncias dos sistemas de ensino. Reconhecemos que o tempo dedicado ao Programa é insuficiente para criar possibilidades de intervenções educativas que venham a alterar a complexidade que envolve tais instituições educacionais e também a formação no próprio curso de Pedagogia, porém os resultados e as devolutivas da parte das escolas e dos profissionais participantes são de que a dinâmica do Programa contribui para a reflexão e estimula mudanças no cotidiano de trabalho institucional, assim como os relatos dos estudantes/residentes, egressos do Programa, dão conta da diferenciação dessa experiência formativa em relação aos estágios curriculares supervisionados que não mantêm diálogo teoria e prática no curso e relação colaborativa com as escolas-campo (a escolha que acolhe o residente).

Na escola-campo, o professor-formador é aquele que se responsabiliza diretamente pelo residente em seu processo formativo na escola, como co-formador. Na universidade, um professor-preceptor do curso de Pedagogia, supervisiona e acompanha o trabalho do residente, atuando junto na escola-campo.

Considera-se no PRP que a educação escolar é uma prática educativa institucional, e como destaca Pérez-Gómez (2001, p.131): “para compreender a importância das interações que se produzem no contexto escolar, é necessário entender as características desta instituição social em relação às determinações da política educativa”.

Partindo desse entendimento, o PRP estimula a compreensão dos fatores condicionantes que demarcam o exercício da docência na instituição à qual está vinculado o trabalho docente e na unidade escolar em que esse trabalho ocorre, como dimensões da prática docente inserida em um determinado espaço e tempo histórico, marcado por diferentes condições econômicas, políticas, sociais e culturais. Tais ações estão ancoradas na pesquisa como princípio educativo, pelo desenvolvimento da autonomia intelectual, pelas problematizações e pelo manejo de diferentes tipos de conhecimento ao longo da experiência formativa de imersão profissional no PRP (DEMO, 2003; PIMENTA; LIMA, 2017).

O contexto institucional é o que retrata as condições objetivas e materiais nas quais o exercício da docência está inserido e refere-se à instituição à qual o professor está vinculado, que o emprega como trabalhador, oferecendo determinadas possibilidades de profissionalização. Outrossim, é a instituição que coloca a serviço das crianças matriculadas em suas unidades escolares determinadas condições de aprendizagem e de desenvolvimento. Essa dimensão institucional da prática docente é identificada, no caso do PRP, como a rede municipal de ensino de Guarulhos, ainda que sujeita às determinações estaduais e federais.

Além da dimensão institucional, o PRP estimula a compreensão da diversidade presente nas escolas de educação básica. Essa instituição social, cumpre as exigências legais da rede municipal de ensino, à qual está vinculada, e materializa um conjunto de elementos físicos e simbólicos próprios de sua história e de seu território. Compreende-se que o trabalho do professor é desenvolvido prioritariamente no contexto da escola em que atua, mediado pelo contexto institucional das demais escolas da mesma rede pública, sendo importante conhecer a cultura escolar que ali se apresenta.

Para Julia (2001) cultura escolar significa um conjunto de normas definidoras de saberes a ensinar e condutas a incorporar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses saberes e a incorporação desses comportamentos. Portanto, normas e práticas são analisadas considerando o corpo profissional dos agentes chamados a obedecer a essas normas e, a pôr em ação dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação.

Vale lembrar que o termo “escola” advém do grego “skholé” que significa tempo livre, distante do trabalho e da ocupação adulta, pela promoção da experiência resultante da transformação do já sabido, à parte das verdades cristalizadas (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014). No sentido contemporâneo de escola e da escola pública, faz-se necessário problematizar o que se encontra nesse espaço que historicamente busca preservar sua forma, reinventando outros sentidos para o que seria comum às crianças e jovens que todos os dias vão à escola na espacialização de seus tempos livres, como espaço de igualdade de oportunidades, de produção do bem comum, das diversidades, do lugar que se inventa e se reinventa nos cotidianos de tempos e rituais que, por via de regra, precisam responder à rigidez das normas e imposições institucionais e, ao mesmo tempo, educar e cuidar institucionalmente de crianças pequenas, de forma não preparatória ao ensino fundamental, valorizando a dimensão lúdica, curiosa e imaginativa própria das crianças de tenra idade, dividindo com as famílias e com as próprias crianças (como sujeitos) a responsabilidade sobre seus processos socializadores. E é com base no olhar da dimensão pública, do direito à educação das crianças pequenas em creches e pré-escolas, que se ancoram as perspectivas de formação do residente na RP EI.

O entrecruzamento do contexto institucional com o contexto da unidade escolar permite responder às seguintes perguntas problematizadoras: como a escola está organizada internamente e como se relaciona com a comunidade e o território nos quais se insere? Quem são os sujeitos: crianças e famílias que a frequentam? Quais as formas de resistência que as crianças manifestam à rotina estabelecida? Quais as maneiras de interação entre as crianças? Como é a atuação da equipe gestora da escola? Quem são os professores? É visível a existência de um planejamento norteador das ações educativas com as crianças? É possível identificar as concepções sobre educação infantil, de criança e de infância que dão suporte às práticas dos educadores? Quais concepções de família estão ali presentes? O trabalho é orientado por um currículo? Como o espaço e o tempo são planejados e organizados na rotina institucional?

Interessa ainda ao PRP-EI explicitar aos residentes e aos professores-formadores que as identidades profissionais dos professores de educação infantil são plurais, construídas em espaços e tempos diferenciados (no caso da creche e da pré-escola) e tais identidades são dinâmicas e mutantes (GOMES, 2013; 2010).

Como uma tapeçaria, compreender o estágio curricular, a formação de educadores para a educação infantil, as creches e pré-escolas brasileiras e o direito das crianças às infâncias e ao brincar implica pensar em fios, tramas e urdidura.

A tapeçaria é uma obra têxtil, usualmente de cunho narrativo, formada pelo entrecruzamento perpendicular dos fios da urdidura e dos fios da trama. Na tapeçaria, é esse entrecruzamento que constitui o desenho, e, relacionando a tessitura ao estágio curricular, pode-se fazer uma analogia entre a urdidura, o conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear, com o Programa que institui o estágio (o PRP), sua estrutura e normatizações de funcionamento.

As tramas da tapeçaria, conjunto de fios que os tecelões fazem passar com a lançadeira ou com a agulha entre os fios estendidos da urdidura, seriam os vários enredos construídos nos tempos e espaços das relações entre professor-preceptor com os residentes, do professor-preceptor com os monitores (estudantes que já realizaram o PRP-EI e que colaboram com o acompanhamento do estágio), dos residentes com a instituição que os recebe, dos residentes com as crianças, dos residentes consigo mesmos e, por fim, mas não menos importante, da universidade com a escola pública.

Os fios da tapeçaria, fibras longas, delgadas e retorcidas de lã, seda entre outros, embora deixem de ser vistos isoladamente, fio a fio, uma vez terminada a obra, constituem, de certo modo, a armação do trabalho, e deles depende a solidez da tapeçaria. Tal qual esses fios, a concepção de infância e de infâncias, de criança e de brincar sustenta a observação realizada minudente das práticas cotidianas, as ações de intervenções planejadas, as reflexões da e na experiência vivida pelos sujeitos participantes do Programa e as contribuições para a escola-campo.

Ao discutir o PRP do curso de Pedagogia da Unifesp intencionamos investigar o papel desse estágio diferenciado na formação dos estudantes, futuros docentes, especificamente na etapa da educação infantil, e as implicações para as escolas-campo e para o currículo dos cursos de Pedagogia. Toma-se como fonte a documentação do Programa de Residência Pedagógica da Unifesp e os relatórios produzidos pelos discentes.

O texto está organizado em três partes. Na primeira, intitulada “As tramas da formação de professores: uma narrativa de avizinhamentos, encontros, diálogos e descobertas”, busca-se apresentar o Programa de Residência Pedagógica, em sua estrutura, documentação e como potencial de contribuição para a formação intelectual, política, técnica e relacional do graduando, alicerçado na pesquisa como princípio formativo, no diálogo entre teoria e prática e entre a universidade e a escola de educação básica.

Na segunda, “Os fios que amarram, sustentam e colorem a tapeçaria: a (in) visibilidade das crianças”, ajusta-se o foco para uma residência em específico, como imersão profissional, na educação infantil, buscando compreender as possibilidades formativas do PRP no sentido de contribuir para a superação de uma visão de condição de invisibilidade das crianças nas instituições de educação infantil, por meio do estudo teórico das concepções de infância(s) e criança e pela possibilidade de planejar, organizar e propiciar ações educativas significativas.

Na terceira, à guisa de Conclusão, apresentamos alguns desafios do PRP-EI em contribuir com a formação de professores, tendo por base a pesquisa e as similitudes e as divergências entre o PRP Unifesp e o atual Programa homônimo, recentemente instituído pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (PRP/Capes).

2 AS TRAMAS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA NARRATIVA DE AVIZINHAMENTOS, ENCONTROS, DIÁLOGOS E DESCOBERTAS

A formação de professores é um tema amplo e complexo. Giglio et al (2011) apresentam alguns desafios presentes na formação de professores de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental em Cursos de Pedagogia, que vão desde o histórico desses cursos ao confronto com os desafios do ensino-aprendizagem em tempos de globalização e de busca do alcance da qualidade educacional para todos; o enfrentamento do discurso da incompetência dos professores; a compreensão da realidade das escolas da infância e da EJA, sem hierarquizar, antecipar, dicotomizar ou sobrepor ações e a necessidade de revisão do modelo atual presentes na formação de professores e nos estágios, em geral, do ensinar com êxito, com uma única forma de ensinar e de aprender. Os modos de ser professor estão intimamente relacionados às individualidades, às formas como cada um interpreta e atribui sentidos e significados aos fenômenos ao seu redor, tanto dentro quanto para fora dos muros escolares. Nesse sentido, a dimensão coletiva do trabalho docente implica mudanças, criações e recriações, desestabilizando a maneira cotidiana de viver a condição docente ao introduzir na escola determinadas estratégias inusitadas de vivência profissional: estudo coletivo, socialização, conhecimento entre pares, reflexão sobre a prática etc. (GOMES, 2013).

O professor, além de especialista de um campo específico do saber, é um profissional voltado ao desenvolvimento humano, o que implica necessariamente um desempenho intelectual, político, técnico e relacional que apenas a formação teórica não consegue promover.

Os primeiros encontros de supervisão do PRP do curso de Pedagogia da Unifesp destinam-se à criação de um tempo e um espaço de acolhimento das fragilidades e dos temores dos residentes. Um dos maiores temores dos residentes refere-se a não ter contato com as instituições de educação infantil, nem experiências prévias com crianças, principalmente com bebês. Assim, iniciamos o processo com um levantamento das expectativas com o PRP e com a leitura do Manual do Programa de Residência Pedagógica, objetivando explicitar, discutir e orientá-los acerca da estrutura do Programa. Dessarte, contextualizamos os lugares em que o PRP será realizado, oferecendo, além de informações sobre a escola, tais como localização e contatos telefônicos, um histórico da presença da universidade na escola, as experiências exitosas já realizadas, os cuidados necessários no estabelecimento de vínculos com o professor-formador e também com a equipe gestora da escola. Um especial realce é dado à dimensão ética do PRP, que se traduz nas posturas, atitudes e ações do residente na escola, que não tem por objetivo julgar ou avaliar o trabalho dos profissionais, e sim de apreender as culturas que ali se apresentam, de forma crítica e reflexiva, buscando extrair episódios formativos significativos e identificar as teorias que subjazem as práticas observadas.

Ainda na universidade, antes da entrada na escola-campo, é apresentado e debatido com os residentes o Roteiro de Observação da Residência Pedagógica em Educação Infantil, cujo objetivo é orientá-los, de modo que:

[...] possam se situar no ambiente institucional de creches e pré-escolas, buscando relações entre estes contextos. A análise de documentos, a observação participante e o registro serão instrumentos indispensáveis para a compreensão e análise das culturas e das práticas ali presentes (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, 2012b, p.1).

O Roteiro de Observação da Residência Pedagógica em Educação Infantil é um instrumento metodológico que visa favorecer aos residentes a observação, o registro e a análise dos acontecimentos do cotidiano da escola-campo, para além das explicações do senso comum, a forma de as instituição se organizar e o que ocorre nos diferentes espaços e tempos. Apresenta ainda indicadores para a análise do contexto da instituição de educação infantil em que se realiza o estágio, do território, das relações com as famílias e a comunidade e das relações estabelecidas com os sistemas e outras instituições que dão suporte/orientação às ações educativas e pedagógicas.

Ao longo dos encontros de supervisão e do período de imersão, a trama formativa vai se constituindo a partir da escrita de quatro documentos pelos residentes, caracterizados pelo diálogo com os professores preceptores, pela reflexão na e sobre a experiência vivida e pela escrita e reescrita desses documentos, pautada pela mediação entre teoria e prática.

Os três primeiros documentos são produzidos individualmente por cada residente e buscam favorecer a reflexão e a produção, com o professor-formador e a sala em que foi realizada a RP-EI. O último é um documento elaborado coletivamente pelo grupo de residentes que estiveram no mesmo período e turno na mesma escola-campo, visando contemplar a visão do grupo acerca da escola em seu conjunto, para além da sala de referência estagiada, sendo importante esclarecer que o residente acompanha um único professor e turma na escola-campo.

O primeiro documento que acompanha os residentes durante todo o período de imersão é o Caderno de Campo, instrumento em que o residente descreve detalhadamente os contextos “das situações, das pessoas e dos acontecimentos observados, considerando igualmente diferentes perspectivas e apreciações sobre os documentos obtidos” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, 2012a, p.16-17), à luz do Roteiro de Observação e mediado pelas leituras pelos professores preceptores.

O potencial formativo que pode assumir o registro, ou seja, a escrita da própria experiência na forma de diários de campo já foi objeto de atenção de autores como Freire (1995), Warschauer (1993; 2001), Ostetto (2008; 2017) entre outros, enfatizando que o ato de registrar favorece e estimula o processo reflexivo. Ao registrar a experiência vivida, o residente reflete e aprende sobre si mesmo e a respeito de sua prática, pois, ao organizar o pensamento por escrito, constrói, segundo Warschauer (1993), a “memória compreensiva”, distanciando-se para aproximar-se, aproxima-se para aprofundar-se, aprofunda-se reconstituindo e integrando o vivido.

O segundo documento é o Plano de Ação Pedagógica (PAP), caracterizado como uma proposta de intervenção pedagógica do residente na sala de referência de estágio, constituída por ações pontuais, planejadas de forma colaborativa entre residente, professor-preceptor e professor-formador, com base na problematização e na teorização de temas advindos das observações e registros elaborados pelos residentes sobre o cotidiano observado nas escolas-campo no período de imersão, valendo-se sempre do diálogo com as teorias estudadas. O PAP é debatido na escola-campo não só com o professor-formador, mas também nas reuniões de planejamentos semanais entre os professores dessas escolas, de modo que todos ali presentes possam sugerir mudanças e aprimoramentos, havendo uma participação indireta de todos os professores das escolas-campo que aderem ao Programa, independentemente de aceitar ou não os residentes em suas turmas e em tais ambientes formativos, fica em relevo a política educativa da escola.

Uma derivação do PAP é o terceiro documento denominado Plano de Ação Pedagógica Comentado (PAP Comentado) que além de conter os mesmos elementos do Plano de Ação Pedagógica, é efetuado de forma crítica, após o desenvolvimento da Ação Pedagógica planejada e submetida à avaliação do grupo da escola, cujo propósito é apresentar as apreciações dos residentes acerca da experiência vivida, com indicações propositivas para a escola no sentido de continuidade do plano desenvolvido. O PAP Comentado expressa o compromisso ético e político do curso de Pedagogia da Unifesp na relação que estabelece com a escola-campo no que se refere ao retorno à instituição da experiência documentada sobre o estágio realizado, contendo a análise da experiência vivida pelos residentes.

O quarto e último documento é o Relatório Final da Residência Pedagógica de Educação Infantil, em que um grupo de residentes sistematiza a experiência vivida, contextualiza a escola-campo, elege um tema a ser problematizado e indica as aprendizagens pessoais, grupais e institucionais advindas com o PRP.

A relação professor-preceptor e residentes é compartilhada também pelos monitores (estudantes que já vivenciaram a RP-EI e que contribuem com o processo educativo apresentando suas vivências na escola-campo e o modo como dialogam com as teorias, auxiliando o professor-preceptor no acompanhamento e na supervisão dos residentes e também no diálogo com as escolas-campo), com foco nas necessidades das crianças. Iniciativa bastante relevante dos monitores têm sido a sistematização e a criação de um banco de PAPs e PAPs Comentados, o que proporciona o enriquecimento de futuros projetos para a escola e gera segurança no enfrentamento do novo. Ao avaliar essa experiência, um monitor assevera: “a oportunidade de trocar experiências com os residentes é de suma importância na formação docente do monitor e dos próprios residentes, pois de acordo com Pimenta (1999) é assim que ocorre a constituição de suas identidades como professores” (RAMIRO, 2012, p. 9).

O relato a seguir expressa o amálgama de sentimentos com relação ao acerto e erro, quando do ingresso do residente na escola-campo:

O primeiro dia da tão famosa “Residência Pedagógica”, a primeira vez que eu pisaria em uma sala de aula. O medo tomava conta de mim enquanto eu saía de casa, meu estômago estava na boca. Medo era a palavra que melhor descrevia o que eu estava sentindo no início, medo de errar, medo de não ser aceita, medo de não saber o que fazer, medo de simplesmente não ser capaz (HASHIMOTO, 2012, p.2).

Ingressar na escola-campo é um grande desafio, é despir-se de máscaras na frente de estranhos e se expor ao desconhecido, tanto por parte dos residentes quanto dos educadores (professores e gestores) da escola-campo que os recebem. Por certo que a relação nem sempre é tranquila de imediato assim, da parte dos residentes, nos primeiros contatos com o cotidiano por meio de observações das práticas dos professores, são recorrentes o registro e os comentários que, grosso modo, desqualificam o trabalho ali realizado. Nesse período de ajuste do foco de observação, tendem a captar as faltas, as inadequações, o não feito, o não dito. Os professores, por seu turno, por vezes também tecem críticas e senões, tais como: “as residentes criam uma situação de que elas são as boazinhas e nós, professores, os bruxos da história”, ou argumentam que “no cotidiano isto não é possível, só numa experiência de estágio é que pode ser feito”, ou ainda, “na prática, a teoria é outra”.

Em decorrência da relação orgânica estabelecida entre universidade e escolas-campo da RP, os profissionais das escolas apresentam demandas por ações de Extensão Universitária, resultando em projetos formativos que se realizam tanto na universidade como nas escolas-campo, aliada à oferta de vagas em disciplinas do curso de Pedagogia para professores de escolas públicas, com preferência para as escolas-campo do PRP. Anualmente, realiza-se na universidade um evento envolvendo as escolas-campo como forma de socialização dos trabalhos dos residentes e das escolas-campo, assim como a avaliação do PRP, que são os Colóquios de Residência Pedagógica.

Durante o período de realização da RP-EI, quando a universidade e a escola-campo estreitam vínculos, estabelecem diálogo, implementam acordos, ambas se comprometem com o processo formativo e com o que ele apresenta de dificuldades, desafios, fragilidades e potencialidades. Dessa forma, as escolas-campo deixam de ser apenas territórios de passagem, de cumprimento obrigatório e cartorial de horas de estágio e/ou laboratórios de práticas, e convertem-se em ambientes orgânicos de aprendizagem e de produção de conhecimentos para todos os envolvidos.

Zeichner (2000) ao se referir às parcerias entre universidade e escola para a formação de professores alerta-nos sobre as formas de tratamento dessas duas instituições educacionais, chamando a atenção para a hierarquização e a inferiorização de saberes com relação ao campo da formação de professores nesse ambiente formativo.

A nosso ver, a universidade necessita assumir o compromisso com a melhoria da qualidade da escola pública e com a promoção da justiça social, pela possibilidade de compreensão da diversidade presente nessas escolas e da unidade entre teoria e prática que os processos formativos paulatinamente constroem. Torna-se assim fundamental ouvir o insistente chamado de professores da educação básica, atender aos convites, responder aos anseios e desejos daqueles que estão, cotidianamente, fazendo a educação pública na outra ponta do processo formativo, que são as escolas, com os profissionais que lá se encontram.

Por conseguinte, entendemos que contribuímos para a construção de modelos contra- hegemônicos de educação e de formação de professores, de forma a explicitar os interesses, as ambiguidades e as contradições emaranhados nos contextos reais de vida e de trabalho das escolas de educação básica e da profissão docente no âmbito do direito à Educação e da justiça social (ZEICHNER; DINIZ-PEREIRA, 2014).

3 OS FIOS QUE AMARRAM, SUSTENTAM E COLOREM A TAPEÇARIA: A (IN)VISIBILIDADE DAS CRIANÇAS

Conforme anunciado no início deste texto, toda a sustentação da urdidura e das tramas encontra-se nos fios. No caso específico da RP-EI, os fios se concentram nas concepções de criança e de infância(s) que vão sendo configuradas. Ao ingressarem na escola-campo, os residentes observam inicialmente o contexto, com centralidade para as crianças, para, a partir daí, organizar propostas educativas significativas, pautadas pelas características e pelas necessidades daquelas crianças pequenas. Portanto, desde o princípio apresentam-se as seguintes questões de fundo: Quem são aquelas crianças? O que é ser criança hoje? O que é ser criança em um bairro localizado na periferia de um município também periférico da Grande São Paulo? Qual o lugar das crianças na escola e na cidade? O que pensam, desejam e anseiam? Quais suas preferências, o que já sabem? Do que gostam e não gostam?

O revisitar das leituras, os filmes indicados e as aprendizagens na universidade (e fora dela) auxiliam a quebra de estereótipos e de generalizações naturalizadas acerca da concepção de criança como um “vir a ser” sedimentado em um modelo universal, abstrato, que desconsidera os condicionantes sociais, históricos, de classe e de gênero. A RP-EI mostra-se fértil para a ampliação desse olhar, para o desenvolvimento do ver além do aparente, para a atenção aos detalhes, para enfim, adentrar no mundo real das crianças e compreender seus modos de ser, pensar, apreender e expressar o mundo. É imprescindível aprender a estar junto delas, a observá-las, a escutá-las e a enxergá-las.

A observação das práticas cotidianas nas escolas-campo no PRP revelou a necessidade de dar visibilidade às crianças, por mais paradoxal e estranho que possa parecer essa afirmação, por tratar-se de uma instituição pública de educação infantil. O período de imersão trouxe à tona - em alguns casos - a (in)visibilidade das crianças como sujeitos, em que os residentes destacam que a imersão revelou-lhes que muitas vezes as crianças eram privadas de seu direito de brincar, com uma rotina estabelecida e inflexível, sendo constrangidas a obedecer regras e ordens e a terem suas vontades, desejos e corpos controlados.

Os ambientes criados na escola, os materiais utilizados e sua disposição nos dizem muito a respeito do trabalho realizado, dos objetivos pretendidos, das concepções de instituição de educação infantil e de sua finalidade. O espaço e o modo como é organizado resulta sempre das ideias, das opções, das concepções das pessoas que o ocupam. Portanto, o espaço de um serviço destinado às crian ças expressa a imagem das crianças e dos adultos que o organizaram, bem como do projeto educativo concebido para aquele grupo de crianças. Não poder circular sozinha pela instituição, não poder ir e vir e só poder estar onde o adulto considera “necessário”, expressam uma determinada concepção de criança.

Os espaços internos da sala, descritos pelos residentes, em geral, trazem poucas informações sobre quais crianças ali convivem, além dos nomes nas paredes, podendo dificultar que elas se sintam pertencentes àquele espaço.

As paredes de uma escola de educação infantil funcionam como um testemunho das concepções que se têm das crianças que ali convivem. As paredes contam uma história do que se fez, viveu, experimentou, construiu ao longo dos dias, com outras crianças, explorando os recursos naturais, os jogos, os brinquedos, ouvindo histórias, cantando etc. Nessas situações refletimos com os residentes sobre o valor estético dos desenhos das crianças e as concepções de ensinar e aprender na educação infantil ali expressas.

O espaço na educação infantil, mais que um local de trabalho, é um elemento a mais no processo educativo, é, antes de tudo, um recurso, um instrumento, um parceiro do professor na prática educativa e o papel do professor é observar, registrar, interferir e oportunizar novos espaços e situações para que as crianças sejam protagonistas de suas ações e, para que com estas possam desenvolver-se.

Um dos registros no Relatório Final, assinala que “as crianças não são ouvidas, não são notadas e consequentemente não são atendidas em suas necessidades e especificidades” (SANTOS; BELO; SOUZA, 2012, p. 13), e, em certo sentido, são relegadas a uma condição de (in)visibilidade, sendo observada a prática de espalhar brinquedos pela sala e, enquanto as crianças brincavam, as professoras estavam ocupadas com atividades administrativas da turma (preenchimento de fichas, da elaboração de relatórios, entre outras). As crianças, no entanto, resistiam, interagindo entre si e buscando formas de obter a atenção da professora e dos colegas.

A intenção de relatar tais situações é refletir acerca do papel dos professores com relação ao brincar nas instituições de educação infantil e da qualidade das relações e vínculos ali construídos, que podem ser um flash de uma determinada situação, não podendo ser generalizável. Consideramos que a valorização do brincar, já acontece a partir do momento que o professor cuida de motivar as brincadeiras, planejá-las, organizá-las de modo que sejam agradáveis e atendam às necessidades das crianças, entendendo o brincar como expressão legítima e única da infância, como um modo de ser, viver e estar no mundo (PANIZZOLO, 2013).

Os ambientes de brincadeiras precisam ser valorizados porque são espaços nos quais as crianças se encontram, trocam experiências, interagem e, por isso, socializam-se. Por meio das brincadeiras, as crianças aprendem a dividir os espaços e os brinquedos, a comunicar suas vontades, a resolver conflitos de forma autônoma, a lidar com os limites, com as diferenças, enfim, a respeitar o outro, representando uma rica oportunidade de experienciar tudo o que implica viver coletivamente. Para que essa aprendizagem aconteça, a mediação do professor é essencial, conforme definido nas orientações oficiais para a organização do ensino fundamental de nove anos (BRASIL, 2006a).

Segundo as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Infantil (BRASIL, 2010), a brincadeira e as interações das crianças assumem um papel central na definição das práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil. Dito de outra forma, seria importante que o projeto pedagógico e as práticas das instituições fossem orientados de modo a valorizar o brincar e as interações das crianças com seus pares, com crianças maiores, com crianças menores, com os adultos, com o espaço-tempo e com os diferentes objetos.

Muitas vezes, a (in)visibilidade das crianças se faz notar pela ausência de planejamento intencional, pela dissociação do cuidar e do educar, pela subtração do direito ao brincar no cotidiano dessas instituições e pela pouca interação dos professores com as crianças. A observação e a escuta cuidadosa das crianças representam uma maneira de enxergá-las e, portanto, de conhecê-las (GANDINI, 2002).

Tomamos os relatos aqui descritos e trazidos pelos residentes como episódios formativos. Também outros relatos de residentes dão conta de situações de visibilidade, de protagonismo e de participação das crianças e de suas famílias, entre outros aspectos. Buscamos problematizar o tema da invisibilidade das crianças por ser uma prática histórica na relação entre adultos e crianças e as instituições de educação infantil podem ser ambientes privilegiados de socialização e de respeito às crianças como sujeitos de direitos.

Problematizar as práticas docentes - adensando as informações sobre as instituições de educação infantil, saber quem são os professores formadores, os grupos de crianças e suas famílias, quais são seus territórios de pertença e as relações interinstitucionais da escola no seu entorno - serve para ampliar o olhar dos residentes sobre situações vivenciadas que, à primeira vista, podem soar como desanimadoras para a profissão. Ao contrário, o PRP intenciona, por meio das pesquisas feitas pelos residentes, produzir relações desses episódios com as políticas educacionais, as políticas para as infâncias no Brasil, as políticas de formação de professores (no ensino superior e na formação contínua) e, sobretudo, a condição de vida e de trabalho da maioria dos professores em um país desigual e produtor de desigualdades como o Brasil, desviando-se assim daquela visão inicial de julgamento e de avaliação.

Outro aspecto que merece destaque vem da pesquisa sobre narrativas (auto) biográficas com crianças sobre a escola desenvolvidas por Passeggi et al. (2014), que concluem sobre a existência de tensões entre o brincar e o aprender, o fazer ou não amigos, o ser ou não criança, pela ressignificação de suas experiências em um lugar em que elas se constituem (ou não) como sujeitos de direitos.

Um fator ainda que contribui para a (in)visibilidade da criança é a cada vez mais precoce institucionalização das crianças. De acordo com Kramer (2007), vive-se hoje uma época em que temos muito conhecimento teórico sobre a infância e as crianças e ao mesmo tempo, muita dificuldade de lidar com elas. Temos dificuldades de enxergar a singularidade da criança, especialmente dentro de instituições escolares, o que por vezes turva a visão e impede que se perceba que ser criança não é o mesmo que ser aluno, que esta é, em verdade, uma condição que nós adultos exigimos das crianças e que acaba por subtrair o tempo e o espaço para que exerçam seu poder imaginativo, entreguem-se às suas fantasias, brinquem num movimento de produção e de criação constante e que lhes é próprio, vivendo a infância em toda a sua plenitude.

As experiências vividas durante o PRP-EI permitem aos residentes, cujos Cadernos de Campo e Relatório subsidiaram a análise aqui apresentada, oportunidades de refletir sobre as situações cotidianas de unidades de educação infantil, à luz dos diversos aportes teóricos estudados no Curso de Pedagogia. Pela prática de observação, de registro e de intervenção e no diálogo teoria e prática é possível construir com os residentes um olhar atento e cuidadoso para com as crianças (objetivo primeiro do trabalho pedagógico nas instituições de educação infantil), pelo planejamento do PAP, com o intuito de buscar maneiras pelas quais as crianças possam se expressar, escolher, ouvir e ser ouvida. Enfim, a RP-EI propicia condições favoráveis para se alcançar crianças e professores reais, por meio de aportes formativos dialógicos e emancipatórios e com condições de inserir no campo profissional um futuro professor/pedagogo crítico e pesquisador, por meio da aprendizagem em situação.

A condução das ações formativas pelos professores preceptores com os residentes acontece no sentido de construir essa compreensão e evitar julgamentos e avaliações imprecisas e localizadas, ao mesmo tempo que há a intenção de provocá-los para ousarem atuar de forma a transformar condições análogas às que foram observadas, no exercício profissional. Perguntamos-lhes, com frequência se fossem vocês os professores, o que fariam para que o direito à Educação, de fato, fosse garantido às crianças da escola estagiada? A intenção formativa é deslocar o lugar das avaliações para o lugar das possibilidades, da centralidade do direito, da justiça social e do atendimento às necessidades das crianças pequenas e da formação qualitativa dos professores (dos residentes e dos professores formadores).

4 CONCLUSÕES

Para a universidade, o PRP-EI, ao apresentar-se como uma possibilidade de aproximação e diálogo com a escola pública, privilegia a formação do professor para a educação infantil, por meio da articulação entre ensino, pesquisa e extensão e da unidade entre teoria e prática.

Ao mesmo tempo em que estão imersos no campo profissional, exercem o papel de pesquisadores, por meio da leitura da realidade, criando formas de observação do cotidiano, das relações, do planejamento proposto e do realizado e das características das instituições, dos profissionais e do grupo de crianças com o qual estão interagindo.

Observar, registrar, documentar, analisar, propor, compartilhar com os demais colegas e com o professor-preceptor, monitores e demais profissionais das escolas-campo as impressões, os sentimentos, as sensações sobre a experiência vivida, constitui-se em abundante instrumental de apoio para as escolhas profissionais que se seguirão, referentes às proposições de trabalho com as crianças expressas no Plano de Ação Pedagógica. Logo, os residentes assumem o protagonismo e a responsabilidade sobre os processos de reflexão, responsabilizando-se de forma crescente pela construção de seus saberes e fazeres docentes, constituindo-se como pesquisadores. O processo de pesquisa estende-se também aos profissionais das escolas-campo, e vários são os professores e gestores que voltaram a estudar, buscando a universidade para atualizar-se e/ou aperfeiçoar suas práticas pedagógicas (nas disciplinas livres ou ingressando em outro curso superior ou ainda, qualificar-se no âmbito dos estudos em nível de Mestrado e /ou Doutorado) com forte investimento no desenvolvimento profissional, em geral, conciliando trabalho e estudos.

A criação de vínculos com os educadores da escola pública, a ação pedagógica planejada e realizada, cujo interesse central é o respeito às especificidades e interesses das crianças, o retorno da experiência vivida de forma documentada entregue à escola, uma maneira de demonstrar consideração pelos educadores que recebem os residentes, mas também como expressão de compromisso com uma escola pública, gratuita e de qualidade, têm fertilizado oportunidades para a ampliação de outros ambientes de formação contínua dos professores em exercício, como sujeitos protagonistas de sua formação.

No ano de 2018, o Ministério da Educação, por meio da Capes, instituiu o Programa de Residência Pedagógica para cursos de Licenciatura (BRASIL, 2018), com características que se aproximam e se diferem do PRP da Unifesp. Vale ressaltar que outros Programas de Residência Pedagógica foram iniciados em nível federal, como as experiências do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro e a Escola de Aplicação da Universidade Federal de Minas Gerais. A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo também introduziu programa semelhante- denominado “Residência Educacional” com o objetivo de melhoria dos índices de desempenho das escolas de educação básica parceiras, sobretudo as localizadas em regiões vulneráveis.

O “novo” Programa de Residência Pedagógica da Capes, assumido como uma forma de estágio curricular, prevê a remuneração por meio da concessão de bolsas para os profissionais das escolas-campo que acolherem os residentes, bem como aos residentes e professores supervisores das instituições de ensino superior, responsáveis pelos cursos de Licenciatura, a exemplo de outros Programas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e o Programa Institucional de Iniciação à Pesquisa (Pibic). Salienta-se que não se trata de oferta universalizada aos estudantes dos cursos de Licenciatura, o que acarreta diferenciações no processo formativo dos estudantes.

Apresentado como “inovação”, o PRP da Capes não faz referência a experiências anteriores de programas institucionais brasileiros de imersão profissional docente e enseja no contexto do desmonte da coisa pública que assistimos pelo governo federal atualmente, debates e aprofundamentos acerca dos limites e das possibilidades reais do Programa.

Sabemos que um dos maiores entraves nas Políticas Públicas Educacionais são a descontinuidade das ações, o não diálogo entre os agentes envolvidos e a ausência de avaliação dessas Políticas. Em contrapartida, a continuidade de Programas, projetos ou ações por meio de processos regulares e horizontalizados de avaliação e autoavaliação, implicando os agentes dessas políticas, e não só aqueles que as idealizaram, ao nosso ver, são fatores importantes que poderiam representar um avanço no desenho, na operacionalização, na avaliação e na retroalimentação dessas ações, que são públicas e que, parece-nos estão desacreditadas nas instituições educacionais pelos profissionais que de fato fazem a Educação no Brasil: os professores. A esse respeito, Gomes (2015, p. 217) destaca as contribuições advindas para a “formação profissional, responsabilizando-se pela passagem de um estudante (isolado) para um futuro professor que, a depender da qualidade da sua formação, fará toda a diferença no campo profissional, com uma práxis vinculada aos reais contextos de trabalho e da profissão”.

Por essa razão a sistematização de experiências formativas de professores, como o Programa de Residência Pedagógica do Curso de Pedagogia da Unifesp-Guarulhos, por um viés contra hegemônico, que vá à raiz do processo formativo envolvendo escolas-campo de educação básica e universidade e que fuja às perspectivas tecnicistas e prescritivas de formação, é mais do que necessária, é imprescindível no quadro geral atual da Educação brasileira.

REFERÊNCIAS

BELO, Milena. Domingos. Caderno de Campo da Residência Pedagógica em Educação Infantil. São Paulo: UNIFESP, 2012. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Básica. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade no ensino fundamental. Brasília: MEC, 2006a. [ Links ]

BRASIL. Resolução CNE/CP n. 1/2006. Institui Diretrizes Curriculares para o curso de graduação em Pedagogia, Licenciatura. Diário Oficial da União, Brasília: MEC , 2006b. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf . Acesso em: 18 jun. 2012. [ Links ]

BRASIL. Lei Federal nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre os estágios de estudantes. Diário Oficial da União, Brasília. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11788.htm . Acesso em 18 jun. 2012. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Programa de Consolidação das Licenciaturas - Prodocência. Brasília: MEC , 2008. Disponível em: http//www.portal.mec.gov.br/prodocencia. Acesso em: 10 maio 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010. [ Links ]

BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes. Programa de Residência Pedagógica - Edital Retificado nº 06/2018. Brasília: MEC , 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.capes.gov.br/images/stories/download/editais/27032018-Edital-6-Residencia-Pedagogica-Alteracao-II.pdf . Acesso em 10 nov. 2018. [ Links ]

DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. 6. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. [ Links ]

FREIRE, Madalena. Observação, registro, avaliação: instrumentos metodológicos I. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1995. [ Links ]

GANDINI, Lella. Duas reflexões sobre a documentação. In: GANDINI, Lella.; EDWARDS, Carolyn (Orgs.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: ArtMed, 2002. p. 150-169. [ Links ]

GIGLIO, Celia et al. Residência Pedagógica: diálogo permanente entre a formação inicial e a formação contínua de professores e pedagogos. In: GOMES, Marineide de Oliveira (Org.) Estágios na formação de professores: possibilidades formativas entre ensino, pesquisa e extensão. São Paulo: Loyola, 2011. p. 15-46. [ Links ]

GOMES, Marineide de Oliveira. Formação de professores na educação infantil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2013. [ Links ]

GOMES, Marineide de Oliveira. A aprendizagem profissional de professores de educação infantil: possibilidades formativas. Olhares & Trilhas. Dossiê Infância. Edufu, v.11, nº 11, 2010, p. 41-50. Disponível em: Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/olharesetrilhas/article/view/13896 . Acesso em: 10 out. 2018. [ Links ]

GOMES, Marineide de Oliveira. Residência Educacional. In: SILVA-JUNIOR, Celestino Alves et al. Por uma revolução no campo da formação de professores. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. p. 203-218. [ Links ]

HASHIMOTO, Beatriz Loge. Caderno de campo de Residência Pedagógica em educação infantil. São Paulo: UNIFESP , 2012. [ Links ]

HOUSSAYE, Juan. Pedagogia: justiça para uma causa perdida. In: HOUSSAYE, Juan. et al. Manifesto a favor dos pedagogos. Tradução de Vanise Dresch. Porto Alegre: Artmed, 2004, p. 9-45. [ Links ]

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, v.1, nº 1, jan./jun. 2001. p. 9-44. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38749 . Acesso em: 10 0ut. 2018. [ Links ]

KRAMER, Sônia. A infância e sua singularidade. In: BEAUCHAMP, Janette et al. (Orgs). Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: MEC , 2007. p. 13-24. [ Links ]

LIBÂNEO, José Carlos. Educação, Pedagogia e Didática. In: PIMENTA, Selma Garrido (Org.). Didática e formação de professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. São Paulo: Cortez , 2006. p. 12-28. [ Links ]

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. [ Links ]

OSTETTO, Luciana Esmeralda (Org.). Registros na educação infantil: pesquisa e prática pedagógica. Campinas: Papirus, 2017. [ Links ]

OSTETTO, Luciana Esmeralda. O estágio curricular no processo de tornar-se professor. In: OSTETTO, Luciana Esmeralda. (Org). Educação Infantil: saberes e fazeres da formação de professores. Campinas: Papirus , 2008. p. 127-138. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. O lugar do brincar e o brincar do lugar. In: PANIZZOLO, Claudia. (Org). O direito à infância e ao brincar. Recife: Pipa Comunicação, 2013. p. 57-72. [ Links ]

PASSEGGI, Maria Conceição et al. Narrativas de crianças sobre as escolas da infância: cenários e desafios da pesquisa (auto)biográfica. Educação, Santa Maria, v. 39, nº 1, jan./abr. 2014, p.85-104. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/11345 . Acesso em 10 out. 2018. [ Links ]

PÉREZ GÓMEZ, Angel. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: Artmed , 2001. [ Links ]

PIMENTA, Selma Garrido.; LIMA, Maria do Socorro Lucena. Estágio e Docência. 8. ed. São Paulo: Cortez , 2017. [ Links ]

RAMIRO, Eduardo Augusto Ribeiro. Relatório final das atividades de monitoria em Residência Pedagógica em educação infantil. São Paulo: UNIFESP , 2012. [ Links ]

SANTOS, Carolina Pereira dos; BELO, Milena Domingos; SOUZA, Rosely da Silva. Relatório Final da Residência Pedagógica em educação infantil. São Paulo: UNIFESP , 2012. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Manual da Residência Pedagógica. São Paulo: UNIFESP , 2012a. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Roteiro de observação da Residência Pedagógica em educação infantil. São Paulo: UNIFESP , 2012b. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia, 2010. Disponível em: http://humanas.unifesp.br/novo/images/documentos/projeto_pedagogico_pedagogia.pdf Acesso em: 18 jun.2012. [ Links ]

WARSCHAUER, Cecilia. Rodas em rede: oportunidades formativas na escola e fora dela. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. [ Links ]

WARSCHAUER, Cecilia. A roda e o registro. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1993. [ Links ]

ZEICHNER, Kenneth. Formação de professores: contato direto com a realidade da escola. Presença Pedagógica, v.6, nº 34, jul./ago. 2000, p. 5-15. [ Links ]

ZEICHNER, Kenneth; DINIZ-PEREIRA, Julio. Pesquisar e transformar a própria prática educativa: mudando as perguntas da formação de professores: uma entrevista com Kenneth Zeichner. E-Curriculum. v. 12, nº 3, out./dez. 2014, p. 2211-2224. Disponível em: Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/21405 Acesso em: 10 out.2018. [ Links ]

Recebido: 07 de Março de 2019; Aceito: 11 de Março de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons