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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.3 São Paulo jul./sept 2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i3p1254-1274 

Dossiê Temático Desafios Curriculares: Diversidade e Inovações na Contemporaneidade

CULTURA E CURRÍCULO: UM DIÁLOGO A PARTIR DO CONTEXTO NOS ESTÁGIOS SUPERVISIONADOS EM ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO ESCOLARES

CULTURE AND CURRICULUM: A DIALOGUE FROM THE CONTEXT IN SUPERVISED INTERNSHIPS IN NON-SCHOOL EDUCATIONAL SPACES

CULTURA Y CURRICULUM: UN DIÁLOGO DEL CONTEXTO EN PRÁCTICAS SUPERVISADAS EN ESPACIOS EDUCATIVOS NO ESCOLARES

Ana Lúcia Nunes PEREIRAi 
http://orcid.org/0000-0002-2295-0379

Helga Porto MIRANDAii 
http://orcid.org/0000-0002-3609-4235

Maria do Socorro Castro HAGEiii 
http://orcid.org/0000-0002-9494-2984

i. Doutorado em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia, Valença/BA. Membro do Grupo de Pesquisa Formação de Professores e Cotidiano Escolar - Coordenado pela Profa. Dra. Marina Graziela Feldmann. E-mail: alpereira@uneb.br.

ii Doutoranda em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia. Membro do Grupo de Pesquisa Formação de Professores e Cotidiano Escolar - Coordenado pela Profa Marina Graziela Feldmann. E-mail: helgaportopc@gmail.com.

iii Doutorado e Pós-doutorado em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa: Práticas Pedagógicas e Formação docente: um enfoque interdisciplinar. E-mail: socorrochage@hotmail.com.


RESUMO

Esse artigo tem como objetivo apresentar uma discussão em torno da cultura e do currículo a partir dos estágios supervisionados em espaços educativos não escolares. Partimos da questão: Qual a relevância do diálogo entre a cultura e o currículo, a partir dos estágios supervisionados em espaços educativos e não escolares? Realizamos uma pesquisa de abordagem qualitativa e o referencial teórico fundamenta-se nas concepções de Bauman (2012), Gimeno Sacristán (2002); Grundy (1991); Feldmann (2009); Freire (1967, 1987, 1983) e Gohn (2010). As ideias dos autores nos possibilitaram a compreensão dos espaços onde se desenvolvem o estágio curricular supervisionado, assim como a compreensão acerca de cultura, de currículo e de formação do professor. O estudo nos aponta, ainda, a relevância dos campos formativos e mostra os espaços não escolares como um deles, que integra múltiplos saberes, culturas e amplia a complexidade da formação.

PALAVRAS-CHAVE: Estágio; Espaços não escolares; Currículo; Cultura

ABSTRACT

This article aims to present a discussion around culture and the curriculum from supervised internships in non-school educational spaces. We start from the question: What is the relevance of the dialogue between culture and the curriculum, from the supervised internships in educational and non-school spaces? We conducted a qualitative research and the theoretical framework is based on the conceptions of Bauman (2012), Gimeno Sacristán (2002); Grundy (1991); Feldmann (2009); Freire (1967, 1987, 1983) and Gohn (2010). The authors' ideas enabled us to understand the spaces where the supervised curricular internship develops, as well as the understanding about culture, curriculum and teacher training. The study also points out to us the relevance of training fields and shows non-school spaces as one of them, which integrates multiple knowledge, cultures and expands the complexity of training.

KEYWORDS: Internship; Non-school spaces; Curriculum; Culture

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar una discusión en torno a la cultura y el currículo de las prácticas supervisadas en espacios educativos no escolares. Partimos de la pregunta: ¿Cuál es la relevancia del diálogo entre cultura y currículum, desde las prácticas supervisadas en espacios educativos y no escolares? Realizamos una investigación con un enfoque cualitativo y el marco teórico está basado en las concepciones de Bauman (2012), Gimeno Sacristán (2002); Grundy (1991); Feldmann (2009); Freire (1967, 1987, 1983) y Gohn (2010). Las ideas de los autores nos permitieron comprender los espacios donde se desarrolla la pasantía curricular supervisada, así como la comprensión sobre cultura, currículo y formación docente. El estudio también nos señala la relevancia de los campos formativos y muestra los espacios no escolares como uno de ellos, que integra múltiples saberes, culturas y amplía la complejidad de la formación.

PALABRAS CLAVE: Pasantía; Espacios no escolares; Currículum; Cultura

1 INTRODUÇÃO

O intuito deste texto é apresentar uma discussão em torno da cultura e do currículo a partir do contexto dos estágios supervisionados em espaços educativos não escolares.

Iniciaremos com a caracterização de cada um dos termos, apresentando a cultura como uma aquisição sistemática da experiência humana, destacando sua importância para o estágio, o currículo e a formação dos professores. Traremos à luz a concepção de currículo enquanto campo de articulação da teoria com a prática; igualmente trataremos o conceito de práxis, relacionando seus elementos constitutivos ao campo do currículo.

A relevância social da pesquisa configura-se a partir da necessidade de se evidenciar a importância do diálogo entre a cultura e o currículo, no contexto dos estágios supervisionados em espaços educativos não escolares, por reconhecermos que este é determinante no processo formativo dos futuros professores.

A base para as reflexões encontra-se nos referenciais teóricos de autores como: Feldmann (2009); Freire (1967, 1983,1987); Gimeno Sacristán (2002); Gohn (2010); Grundy (1991) e Saul (1998), entre outros.

A educação não escolar não se constitui como um campo novo da educação. Porém, o tema passa a fazer parte do discurso pedagógico, com mais frequência, a partir da década de 1960, com a realização da International Conference on World Crisis in Education, que ocorreu em Williamsburg, Virgínia, nos Estados Unidos, com a elaboração de um documento base do congresso sob responsabilidade do Instituto Internacional de Planejamento da Unesco, sob coordenação de P. H. Coombs (1976), com o título A Crise Mundial da Educação, que ressalta a importância de desenvolver outros espaços educativos além dos escolares.

Gohn (2010) ressalta que a retomada das discussões em torno desse campo de conhecimento, no Brasil, se dá a partir da década de 1990, quando começa o questionamento da racionalidade moderna como único campo legítimo de conhecimento, e nos mostra que nesse contexto é que vêm à tona novos campos de produção do conhecimento e áreas de saberes que antes eram invisíveis e sequer eram tratadas como conhecimento ou saberes educativos.

Neste aspecto, para compreendermos a dimensão da educação não escolar no campo do estágio curricular supervisionado, é preciso considerá-lo como um “tempo de aprendizagem” que se caracteriza por meio de ações com intencionalidades educativas e pedagógicas. Estas se constituem na práxis. Na compreensão de Freire (1983), práxis implica ação e reflexão que se solidarizam e se iluminam constante e mutuamente. Nessa relação, teoria e prática não se separam, o que implica uma postura de quem busca o saber e não de quem passivamente o recebe. O autor enfatiza que o contexto teórico formador não pode transformar-se num contexto de puro fazer, pois é um contexto de ‘quefazer’, de práxis, de prática e de teoria.

Essa articulação entre a teoria e a prática, entre o pensar e o fazer, é discutida por Feldmann (2009, p. 74) na perspectiva da formação do educador. Para a autora, o problema da formação do educador perpassa exatamente essa articulação, de forma que associá-los se constitui como um dos grandes desafios para esse processo.

No caso do nosso objeto de estudo, essa discussão é necessária e desafiadora, uma vez que os estágios em espaços educativos não escolares podem se configurar como importante espaço de diálogo, tanto para a articulação teoria e prática, quanto para a integração entre a cultura e currículo, pois, a relação entre cultura e currículo, ao longo da história, sempre foi marcada por processos de desencontros. Os componentes do currículo, na sua maioria, se distanciam da cultura e não se articulam com as atividades realizadas pelos professores nos contextos educativos.

Tal discussão nos possibilita considerar a importância da estruturação de um currículo que pense a teoria e a prática do ‘quefazer’ nos espaços formativos, na perspectiva crítica, transformadora e emancipatória, que tenha o estágio em espaços não escolares como um campo do conhecimento que integra múltiplas e diferentes culturas, de forma a contribuir na construção de uma práxis de formação para melhor atuação dos professores, nos vários contextos educativos: escolares ou não escolares.

2 METODOLOGIA

O desafio de investigar o estágio em espaços educativos não escolares, de forma prospectiva, indicou a opção por uma metodologia pautada nas concepções teóricas da pesquisa qualitativa, considerando que a abordagem qualitativa de um problema, além de ser uma opção teórico-metodológica do pesquisador, representa, sobretudo, uma forma válida e confiável de compreensão da natureza dos fenômenos sociais. Assim, utilizamos procedimentos de revisão bibliográfica e de conceitos com a temática em discussão.

Ao longo do estudo, os autores foram indicando elementos importantes para nos ajudar a evidenciar a importância do diálogo entre a cultura e o currículo, no contexto dos estágios supervisionados em espaços educativos não escolares.

A discussão com os diferentes autores possibilitou traçar uma rede de relações, considerando as várias conexões que poderíamos estabelecer com as diversas formas de conhecer, permitindo uma interpretação ou uma releitura mais crítica em relação à cultura e ao currículo no contexto dos estágios nos espaços educativos não escolares.

Contudo, para complementar os estudos e leituras realizadas, efetuamos o levantamento das pesquisas correlacionadas nas Dissertações e Teses nas bases de dados do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Como resultado do levantamento, encontramos 35 pesquisas, dentre estas, 6 teses e 24 dissertações, defendidas entre 1998 e 2015.

Ter acesso a essas pesquisas foi importante, principalmente por ratificar as discussões e nos mostrar que os estágios nos espaços educativos não escolares, como um campo que integra múltiplas e diferentes culturas, podem contribuir na formação dos professores, possibilitando-os a construir uma rede de relações e conhecimentos que permita uma releitura crítica sobre a cultura e o currículo e suas articulações nos vários espaços educativos, sejam eles escolares e/ou não escolares.

As pesquisas mostraram também, que os estágios em espaços educativos não escolares podem se configurar como um importante campo de diálogo entre o currículo e a cultura, que será o foco deste texto.

3 O ESTÁGIO EM ESPAÇOS NÃO ESCOLARES: CAMPO QUE INTEGRA DIFERENTES CULTURAS

A cultura se constitui como um elemento fundamental para a compreensão do que somos e onde queremos chegar. É pela cultura que organizamos e instituímos valores e significados em uma determinada sociedade. Desse modo, cultura e sociedade não estão separados: seus preceitos e suas finalidades são organizados socialmente.

Para Freire (1967), a cultura é uma aquisição sistemática da experiência humana. Isso indica que todos os homens são fazedores de cultura, razão pela qual toda cultura é uma criação humana e está relacionada à ação permanente do homem no mundo, em seus atos de criação e recriação, representando o resultado do trabalho humano que transforma o mundo.

Salienta o autor que essas relações humanas estabelecidas com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vão dinamizando seu mundo, dominando a realidade. É também nesse processo que o homem se humaniza, acrescentando à cultura algo de que ele mesmo é o fazedor. O homem vai temporalizando os espaços geográficos. E, assim, faz cultura. Nessa relação que o homem estabelece com o mundo e o mundo com os homens não há lugar para a imobilidade, nem das sociedades e nem das culturas. O espaço da cultura é dinâmico, transformador. Portanto, fazer cultura implica a necessidade de desenvolver “[...] uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época” (FREIRE, 1967, p. 44).

Desse modo, ao assumir essa atitude crítica, o homem passa a perceber o seu papel como um sujeito que está no mundo e com o mundo, que é parte dele e, por isso, vai construindo e transformando a sua realidade, o seu contexto, buscando superar as condições que poderiam torná-lo ajustado ou acomodado.

Para Bauman (2012), a humanidade é o único projeto que objetiva ultrapassar o plano da mera existência, transcender os domínios do determinismo, subordinar o “é” ao “deve ser”. Sendo assim, considera que pouco a ciência positiva pode dizer sobre a diversidade e criatividade humana, pois, mesmo diante de suas indiscutíveis realizações, não se constitui como única forma de conhecimento de que os homens necessitam.

Argumenta o autor que o caráter inacabado, incompleto e imperfeito do real sustenta o status da cultura, que, por sua vez é parte essencial da experiência humana, por sempre revelar a discordância entre o ideal e o real, tornando a realidade significativa ao expor seus limites e imperfeições, misturar e fundir, de maneira invariável, conhecimento e interesse.

Nesse sentido, o autor enfatiza que a cultura é um modo de práxis humana em que conhecimento e interesse são uma coisa única. Ratifica que a práxis não separa o “é” e o “deve ser”; também não separa o conhecimento, “louvável e fidedigno”, do “interesse mutilado e infame”. Segundo Bauman (2012), pela cultura, o homem se encontra num estado de revolta constante, no qual, ao mesmo tempo, realiza e cria seus próprios valores. A revolta não é uma intervenção intelectual, mas faz parte da experiência e da ação humana.

Ressalta que a postura cultural não pretende desafiar a busca científica pela verdade como uma correspondência entre conhecimento e realidade, porém recusa-se a aceitar a atitude limitadora da ciência positiva e sua pretensão em querer entender que apenas o fato realizado, consciente, empírico e alcançável pode ser aceito como padrão válido de conhecimento, diferentemente da postura cultural que admite uma multiplicidade de realidades.

Assumir uma postura cultural, ainda segundo o autor, não implica uma rejeição à atitude que sustenta o pensamento da ciência positiva. Implica, porém, transcender o fantasma de questões, instrumentos e métodos que sustentam esse projeto de ciência, uma vez que a cultura só pode existir como crítica prática e intelectual da realidade social existente.

Dessa forma, o autor nos mostra que o conhecimento cultural é o único que não se envergonha do seu sectarismo; é, na verdade, o único conhecimento audacioso, capaz de oferecer ao mundo seu significado. Bauman (2012) acrescenta que a cultura é singularmente humana, pois só o homem é capaz de desafiar sua realidade e reivindicar um significado mais profundo entre a justiça, a liberdade e o bem, seja de forma individual ou coletiva. Tem-se cultura porque se atribui sentido às ações. No seu argumento, diz ser a cultura humana uma das mais audaciosas formas de quebrar os grilhões dos ajustamentos, das modelagens como obstáculo fundamental à plena revelação da criatividade humana. É sinônimo da existência especificamente humana, constituindo-se como um movimento valoroso em prol da conquista e liberdade do ser humano para criar.

Podemos perceber que a cultura humana não se deixa alienar, na medida em que foge aos padrões impostos pela sociedade, dando ao homem a possibilidade de escapar de suas necessidades pelo veio criativo. O autor complementa sua argumentação dizendo que a cultura é inimiga natural da alienação e, por assim ser, questiona constantemente a ideia de sabedoria, serenidade e a autoridade que o real atribui a si mesmo. Porém, é o próprio autor que nos esclarece ao dizer que, em uma sociedade alienada, essa natureza não alienada da cultura tende a ser encoberta ou mesmo eliminada.

Para Freire (1987), essa forma de encobrir ou mesmo eliminar a natureza não alienada da cultura é uma das características da teoria da ação antidialógica, a que chama de invasão cultural. Caracteriza a invasão cultural como a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, en quanto lhes impede a criatividade, ao inibirem sua expansão. Esse desrespeito às potencialidades do ser torna uma ação indiscutivelmente alienante, uma forma de dominar econômica e culturalmente o outro, o ser invadido.

E, assim, como manifestação da conquista, a invasão cultural leva à inautenticidade do ser dos invadidos e, desse modo, os seus programas e projetos respondem ao quadro valorativo de seus atores, a seus padrões de finalidade. Aqui, os autores e atores do processo são os invasores; os invadidos, seus objetos.

A invasão cultural jamais pode ser realizada por meio da problematização da realidade e dos próprios conteúdos dos invadidos. O autor afirma que os invasores, na ânsia de dominar, de adaptar os invadidos a seus padrões e a seus modos de vida, só se interessam em saber como eles pensam seu próprio mundo para dominá-los mais e fazer com que passem a ver seu contexto com o olhar dos invasores, despojando-se de seu próprio olhar.

Dessa forma, a fala do povo é sempre desconsiderada; não há que ouvir o povo para nada, pois, tido como incapaz e inculto, precisa ser educado para sair da indolência que provoca o subdesenvolvimento. Nesse aspecto, Freire considera que a incultura do povo é tamanha que parece um absurdo falar da necessidade de respeitar sua visão do mundo, que só tem valor se apropriada por profissionais, os especialistas.

A estrutura de dominação, acima descrita, perpassa todos os setores e organismos da sociedade; começa com a família e se estende para as escolas de Ensino Fundamental, Médio e universidades. Nas instituições escolares, os estudantes, desde logo, vão incorporando princípios e se adaptando aos preceitos construídos de forma vertical, tendo como o principal deles o não pensar.

Essa relação de dominação e negação da cultura ainda está muito presente nos currículos escolares. Autores, como Gimeno Sacristán (2002), mostram que a cultura que compõe os currículos é baseada em opções particulares, determinadas por regras que vêm sendo criadas ao longo da história das matérias escolares; assim, a aprendizagem da cultura nesses ambientes se apresenta de forma condicionada à organização e seleção dos conteúdos, o que acaba por instituir um conceito normativo de cultura, em que se apresenta pré-selecionado e determinado o que é, efetivamente, mais importante para o outro aprender.

Para o autor, essa é uma relação que está implicada no ideal de homem que queremos formar. Essa ideia orientará todo processo de socialização, determinando, inclusive, as potencialidades que devem ser desenvolvidas pelos indivíduos. Nesse contexto, as escolas e os demais ambientes educativos terão o papel de organizar essas potencialidades. Desse modo, a definição de quem o indivíduo é e como deve se comportar diante da cultura é estabelecida pelas regras de comportamento social, pela posição que a ele é atribuída na família, escola e pelos valores do meio em que se desenvolve.

Nessa perspectiva, Gimeno Sacristán (2002) argumenta que o conhecimento selecionado pelas escolas, assim como as formas de aprendê-lo, está relacionado à ideia que se tem sobre quem são os sujeitos da educação. São conceitos que variam conforme a cultura, a evolução histórica e as diferentes classes sociais.

Nesse veio de discussão, as relações dos sujeitos com a cultura são abertas, não arbitrárias, mas não totalmente livres e nem se produzem em igualdade de condições para todos. É a imagem que se tem dos sujeitos que vai determinar a educação para cada tipo de indivíduo.

Por outro lado, o mesmo autor nos sugere que uma educação conduzida pela reflexividade deve orientar o sujeito a se distanciar da cultura, para poder estudá-la, refazê-la e melhorá-la, e, assim, perceber que a cultura é uma realidade dialética, que nela há movimentos que tendem para humanização, para desumanização; atitudes favoráveis à tolerância e à colaboração ou à intolerância; propensão ao esgotamento ou a sua prosperidade. Essa atitude ajudaria a perecer a dinamicidade da cultura.

Esse saber avaliativo sobre a cultura, conduzido pela reflexividade que se desenvolve sobre ela, revela a possibilidade de satisfazer e de criar novas necessidades para o ser humano. O autor ressalta que o mais importante, no entanto, é que cada cultura e seus indivíduos possam ser autônomos e capazes de aceitar a existência de outras culturas e apreender delas aquilo que for melhor para seu próprio desenvolvimento.

O autor ainda destaca a importância de pensar as escolas e os seus currículos dentro de um nicho cultural mais amplo, de forma que a mudança nos currículos considere essas múltiplas realidades e suas culturas no seio da sociedade. O estudioso infere que a melhoria do ensino deve partir de novos contextos e declara que a dissociação entre a cultura do currículo e dos meios exteriores vai deixando a primeira cada vez mais obsoleta e isso tem consequências sérias, principalmente para os estudantes que pertencem às classes menos favorecidas, para quem a escola se constitui como forma quase exclusiva de acesso a bens culturais.

Nesse sentido, o estágio em espaços não escolares tem muito a contribuir. Um dos pressupostos do nosso estudo se refere à importância dos estágios desenvolvidos nos espaços não escolares como um campo que integra múltiplas e diferentes culturas e que, portanto, contribui para a formação e atuação dos professores nos espaços escolares.

Com esse pressuposto, consideramos que o estágio em espaços não escolares deve ajudar os professores em formação a perceberem como a cultura dos estudantes e do contexto que estão inseridos se comunica e se organiza nos espaços escolares. Ao circularem entre a Universidade, as comunidades e as escolas, os professores em formação podem construir uma rede de relações e de conhecimento que permita fazer uma leitura crítica e uma reinterpretação dessas realidades, com vista a uma contextualização que envolve conhecer os determinantes históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais que circundam essa realidade, de forma que possam trazer para as reformas curriculares, para o interior das escolas, outras possibilidades de aprendizagem que existem fora dos ambientes institucionais.

Tudo isso só será possível se conseguirmos romper com as fortes tendências autocráticas, hierárquicas e excludentes, ainda tão presentes em nossos currículos. Esse é o tema que discutiremos a seguir.

4 INDAGAÇÕES SOBRE O CURRÍCULO E O ESTÁGIO.

As reflexões desenvolvidas no item anterior ratificam a relação estreita entre a cultura e o currículo. No que se refere ao estágio, como um componente fundamental na formação dos professores, deve ser pensado, problematizado a partir da realidade vivenciada, principalmente quando se trata dos espaços não escolares que, por se constituírem de uma certa dinamicidade, não permitem uma estrutura rígida, formal, pronta e acabada dos currículos e da formação.

A multiplicidade de espaços em que os professores em formação atuam, durante suas experiências de estágio, assim como a aproximação que estabelecem com múltiplas e diferentes culturas nos vários espaços de aprendizagem e nas associações de moradores, de trabalhadores rurais, marisqueiros e pescadores, remanescentes de quilombos, ONGs, hospitais, igrejas, grupos de idosos, mulheres, crianças, jovens (dentre outros grupos, se fazem presentes na sociedade) e trazem para o campo do currículo indagações referentes à diversidade cultural e às lutas estabelecidas por grupos sociais no interior da sociedade, em busca do próprio reconhecimento. Trazem, também, seus desejos, seus sonhos, seus anseios e propostas para a construção de uma sociedade melhor.

As indagações trazidas pelos professores em formação do campo de estágio para a Universidade, por certo, instigam o currículo a ponto de suscitar debates, novas práticas e outros caminhos que nos possibilitam o pensar em uma construção curricular (re) politizada, coletivamente construída com professores e grupos sociais implicados no processo de estágio.

Para tanto, faz-se necessário qualificar o campo curricular como objeto de estudo de forma a percebermos suas dimensões epistemológicas, suas orientações técnicas, as implicações que exercem nos sujeitos envolvidos e seus determinantes políticos, pois, se não compreendermos esse caráter processual, com o olhar direcionado a esses diferentes ângulos, podemos cair na visão estática e a-histórica do currículo.

Para Saul (1998), pensar o currículo na perspectiva da construção e convivência, implica pensar o currículo, ler o currículo, fazer o currículo e sentir o currículo na perspectiva da racionalidade emancipatória. A autora explica que essa perspectiva tem como princípios centrais a crítica e a ação e que seu objetivo é criticar o que é restrito e opressor e, ao mesmo tempo, voltar-se às questões de liberdade e bem-estar dos sujeitos. Nas suas palavras, essa concepção dá destaque à capacidade de pensar criticamente e refletir sobre a gênese histórica, ou seja, pensar sobre o próprio pensamento. Destaca, como fundante nesse quadro de discussão, considerar a categoria “totalidade”, pois a considera central para organização curricular, uma vez que permite e estimula estabelecer relações, tanto histórica como sociologicamente, entre a escola e as instituições econômicas e políticas em seu entorno e fora dele.

Destaca a autora que rever o currículo nessa perspectiva implica situá-lo no contexto social que dá ênfase às interconexões entre a cultura, o poder e a transformação e salienta que construir um currículo com base na racionalidade emancipatória implica estabelecer uma relação dialética entre o contexto histórico-social-político e cultural e o currículo na sua totalidade. Logo, para Saul (1998), construir/reformular/reorientar o currículo na perspectiva emancipatória requer, antes de tudo, uma nova compreensão do próprio currículo.

Nesse veio de discussão, o interesse emancipador na construção do currículo é uma ação reflexiva, responsável e autônoma. Em verdade, a emancipação reside na possibilidade de empreender ações de maneira autônoma. Desse modo, o interesse emancipador reconhece as limitações da história e se interessa pela emancipação como realidade social (e não apenas enquanto objetivo individual).

Situar o currículo nesse contexto requer uma nova posição política, que vê nesse campo de conhecimento um espaço de contribuição para o interesse crítico-emancipatório, de forma a estabelecer as bases de uma ação autônoma para compreendê-lo como práxis.

5 O CURRÍCULO COMO PRÁXIS

Para compreendermos o currículo entendido como práxis, requer delimitarmos, mesmo de forma breve, a articulação entre a teoria e a prática. A ampliação e debate sobre tais conceitos nos permitirá a ampliação do conhecimento sobre o currículo entendido como práxis. Assim, faremos uma breve discussão sobre a articulação teoria e prática, estabelecendo relação com o conceito de práxis e relacionando seus elementos constitutivos ao campo do currículo. A discussão será fundamentada no pensamento de Vásquez (2011), Freire (1987) e Grundy (1991).

A discussão sobre a teoria e prática se faz presente em todo o campo educativo. É recorrente ouvirmos que “uma coisa é a teoria e a outra é a prática” ou, ainda, “na teoria, a prática é outra”.

Para Vásquez (2011), a contraposição da teoria e da prática na história da filosofia reverte-se de caráter absoluto, uma vez que a teoria é considerada onipotente em sua relação com a realidade, a ponto de ser, por si só, considerada como práxis, e a prática considerada como mera aplicação da teoria ou simplesmente a degradação desta, sem, contudo, reconhecer que a práxis enriquece a teoria. Na perspectiva defendida pelo autor, não existe uma distinção absoluta entre a teoria e a prática, mas sim relativa: trata-se de uma diferença, no seio de uma unidade indissolúvel, sugerindo que devemos falar de unidade, de autonomia e dependência de uma com relação a outra.

Sendo assim, podemos considerar que o problema da relação de unidade entre a teoria e prática e, portanto, de sua autonomia ou dependência mútua com base em um plano de comportamento do homem enquanto ser histórico-social, tem como base quatro fundamentos principais:

O primeiro refere-se à dependência da teoria em relação à prática. Nessa acepção, a prática é fundamento da teoria, uma vez que determina o horizonte de desenvolvimento e progresso do conhecimento. Isso quer dizer que a prática é o ponto de partida para a construção do conhecimento que vai ser o fundamento da teoria.

O segundo, tem a prática como fundamento e fim da teoria, ou seja, a relação entre uma teoria já elaborada e uma prática que ainda não existe. Neste caso, a atividade prática, fonte da teoria, exige uma prática que ainda não existe e, desse modo, a teoria como projeto de uma prática, até então inexistente, determina a prática real e efetiva. E a teoria, que ainda não está posta em relação com a prática, porque de certa forma se adianta a ela, pode estabelecer essa vinculação no momento seguinte. Dessa forma, falar da prática como fundamento e fim da teoria, requer entender:

a) Que não se trata de uma relação direta e imediata, já que uma teoria pode surgir para satisfazer direta ou indiretamente exigências teóricas, isto é, para resolver as dificuldades ou contradições de outra teoria;

b) Que, portanto, só em última instância, e como parte de um processo histórico-social, a teoria responde a necessidades práticas, e tem sua fonte na prática (VÁSQUEZ, 2011, p. 259-260).

Argumenta, ainda, esse autor, que a dependência da teoria em relação à prática, e a existência desta como fundamento e fim da teoria mostra que a prática, compreendida como práxis humana, tem a primazia sobre a teoria, mas nos adverte que esse seu primado não implica uma contraposição absoluta à teoria, mas pressupõe uma íntima vinculação a ela. A tentativa de separá-las só pode se dar no âmbito da abstração, pois não se constituem numa relação direta e nem imediata, mas por um processo complexo em que se transita da teoria à prática e vice-versa.

No terceiro fundamento, esclarece-se que a relação de unidade entre a teoria e a prática só pode ser formulada quando temos a prática como atividade objetiva e transformadora da realidade natural e social, e não qualquer atividade subjetiva, ainda que se oculte sob seu nome, como fez o pragmatismo.

Aqui a prática é compreendida como atividade prática social e transformadora, porém a prática não fala por si mesma, não é por si só teórica, mas exige sua compreensão, a desocultação da sua racionalidade, pois compreende que, sem a sua compreensão, a prática tem sua racionalidade, mas permanece oculta, isto é, não transparece diretamente. Nesse aspecto, podemos dizer que a teoria e prática se unem, porém, essa relação de unidade tem limites relativos, sem que desapareçam por completo. O fato é que a prática não fala por si mesma, exige uma relação com a teoria para que possamos chegar à compreensão de práxis.

A prática assim pensada não se caracteriza como qualquer atividade subjetiva, que não se objetiva, não se plasma. Implica uma compreensão da realidade que não se esclarece por si mesma sem a teoria, construindo entre elas uma relação de unidade (e não de identidade), de forma que a prática não se dissolva na teoria e nem a teoria na prática. A prática mantém sua primazia com respeito à teoria e a teoria pode desfrutar de certa autonomia relativa em relação às necessidades práticas, pois para o autor referido, a prática é que tem papel determinante como fundamento, critério de verdade e fim da teoria.

Nesse aspecto, Vásquez (2011) salienta que o verdadeiro alcance da unidade entre a teoria e prática está na própria prática. Ressalta que uma teoria que não aspira a realizar-se, ou que não pode plasmar-se, vive uma existência meramente teórica e, portanto, desligada da prática. Sendo assim, se a teoria pode apresentar uma autonomia relativa em relação a à prática, por outro lado a prática não existe sem um componente teórico, a saber:

a) Um conhecimento da realidade que é objeto de transformação;

b) Um conhecimento dos meios e de sua utilização - da técnica exigida em cada prática -, com que se leva a cabo essa transformação;

c) Um conhecimento da prática acumulada, (...), posto que o homem só pode transformar o mundo a partir de um nível teórico dado, (...).

d) Uma atividade finalista, ou antecipação dos resultados prévios, (...) (VÁSQUEZ, 2011, p. 264).

Portanto, se a teoria tem uma dependência em relação a à prática, esta, por sua vez, é subordinada a certo elemento teórico, o que nos leva a compreender que a práxis exige uma relação teórica e prática em sua mútua dependência.

O quarto fundamento desenvolvido explica a unidade da teoria e da prática, encaminha para compreensão de que a atividade prática se apresenta simultaneamente subjetiva e objetiva, dependente e independente de sua consciência, ideal e material, e tudo isso em unidade indissolúvel.

Ainda sob o argumento desse autor, a atividade prática humana só se torna uma atividade, de fato, quando ultrapassa seu lado subjetivo, quando o sujeito transforma algo material, exterior a ele, de forma que o subjetivo se integra em um processo objetivo. A passagem do subjetivo ao objetivo, do ideal ao real, reafirma ainda mais a unidade entre o teórico e o prático na atividade prática, que como atividade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo se constitui como unidade do teórico com o prático na mesma ação.

Dessa forma, é unilateral reduzir a práxis apenas ao elemento teórico, do mesmo modo reduzi-la ao seu lado puramente material, a práxis implica atividade teórico-prática, transformadora da realidade. Nesse sentido discutido pelo autor, a práxis se configura como uma atividade teórico-prático, que só por um processo de abstração podemos separar um elemento do outro.

É nesse aspecto que Freire (1987) compreende a práxis como ação e reflexão. Relaciona a práxis à reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo; enfatiza que fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser, pois sem a práxis é impossível a superação da contradição. A libertação, a humanização não é coisa que se transmite ao outro, mas é práxis, e por isso, implica ação e reflexão sobre o mundo para transformá-lo.

Com essas palavras, mostra que a educação e, especificamente, o currículo, são um processo de construção constante que se faz e se refaz na práxis. Não se constitui a práxis, portanto, em uma palavra oca, como se diz, que se deposita nos homens, mas um estar sendo permanente.

A práxis, assim entendida pelo autor, como dizer a palavra, como comportamento humano, significante do mundo, não acontece separada da existência: é palavra cuja discursividade flui da historicidade - palavra viva e dinâmica.

Nesse sentido, afirma que dizer a palavra não é e não pode ser privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens; logo, ninguém pode dizer a palavra sozinho ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra dos demais. Dizer a palavra é um ato político, é ser presente na história, é práxis.

É nessa busca constante dos homens que percebemos as duas dimensões fundantes do conceito de práxis: ação e reflexão. Na obra de Freire, essas dimensões são interligadas, dão-se de forma simultânea; assim, a práxis é expressão da palavra verdadeira, que é trabalho, é transformar o mundo, observada a seguinte representação:

Nesses termos, a práxis, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é, portanto, fonte de conhecimento reflexivo e criação. O homem, nesse contexto, constitui-se, pois, como um ser de práxis, quer dizer, ser do quefazer que emerge do mundo e se projeta nele para conhecê-lo e transformá-lo com o seu trabalho. Assim, para Freire, os homens são seres do ‘quefazer’ porque agem, refletem e transformam o mundo. Esse ‘quefazer’ do homem é sempre iluminado por uma teoria, logo, uma atividade teórico-prático. Não há nessa articulação uma sobreposição de uma em relação a outra; assim, o ‘quefazer’ dos homens é ação e reflexão, é teoria e prática, é práxis de forma crítica e transformadora.

Para o autor, seremos verdadeiros críticos, se vivermos a plenitude da práxis, se, em nossas ações, desenvolvermos uma reflexão crítica que organize cada vez mais o nosso pensar, de forma a nos levar a superar o conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Mas isso, nos diz o autor, exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a emancipação.

Nessa perspectiva, Grundy (1991) compreende a práxis como uma forma de ação que é expressão do interesse emancipador e salienta que, na práxis, não há indissociabilidade da emancipação individual e coletiva e não se promove a emancipação individual às custas da coletiva. A práxis não consiste em uma ação que mantenha a situação tal como está; consiste em uma ação que modifica tanto o mundo como nossa compreensão dele. A práxis, como expressão do interesse emancipador, busca preservar a liberdade de ação de todas as pessoas e grupos em suas próprias situações sociais, de modo que os participantes possam manter o controle de suas situações.

Assim, com base nos autores, podemos sintetizar a discussão desenvolvida da seguinte forma: a práxis é atividade teórico-prática, implica ação e reflexão, desenvolve-se em um mundo real, exige interação, é parte de um mundo construído (e não natural) e requer um processo de construção de significado; é a práxis a expressão do interesse emancipador, ação que modifica o mundo e a compreensão desse mundo, autonomia em relação às ações desenvolvidas por um determinado grupo social.

Entender a práxis nessa perspectiva nos transporta para o campo do currículo, na medida em que o currículo não é um objeto estático, programado a partir de um modelo para pensar a educação e muito menos se esgota em um projeto de socialização cultural dentro das escolas. O currículo é muito mais: é uma práxis.

Para falar do currículo enquanto práxis, Grundy (1991) destaca cinco princípios, presentes na obra de Freire, considerados como os elementos constitutivos da práxis e os aplica de maneira específica ao campo do currículo. Esses princípios são:

1. Os elementos constitutivos da práxis são a ação e a reflexão - este princípio indica que o currículo vai se desenvolver por meio de uma interação dinâmica entre a ação e a reflexão, deixando de se constituir como um conjunto de planos a ser implementado, mas “constituir-se-á mediante um processo ativo no qual o planejamento, a ação e a avaliação estarão relacionados reciprocamente e integrados no processo”.

2. A práxis tem lugar no mundo real, não em mundo hipotético - este princípio traz a ideia de que a construção do currículo não pode estar dissociada do seu ato de implementação e, sendo assim, “temos de construí-lo em situações de aprendizagem reais, não hipotéticas, e como estudantes de verdade, não imaginários”.

3. A práxis se desenvolve no mundo da interação, o mundo social e cultural - este princípio aplicado à construção do currículo indica que a aprendizagem deverá ser reconhecida como um ato social. Na compreensão do currículo como uma forma de práxis, “o ensino e a aprendizagem terão de ser considerados como relação dialógica entre professor e aluno, em vez de uma relação autoritária” .

4. O mundo da práxis é o mundo construído, não o natural - este princípio nos leva à compreensão de que o conhecimento é uma construção social. Implica em desenvolver nos estudantes uma reflexão crítica para que possam ser seres ativos e críticos na construção do seu próprio conhecimento, distinguindo o que é conhecimento “natural” e “cultural”. Este princípio nos leva a perceber que “na práxis curricular, está implícita a crítica de todo o saber”.

5. A práxis supõe um processo de construção do significado que reconhece a este como construção social - a autora salienta que esse princípio é derivado do anterior e supõe que a práxis dá sentido e orientação crítica a todo conhecimento. Essa assertiva traz consigo a ideia que o processo de construção do currículo seja inevitavelmente político (GRUNDY, 1991, p. 161).

Com base nesse estudo, podemos notar que o conceito de currículo como práxis está implicado no conceito de práxis como uma construção política e crítica do conhecimento que envolve ação e reflexão, tem um lugar no mundo real e desenvolve-se a partir de interações do mundo social e cultural. É um mundo construído e supõe um processo de construção do significado que o reconhece como construção social.

Esta perspectiva curricular se distancia da perspectiva neoliberal, que tem suas bases no projeto de uniformização curricular da educação proposta pela OCDE, que vem atingindo as áreas fulcrais do processo educativo, desenvolvendo políticas voltadas para o modelo empresarial, importando o modelo de produção flexível, que articula educação /currículo/mercado, tendo em vista uma educação/formação voltadas para capacidades baseadas em competências.

O currículo, pensado como práxis, se constitui em um espaço de luta em busca da emancipação coletiva dos sujeitos sociais, pois os interesses das elites dominantes, quando subjazem aos projetos curriculares, são para estabelecê-los como algo dado, pronto, acabado para ser aplicado, mas nunca para ser discutido, dialogado e transformado.

Trazendo essa discussão para o campo do estágio em espaços não escolares, podemos dizer que esse estágio pode representar novos compromissos políticos no campo do currículo e especificamente na formação de docentes, pois, como já discutimos neste texto, um dos maiores desafios dos professores em formação no retorno do campo de estágio é saber como ressignificar as experiências culturais vivenciadas pelos grupos sociais, de forma que possam intervir na organização curricular e na formação dos professores.

O que nos mobiliza, em larga medida, neste momento, é a necessidade de que os professores em formação compreendam o modelo de currículo que permeia as práticas pedagógicas da nossa escola, percebendo quais são suas raízes históricas e, assim, entendendo que a construção de um currículo envolve um contexto social, econômico, político e cultural, e, por isso, se constitui um campo de força, de lutas, mas, também, um campo privilegiado de discussões e decisões.

Com essa compreensão, saberão que um estágio que se propõe a trabalhar com espaços não escolares deve buscar a construção de sujeitos democráticos, cidadãos livres e autônomos que sejam capazes de fazer uma leitura crítica do mundo com vistas à sua transformação.

Nesse sentido, deve-se buscar uma proposta curricular que resista à subordinação da competitividade econômica e ajudar a construir uma educação pautada na solidariedade humana; sair do campo reduzido das formações e aprendizagens úteis e eficazes, determinadas por uma racionalidade econômica, para a construção de uma educação problematizadora que, no seu ‘quefazer’ humanista e libertador, possibilite aos homens submetidos à dominação lutarem por sua emancipação. E, nesse processo, perceberem que cultura, currículo e formação não estão dissociados.

A cultura se constitui como um elemento fundamental para a compreensão do que somos e onde queremos chegar. É pela cultura que organizamos e instituímos valores e significados em uma determinada sociedade. A cultura é uma aquisição sistemática da experiência humana, assim indicando que todos os homens são fazedores de cultura.

As discussões sobre o currículo nos fizeram perceber que as políticas curriculares, em razão das exigências atuais, têm tentado nos impor um modelo curricular em moldes empresariais, com sistemas centralizados de avaliação e com base em competências predefinidas, desconsiderando o lugar que as diferentes culturas ocupam nessa construção curricular, não consideram que em uma mesma escola ou espaço educativo, podemos encontrar diferentes manifestações culturais que se articulam entre si.

Nesse aspecto, o estágio em espaços não escolares pode se constituir como um importante espaço de diálogo entre a cultura e o currículo, pois como um campo que integra diferentes culturas, pode possibilitar aos professores em formação instigar o currículo, mostrando que vivemos em um contexto permeado de diferentes culturas, e que estas devem estar presentes nas construções curriculares.

Assim, buscando avançar, no veio das discussões, discorremos sobre o currículo como práxis, destacando os princípios presentes na obra de Freire, discutido por Grundy (1991), considerados como elementos constitutivos da práxis, apontando suas implicações no campo do currículo.

Por fim, as discussões desenvolvidas ao longo do texto nos mostraram que, mesmo em tempos sombrios, como os que estamos vivendo, podemos construir um modelo curricular que seja pensado com seus sujeitos e tenha como base a articulação da teoria com a prática, de forma que o currículo, a formação e o estágio sejam compreendidos como elementos integrados que sofrem influências culturais, sociais e políticas de cada tempo histórico.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante as discussões desenvolvidas ao longo do texto, procuramos anunciar que o currículo que se propõe a trabalhar com o estágio em espaços não escolares deve ser pensado na perspectiva da práxis, ou seja, currículo tomado como uma construção política e crítica do conhecimento que se desenvolve a partir de interações entre o mundo social e cultural; currículo que supõe um processo de construção de significado e que se reconheça como construção social.

Nesse aspecto, tentamos evidenciar que a cultura, o currículo e o estágio são processos integrados. A discussão sobre a cultura e o currículo no contexto dos estágios não escolares nos mostrou que os conhecimentos produzidos pelas várias áreas do conhecimento, podem e devem ser articulados com os saberes das diferentes culturas presentes nesses espaços, pois como bem sabemos, são saberes ainda negados nos currículos escolares.

Nesse aspecto, o estágio desenvolvido nos espaços não escolares pode se transformar em um importante espaço de diálogo para ajudar a questionar que lugar a cultura ocupa nos currículos escolares, uma vez que as indagações trazidas pelos professores em formação, do campo de estágio para a Universidade, irão instigar o currículo a ponto de suscitar debates, novas práticas e outros caminhos que podem criar possibilidades para uma construção curricular repolitizada, construída, em conjunto, por professores (inclusive aqueles em formação) e os grupos sociais implicados no processo de estágio.

O estudo, também nos mostrou a importância de se buscar um outro olhar sobre o que significa formar e formar-se, além das instituições “escolarizantes”, o que evidencia a necessidade de se abrirem outros campos formativos. O estágio em espaços não escolares, como um campo que integra múltiplas e diferentes culturas, pode contribuir para construção de um processo formativo, que considera a amplitude e complexidade da formação do professor, comprometida com o desenvolvimento humano em seu sentido mais pleno.

Dessa forma, acreditamos que o estágio em espaços não escolares, para além da inclusão obrigatória, do ponto de vista legal, possa se mostrar como um campo educativo de reflexões e ressignificações que apontem para outras possibilidades de aprendizagem que existem fora dos ambientes escolares institucionais, que são fundamentais para formação e atuação do profissional pedagogo.

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Recebido: 04 de Junho de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2020

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