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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.3 São Paulo jul./sept 2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i3p1466-1486 

Artigos

AS TECNOLOGIAS NO MOVIMENTO DE PRODUÇÃO CURRICULAR: DISCUTINDO POLÍTICA DE CURRÍCULO

TECHNOLOGIES IN THE CURRICULAR PRODUCTION MOVEMENT: DISCUSSING CURRICULUM POLICY

TECNOLOGÍAS EN EL MOVIMIENTO DE PRODUCCIÓN CURRICULAR: DISCUTIENDO LA POLÍTICA CURRICULAR

Lhays Marinho da Conceição FERREIRAi 
http://orcid.org/0000-0003-3619-2545

Roberta Sales Lacê ROSÁRIOii 
http://orcid.org/0000-0002-2173-5511

i Pedagoga e Mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação, comunicação e periferias urbanas, - FEBF/UERJ. lhays.uerj@gmail.com.

ii Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FEBF/UERJ. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação - Proped da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Tutora à distância do Consórcio Cecierj/CEDERJ, com a atuação na disciplina Currículo. Técnica administrativa atuando na Secretaria de Pós-Graduação do Mestrado Profissional do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira - CAp/UERJ. Email: robertarose1@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo é fruto de pesquisas que se inserem no campo de discussão das “Políticas de Currículo” e buscam problematizar a contribuição das políticas educacionais no movimento político, que é discursivo (LOPES e MACEDO, 2011). A partir de discussões em um grupo de pesquisa sobre currículo em diálogo com as políticas curriculares atuais, investigamos a intensa produção político-curricular que tenta justificar a importância do uso de materiais, de tecnologias consideradas educacionais e de normas visando à regulação da prática docente nas escolas, sob a premissa de que isso garantirá uma “qualidade na educação”. Problematizamos a tecnologia como uma possível linguagem de interlocução dos atores sociais, modificando suas maneiras de pensar, de agir e de se relacionar com o mundo e com o outro. Trazemos essa discussão para pensarmos as relações e propostas de práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula em diálogo com essa outra linguagem e como ela reconfigura os processos pedagógicos. Trata-se de uma pesquisa orientada para o problema, buscando os significados em um contexto investigativo que consistiu no acompanhamento de aulas da disciplina Integração das Mídias e Novas Tecnologias (IMNT) no decorrer do segundo semestre do ano letivo de 2017, em uma instituição escolar pública localizada na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Discutimos a partir do diário de campo e de alguns trechos de entrevistas com professores da referida disciplina. Levantamos questões que interessam ao propósito de refletir a produção do currículo no cenário social contemporâneo. As análises nos moveram para a discussão das práticas dos professores e estudantes como discursos que instituem sentido à produção política.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Tecnologia; Política de currículo

ABSTRACT

This article is the result of our research that does not include any field of discussion of “Curriculum Policies” and of the problems that contribute to the contribution of educational policies to the political movement, which is discursive (LOPES and MACEDO, 2011). From discussions in a research group that proposes to debate or to a field of dialogue in dialogue with current curricular policies, we investigate the intense political-curricular production that tries to justify the importance of the use of materials, educational techniques and norms, following the application of teaching practice in schools, under the premise that this guarantees a “quality in education”. Problem in technology as a possible language of dialogue of social actors, changing their ways of thinking, acting and relating to the world and to others. We bring this discussion to think about the relations and proposals of pedagogical practices developed in the classroom in dialogue with this other language and how it reconfigures the pedagogical processes. It is a type of research oriented towards the problem, seeking meanings in an investigative context, and consisted of monitoring classes in the discipline Integration of Media and New Technologies (IMNT) during the second semester of the 2017 academic year, in a public school institution located on the outskirts of the city of Rio de Janeiro. We discussed from the field diary and some excerpts from interviews with teachers in this discipline. We raise questions that are of interest for the purpose of reflecting the production of the curriculum in the contemporary social scenario. The analyzes moved us to the discussion of the practices of teachers and students as discourses that establish meaning to political production.

KEYWORDS: Curriculum; Technology; Curriculum Policy

RESUMEN

Este artículo es el resultado de nuestra investigación que se enmarca en el campo de las "Políticas curriculares" y busca problematizar la contribución de las políticas educativas al movimiento político, lo cual es discursivo (LOPES y MACEDO, 2011). Con base en las discusiones en un grupo de investigación que tiene como objetivo debatir el campo del Currículo en diálogo con las políticas curriculares actuales, investigamos la intensa producción político-curricular que trata de justificar la importancia del uso de materiales, tecnologías consideradas educativas y estándares. , con el objetivo de regular la práctica docente en las escuelas, bajo la premisa de que esto garantizará una "calidad en la educación". Problematizamos la tecnología como un posible lenguaje para el diálogo de los actores sociales, cambiando sus formas de pensar, actuar y relacionarse con el mundo y los demás. Traemos esta discusión para pensar sobre las relaciones y propuestas de prácticas pedagógicas desarrolladas en el aula en diálogo con este otro idioma y cómo reconfigura los procesos pedagógicos. Es un tipo de investigación orientada al problema, que busca significados en un contexto investigativo, y consistió en monitorear clases en la disciplina Integración de Medios y Nuevas Tecnologías (IMNT) durante el segundo semestre del año académico 2017, en Una institución escolar pública ubicada en las afueras de la ciudad de Río de Janeiro. Discutimos del diario de campo y algunos extractos de entrevistas con maestros en esta disciplina. Planteamos preguntas que son de interés con el propósito de reflejar la producción del currículo en el escenario social contemporáneo. Los análisis nos llevaron a la discusión de las prácticas de docentes y estudiantes como discursos que establecen el significado para la producción política.

PALABRAS CLAVE: Currículum; Tecnología; Política Curricular

1 INTRODUÇÃO

Nossas investigações se inserem no campo de discussão das “Políticas de Currículo” e buscam problematizar a contribuição das políticas educacionais no movimento político, a partir de uma perspectiva discursiva (LOPES e MACEDO, 2011), com intensa produção político-curricular que tenta justificar a importância do uso de materiais, de tecnologias consideradas educacionais e de normas visando à regulação da prática docente nas escolas, sob a premissa de que isso garantirá uma “qualidade na educação”.

Pode-se entender Políticas de Currículo como produções político-discursivas, como decorrentes de diferentes articulações entre significações representadas e advindas de diferentes atores sociais, numa luta por preenchimento de sentidos a partir de um pensamento hegemônico do entendimento do currículo como metas e objetivos, numa ideia de centralidade do conhecimento, buscando a eficiência no currículo via controle do conhecimento escolar, e em equivalência aos enfoques defensores das avaliações e currículos centralizados (LOPES e BORGES, 2017).

Tal fato ocorre pelo foco em obter qualidade na educação, como se a teoria curricular devesse ter um papel normativo, papel este que, de um lado, refere-se às normas que orientam a elaboração e a prática do currículo; e do outro, refere-se ao fato de que a educação sempre implica valores morais (YOUNG, 2014).

Nesse sentido, este artigo é fruto de nossas investigações, concluídas durante o curso de mestrado (2016-2018) e doutorado (2014-2018), inseridas em um grupo de pesquisas que se propõe a discutir o currículo sob a ótica de uma perspectiva discursiva em diálogo com as políticas curriculares atuais.

Iniciamos a reflexão apontando a proliferação de políticas curriculares centralizadoras, em que a busca por uma matriz única e nacional, uma base curricular regulatória para todos os níveis da educação, vem sendo um desejo/investimento das propostas, considerando-se a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (AXER, FRANGELLA, ROSÁRIO, 2017, 1179).

A nosso ver, essas ações não se iniciam com a BNCC, pois também ocorrem por meio de movimentos que estão se encaminhando a partir de perspectivas centralizadoras. Um exemplo é o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), apresentado como uma ação estratégica no contexto da formulação de políticas educacionais para o Ensino Fundamental, pela sua extensão, abrangência e adesão (FRANGELLA, 2016), num movimento de articulação política. Outro exemplo é o Guia de Tecnologias Educacionais (chamaremos apenas de Guia) que se inscreve em consonância com o Plano de Ações Articuladas (PAR) 1, elaborado em atendimento à proposição do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação2, que já levantava a bandeira da construção de um sistema nacional de ensino, em prol da qualidade na educação.

O processo de produção da política é um processo de prática articulatória, no qual a articulação tem caráter provisório, assim como as práticas hegemônicas. Conseguimos perceber essa prática articulatória durante as (re)formulações do Guia, citado aqui, no qual há alinhamentos e desalinhamentos conforme o discurso hegemônico que vem por meio de outras políticas curriculares, ao longo do período de vigência do Guia - 2007 a 2018, como percebemos com a influência da BNCC no atual Edital do Guia.

Tendo em vista esse direcionamento das políticas curriculares, a discussão que propomos com nossas pesquisas é problematizar a tecnologia apresentada pelas políticas educacionais como uma maneira de garantir a qualidade da educação. Nesse sentido, nossos investimentos e estudos se aproximam porque questionamos até que ponto a tecnologia pensada apenas como aparato tecnológico, maquinário, de fato interfere na modificação das práticas pedagógicas que traz, consequentemente, resultados positivos aos processos educacionais.

Diante do questionamento central, que vem acompanhado de tantos outros que circundam este texto e nossas pesquisas, trazemos para a discussão um entendimento da tecnologia como linguagem, pois - para nós - é uma prática de significação, em que a possibilidade de dar novos e/ou outros sentidos para as práticas cotidianas se faz presente.

[...] podemos observar que os sujeitos, na prática cotidiana, ao produzir outros sentidos para as suas ações na relação direta com a tecnologia, estão se apropriando da tecnologia como outra linguagem - e não somente como disponibilidade de aparato midiático. Mais do que isso, a tecnologia como linguagem pode ser compreendida como a possibilidade de mudança na forma como os sujeitos captam o mundo e as coisas, como se relacionam com o mundo dentro/fora dos espaços, na fronteira, onde é possível enunciar produções outras e, ao enunciar, elas se modificam e modificam o outro (FERREIRA; ROSÁRIO, 2015, p. 10).

Neste artigo focamos principalmente no uso dos dispositivos móveis - celulares, no desenvolvimento de propostas pedagógicas na escola e da informatização dos espaços de sala de aula, tendo como pano de fundo mudanças no cenário educacional, em consequência de mudanças também ocorridas no cenário social contemporâneo.

A partir de Carvalho (2015), nos apropriamos do termo tecno-curricular3, pois este nos ajuda a pensar a relação entre tecnologia, política e currículo. Percebemos que por meio dos discursos curriculares pela qualidade da educação, entre outros, defendem propostas tecno-curriculares envolvendo significação dos discursos sobre possibilidades de um trabalho conjugando tecnologia e currículo, no qual a tecnologia propicia brechas, fissuras nas concepções de currículo, prorrompendo sentidos híbridos, marcados pelo “novo”, embora esse “novo” não seja caracterizado por ineditismo de significações. Essa dinâmica ocorre no contexto político marcado por uma tentativa de indicar qualidade.

As discussões do cientista político Ernesto Laclau são importantes para pensarmos que os sentidos dados nas políticas tecno-curriculares são provisórios, articulados a partir do que Laclau (2011) denomina de “ponto nodal”. Este ponto nodal discursivo depende da existência de significantes vazios capazes de articular a equivalência dos significados de diferentes elementos de um discurso (LOPES, 2011, p. 37). Um significante vazio é um significante que, no processo de práticas articulatórias, assume a posição de uma demanda maior capaz de articular outras diferentes demandas. Ele é carregado de muitos sentidos, pois não é vazio por estar “esvaziado”, mas, pelo contrário, há muitos sentidos equivalentes que tornam impossível buscar nele um fundamento.

Desse modo, entendendo que a Política se dá na luta por significação, com mecanismos e estratégias discursivas na tentativa de articular cadeias de equivalência, compreendemos que não há um fundamento nas Políticas Curriculares, porque são concebidas aqui num cenário de incertezas e sem respostas definitivas, e essa ausência de fundamentos é o que nos permite sempre atuar politicamente na tentativa de produzir um fechamento, que é precário. Isso nos permite buscar dissolver a possibilidade de uma intervenção pré-programada e com projeto de pretensão universalizante, no jogo político (LOPES, 2015).

Esse processo político é fluido e se produz por meio de disputas entre os atores sociais envolvidos, sendo que o fluxo passa por contenções provisórias, pois as relações de poder não são fixas e os sentidos permanecem em disputas (ibidem).

2 CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa empírica foi desenvolvida com a utilização de técnicas de pesquisa e análise qualitativas que repousam sobre a presença humana e a capacidade de empatia e inteligência indutiva. São métodos e técnicas apropriados pelas ciências humanas que, segundo Holanda (2006), organizam a pesquisa de forma a explicitar e analisar os fenômenos humanos e sociais, assumindo as suas especificidades, com a compreensão de que eles não são passíveis de ser medidos, quantificados. São singulares, possuem características dos “fatos humanos” (HOLANDA, 2006). Trata-se de uma pesquisa orientada para o problema, que busca os significados em um contexto investigativo, sem a pretensão de produzir grandes generalizações.

A pesquisa orientada ao problema, não é uma preparação para projetos de intervenção ou como aplicação de um método, pois os métodos são discursos que propõem e/ou produzem o estabelecimento de um conjunto de relações entre elementos da realidade de acordo com uma lógica de critérios próprios, ou seja, os métodos não são mediadores universais ou neutros. A discursividade é uma característica instrínseca à própria realidade. (OLIVEIRA, OLIVEIRA, MESQUITA, 2013).

O lócus escolhido para a realização do estudo é um instituto de educação que oferece o Ensino Médio na modalidade Curso Normal4 e está localizado num bairro periférico do município do Rio de Janeiro. A instituição está em zona urbana, possui acesso à internet com laboratório de informática, biblioteca, cozinha e laboratório de ciências. Conta, ainda, com 616 matrículas no Ensino Médio e 1.589 no Curso Normal/Magistério. A maioria dos estudantes, por ser nível médio, tem idade entre 14 e 18 anos e grande parte do corpo estudantil é do gênero feminino.

O nome da instituição e os nomes dos sujeitos envolvidos na pesquisa são mantidos no anonimato para atender ao que foi pactuado durante as negociações que possibilitaram a realização da pesquisa na instituição; por isso, todos os nomes citados são fictícios. A pesquisa consistiu no acompanhamento das aulas da disciplina Integração das Mídias e Novas Tecnologias (IMNT) no decorrer do segundo semestre do ano letivo de 2017. Ao todo, são dezoito turmas sob responsabilidade de nove docentes. Seis professores foram acompanhados e entrevistados, totalizando quinze turmas.

A escolha da disciplina se deu a partir do entendimento da existência da disciplina no curso normal imbricada por ambivalências que a cercam: há um necessário diálogo com questões contemporâneas da educação e sociedade, mas ainda permanece uma ideia de que a disciplina é necessária porque os alunos devem saber como utilizar a tecnologia em suas aulas.

A proposta curricular da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC) é apresentada como Currículo Mínimo, que é um documento organizado em anos e bimestres, com os conteúdos que devem ser trabalhados ao longo da trajetória escolar do aluno da rede estadual (RODRIGUES, 2016), no qual a disciplina está mencionada na parte diversificada. Este Currículo, de acordo com a SEEDUC, é

[…] voltado para as novas tecnologias no Curso Normal, além de tudo o que já mencionamos, considera o avanço das ferramentas pedagógicas em contexto educacional. Dessa maneira, as tecnologias que estão ao nosso alcance devem ser tratadas como instrumentos excelentes para promover o aprendizado de forma contextualizada, criativa e eficiente. Para isso, faz-se necessário que o professor lide bem com tais recursos, a fim de promover aulas mais atrativas para os seus alunos, em que exista interação, imagens, sons, vídeos, fotografias, mensagens, jogos, programas, dentre outros. É evidente que o uso desses recursos deve estar muito bem organizado e planejado (SEEDUC-RJ, 2013, p. 4).

Rodrigues (2016), em pesquisa sobre a política curricular do Estado do Rio de Janeiro, afirma que a proposta curricular “Currículo Mínimo” buscou tornar simétrico o ensino da rede em todo o Estado do Rio de Janeiro, na tentativa de garantir que habilidades e competências sejam instrumentalizadas e desenvolvidas ao longo da trajetória escolar do aluno e de seu processo de ensino-aprendizagem, buscando uma essência comum (como o próprio documento cita); as medidas têm direcionamento político em prol de um sentido de qualidade alinhado à lógica de desempenho e resultados verificáveis, compondo uma macro política governamental.

Questionamos esse modelo clássico de planejamento do currículo, com regras que buscam definir o que pode (LOPES; MACEDO, 2011, p. 66) e o que deve ser feito -estabelecendo habilidades e competências a serem desenvolvidas, sugestões de atividades, livros, filmes, artigos, vídeos, sites, softwares que podem ser utilizados, trata de interdisciplinaridade e a avaliação. Há um conteúdo específico para cada bimestre, pois a referida instituição escolar alinha as ementas das disciplinas com base neste Currículo Mínimo, no qual a disciplina IMNT tem conteúdos provenientes do esquema a seguir (Figura 1).

Fonte: SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO-RJ. Currículo Mínimo (2013, p. 6)

Figura 1 Currículo Mínimo 2013: Curso Normal - Formação de Professores - Parte Diversificada 

A ideia sustentada é de que é possível controlar a atividade de professores e de estudantes para garantir a eficiência educacional com base no controle de metas, atividades e resultados (LOPES, 2004, p. 104). E instrumentalizar o ensino. Além deste controle, há uma percepção de que com “aulas inovadoras” a qualidade da educação será garantida.

Nesta pesquisa, utilizamos análise dos documentos curriculares, entrevistas semiestruturadas, observação participante e diário de campo. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com professores voluntários que se dispuserem a contribuir para o estudo. A opção pela entrevista semiestruturada ocorreu porque, a nosso ver, ela possibilita um contato mais dialógico com o entrevistado, em que a relação entre entrevistador e entrevistado não é hierárquica. Essa escolha foi possível após um período de acompanhamento das turmas e o contato mais próximo com os professores. Essa criação de laços de confiança foi importante para a fluidez das entrevistas.

Listamos algumas questões para um roteiro inicial e aberto, o que possibilitou a inclusão, ao longo das entrevistas, de outras questões que foram sendo levantadas; muitas vezes surgiram assuntos surpreendentes, mas que contribuíram para o enriquecimento do estudo. O momento da entrevista foi considerado um espaço interativo, dialógico e permeado por significados que foram construídos devido ao vínculo estabelecido (MADUREIRA; BRANCO, 2001, p. 72). Esse processo interativo foi permeado por trocas e interlocuções, um processo de interação intencional, mas marcado pela dimensão dialógica (LOPES DE OLIVEIRA; BARCINSKI, 2006), em que a entrevista é utilizada como “uma interação, uma troca de ideias e de significados, em que várias realidades e percepções são exploradas e desenvolvidas, [ou ainda, como] uma tarefa comum, uma partilha e uma negociação de realidades” (GASKELL, 2002, p. 73-74).

O diário de campo também foi um instrumento importante nas incursões; nele foram registradas as impressões, interpretações e ressignificações produzidas durante o estudo. Os registros do diário de campo trouxeram a dinâmica das práticas cotidianas dos professores e estudantes, mas todas as análises possuem nossas interpretações produzidas ao longo da pesquisa.

São significados contingentes e provisórios que constituem o processo de construção do estudo, implicados em processos de negociação de sentidos. Também as falas dos entrevistados não devem ser analisadas como dados passíveis de serem coletados. Elas foram produzidas em contextos interativos contingentes, fruto de interpretações, também contingentes, produzidas pelos atores sociais e suas relações com o mundo e com os outros, que são sempre incompletas.

3 AS TECNOLOGIAS DIGITAIS E SUA PRESENÇA NA ESCOLA

A emergência das Tecnologias Digitais (TDs), com especial destaque para a sua dinâmica de rede, tem contribuído para a intensificação dos processos de ressignificação do mundo. As TDs potencializam a produção de novos enunciados culturais, que expressam novas formas de significar o mundo, inclusive a escola, as práticas pedagógicas, e o currículo.

Com base nas contribuições de Bhabha (2010), entendemos que o currículo se constitui como prática de enunciação cultural e, assim, afirmamos a partir das perspectivas de Macedo (2006), o currículo como espaçotempo de criação para além de ideia de repertórios de saberes e significados partilhados historicamente em nome de uma tradição. Para além disso, a autora afirma a impossibilidade de controlar a produção de sentidos. Pensar o currículo como espaçotempo de fronteira cultural implica reconhecer a emergência de um entre-lugar de atravessamentos, marcado por intermináveis processos de negociação (BHABHA, 2010), o que não implica negar as relações assimétricas de poder implicada.

Dessa perspectiva, a concepção de currículo proposta por Macedo (2006) abala os fundamentos que, via de regra, organizam as formas pelas quais pensamos a escola. Coloca em questão concepções de cultura, de sujeito e de conhecimento que, frequentemente, sustentam os discursos educacionais.

Biesta (2013, p. 19) problematiza alguns desses fundamentos ao afirmar que “a educação tende a ser compreendida como o processo que ajuda as pessoas a desenvolver seu potencial racional para que possam se tornar autônomas, individualistas e autodirigidas”. É possível perceber que a lógica descrita por Biesta (2013) permanece como rastro de uma tradição que orienta a forma de pensar a escola, a sala de aula e as práticas pedagógicas.

É com base nessa compreensão que o controle e a tentativa de estabelecer uma “qualidade para a educação”, por meio do uso das TDs, se fazem presentes. O uso dos dispositivos móveis em sala de aula reconfigura essas práticas que habitam aquilo que tem sido entendido como “tradição escolar”, marcada pela lógica do controle do processo formativo em nome de um objetivo maior, ainda que ele possa ser ressignificado em diferentes perspectivas filosóficas/educacionais (PEREIRA, 2017). Problematizando esta perspectiva, buscamos entender os conflitos que os usos dos dispositivos móveis desencadeiam no cotidiano das instituições, conflitos que “sensibilizam” os legisladores e os motivam a cercear a presença deles na escola.

Partindo dessas questões, voltamos para as nossas pesquisas e problematizamos a tecnologia como uma possível linguagem de interlocução dos atores sociais, modificando suas maneiras de pensar, de agir e de se relacionar com o mundo e com o outro. Neste artigo, trazemos essa problematização para pensarmos as relações e propostas de práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula em diálogo com essa outra linguagem e como ela reconfigura os processos pedagógicos.

O pensamento educacional não é imune à lógica binária que organiza o pensamento educacional moderno, uma lógica que se sustenta também em perspectivas idealistas ao apontar para a possibilidade de uma formação identitária una, ideal e essencialista, quando estabelece que essa formação pensada a priori é passível de ser alcançada a partir da definição de conteúdos adequados para isso. Esses conteúdos selecionados dentre aquilo que se afirma ser patrimônio comum da humanidade são impostos a todos, concebidos como parte de uma cultura universal (PEREIRA, 2012). Em nome do “desejável” compartilhamento dessa cultura são justificadas estratégias de controle como tentativa de impedir que o estudante se desvie do caminho traçado.

No caso das práticas desenvolvidas em sala de aula que trazemos para o diálogo neste artigo, constatamos que o professor projeta nos estudantes a maneira que devem se comportar e espera que façam exatamente aquilo que foi planejado. Por outro lado, em nossas análises, percebemos práticas ambivalentes, que por vezes tentam delimitar um caminho pedagógico a seguir, mas também buscam outras possibilidades com os usos dos dispositivos móveis na sala de aula, o que possibilita conexão com outros espaços e tempos para além da sala de aula.

Os movimentos dos estudantes e professores, no que diz respeito à utilização de dispositivos móveis nas práticas pedagógicas, são assumidos como práticas discursivas, uma concepção que adotamos com base nas contribuições de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010). O discurso como prática articulatória constitui a realidade não como uma essência que gera sentidos acessados fora do discurso, pois o conhecimento é construído por práticas mediadas em contextos organizados de forma discursiva (LOPES, 2015).

Na medida em que se opta por atuar de forma centralizada na política de currículo, há uma redução das políticas à tentativa de controlar as leituras das bases/padrões/ propostas curriculares visando alcançar (supostamente) a qualidade da educação (grifo meu). A política de currículo passa a ser uma estratégia calculada para determinado fim preestabelecido. São escritos parâmetros, diretrizes, orientações, propostas que vão sendo cada vez mais detalhados, tentando tornar mais explícitos os conteúdos a serem formados e as atividades escolares a serem realizadas (talvez um dos exemplos mais emblemáticos dessa tentativa tenham sido os PCNs em ação e os PCNs+, ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso). São instituídos os exames, a distribuição de livros didáticos, são estabelecidos controles dos projetos Estaduais, Municipais e escolares, todo um esforço é dirigido à tentativa de controlar o que não pode ser controlado, a tentar garantir o que se supõe como leitura certa e que nunca será lida como tal. Tais propostas tentam tornar igual o que obrigatoriamente, pelo complexo processo discursivo, será sempre diferente (LOPES, 2015, p. 456).

Dessa forma, entendemos que as políticas tecno-curriculares são discursos que produzem sentidos sobre o que a escola é e o que ela deveria ser (PEREIRA e VELLOSO, 2012, p. 75). Produção que ocorre no social, nas relações dentrofora do âmbito escolar, a partir de articulações políticas. Mas essa produção é um processo contingente e precário, pois a escola não “aceita” de forma passiva estes discursos, e ela também os produz. Portanto, o conflito é inerente nesse processo de articulação, por uma operação discursiva em que determinados sentidos precisam ser preenchidos na tentativa de universalização, que é fundamental para a constituição hegemônica de um discurso, embora a universalização seja sempre infecunda (LACLAU e MOUFFE apud PEREIRA e VELLOSO, 2012).

4 O QUE DIZEM OS PROFESSORES SOBRE A ENTRADA DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS NO ESPAÇO DA ESCOLA?

Durante o desenvolvimento da pesquisa, entrevistamos seis professores que também foram acompanhados em suas aulas, totalizando 15 turmas. Nas entrevistas, os professores apresentaram questões e pistas sobre o que estamos entendendo em nossas pesquisas como produção curricular e produção cultural, ou seja, produção política discursiva.

Apontamos essas pistas como questões que envolvem o currículo em sua perspectiva ampla, para além de documentos prescritivos, mas, que estão na ordem dos desafios para a prática dos professores. Esses desafios, muitas vezes, exigem que eles ajam na incerteza, em sintonia com o que Laclau e Mouffe (2010) assinalam como a incompletude de um sujeito político que emerge na relação com a diferença, constituindo-se na decisão.

Neste artigo, trazemos alguns recortes das entrevistas realizadas com os professores para discutirmos os usos dos celulares na sala de aula e, assim, as significações instáveis e contingentes que vão sendo constituídas no dia a dia das salas de aulas, nas conexões que possibilitam estar além deste espaço físico.

Costumo enviar os arquivos para leitura, conversar com os alunos, e tirar dúvidas via whatsapp. Mas às vezes, eles acabam passando dos limites, e enviando mensagens até de madrugada (risos). Mas opto por ter esse contato fora da sala, porque só temos 2 tempos juntos (Professora Léia).

Por outro lado, os diferentes usos dos celulares, em sala de aula, nos permitem discutir as ambivalências dos usos e as apropriações que são feitas pelos professores. Abaixo, podemos perceber que ao mesmo tempo que os professores introduzem o uso dos celulares nas aulas, não abandonam suas outras práticas e vemos como isso também os inquieta de certa forma.

Utilizo o celular na sala de aula, em atividades orientadas. Mas, todos os dias uso o Datashow, com slides para que os alunos copiem, a aula fica mais dinâmica e com qualidade porque eles prestam mais atenção. (Professor Milton5).

A gente propõe algo diferente para eles, passa pelo celular a leitura dos textos para não precisarem copiar, mas aí, se eu não passo o visto no caderno falam que não têm a matéria. Então, eu passo pelo celular, mas ainda continuo com hábitos antigos, parece às vezes que estou com meus estudantes menores. A gente busca manter algo diferente e bom, mas acaba indo para o tradicionalismo (Professora Léia).

Os estudantes sempre estão usando o celular, eles não conseguem ficar sem usar. Eu sempre falo para pararem quando eu estiver explicando o conteúdo, mas, não consigo controlar o que estão fazendo, se estão vendo coisas em relação à matéria ou coisa do tipo. Então passo o conteúdo no quadro, faço debates e discutimos os assuntos pertinentes (Professora Daniele).

No caso do professor Milton, o datashow é utilizado porque deixa a aula mais dinâmica, mas, em contrapartida, ele orienta o estudante a copiar o conteúdo no caderno. As leituras feitas utilizando o celular não se diferenciam das indicadas em texto impresso. As lógicas que orientam as práticas não mudam; estão naturalizadas e condicionam os modos de pensar a formação. Lógicas estas pautadas numa perspectiva de controle do conhecimento e do currículo, o que para nós só demonstra o quanto a impossibilidade disto é decorrente.

A professora Denise passou todo o conteúdo de educação a distância no quadro branco para os estudantes copiarem no caderno. E todos copiam, alguns usam o celular rapidamente e voltam a copiar. Uma aluna usa o WhatsApp enquanto copia. Outra aluna utiliza o celular e é questionada pela professora do porquê ela está usando. A aluna diz que já acabou de copiar e que está vendo o WhatsApp. Uma terceira aluna utilizou fone de ouvido durante toda a aula (Diário de campo - aula da professora Denise em outubro de 2017).

Denise também se ressente da falta de recursos, como seus colegas: “não temos recursos, não tem datashow nem TV; por isso eu sempre faço algo tradicional, com textos e explicação oral, indo mais para o debate e cópia do quadro”. O que concluímos desta fala, assim como da de outros professores, é que o “não tradicional”, por si só, está garantido pelo uso das tecnologias. A prática da cópia, por exemplo, deixaria de ser “tradicional” se é feita a partir do datashow e ou celular. No entanto, a nosso ver, propor cópias do material exposto no datashow não altera em nada a dinâmica da aula, não altera a lógica preexistente de um modelo de aula e de escola, modelo pautado em um projeto educacional moderno (PEREIRA, 2012).

Fica notória a questão das diferentes (re)significações em relação ao uso da tecnologia digital; enquanto o professor busca direcionar a tecnologia para “fins pedagógicos” (como afirmam), os estudantes na maioria das vezes ao iniciar a aula estão fotografando ou ouvindo música, mantendo a mesma postura com frequência. Podemos entender, com Bhabha (2013), que as diferenças culturais retratam um contexto em que significados são apropriados de formas específicas de tradução, negociação e ambivalências, não tendo um sistema estável de representação. Assim, a tecnologia digital pode ser apropriada de diversas maneiras; seu uso pode ser significado de formas distintas.

Entretanto, quando os professores utilizam o celular se restringindo à leitura de textos ou apenas para cópia dos slides enviados pelo WhatsApp, parece-nos que significam o celular como um caderno ou livro; muda apenas o suporte, pois, ao invés de estarem escrevendo em folhas, estão lendo e/ou digitando. Assim, as outras opções de uso que os estudantes poderiam trazer de seus ambientes culturais não têm lugar no espaço excessivamente ritualizado e formalizado da escola (TURA, 2014).

Dessa forma, a utilização do celular em sala de aula não contribui para desestabilizar a lógica de organização e funcionamento da escola (PEREIRA, 2017), uma lógica que favorece a compreensão de que a aprendizagem se realiza na mera transmissão de conteúdos feita de forma eficaz pelos professores. O celular é incorporado de modo a preservar essa lógica como se qualquer outro uso implicasse um obstáculo à realização da aprendizagem.

A professora Araci distribui um texto para a turma e pergunta se eu quero também; digo que sim. O texto tinha como tema: “Jovens e novas tecnologias: bom ou mau?”. Separa a turma em grupos, pede para ler e depois fazer um debate com a turma. O texto estava em português de Portugal e um grupo perguntou o que significava a palavra “consoles”, a professora não sabia responder e perguntou se eu sabia; pedi para aguardar; pesquisei no Google e a palavra significava “jogos”. Quando respondi o significado, a professora disse: “Viram como podemos utilizar o celular na sala de aula? Ela pesquisou o significado da palavra. Vocês têm que fazer assim, e não ficar utilizando para essas coisas de vocês de redes sociais” (Diário de Campo - aula da professora Araci em agosto de 2017).

Entre as observações realizadas durante a aula do professor Milton, registramos que

o professor envia via WhatsApp para o grupo da turma o roteiro para a criação do blog. E mostra, no datashow, alguns blogs para dar exemplo. Demonstra os blogs pelo computador, com a projeção do datashow e pelo celular, exemplificando que também é possível usar o blog via celular, falando da abertura em diversas plataformas.

A criação da videoaula faz parte do projeto que o professor submeteu à direção no início do ano letivo, tendo como tema produção de vídeos educativos. Os grupos se dividirão e gravarão em sala de aula. Ele também enviou o projeto pelo WhatsApp para o grupo da turma. Alguns estudantes dizem que não conseguem abrir os arquivos por falta de espaço disponível no celular, o professor questiona e uma aluna diz que é por conta de ter muitos nudes (fotos de pessoas seminuas ou totalmente nuas). O professor comenta que eles não devem enviar nudes para outras pessoas, pois é perigoso; conversa com a turma, baixa na hora uma cartilha de segurança na internet e envia para os estudantes (Diário de campo - aula do professor Milton em agosto de 2017).

Podemos problematizar a partir das falas dos professores e das anotações do diário de campo que utilizar aparatos ou dispositivos tecnológicos na sala de aula já demonstra que concordam com a utilização deles e a associação que que isso pode garantir que a aula “seja boa”. Entretanto, frequentemente, essa utilização se limita às funcionalidades de um caderno e/ou quadro branco.

As propostas políticas voltadas para o campo da educação e que buscam a inserção da tecnologia nos processos curriculares das escolas, nos diferentes anos de escolaridade, trazem como base de argumentação e justificativa a melhoria da qualidade da educação, assim como a proposta de ser a tecnologia uma inovação para as práticas educacionais.

Com isso, é necessário analisar criticamente as propostas das esferas federal, estadual e municipal que investem nas parcerias e promovem a entrada da tecnologia nas escolas com o objetivo de aumentar os índices de aprovação e mudanças nas ações pedagógicas, com o intuito de melhorar as relações dos professores e estudantes com a produção do conhecimento. Um conhecimento que desafia os moldes anteriores de sua produção e que se constitui no movimento de muitas redes de interlocução e discussão dentro e fora do espaço da escola.

As redes de produção e interlocução, atualmente, estão para além dos usos da tecnologia no campo das políticas educacionais, pois as redes conectam os atores, em diferentes espaçostempos de produção, constituindo cadeias de produção de conhecimento e currículo. Muito mais do que um currículo constituído pelos atravessamentos da tecnologia, o que observamos no cenário atual é um currículo que se constitui nas/pelas redes de subjetividades, redes de políticas, as mesmas que compõem a produção do conhecimento - um conhecimento tecido em/na rede, que é fluida.

A gente tenta construir alguns projetos com outros professores, mas é complicado porque cada um pensa de uma forma, tem uns que nem ligam para a tecnologia. E além disso, vamos fazendo de acordo com o currículo que mandam, agora tá pra [sic]chegar um documento mais forte, talvez seja até bom, porque vai ter algo para o povo seguir, que diz que a tecnologia é boa. Talvez o trabalho flua melhor, ou não. Mas a gente vai buscando parcerias dentro da escola. A escola tem suas parcerias fora e vamos indo (Professora Léia).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que a professora chama de “documento mais forte”, promulgada através da Resolução CNE/CP no. 2, de 22 de dezembro de 2017, traz em seu bojo a necessidade de elaboração de projetos que visem à composição de currículos por parte de estados e municípios, em atendimento à proposta da Base, e planos pedagógicos a serem elaborados pelas escolas; permeada pelo entendimento de que é necessária a implementação de tecnologias (entendidas como aparatos midiáticos) para que haja uma eficácia no processo de ensino-aprendizagem, na construção do conhecimento e até mesmo no trabalho do professor, como vemos na fala de dois professores.

A gente não tem muito recurso, o laboratório de informática não funciona, têm poucos projetores na escola, se eu tivesse mais recursos, assim como um computador, eu acredito que eles prestariam mais atenção na aula, e aprenderiam mais, porque seria parecido com a realidade deles. Falta isso na escola. Trabalhar tecnologia usando computador, não papel (Professora Duane).

Essas cadeias de equivalência, que suscitam produção de currículo e conhecimento, são marcadas por articulações não lineares, constituídas por rastros, que emolduram o entrelace público-privado na educação. Há um fortalecimento de um tipo de social que tem relação com afiliações múltiplas das quais grandes grupos empresariais e setores da sociedade no processo político-educacional fazem parte (CARVALHO, FRANGELLA, 2019).

E aqui pensamos a relação entre falta de qualidade da Educação, e uma ideia de tecnologia como salvação para tal. Entendemos, a partir de Lopes (2015), que a política se constrói por meio de articulações de demandas, nas quais há equivalências entre demandas frente a um exterior que é a ameaça ao entendimento dessas mesmas demandas. A “falta de qualidade” acaba sendo uma ameaça e assim, discursos são constituídos com a intenção de estabelecerem a “qualidade ideal” da educação.

Há uma lógica fantasmática das tecnologias digitais, que tem a ver com uma tentativa de conferir certa estabilidade ao significado de uma demanda por meio de um possível “borrado” ou apagamento da sua natureza contingente, esta

lógica fantasmática toma a forma de uma narrativa na qual um obstáculo interno (um ‘inimigo interno’) é considerado responsável por uma espécie de bloqueio identitário” cuja existência impede o atingimento do ideal de uma identidade plenamente conciliada com os conflitos constitutivos. (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 150).

Então, entende-se que é possível por conta de um “inimigo” (podemos pensar na falta de qualidade, embora esse processo não seja linear, mas cabe aqui para refletirmos sobre a relação entre tecnologia e qualidade) projetar nas/para as tecnologias digitais a tentativa de trazer estabilidade e qualidade à educação por meio da lógica de inovação em sala de aula.

Entretanto, entendemos que todos esses processos geram novos/outros conhecimentos, produzem cultura e fazem parte da lógica escolar; não descartamos que essa produção ocorra mesmo sem o uso das tecnologias digitais. Esses conflitos só intensificam as produções culturais. Isso é possível pelo entendimento de currículo como entrelugar (BHABHA, 2010), como um espaço de enunciação cultural que não negligencia a relação entre os diferentes e o reconhecimento deles, mas rejeitando as significações essencialistas, e opera na ordem das signifiXações precipitadas (AXER; PONTES; MACEDO, 2012, p. 5).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No atual arranjo social, grande parte das relações sociais do cotidiano está sendo intermediada também pelas diferentes tecnologias, porém, explorando mais a sua potencialidade na conexão entre os atores. São imagens, vídeos, hipertextos, áudios e tantas outras mídias de massa que mobilizam as ações dos atores sociais, promovem o diálogo entre si e o mundo. Interessamo-nos por refletir em que medida as tecnologias digitais mudam e reconfiguram os sentidos dos professores e estudantes de si mesmos e das coisas. Uma vez que os usos da tecnologia representam uma possibilidade de conexão entre os atores, pensá-la para além de artefatos e aparelhos eletrônicos nos permite problematizar outras formas de produção, autoria e emergência de um ator social que transita em diferentes espaçostempos.

Assim, entendemos que a tecnologia - e as redes que ela cria/modifica - se apresenta como outra possibilidade de construção e produção no/com o mundo globalizado, na perspectiva do “mundo sendo transmitido para o mundo, num estado permanente de disponibilidade das imagens” (PRETTO, 2006, p. 116).

Com o aprofundamento dessas questões, as análises caminharam para a discussão das práticas dos professores e estudantes como discursos que instituem sentido à produção política. Uma produção que se constitui na fronteira, em uma relação de alteridade que interfere e também produz sentido em uma relação dialógica. Assim, os professores e estudantes são produtores de cultura, em uma articulação em torno de uma cadeia discursiva de produção tecno-curricular.

As investigações tiveram o objetivo de levantar questões que interessam ao propósito de refletir a produção do currículo no cenário social contemporâneo, entendendo-o, a partir de uma perspectiva discursiva, como produções tecno-curriculares cotidianas dos professores e estudantes que se constituem através de articulações discursivas.

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NOTAS

1 O Plano de Ações Articuladas (PAR) é uma estratégia de assistência técnica e financeira iniciada pelo Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, instituído pelo Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007, fundamentada no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que consiste em oferecer aos entes federados um instrumento de diagnóstico e planejamento de política educacional, concebido para estruturar e gerenciar metas definidas de forma estratégica, contribuindo para a construção de um sistema nacional de ensino. O objetivo é desenvolver ações que contribuam para a ampliação da oferta, permanência e melhoria das condições escolares e, consequentemente, para o aprimoramento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de suas redes públicas de ensino. Trecho disponível em: https://www.fnde.gov.br/programas/par/sobre-o-plano-ou-programa/preguntas-frequentes-2. Acesso em: 10 abr. 2020.

2 O Compromisso Todos pela Educação, uma das etapas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), propõe diretrizes e estabelece metas para o Ideb das escolas e das redes municipais e estaduais de ensino. Os dirigentes municipais contam com a ajuda de especialistas do MEC para elaborar o PAR. Trecho disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/Bk_pde/ideb.html. Acesso em: 10 abr. 2020.

3 Termo criado pela autora: A educopédia e seus embaixadores: “estrangeiros” em cena nas escolas públicas do município do Rio de Janeiro. Orientadora: Rita de Cássia Prazeres Frangella. 2015. 112 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

4 Instituição Pública, regida pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC), que tem como proposta curricular o Currículo Mínimo, no qual todas as instituições de Ensino Médio devem basear os conteúdos das disciplinas. No curso de formação de professores, Ensino Médio Normal, o Currículo Mínimo é dividido em Base Nacional Comum e Parte Diversificada.

5 Os nomes usados nas citações de fala são nomes fictícios para a preservação dos sujeitos envolvidos na pesquisa, mesmo que tenham dado autorização para o uso dos materiais de registro durante o período de investigação.

Recebido: 15 de Abril de 2020; Aceito: 14 de Julho de 2020

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