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Revista e-Curriculum

versão On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.4 São Paulo out./dez 2020  Epub 20-Jan-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i4p1559-1579 

Dossiê ABdC 2020: Fabulações curriculantes na escola e na universidade

CURRÍCULO-FABULAÇÃO: BIBLIOTECA ESCOLAR ENTRE-LINHAS DE FUGA

FABULATION-CURRICULUM: SCHOOL LIBRARY BETWEEN ESCAPE LINES

CURRÍCULO-FABULACIÓN: BIBLIOTECA ESCOLAR ENTRE LÍNEAS DE FUGA

Carlos Eduardo FERRAÇOi 
http://orcid.org/0000-0002-4019-591X

Fabiano de Oliveira MORAESii 
http://orcid.org/0000-0001-6741-4564

i Pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: ferraco@uol.com.br.

ii Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: professorfabianomoraes@gmail.com.


RESUMO

Objetiva produzir potências e agenciamentos coletivos e políticos em fabulações curriculares presentes em oficinas literárias realizadas em uma biblioteca escolar. Fundamenta-se em autores que dialogam com a fabulação deleuziana e com a perspectiva cotidianista dos currículos. A metodologia aconteceu por intermédio da pesquisa com os cotidianos em composição com a cartografia, atenta às vozes e entrelinhas dos sujeitos praticantes dos cotidianos de uma escola de Vitória-ES em pé de igualdade com os intercessores teóricos. Apresenta conversações entre leituras, literaturas, currículos-fabulações e linhas de fuga traçadas com os cotidianos, apostando em uma dimensão fabuladora para o currículo, situando-o nas dimensões dos acontecimentos, devires e nomadismos como modo de subversão das atuais políticas educacionais normalizadoras e regulatórias e de seus efeitos de diminuição da vida e extermínio da diferença.

PALAVRAS-CHAVE: Currículos; Cotidianos; Fabulação; Literatura menor

ABSTRACT

It aims to produce collective and political powers and assemblies in the curricular fabulation present in a school library’s literary workshops. It is based on authors who dialogue with the Deleuzian fabulation and with the everyday perspective of the curricula. The study was carried out using research with the everyday life along with cartography, attentive to the voices and in-between lines of the subjects who exercise the everyday life of a school in Vitória-ES, Brazil, on an equal footing with their theoretical intercessors. It presents conversations between readings, literatures, curriculum-fabulations and escape routes drawn with everyday life, betting on a fabulating dimension for the curriculum, placing it in the dimensions of events, developments and nomadisms so as to subvert the current normalizing and regulatory educational policies and their effects of shortening life and exterminating difference.

KEYWORDS: Curricula; Everydaylife; Fabulation; Minorliterature

RESUMEN

Visa producir potencias y agenciamientos colectivos y políticos en fabulaciones curriculares presentes en talleres literarios realizados en una biblioteca escolar. Se basa en autores que dialogan con la fabulación deleuziana y la perspectiva del currículo cotidiano. La metodología se dio por la investigación con los cotidianos y con la cartografía, atenta a las voces y entre líneas de los sujetos practicantes del cotidiano de una escuela de Vitória-ES en pie de igualdad con los intercesores teóricos. Presenta conversaciones entre lecturas, literatura, currículos-fabulaciones y líneas de fuga trazadas con los cotidianos, apostando por una dimensión fabuladora para el currículo, situándolo en las dimensiones de los acontecimientos, devenires y nomadismos como forma de subversión de las políticas educacionales normalizadoras y regulatorias actuales y de sus efectos de disminución de la vida y exterminio de la diferencia.

PALABRAS CLAVE: Currículos; Cotidianos; Fabulación; Literatura menor

1 INTRODUÇÃO

Objetivamos neste artigo dialogar com entre-linhas de fuga da fabulação dos currículos presentes nos processos de leitura e de usos da literatura infantil nos espaços-tempos de uma biblioteca escolar. Buscamos traçar conceitos, conversações, percepções, metodologias e afecções potentes ao que na biblioteca escolar da Escola Miguilim (nome fictício) percebemos e vivemos, às nossas leituras, às teórico-práticas que nos afetaram e aos saberes-fazeres que nos atravessaram no processo de realização da pesquisa.

Intencionamos subverter o lugar da literatura e das práticas leitoras vislumbrando potências e transgressões da ‘literatura menor’ (DELEUZE; GUATTARI, 2003) em seus agenciamentos coletivos e políticos, em seus gaguejos e balbucios e em suas possibilidades de subversão, de modo a apostar na fabulação (DELEUZE, 1997; DELEUZE; GUATTARI, 1992) do currículo como ato político e coletivo, como reinvenção da própria língua, escrevendo em atenção aos sujeitos cotidianos e aos agenciamentos políticos e coletivos por eles promovidos.

Metodologizamos por intermédio da pesquisa ‘com’ os cotidianos (FERRAÇO, 2003) em composição com a cartografia (KASTRUP, 2009), atentos às vozes, aos relatos, às entrelinhas, aos efeitos, às tensões e às reações dos sujeitos praticantes (CERTEAU, 1994) dos cotidianos da escola com a qual realizamos a pesquisa1 e dos nossos personagens conceituais e estéticos em pé de igualdade com os intercessores teóricos e os autores dos livros de literatura trabalhados.

Assumimos os sujeitos cotidianos como protagonistas coletivos de políticas de currículo inventivas e alternativas às propostas oficiais, sujeitos que, com seus variados modos de utilizar os textos prescritivos curriculares governamentais, produzem práticas-teóricas, isto é, são também autores de discursos sobre currículo. Entendemos os sujeitos cotidianos como autores que, fazendo uso de outras possibilidades ético-estético-políticas que não apenas a escrita, exercem, praticam e reinventam, a cada dia, os currículos (FERRAÇO, 2003).

Tais sujeitos não eram senão a bibliotecária que nos acolheu em seu espaço-tempo, as professoras e os estudantes das turmas do 4.º ao 6.º Ano, e os autores dos livros lidos para a nossa pesquisa. Os sujeitos cotidianos e a própria escola se fazem presentes nas vozes e nos silêncios e se fazem ouvir a partir de seus pseudônimos similares a nomes de autores ou personagens da literatura menor2. Tivemos como desafio, pois, em nossas reescrituras, traçar planos de imanência em conversas com leituras, com literaturas, com currículos, com autores de livros lidos, com sujeitos cotidianos, com elementos éticos, com elementos estéticos, com conceitos, com personagens, com espaços-tempos e com linhas de fuga, molares e moleculares.

2 DESALINHANDO FABULAÇÕES

Sabemos que a conjunção de fluxos de territorialização, de desterritorialização e de reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1992) vai além da limitação que se caracteriza por ser territorial ou geográfica, pois diz respeito a deslocamentos, reexistências, potencializações, agenciamentos, movimentos, fugas não simplesmente ou necessariamente espaciais. O sujeito não foge para fora do mundo, mas faz fugir o mundo e suas representações, reinventando-as em singularidades subjetivas.

Segundo Deleuze e Parnet (2004, p. 21), “[...] as coisas, as pessoas, são compostas de linhas muito diversas, e não sabem necessariamente em que linha estão, nem onde fazer passar a linha que estão em vias de traçar”. Portanto, partir, evadir, “[...] fugir, é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobrem mundos através de uma longa fuga quebrada” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 51), de uma linha de fuga, fissura. Afinal, “[...] é o mundo que foge de si mesmo por essa linha, ele se desmancha e vai traçando um devir [...] pois o plano que essa linha cria em seu movimento é feito um estado de fuga” (ROLNIK, 2007, p. 49-50).

Enquanto as linhas molares ou duras promovem divisões e bifurcações, as linhas moleculares ou flexíveis permitem relativas desestabilizações passíveis de controle por parte da despótica ordem molar. As linhas de fuga, por sua vez, conduzem a desterritorializações, de modo a permitir, por meio de caminhos alternativos, a singularização em seus processos disruptores (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 45).

A fabulação “[...] tem a força da linha de fuga, daquilo que escapa. A fabulação se aproxima do campo dos afetos, [...] das potências, do múltiplo, das desterritorializações” (MARQUES, 2015, p. 162), enquanto a desterritorialização da língua, como um dos elementos da fabulação, efetiva-se por meio do deslocamento do que nela é fixo (suas linhas molares) e do que nela é fluxo (suas linhas moleculares), afirma Marques (2015).

Portanto, considerando que a fabulação, como afirma Deleuze (1997, p. 13), não consiste na imaginação ou na projeção de um eu, mas na elevação até os devires ou as potências, permitimo-nos, por meio de fabulações, ir ao encontro: do sujeito que emerge como impessoalidade singular, das desterritorializações, dos devires e das linhas de fuga, entrelinhas das potentes conversações traçadas nos espaços-tempos que configuram uma biblioteca escolar.

Traçamos este artigo por intermédio de um personagem estético constituído em personagem conceitual (DELEUZE; GUATTARI, 1992) como potência para a fabulação dos currículos nos espaços-tempos da biblioteca escolar na produção de uma escrita permeada pelas situações que vivenciamos na escola e pelos autores que subsidiam a pesquisa.

3 UM DESPERTAR

Ao despertar de uma noite povoada por sonhos agitados, Francis Tracart percebeu-se metamorfoseado em um inseto. Estava deitado sobre o dorso e o que via a seu redor lhe parecia imenso em demasia para compreender. Ao longe, muito longe, um teto com hélices enormes de um gigantesco ventilador. Muito adiante, uma imensa porta. Em uma das paredes que se perdia distante, um grande mapa e um mural de lembretes. A uma boa distância, uma escrivaninha com computador, globo, objetos diversos e livros, muitos livros. Estranhamente, sua visão dos enormes livros empilhados na escrivaninha lhe trazia certa sensação na região do abdômen, algo que Tracart só podia comparar à lembrança do apetite que sentia ao ver uma suculenta lagosta bem servida. O mais curioso era que, apesar da improvável comparação, a lembrança da lagosta agora lhe causava asco, repugnância. Pensou: “como alguém pode ser capaz de comer um animal tão lindo, tão belo, tão parecido com, com, com...”, e olhou para o seu umbigo. Não havia umbigo. Completou: “com... comigo!?”, ao ver seu abdômen cilíndrico-achatado todo segmentado e coberto de escamas prateadas, terminado por três longos filamentos, um na continuidade da cauda e outros dois diagonalmente direcionados para as laterais.

No desespero agudo que sentiu, suas seis finíssimas pernas se debateram em velocidade estonteante e ele se virou com o dorso para cima. Olhou com atenção e viu ao seu lado uma casa. Parecia uma casa sem telhas, sem porta, mas tinha um cheiro tão, tão, tão...

Tracart resolveu chegar mais perto. A casa era atraente. Ao aproximar-se ainda mais, por alguma razão sentiu-se atravessado pela lembrança fatal do livro que lera na noite anterior. Uma novela de Franz Kafka: A metamorfose. “Não pode ser”, pensou, “uma barata!”, exclamou, “pobre Gregor Samsa, uma barata! Mas e se eu...”, cogitou, “comigo não!”, lamentou, “não pode ser”, reiterou, “uma barata prateada”, impressionou-se. Contorceu-se procurando as asas: “e pra completar sem asas”.

Morrendo de vergonha da tão ridícula barata que se tornara quis entrar por uma das múltiplas entradas daquele edifício. Mas... “Como é que se entra na obra de Kafka? É um rizoma, uma toca, esta obra [...] entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 19).

Entrou. E dentro dela lembrou que na semana anterior seu sobrinho Fernando lhe trouxera da escola a novela que o próprio tio pedira que ele tomasse de empréstimo na biblioteca escolar. Na tarde anterior, o menino lembrou: “tio Francis, preciso entregar o livro amanhã cedo na biblioteca”.

“Foi isso,” lembrou-se Tracart, “prometi ler tudo numa única noite. Assim li Kafka. Foi isso. A metamorfose me atravessou, entrou em mim”, então se deu conta de que aquela casa era o livro, “e agora estou dentro dela. Uma barata prateada e sem asas dentro de uma casa deliciosa e quente e escura”.

Começou a raspar com as mandíbulas as camadas do assoalho daquela casa a ponto de retirar as primeiras lascas quando escutou um chamado que vinha de fora do quarto:

- Tio! - Toc, toc, toc, tocou à porta. - Posso entrar?

Tracart tentou responder afirmativamente:

- szszzeeiiinmmmm - assustando-se com sua voz-zumbido, uma voz de animal.

Fernando, mesmo que tivesse escutado a voz tão baixa do minúsculo inseto, não teria entendido que se tratava de um signo linguístico, de uma palavra humana, de um ‘sim’. Talvez, se pudesse escutá-lo, notasse apenas um ruído como tantos outros: o bater de asas de abelhas, o rumor do ventilador, o fim do canto da cigarra, o barulho do refrigerador, o quase inaudível epílogo do bocejar dos cães, o assovio dos freios automóveis, o chiado dos televisores de tubos de imagem com volume reduzido, o roçar de gomos de um taquaral ao vento leve, um cafuné domingueiro, o incômodo surdo dos vibracalls dos celulares quase não calados, sons motores, sons moventes, máquinas que gritam o cotidiano.

Rrrrrraaaaaaangeu a dobradiça.

- Saiu cedo! Puxa! Antes de mim! Ainda bem que deixou o livro aqui na cama.

O menino apanhou o livro sem sequer imaginar, mesmo em seus mais improváveis delírios pré-adolescentes, que carregava consigo seu tio Francis Tracart metamorfoseado em uma, uma, uma traça.

4 UM EXEMPLAR

E seguiram rumo à escola, Fernando, Francis e o livro: um exemplar de A metamorfose de Franz Kafka. Um exemplar a caminho da biblioteca. Um exemplar traduzido, desterritorializado de Franz, o Kafka, território e desterritório de Gregor, o Samsa, desterritorializante de Francis, o Tracart, reterritório de cada um deles e de nós, e que dentro em breve seria reterritorializado na biblioteca escolar.

E entre movimentos, potências de vida, desterritorializações, fugas, devires, impulsos, o nômade Tracart, devir-animal, devir-inseto, devir-coleóptero, devir-tisanuro, devir-traça, chegou à biblioteca.

Em pouco tempo já estava passeando por entre linhas das páginas dos livros mais diversos. Devir, desejo de escapar, desejo que “[...] não é forma, mas procedimento, processo” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 19). Devir que “[...] é captura, posse, mais-valia; nunca é reprodução ou imitação” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 35).

Contam que, em seus movimentos nômades noturnos pela biblioteca, a primeira letra que comeu foi a letra ‘L’ de literatura. ‘L’ de Letra, Leitura, Livre, Linhas, Língua, Linguagem, Ler, Lábios, Lamber, Lembrar. ‘L’ de Livro...

Numa manhã, depois de haver se empanturrado de trechos de jornais velhos, escutou:

- ...o ‘Livrinho’...

Tentou tapar os ouvidos. Mas, como não sabia exatamente por que parte do corpo escutava, estremeceu e já ia tentando se acalmar quando escutou mais uma vez aquela palavra tenebrosa:

- ...o autor do ‘Livrinho’...

E outra vez:

- ... ‘Livrinhos’ dele...

E mais outra:

- ... ‘Livrinhos’ de presente...

Tracart tentou gritar mais alto que aquela voz:

- Paaaareeszfjwmvgjinz - emitiu um guincho, um zunido imperceptível para os humanos ali presentes.

O grito parece tê-lo acalmado um pouco.

Tracart saiu de dentro do exemplar da pilha de livros didáticos antigos onde se fartara e avistou Cláudia, professora de Língua Portuguesa do 6.º Ano, respondendo às questões lançadas pela mãe de um dos alunos:

- Veja bem, Dona Eva, o ‘Livro’ que as crianças tanto comentam em casa se chama Ninguém sabe o que é um poema (AZEVEDO, 2005), da Editora Ática. O autor do ‘Livro’ é o Ricardo Azevedo. Os ‘Livros’ dele podem ser tomados de empréstimo aqui na biblioteca. Aliás, é muito bacana a sua iniciativa de dar ‘Livros’ de presente para o seu filho. Fique à vontade para conhecer a biblioteca e quando precisar é só me procurar ou falar com a Cecília.

Dona Eva agradeceu e se despediu sem perceber as tantas alterações que Cláudia sugerira à sua fala. Tracart, por sua vez, respirou aliviado e correu até a estante, aproximando-se do vasto acervo de literatura infantil e juvenil presente naquela biblioteca.

Sim, alguém viera em defesa da literatura infantil considerada menor (inocentemente ou pejorativamente) por grande parte da sociedade. Inocentemente, defendem alguns ao garantirem que a literatura infantil não é tratada de modo pejorativo nem é diminuída, e que o diminutivo correntemente usado é marca de afetividade por ser destinada a crianças e porque, de fato, os livros são menores em quantidade de páginas, de texto etc. Pejorativamente, reivindicam autores e ilustradores ao lembrarem quantas vezes em livrarias ou em escolas foram apresentados como escritores ou ilustradores de ‘livrinhos’. Isso sem contar o descaso com que esse gênero parece ser tratado no meio acadêmico, encontrando, quando muito, espaço no campo da educação.

Apesar de ter sido considerada desde seu nascimento um gênero menor, a literatura infantil tem sido entendida pelos pesquisadores que sobre ela se debruçam como um gênero de maior amplitude de alcance e mais democrático do que a ‘literatura’ dita maior (não adjetivada). Isso se dá em razão de a literatura infantil ter como uma de suas características ser escrita em atenção a crianças de diversas idades, bem como tendo em conta adultos de distintos níveis de formação e saber, despertando interesse e encantando pessoas de diferentes idades por meio da plurissignificação dos recursos simbólicos, icônicos, lúdicos, oníricos, políticos, coletivos e estéticos nela presentes. Quiçá por evocar possibilidades outras de se fabular a vida como uma criança. Literatura-infantil-devir-criança-fabulação.

Em muitos livros disponíveis naquela biblioteca escolar se efetivava o encontro entre, de um lado, o caráter educacional que desde a criação desse gênero literário se faz presente como formador de mentalidades, propagador de ideologias, mantenedor ou questionador de estratos sociais e valores preestabelecidos; de outro, a dimensão estética de devir artístico, instaurando rupturas, traçando linhas de fuga, potencializando fabulações, reinvenções e recriações na e com a linguagem, nas e com as verdades, no e com o mundo, na e com a realidade, no e com o imaginário, nas e com as ideias, promovendo gaguejos e balbucios. Em vários daqueles livros de literatura infantil os aspectos político e coletivo se uniam à estética em obras inquestionavelmente literárias.

No entanto, se a literatura infantil tem sido considerada um gênero menor em relação à ‘literatura’ dita maior, aquela não adjetivada, podemos lutar por promover um movimento de ressignificação, rejeitando a valência imposta por meio do significado amplamente aceito do termo literatura menor como literatura de menor qualidade e de menor relevância, e nos empenhar pelo estabelecimento e pela consolidação de outras dentre as tantas valências possíveis. A literatura infantil é sim uma literatura menor, pois é imediatamente social e política por pertencer “[...] à língua que uma minoria constrói numa língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38). Referimo-nos às produções que se constituem como agenciamentos coletivos e políticos (não a todas, infelizmente, pois algumas formatam indivíduos, congelam saberes, engessam potencialidades).

Quanto aos autores da literatura infantil, estes atuam como ‘escritores menores’ e como fabuladores ao agenciarem coletiva e politicamente as tantas percepções e afecções e ao transformarem signos do mundo por meio de seu trabalho. Ao instaurar outros mundos possíveis, mundos fabulosos e fabulados, um ‘escritor menor’ agencia por meio de sua literatura menor, como prática sociopolítica, a mediação da voz coletiva, e reinventa a linguagem, revelando uma língua estrangeira em sua própria língua nos tropeços que promove na língua estabelecida e convencional, essa mesma que estabelece e defende os valores consolidados e dominantes, pois estilo e estética têm função política na literatura menor. Estilo que é conseguir gaguejar na sua própria língua (DELEUZE; GUATTARI, 2003).

‘Menor’, portanto, não qualifica certas literaturas, mas sim as condições revolucionárias dessas literaturas diante da ‘literatura’ não adjetivada, dita maior. A literatura infantil se constitui como literatura menor na medida em que busca sociopoliticamente a língua de minorias dentro de uma língua maior, uma desterritorialização da língua maior viabilizada por meio de fabulações, tropeços, gaguejos, balbucios, tagarelices, brincadeiras, sonhos, criações e invencionices para as crianças e com as crianças, que vivem em uma língua que não é sua, uma língua maior que ainda não conhecem (ou que mal conhecem) e “[...] que são obrigados a utilizar” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 43). A literatura menor se faz dizer em agenciamentos coletivos e políticos e na desterritorialização da língua, pois, como afirma Deleuze (1997, p. 13), “Não há literatura sem fabulação”.

5 FUGAS FABULOSAS

Voltando às linhas, pensamos com Deleuze e Parnet (2004) que as pessoas e as coisas são compostas por linhas distintas entre si, ao mesmo tempo que desconhecem sobre que linhas transitam ou, também, por onde devem passar as linhas que estão prestes a traçar ou que linhas serão traçadas, pois “[...] há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 21).

O sujeito, tecido na dinâmica do emaranhamento das linhas molares e moleculares, é, pois, “[...] uma molecularização do molar e uma molarização do molecular” (DOEL, 2001, p. 102), ao mesmo tempo que as linhas de fuga levam às desterritorializações, favorecendo a expressão de singularidades por meio de rupturas, de descodificações, de fabulações, de criação de caminhos alternativos em um espaço em que as linhas molares apresentam fissuras e fendas. A fabulação também se dá nessas fendas, nessas fissuras, de modo a potencializar linhas de fuga gravitadas por buracos negros, prosseguindo em sua intensidade e fazendo jorrar signos-partículas que escapam a essas estruturas gravitacionais sobrecodificadoras. A linha de fuga criativa, portanto, “[...] arrasta consigo qualquer política, economia, burocracia ou jurisdição; suga-as como o vampiro, para lhe extrair sons ainda incógnitos que pertencem ao futuro próximo” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 78).

Cecília, em sua atuação como bibliotecária, traçava linhas de fuga em meio à imanência, aos horários estreitos, aos silenciosos entreturnos, aos ruidosos intervalos, às soberanas vigilâncias. Num desses dias, disse num quase desabafo à professora Cláudia:

- Ah, Cláudia, eles buscam os livros pela capa, se é atraente, se provoca curiosidade. Também pela finura, dependendo da disposição e pique que cada um tem para ler. Ou pela identificação com o título ou o assunto. Alguns alunos vêm para a biblioteca pra ler jornal, livro, gibi. Mas tem uns que nem leem, só vêm pra se esconder ou pra ficar no fresquinho do ar-condicionado. Tem os da turma do hip-hop que vêm para a biblioteca no horário do recreio. Eles se sentam em volta da mesa pra conversar e cantar.

Cláudia escutava atenta, concordando sem palavras, enquanto Cecília prosseguia em sua narrativa:

- Mas escuta (risos), teve um dia que eu peguei um no pulo. Um menino do 7.º Ano, grandão, pegou um livro, sentou e ficou ali, quietinho, concentrado que só. Acabou o recreio e ele continuou, não voltou pra sala não. Daí que mandei: “Ronaldo, pra sala agora”. “Não, Cecília, tenho que fazer aqui o trabalho de ciências”, ele teve coragem de argumentar, cara de pau. Aí eu não aguentei e disse: “Ciências? Como se esse livro aí é de matemática, Ronaldo?”.

Risos irromperam na conversação. Extrapolava-se mais uma vez o limite da sintaxe. Risos diziam mais, muito mais. Cecília continuou:

- É assim, Cláudia, tem uns que entram, fingem que estão lendo pra se esconder, pra fugir das aulas, dos horários, da professora. Pra você ver, tem um menino do 2.º Ano que não sabe ler, mesmo assim ele pega livro toda semana pra levar pra casa.

Cláudia argumentou:

- O bom, Cecília, é que mesmo sem ler como a gente espera eles acabam fazendo de alguma forma uma leitura. No ano passado você lembra que de quinze em quinze dias cada aluno do 5.º Ano pegava um livro pra ler em casa e contar pra turma. Então, a gente vinha aqui, você trabalhava a oficina e depois eles escolhiam livros para levar. Na semana seguinte eles traziam o livro escolhido e contavam o que tinham lido para a turma lá na sala. E o combinado era não contar o final pra aguçar a curiosidade de leitura nos outros. Mas olha que dava pra saber direitinho quem tinha lido ou não. Agora, vou te falar uma coisa, tem menino aqui que não quer nada com nada, mas que inventa cada história que fica melhor do que a história escrita. Tem ideia Cecília? Tô falando, fica melhor. É cada uma que esses meninos inventam.

- É Cláudia, é cada uma que só rindo. E o 5.º Ano da professora Mila? Todo mundo sabe da resistência deles para leitura, não é? Pois então escuta: ontem alguns alunos da turma dela leram livros em voz alta para os colegas, acredita?

Cláudia expressou admiração, enquanto Cecília continuava:

- É sério, Cláudia, pode perguntar à Mila! Na oficina literária anterior, na semana passada, eu comecei colocando livros nas mesas para que escolhessem e lessem individualmente e eles começaram a ficar agitados, como sempre. Então, Mila perguntou se alguém queria ler lá na frente uma história em voz alta para os colegas. Com muito custo, André leu um livro. Pois você acredita que ontem outros quatro alunos quiseram ler para os colegas? Fora os outros que também queriam, mas já não dava mais tempo! A turma toda ficou em silêncio prestando atenção enquanto cada um lia e ia mostrando as ilustrações, foi o máximo! E querendo ou não eles estavam rompendo com o comportamento esperado daquela turma, não é? Fizeram o inesperado. Reinventaram, não é assim?

As narrativas produzidas ‘com’ os usos da biblioteca forçam-nos a pensar (DELEUZE, 1997) nas singularizações que se dão com as diferentes possibilidades de desterritorializações criadoras a partir das linhas de fuga “[...] exatamente por causa do ‘perigo’ de toda linha que escapa” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 87).

Cabe transitarmos como nômades por um espaço liso “[...] marcado apenas por ‘traços’ que se apagam e se deslocam com o trajeto” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 43), sabendo esperar com a paciência infinita característica do nômade, pois para o nômade a desterritorialização não é senão a sua própria relação com a terra, para ele a reterritorialização se dá na própria desterritorialização. Cabe transitarmos como nômades, em vez de permanecermos no espaço estriado do pensamento sedentário. Pensamos que é também em meio a essas singularizações efêmeras e aos usos diferenciados dos espaços-tempos de uma biblioteca que as fabulações insurgem.

6 SILÊNCIO, SONS, MÚSICA

Na coluna central da biblioteca da Escola Miguilim, lia -se em um cartaz: “GENTILEZA ESCOLAR É: Fazer silêncio na biblioteca”.

- O cartaz? - Tracart escutava a voz de Cecília relatando - Ganhei de uma professora. Não acho que a gente tem que exigir silêncio na biblioteca não. Em algumas atividades de leitura é preciso ter ordem, respeito ao colega. Mas silêncio? Assim, o tempo todo? Aqui não é cemitério! Logo eu que gosto de cantar? Mas coloquei aí no meio da biblioteca. Sabe como é. É colega de trabalho. Gosto dela. Não concordo não. Coloquei aí o cartaz e, quando ela vem com a turma dela, ela vê que mesmo com o cartaz ali no meio eu canto rap, toco violão, incentivo conversas e trocas entre os alunos.

Para Cecília, biblioteca é ‘também’ lugar de ler em silêncio, acrescentaríamos com Kastrup (2008, p. 241), “[...] pois possibilita que o trabalho de leitura e tudo que ela implica possa acontecer”, mas é também lugar de conversar e de falar e de ler em voz alta e de cantar e de contar histórias e de fazer silêncio e... e..., pois a multiplicidade não é definida pelo número de partes, de termos, pela quantidade, mas pela condição de proliferar, de expandir. É múltiplo porque se divide o tempo todo.

O que a define é o E, qualquer coisa que tem lugar entre os elementos ou entre os conjuntos. E, E, E, o gaguejar. E mesmo que haja apenas dois termos, há um E entre os dois que não é nem um nem outro, nem um que devém o outro, mas que constitui precisamente a multiplicidade. É por isso que é sempre possível desfazer os dualismos a partir do interior, traçando a linha de fuga que passa entre dois termos ou dois conjuntos (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 47 - grifo do autor).

Cecília ressignificava, fabulava, reinventava os dizeres do cartaz como a gritar em silêncio. Fabulação curriculante. Fabulação que é a experimentação no real por meio de “[...] intervenções no universo de seus ambientes sociais, políticos, institucionais, naturais e materiais” (BOGUE, 2011, p. 22). Cecília simplesmente cantava, contava, conversava, lia em voz alta, como a dizer entre-linhas de fuga: “GENTILEZA ESCOLAR É cantar na biblioteca E fazer rap na biblioteca E contar histórias na biblioteca E conversar na biblioteca E ler em voz alta na biblioteca E fazer silêncio na biblioteca E... E...”

Enquanto ela narrava a história do cartaz, Tracart acompanhava a chegada de uma turma do 4.º Ano. Os alunos acomodaram-se em torno das mesas circulares enquanto a bibliotecária preparava o aparelho de som que tocaria uma base de rap para a leitura a ser feita diante do cartaz que pedia silêncio. Fuga, evasão, caminho alternativo. As entrelinhas dos dizeres do cartaz também sabiam tocar rap e cantar. Cecília tomava agora a palavra e o lugar central, indicando no cavalete de flip-chart um texto em letra bastão, cópia de um dos poemas do livro que trazia em suas mãos: Ninguém sabe o que é um poema (AZEVEDO, 2005).

Em seguida, disse algumas palavras com que introduziu a oficina literária, mostrou o livro, voltou ao aparelho de som e apertou o play, dando início ao toque da base de rap enquanto as crianças (já familiarizadas com o apreciado ritual) animavam-se e mexiam-se nas cadeiras, fazendo gestos de DJs e posturas de MCs, produzindo sons com a boca (beatbox), expressando movimentos corporais no ritmo envolvente da batida da trilha sonora. Tudo isso ao lado do cartaz que pedia silêncio na biblioteca. Como regente de um coral de sons e movimentos, a bibliotecária indicava o poema “Lição do dia” apresentado no flip-chart. E logo começava a cantar sendo acompanhada por toda a turma.

Na verdade, por quase toda a turma. Menos por uma menina: Lia, que sempre permanecia calada sem cantar, sem ‘participar’ (como se costuma dizer). Lia apenas olhava de soslaio. E era assim também nos outros dias diante dos outros tantos poemas cantados por Cecília sobre a base de rap ou com acompanhamento do violão.

Cuidar da vida

como quem cuida

de uma casa

de um jardim

de uma paisagem

de um bicho

de um filho

de um corpo

de um sonho

de um amigo

de um amor

Cuidar do mundo

como quem cuida

da própria vida

(AZEVEDO, 2005, p. 36).

Tracart, enquanto escorregava da estante para dentro de outro exemplar do mesmo livro apresentado por Cecília, observou que todos, com exceção de Lia, terminaram o canto do poema com a repetição do verso inicial de cada uma das duas estrofes: “Cuidar da vida. Cuidar do mundo. Cuidar da vida. Cuidar do mundo”. O canto compunha o corpo vivo e metamórfico da biblioteca. Silêncio? Às vezes é importante. Mas as vozes e os corpos também o são. Corpos leitores que cantavam e tocavam nas mesas, que sonorizavam e movimentavam-se. Movimentos de leitura, invenções e expressões, estéticas de vida nos espaços-tempos de uma biblioteca escolar.

“O acoplamento das crianças com o livro [...]” (KASTRUP, 2008, p. 241), por sua vez, dava-se em movimentos, em criações estéticas de si e do mundo, como um contato curriculante inventivo a incitar fabulosos devires. A bibliotecária leitora estabelecia-se como um ser de fronteira, de borda, entre a leitura para a turma e o texto lido, abrindo desse modo linhas de fuga e promovendo transformações.

Cecília, de fato, atuava como ‘atratora de afetos’, agindo como uma espécie de ‘atrator caótico’, como conceitua Kastrup (2008), por atrair o leitor não para si, “[...] mas para o texto e para os devires que ele comporta” (KASTRUP, 2008, p. 255). Por conduzir a expedição “[...] a um mundo desconhecido” (KASTRUP, 2008, p. 256), possibilitando o contato, acompanhando, arrastando consigo. Explorando a potência do momento ao instaurar redes de afetos.

A bibliotecária, em suas oficinas literárias, “[...] não diz: ler é bom, é preciso gostar de ler, mas expressa o bom da leitura através de semióticas diversas, a da própria linguagem literária, mas também de rosto e de voz” (KASTRUP, 2008, p. 257), de música e de imagens, de ritmo e de melodia.

E entre o cuidar da vida e o cuidar do mundo, entre o cuidado de si e o cuidado do outro, entre a estética e a ética da existência (FOUCAULT, 2010), Cecília desligou o som enquanto amplificavam-se afetivamente os ruídos, os balbucios, os movimentos de cadeira, os cantos, as falas, as troças, os comentários, as palmas, as conversações, as narrativas, os cuidados de si, os cuidados do mundo, as reinvenções rítmicas, as criações estéticas, as interações éticas, as reexistências.

Cuidado de si que se apresentava como um cuidado vinculado ao conhecimento de si e a princípios que se estabelecem ao mesmo tempo como verdades, pois “[...] cuidar de si é se munir dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade” (FOUCAULT, 2006, p. 269). O ethos se faz traduzir pelas práticas de si, pelos hábitos, pela conduta, pelo caminhar, pela calma diante dos acontecimentos.

De fato, aquele que tem um belo ethos, “[...] que pode ser admirado e citado como exemplo, é alguém que pratica a liberdade de uma certa maneira” (FOUCAULT, 2006, p. 270). Entretanto, para essa prática de liberdade se constituir em um ethos é preciso um trabalho de si sobre si mesmo, um cuidado de si que é, ao mesmo tempo, uma forma de cuidar dos outros.

Afinal, o cuidado de si “[...] funda-se no conhecimento de uma certa verdade que o próprio indivíduo aciona e que ele utiliza para transformar sua subjetividade” (ADORNO, 2004, p. 59), daí a importância de tomarmos a partir da dimensão política aquilo que se relaciona com o que optamos por transformar em nós mesmos, nas coisas que nos envolvem, nos processos que nos permeiam, nos presentes em que vivemos, e que vivemos.

A política se dá como uma tarefa constante de autorreflexão “[...] e é capaz de manter a conexão entre filosofia e história por meio da ‘visão de mergulho’ do trabalho ético sobre si” (FIMIANI, 2004, p. 128). E esse trabalho ético de si sobre si mesmo seria o próprio cuidado de si. Daí vem o maior desafio, praticar tanto o cuidado de si por meio do cuidado e do conhecimento da alma quanto o cuidado de si voltado para a vida como prática de dar forma à própria existência, de fazer da vida uma obra de arte, como uma estética de si (GROS, 2004).

Atento que estava a espreitar a oficina pela extremidade superior do livro em que se escondera, Tracart só teve tempo de mergulhar mais fundo por entre as dobras da encadernação ao sentir que o livro onde estava fora apanhado por uma mão musical (o barulho de pulseiras chacoalhava enquanto o livro era retirado da estante). Assim se dava, musicalmente, o movimento de desterritorialização do livro de poesias com tarja preta (a fita que identificava os livros de poesia na biblioteca era preta, foi o que quisemos dizer), do ‘escritor menor’, médico cultural, Ricardo Azevedo.

Para onde nosso personagem Francis Tracart seria levado? Em que paragens ou paisagens se reterritorializaria? Que reviravoltagens cartográficas lhe seriam possíveis?

Ele escondido estava, escondido ficou.

Logo após o empréstimo ter sido registrado por Clarice, estagiária de Cecília, o sinal tocou e a menina, com o livro na mochila, saía da biblioteca em meio ao som estridente. Zunido. Balbucio. Gaguejo. Trinar: Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmm!!!!!

7 DESTERRITÓRIOS E RETERRITÓRIOS

Seu movimento lhe parecia menos oscilatório do que deveria na mochila daquela menina. Embora percebesse as curvas, Tracart não sentia trepidações, quiques, passos. Tomou coragem. Escorregou pela capa. Atravessou o caderno. Subiu pelo estojo. Esgueirou-se pela fresta do zíper. Viu as rodas da cadeira. Avistou as mãos da menina traçando passos giratórios. Compreendeu.

Retornou às dobras da encadernação e, escondido, ali ficou.

Rememorou o movimento promovido pela leitura e pelo canto da ‘atratora de afetos’ Cecília: “Esta é a menina que se recusava a cantar e a ‘participar’ (como tradicionalmente supomos que deva ocorrer uma ‘participação’). Esta é Lia, a única que permanece calada, aparentemente desatenta, diante das cantorias de Cecília. Aparências! Aparências!”

Como traça, Tracart parecia conseguir se desvencilhar de alguns juízos fundados em aparências, em conceitos prévios, “pois justo ela tomara o livro emprestado”.

O engraçado é que Tracart não sabia se o que vivia de fato estava lhe ocorrendo ou se eram apenas movimentos na memória, passado irrompendo no presente, lembranças dos relatos de Cecília. Enfim, era um de seus múltiplos presentes, algo que de fato aconteceu em presentes diversos. Tanto que parecia lenda, daquelas que Cecília narrava, coisa vivida, revivida, revolvida, reinventada, revista, revirada. Desterritorializações da língua, fabulações.

E o mais curioso: em meio a todos os movimentos promovidos pela ‘atratora de afetos’, pela bibliotecária cantora, pela dinâmica Cecília, a menina que primeiro se permitira ir ao encontro do livro, que materialmente efetivara um acoplamento com a literatura, fora justamente a que parecia não se importar com os movimentos, cantos, sons, palavras, ritmos, vozes, mas que ainda assim se deixara afetar, passar por aquela experiência de leitura, ainda que em silêncio.

Tracart seguiu rumo à casa de Lia. Ao chegar, ele e o livro foram logo retirados da mochila e colocados sobre a mesa da cozinha. Depois de almoçar, Lia apanhou o livro, chamou Pedro, seu irmão mais novo, para o quarto, pediu que se sentasse na cama e, girando as rodas, tomou levemente a posição central do ambiente dormitório literário.

Então, reinventou os gestos e o canto de Cecília, refazendo em rap os passos da leitura por ela escutados com atenção na biblioteca escolar em seu silêncio musical e literário. O menino fazia movimentos, arriscava palavras e, em pouco tempo cantava poemas, daquele e de outros livros, que sua irmã lhe havia ensinado. Lia, por sua vez, cantava com desenvoltura ao atuar como ‘atratora de afetos’, atraindo o irmão para o texto, e não para si, favorecendo o acoplamento entre o menino ainda em idade pré-escolar e o livro. Incluindo-o nas redes de afetos constituídas em meio aos movimentos de Cecília, da turma, dos poemas, da biblioteca, da escola, do entorno, da vida.

Sabendo que as palavras reduziriam ou mesmo correriam o risco de aniquilar as afecções e as percepções do que vivera nessa experiência, Tracart (como tão bem aprendera com Lia) recusou-se a proferi-las, retornando com a menina para a biblioteca, seu reterritório, após haver experienciado cantorias, leituras e movimentos.

Aprendera naquela semana a respeitar e admirar o sábio silêncio de Lia, que participava das oficinas literárias de modo singular, reinventando o próprio conceito de ‘participação’, traçando linhas de fuga diante do proposto, do esperado, do que lhe era determinado.

No ano seguinte, Tracart presenciaria em silêncio, ou rememoraria nas lembranças sonoras dos relatos de Cecília, a chegada do menino Pedro à biblioteca, cursando então o 1.º Ano. O menino logo no primeiro dia cantou em rap todas as poesias apresentadas por Cecília com desenvoltura e clareza.

Num primeiro momento, a bibliotecária imaginou que ele já soubesse ler, mas em seguida constatou que ao cantar o menino não lia, mas sim parecia saber de cor os poemas.

Curiosa, e sob o olhar atento e silencioso de Tracart (artes de Lia), Cecília, ao fim da aula, perguntou a Pedro:

- Com quem você aprendeu esses poemas?

- Foi a minha irmã, do 5.º Ano, que me ensinou.

- E quem é a sua irmã? - quis saber a bibliotecária.

- Lia - respondeu Pedro, deixando Cecília surpresa, estupefata, encantada.

Logo Lia? Que estudava na escola desde o 2.º Ano e que permanecia calada e aparentemente desinteressada diante das oficinas literárias, dos movimentos de canto e de leitura coletiva? Que parecia recusar-se a cantar, a ler em voz alta, a falar ou mesmo a responder às questões e provocações a partir das poesias, das narrativas, das leituras? Que mostrava com frequência uma expressão fechada quando histórias, poesias e canções eram contadas, lidas ou cantadas?

O menino contou de que modo sua irmã cantava para ele os poemas ritmados em rap, citando outros poemas cantados por Cecília e também ensinados por Lia.

“Ela, danadinha”, pensou Cecília admirada, “reinventava as leituras e os cantos, reinventava junto ao irmão a metodologia que eu uso. Aprendeu e ensinou do seu jeito. E memorizou tudo sem cantar. Danada mesmo”.

Se o poeta, o escritor, “[...] o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 227), Cecília e Lia se constituíam como atratoras de afetos.

Na semana que se seguiu, ao receber a turma do 5.º Ano, Cecília observou mais uma vez a aparente desatenção da aluna e, ao encerrar a oficina, aproximou-se dela dizendo que tinha conhecido seu irmão. E lhe agradeceu carinhosamente por ela ter lido e compartilhado tantas poesias e histórias com ele.

Lia, olhando Cecília de banda, não esboçou reações aparentes... a não ser um discreto e quase imperceptível sorriso.

8 CONCLUSÃO

Ao permitir-se o movimento nômade de desterritorialização criadora, o sujeito não apenas pratica o cuidado de si por optar nessa atitude por um comportamento ético indissociável de uma estética da existência, exercendo a liberdade de fazer de sua vida uma obra de arte, mas também se permite o transbordamento da força inerente a esse ‘deixar-se atravessar’ pelo conjunto de afectos e perceptos da arte, ao assumir a estética de sua própria existência, ao fazer da própria vida uma obra de arte.

Assim se dá com as leituras da literatura infantil, literatura menor, assim se dá com a estética da vida, a reinvenção da linguagem, a sua desterritorialização, a reinvenção dos espaços-tempos, as linhas de fuga e processos de singularização. Desterritorialização, fuga, arte, fabulação. Os sujeitos cotidianos em suas desterritorializações, fugas, criações fazem de suas vidas, dos currículos e dos espaços-tempos da biblioteca escolar uma obra de arte.

Currículos-devir-nômades plurais, metamórficos e efêmeros que insurgem em meio às linhas molares dos controles e das normatizações. Currículos-fabulação que acontecem com as leituras, as conversações, os silêncios, os raps e as literaturas. Currículos-fabulação entre linhas de fuga traçadas ‘com’ os cotidianos, apostando em uma dimensão inventivo-fabuladora do currículo, situando-o nas dimensões dos acontecimentos, devires e nomadismos como modos de subversão das atuais políticas educacionais e regulatórias e de seus efeitos de diminuição da vida e de extermínio da diferença.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 As conversações e as oficinas literárias foram gravadas em áudio e vídeo em encontros semanais realizados no decorrer de 14 meses, sendo posteriormente transcritas e reescritas em consonância com a proposta de currículo-fabulação do presente trabalho.

2 André Neves; Cecília Meireles; Clarice Lispector; Cláudia Scatamacchia; Eva Furnari; Fernando Pessoa; Francis (Franz) Kafka; Lia Zatz; Miguilim (de João Guimarães Rosa); Mila Behrendt; Pedro Bandeira; Ronaldo Simões Coelho.

Recebido: 04 de Agosto de 2020; Aceito: 13 de Novembro de 2020

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