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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.4 São Paulo oct./dic 2020  Epub 20-Ene-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i4p1623-1644 

Dossiê ABdC 2020: Fabulações curriculantes na escola e na universidade

“CINECONVERSAS” E FABULAÇÕES CURRICULANTES: O USO DE FILMES E A POTÊNCIA DAS CONVERSAS COMO METODOLOGIA DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO

“CINECONVERSATIONS” AND CURRICULUM FABULATIONS: THE USE OF FILMS AND THE POWER OF CONVERSATIONS AS A RESEARCH METHODOLOGY IN EDUCATION

“CINECONVERSACIONES” Y FABULACIONES CURRICULARES: EL USO DE PELÍCULAS Y EL PODER DE LAS CONVERSACIONES COMO METODOLOGÍA DE INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN

i Doutorado em Educação pelo ProPEd/UERJ. Integra o Grupo de Pesquisa ‘Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons’ (ProPEd/UERJ), como bolsista PNPD/CAPES-FAPERJ, em estágio Pós-doutoral. E-mail: rhmen50@gmail.com.

ii Doutorado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Pesquisa "Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons" (UERJ. Professora de História das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro. Mediadora do curso de Pedagogia (Cederj-UERJ). E-mail: joribeiro87@gmail.com.

iii Doutoranda em Educação PROPEd/UERJ. Linha de pesquisa "Cotidianos, Redes Educativas e Processos Culturais", junto ao GRPesq "Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons". Desenvolve projetos nas áreas das artes e tecnologias. Bolsa: FAPERJ. E-mail: noaletoja22@gmail.com.

iv Doutoranda em Educação PROPEd/UERJ. Linha de Pesquisa "Cotidianos, Redes Educativas e Processos Culturais", junto ao GRPesq "Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons". Mediadora no curso de Licenciatura em Pedagogia do Cederj/UERJ. Bolsa: FAPERJ. E-mail: mariamoraiss@yahoo.com.br.


RESUMO

O artigo resulta, na perspectiva dos estudos com os cotidianos, de conversas entre quatro pesquisadoras que, a partir do filme O pagador de promessas (1962), apresentam questões acerca de polifonia cultural, fabulações curriculantes, “potência do falso”, intolerância religiosa, entre outras. As autoras dialogam com as “cineconversas” e os personagens conceituais como elementos da metodologia de pesquisa utilizada para a formação de professores. Como questões sociais se transformam em questões curriculares? De que maneira o uso do cinema na educação possibilita a criação de novas redes educativas, a partir das redes que formamos e nas quais somos formados? Autores como Nietzsche, Deleuze, Certeau, Maturana, Candeau, Alves, Stam, Guéron, para destacar alguns, fundamentam este texto.

PALAVRAS-CHAVE: Currículos; “Cineconversas”; Fabulações; Intolerância religiosa

ABSTRACT

The article results, from the perspective of studies with everyday life, of conversations between four researchers who, based on the film O pagador de promesas (1962), present issues such as cultural polyphony, curricular fabulations, “power of the false”, religious intolerance, among others. The authors problematize “cineconversations” and conceptual characters as elements of the research methodology for teacher training. How do social issues become curricular issues? How does the use of cinema in education make it possible to create new educational networks, based on the networks we form and in which we are formed? Authors such as Nietzsche, Deleuze, Certeau, Maturana, Candeau, Alves, Stam, Guéron, to highlight some, support this text.

KEYWORDS: Curricula; “Cineconversations”; Fabulations; Religious intolerance

RESUMEN

El artículo resulta, desde la perspectiva de los estudios con la vida cotidiana, de conversaciones entre cuatro investigadoras que, a partir de la película O pagador de promesas (1962), presentan temas como la polifonía cultural, las fabulaciones curriculares, el “poder de lo falso”, la intolerancia religiosa, entre otros. Los autores problematizan las “cineconversas” y los personajes conceptuales como elementos de la metodología de investigación para la formación docente. ¿Cómo se convierten los problemas sociales en problemas curriculares? ¿Cómo el uso del cine en la educación posibilita la creación de nuevas redes educativas, a partir de las redes que formamos y en las que nos formamos? Autores como Nietzsche, Deleuze, Certeau, Maturana, Candeau, Alves, Stam, Guéron, entre otros, apoyan este texto.

PALABRAS CLAVE: Currículum; “Cineconversaciones”; Fabulaciones; Intolerancia religiosa

1 ABRINDO CAMINHOS...

Fonte: Imagem disponível em: http://sentaai.com/tag/o-pagador-de-promessas/. Acesso em 13 jul. 2020.

Nota: Zé do Burro passa a viver na porta da igreja de Santa Bárbara

Figura 1 O pagador de promessas (1962) 

Este artigo resulta de conversas a partir de O pagador de promessas (1962), direção de Anselmo Duarte. Inspirado na obra de mesmo nome de Dias Gomes, o filme recebeu a disputada Palma de Ouro, no Festival de Cannes. Até o presente, é o único filme brasileiro a receber a honraria.

O drama, estrelado por Leonardo Vilar e Glória Menezes, entre outros atores renomados, conta a história de um homem humilde do interior da Bahia. Ao ver seu animal doente, Zé do Burro, como era conhecido, procura uma Mãe de Santo em um Terreiro de Candomblé, prometendo dividir suas terras entre os lavradores e levar uma cruz, do tamanho da de Cristo, em peregrinação até a Igreja de Santa Bárbara, na capital, Salvador, em agradecimento pela recuperação do burro.

A partir daí, o filme apresenta a saga de Zé do Burro e de sua mulher, Rosa, que enfrentam desafios como intolerância religiosa, divergências políticas, embates sociais, entre outros, para que a promessa fosse cumprida.

O filme traz a potência criativa e astuta (DETIENNE; VERNANT, 2008) do ser humano. “Métis”, força tática, força guerreira criada para encontrar saídas, resolver questões diante do mundo e, em especial, reafirmar crenças, é acionada. O sincretismo, presente no filme, é exemplo da própria astúcia e das táticas de pessoas trazidas das diferentes regiões africanas na condição de escravizadas, por exemplo.

Os Mitos são arquétipos criados para fazer emergir nossas potências. Eles povoam as mentes e se manifestam de maneiras diferentes, de acordo com cada cultura e suas crenças. A Métis que habita a mitologia grega é uma deusa, esposa de Zeus, que a devora por conta de sua inteligência e por gerar a filha que tomará seu trono. Ao ser engolida por Zeus, Métis, assim como sua inteligência e astúcia, são incorporadas a ele. Métis é uma guerreira, forja ferramentas e cria estratégias de guerra para se defender. Astuta, e como uma ‘praticantepensante’1-2, aprende com seus ‘fazeressaberes’ nas batalhas e encontra saídas para ludibriar Zeus.

No terreiro de candomblé, o protagonista, Zé do Burro, roga por seu animal à Santa Bárbara, sincretizada na figura de Iansã, ambas representando o arquétipo da mulher de coragem, da força dos trovões e das tempestades. Bárbara também foi “devorada” por um homem, seu pai. Primeiro, foi presa numa torre, depois degolada por se tornar cristã e renegar a religião da Roma antiga. Iansã, esposa de Xangô, outra mulher guerreira, esta da mitologia africana, tinha o domínio sobre o fogo e os trovões. Tal como Métis, era ferreira e, com sua astúcia, criava táticas de guerra. Assim como Bárbara, era questionadora e acreditava em suas verdades, entendia as forças da natureza e não se dobrava a nenhum homem.

Zé do Burro, como devoto de Santa Bárbara e, talvez, filho de Iansã, com sua astúcia não mede esforços para enfrentar as tempestades do preconceito. Fiel e obstinado, precisa honrar seu compromisso com Bárbara/Iansã/Métis, ou seja, com ele mesmo, encarnando as crenças e fabulações desses mitos. Afinal, ele é um homem ordinário3 de palavra e de fé, para quem a promessa era uma dívida.

Pensando na temática do dossiê “Fabulações curriculantes na escola e na universidade” e em conversas com o filme em questão, perguntamo-nos: O que há de retrato de uma época e de atualidade no clássico de Anselmo Duarte? Quais questões sociais por ele apresentadas podem se transformar em questões curriculares? Quantas fabulações bifurcadas, truncadas, ou criadas em hiatos, atravessam as questões curriculares e nosso compromisso ético com a formação das gerações presente e futuras? Quantos mitos e crenças ainda são criados pelos/nos currículos? E quantos podem/precisam ser revistos, recriados?

2 A PANDEMIA E O VIRTUAL

Em função do momento de isolamento imposto pela pandemia da Covid-19, os movimentos de pesquisa e tantas outras trocas se deram de forma virtual, por meio de e-mails e conexões possibilitadas pelas redes sociais e plataformas tecnológicas. Durante a pandemia foram ocupados os ambientes virtuais, em decorrência da impossibilidade dos encontros presenciais, num ‘simulacro’ de conversas, que nos levaram a múltiplos ‘espaçostempos’ de aprendizagem.

Portanto, estamos conectados, ‘aprendendoensinando’ de maneira antes inimaginável. Isso é o acontecimento, a criação feita a partir das relações com os diferentes outros para encontrar possíveis saídas de existência.

Para entender um pouco dos “usos”4 desse ambiente virtual, nos quais se dão a produção, o consumo e a circulação de ‘conhecimentossignificações’, dialogamos com Certeau (1994). O autor, diante das situações adversas, ensina-nos a compreender o transitar dos ‘praticantespensantes’ que se apropriam de diferentes formas de interação.

Uma grande potência desse momento foi o redimensionamento dos ‘espaçostempos’, pois por meio de artefatos digitais podemos acessar o outro, conectar-nos. Os ‘espaçostempos’ como ideia de algo físico, concreto, tornaram-se mais escassos, reduzidos. Os ambientes de encontro passaram a se configurar numa rede de circuitos invisíveis, em que trafegamos por presentes, passados e futuros de maneira híbrida. Isso gera outros gestos, sabores, odores, escutas nas maneiras de ‘aprenderensinar’.

A instabilidade evidenciada na contemporaneidade potencializa os “usos” de tecnologias multimodais e impele a nós mesmos, seres humanos, nesses “usos”. Fomos obrigados, diante das experiências dos encontros remotos, a sair da ‘zona de conforto’ e aprender a lidar com tecnologias que já estão nas mãos e nas mentes de crianças e jovens há algum tempo. Hoje são realidades os “usos” de celulares na apropriação das multilinguagens, sejam as linguagens corporais, digitais, do som, da imagem, do texto, nos movimentos de multimodalidades, nos quais essas linguagens se combinam por meio de multi-artefatos simultaneamente. Artefatos estes que propiciam de maneira conjugada nossos fluxos em aplicativos de edição de texto, de notas, de captura e edição de sons e imagens fixas e em movimento, rede de dados, rede wifi, criação, participação, compartilhamentos em redes sociais digitais. São likes, inscrições, visualizações, em uma busca compulsiva por audiência.

Ao mesmo tempo em que parece que a Terra parou, o mundo se acelerou em tantas publicações, lives, reuniões, trabalhos, estudos, possibilidades de lazer, que movimentam uma rede invisível, efêmera e de muitos conteúdos que se abrigam numa nuvem virtual. E o que acontecerá se chover? O que será que se derramará dessa nuvem de diferentes conteúdos e formas? Tempestades, trovões, raios, um rizoma luminoso, estrondoso e flutuante, que parece conectar de maneira aparentemente democrática um “todo”, embora ainda com muitas segregações, isolamentos.

Os encontros remotos aproximam pessoas e coletivos de diversas regiões, mas também evidenciam fronteiras sociais, econômicas e culturais. As fronteiras não são mais territoriais físicas, e sim fronteiras de acesso. Inicialmente, eram criadas pelo medo do uso de plataformas tecnológicas e pela impossibilidade de acesso daqueles que não conseguem pagar um plano de internet. Após alguns meses, parte de nós foi capaz de superar os medos, inseguranças e descobrir as possibilidades que esse mundo virtual e globalizado pode nos apresentar, porém quanto à democratização ao acesso as restrições permanecem, em muitos casos.

O virtual para Deleuze é a potência do vir a ser, o devir, em seu estado de imanência. Em seu processo de atualização, materializa-se no acontecimento, que se trata daquilo que acontece na relação com o outro. Nesse caso, não é o outro o mais importante, e sim o resultado dessas relações com o outro, o que se cria nessas relações. Isto é o acontecimento. Na virtualidade, a materialização como ideia de real ou realização é quase inevitável e não-controlada. Por conseguinte, aquilo que entendemos como ambiente virtual é também real, porque se atualiza no acontecimento.

As criações que permeiam o virtual, o atual no acontecimento, podem ser pensadas como fabulações. Elas são narrativas em suas potências do vir a ser. Podemos entender essas fabulações como “potência do falso”. E o falso, nessa concepção, não é a mentira, e sim a potência da criação, a arte do criar.

3 NIETZSCHE, O NIILISMO E A “POTÊNCIA DO FALSO”

Deleuze traz Nietzsche como seu intercessor, ou seu personagem conceitual, para nos ajudar a pensar na “potência do falso”.

A filosofia nietzschiana, em sua célebre frase “Deus está morto”, quer chamar nossa atenção para uma crise de valores que marcam a cultura ocidental e que nos coloca como seres insignificantes diante de um mundo sem sentido. Essa crise dos valores platônico-cristãos é entendida pelo filósofo como uma forma de niilismo (aniquilação dos sentidos, inutilidade da vida humana), que nos propõe levar à radicalidade, a um niilismo não paralisante, - mas ativo, na busca da criação de novos valores. Segundo Nietzsche (2009, p. 28),

[...] necessitamos de uma “crítica” dos valores morais e antes de tudo deve se discutir o “valor destes valores”, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condições e o meio ambiente em que nasceram, em que se desenvolveram e se deformaram (a moral como consequência, como máscara, como hipocrisia, como enfermidade ou como equívoco, e também a moral como causa, remédio, estimulante, freio ou veneno), um conhecimento de tal espécie nunca teve outro semelhante, nem é possível que não o tenha nunca desejado.

Vivemos em um mundo marcado pela violência física e simbólica. As desigualdades sociais, a crise do capitalismo neoliberal e a consequente perda de direitos dos mais vulneráveis, as manifestações de preconceito e ódio, os fundamentalismos religioso e político foram agravados pela pandemia que assola os seres humanos de todo o globo e, de forma mais cruel, os grupos vulneráveis. Nesse contexto, resgatamos a proposta de Nietzsche por uma valorização da “potência do falso” como forma de dar alguns passos em direção a outras formas de tecer nossas existências.

A filosofia nietzschiana evidencia que a história da cultura ocidental é marcada por um erro, um equívoco que teve início com a filosofia socrática e a platônica, uma vez que estas criaram ou aprofundaram a dicotomia entre um mundo aparente (e sensível) e um mundo verdadeiro (o do campo das ideias). Assim, o ideal tornou-se o real e o sensível, aquilo que experimentamos, foi relegado à mera aparência disforme do real buscado, ou talvez pudéssemos dizer de um virtual, em potência. Vale lembrar o mito da caverna, de Platão, segundo o qual o mundo verdadeiro somente seria alcançado pela filosofia, que liberta os seres humanos das amarras produzidas pelas ilusões que o mundo imanente cria acerca do real, que é transcendente.

Mais tarde, como nos ensina Nietzsche em sua filosofia, essa mesma dicotomia entre real e sensível foi mantida pelo discurso cristão, a partir do qual o verdadeiro seria alcançado pela fé. E, mesmo em tempos em que religiões são questionadas, essa dicotomia se mantém presente, por exemplo, entre o que é científico e o não-científico. Essa grande fábula metafísica-religiosa deu os tons da cultura ocidental, atribuindo sentido à existência de muitos de nós no mundo. Logo, somos tecidos pela ideia de que existe um real, uma verdade preexistente a ser buscada/desvendada, seja pela filosofia, pela religião ou pela ciência.

Em momentos de profunda descrença nesse sentido transcendental da vida humana, como na atualidade, quando nos deparamos com nossa fragilidade e falta de controle do vivido, quando não encontramos respostas, podemos ser tomados de um ceticismo que nos deixa perdidos.

Quando Nietzsche nos propõe levar esse niilismo à radicalidade, não almeja que permaneçamos na falta de perspectiva, mas que sejamos capazes de perceber o mundo e a nós mesmos para além dessa dicotomia entre sensível e real, para que possamos romper com essa busca de uma verdade preexistente como uma busca moral. A filosofia nietzschiana se apresenta como a destruição desse mundo real/verdadeiro, que é idealizado e inalcançável, recordando-nos de que

[...] seja qual for o ponto de vista filosófico no qual nos coloquemos, reconhecer-se-á que a falsidade do mundo em que acreditamos viver é a coisa mais verdadeira e firme que nossa visão pode apreender. Encontramos repetidamente razões que nos fazem supor que existe na essência das coisas um princípio que induz a juízos falsos (NIETZSCHE, 2001, p. 46).

O filósofo atribui novo papel ao que é sensível, à experiência do mundo, ao aparente, aceitando o mundo em seu devir, em seu não-controlável, sem um sentido prévio e determinado.

Vale destacar que Nietzsche não faz uma crítica à religião ou à ciência como um todo. Ele critica a filosofia, a religião e a ciência que aprisionam os sentidos, que dicotomizam nossa experiência no mundo. No tocante à religião, por exemplo, sua crítica se dirige a uma moral cristã repressora, que insere nos seres humanos a culpa, por meio da ideia de pecado, e os responsabiliza pelos males vividos, a partir da ideia de livre-arbítrio. Se pensarmos no filme O pagador de promessas, a moral cristã repressora está presente quando o padre da Igreja de Santa Bárbara aponta Zé do Burro como um herege, quando o proíbe de entrar na igreja por acreditar naquilo que experimentou com a cura do seu animal. A Igreja Católica, nesse momento, se coloca como a única que pode mediar vivências sensíveis do povo, criando um discurso que confere a si própria o poder de falar em nome do verdadeiro, em detrimento das religiões de matriz africana.

Da mesma forma, o filósofo critica a ciência quando a mesma não se percebe como temporária, como uma construção que, para se tornar símbolo do verdadeiro, conferiu a outros ‘fazeressaberes’ a etiqueta de falso. Mais uma vez recorrendo a um exemplo do filme, a ciência, na figura do médico veterinário, se atribui o poder de falar em nome da verdade quando ele questiona os procedimentos de Zé do Burro para salvar seu animal e amigo, afirmando que muitos dos ‘fazeressaberes’ de curas populares não passam de crendices. Vale lembrar que, no filme, os cuidados do médico veterinário não foram suficientes para salvar o animal, que apenas teria sido salvo pela intercessão de Santa Bárbara/Iansã, a partir de uma promessa feita em um terreiro de candomblé (‘espaçotempo’ não controlado pela Academia ou pela Igreja Católica).

É nesse sentido que Nietzsche faz sua crítica à filosofia platônico-socrática e ao sacerdote-ascético e ao cientista-ascético. Para Nietzsche, não há uma verdade preexistente a ser descoberta. A ciência, a religião e a filosofia criaram, em determinados momentos da história ocidental, uma fábula chamada “verdade”/“realidade” e, ao longo do tempo, esquecemos que se tratava de uma ilusão, uma fábula, ou seja, a verdade não passa de uma ilusão que triunfou em detrimento de outras criações. Por essa razão, para Nietzsche, as verdades são criadas, são fabulações. Em nosso entender, isso não torna a produção de narrações (ficções) menos importante. Ao contrário, a criação de fabulações, de novas realidades, é o que marca a presença humana no mundo. Nietzsche (2001, p. 13-14) alerta:

Por princípio estamos dispostos a sustentar que os juízos mais falsos (e entre estes os “juízos sintéticos a priori”) são para nós mais indispensáveis, que o homem não poderia viver sem as ficções da lógica, sem relacionar a realidade com a medida do mundo puramente imaginário do incondicionado e sem falsear constantemente o mundo através do número; renunciar aos juízos falsos equivaleria a renunciar à vida, a renegar à vida. Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se audazmente ao sentimento que se tem habitualmente dos valores. Uma filosofia que se permita tal intrepidez se coloca, apenas por este fato, além do bem e do mal.

Assim, a leitura de Nietzsche nos instiga a experimentar o mundo como é e aponta a arte como o oposto do niilismo passivo. A arte, por assumir que cria e, assim, não pretende falar em nome do real, do verdadeiro, reafirma a vida em um mundo que a nega. O artista, o falsário, cria, sem negar que são invenções, novos valores, novas realidades. Ele experimenta o devir, o transitório, a criação.

Dialogando com a filosofia de Nietzsche e com os estudos de Bergson, Deleuze destaca essa potência criadora no cinema, quando se liberta da tarefa de representar o real, em especial a partir das produções do período pós-Segunda Guerra. Nessas produções, Deleuze identifica o que chama de imagens e sons puros, o cinema da imagem-tempo.

Nas pesquisas com os cotidianos, “usamos” os filmes como “personagens conceituais” que nos auxiliam a pensar nossas vivências e nossas formas de estar no mundo e na sociedade. Os filmes (mesmo os documentários) são produções de ficção que nos transportam para outras virtualidades, possibilitando que também criemos tantas outras realidades. Aí reside a chamada “potência do falso”, de Nietzsche. Não o falso condenável de antes, aquilo que as religiões e as ciências trataram de denominar de falso para afirmar seus discursos como verdadeiros, mas a mentira criadora, a fabulação, a tessitura de novas histórias, de novas ‘maneiras de fazer’.

A “potência do falso” se encontra na possibilidade de ficcionar o mundo, de fabular a própria vida. Ela faz parte do ‘fazersaber’ artístico, mas também está presente em nossas ‘práticasteorias’ cotidianas. Assim como os filmes, nossas experiências cotidianas também são narrações falsificadoras de outras realidades possíveis.

É por trazer em si a “potência do falso” que Deleuze (1987) se refere à arte como “ato de resistência”, uma resistência à informação como palavra de ordem, que mantém a sociedade de controle iluminada por Foucault. O “ato de resistência” está nas artes justamente por estas serem falsificações que potencializam a vida. Guéron (2011, p. 155), ao analisar os estudos e escritos de Deleuze sobre cinema, destaca que

[...] é por isso que, quando Deleuze diz que Welles descobre em seus filmes a potência do falso - a Vontade de Potência nietzschiana - e que essa descoberta se estende aos autores “modernos”, ele não está dizendo que exista nestes autores algum tipo de ode ao cinismo e a todo tipo de mentira e falsificação. O que vemos neles é a luta entre as falsificações que potencializam a vida, que são a favor desta, e aquelas que intencionam o seu controle absoluto; ou este jogo, esta dualidade, abatendo-se sobre um mesmo personagem. Este é, por exemplo, o caso de Otelo, tragédia de Shakespeare magnificamente filmada por Orson Welles.

Voltando ao filme O pagador de promessas, podemos identificar que a Igreja Católica, a polícia e a mídia detêm o controle da informação e criam, cada uma com seus interesses e intenções, outras fabulações, entendidas e assumidas como “a verdade”, exercendo suas formas de poder. Por outro lado, o terreiro, a capoeira, a apropriação popular da festa de Santa Bárbara, os movimentos por direito à terra etc. tecem outras fabulações como “atos de resistência” cotidianos, mostrando-nos outras potências de criação no vivido.

4 COTIDIANOS, “PERSONAGENS CONCEITUAIS”, CONVERSAS E “CINECONVERSAS”

Os cotidianos são evidenciados como processos de pesquisa e as conversas como metodologias que favorecem o envolvimento dos ‘praticantespensantes’ nesses mesmos processos.

Alves (2012) afirma que os ‘saberesfazeres’ se dão por meio das conversas nos cotidianos e que, sem isso, não seria possível ‘aprenderensinar’, pois, para além dos ‘espaçostempos’ “formais” de aprendizagem, nos quais processos curriculares ocorrem, as ‘conversas’ organizam todos os ‘espaçostempos’ - hegemônicos e não-hegemônicos.

Portanto, é nesse contexto que reafirmamos a conversa como importante modo de compreender os processos dialógicos a que nos propomos ao buscar ‘espaçostempos’ com mais democracia, com mais heterogeneidade e repletos de sentidos diversos, pois acreditamos que assim atenderemos às necessidades e aos interesses de quem os tece ‘dentrofora’ das escolas nas múltiplas redes educativas.

Para Certeau (1994, p. 50), as conversas são potências nos cotidianos:

As retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras de “situações de palavras”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence a ninguém. A conversa é um efeito provisório e coletivo de competências na arte de manipular “lugares-comuns” e jogar com o inevitável dos acontecimentos para torná-los “habitáveis”.

É pelas conversas que criamos, com as trocas, por meio de ‘conhecimentossignificações’ que são tecidos com os livros, os filmes, as exposições e nas rememorações e fabulações tecidas nos cotidianos em seus acontecimentos.

As conversas, como metodologia de pesquisa nos cotidianos, tornam-se “personagens conceituais”. Para Deleuze e Guattari (1992, p. 156), eles são os intercessores que nos ajudam a criar, motivando outras tantas e novas conversas.

A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro.

Fazemos “uso” da noção de “personagens conceituais” a partir de Alves (2012, p. 27):

Entender imagens e narrativas como personagens conceituais significa compreendê-las como o ‘outro’ nas discussões que precisamos ter com conhecimentos e significações presentes nos processos de pesquisa, para ir entendendo o que vai surgindo nesses com a ajuda daqueles com quem estamos pesquisando - dos membros da equipe aos ‘praticantespensantes’ das escolas ou de todas as outras redes educativas pesquisadas. Assim, é com imagens e narrativas que vamos formando ideias e pensamentos que nos permitem responder às perguntas que colocamos.

Alves (2012, p. 12-13) indica como utiliza a ideia de “personagens conceituais” em suas pesquisas e assinala que compreende as narrativas produzidas nas conversas, assim como as imagens e os sons, como “personagens conceituais”:

[...] partimos de uma afirmativa: “conversa-se muito nas escolas e nos múltiplos contextos de formação dos docentes”. Para alguns (muitos?) isto é entendido como ‘perda de tempo’. Mas nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, entendemos que este é o verdadeiro ‘lócus’ de pesquisa, pois nelas surgem imagens e narrativas que vão se transformar em nossos personagens conceituais.

Entre outros “personagens conceituais”, trouxemos para esta conversa o filme O pagador de promessas, que nos ajuda a pensar sobre as questões da intolerância religiosa que podem resultar em desfechos trágicos que, muitas vezes, atravessam os cotidianos das escolas, das ruas, dos espaços religiosos e das redes sociais digitais. Por meio dos “usos” de sons e imagens, tecemos ‘conhecimentossignificações’.

Utilizamos as “cineconversas” porque os cotidianos das pesquisas nos ensinaram a importância de mobilizar o cinema e as conversas como nossos “personagens conceituais” e colocá-los em relação.

As “cineconversas” compõem a metodologia do grupo de pesquisa do qual as autoras fazem parte e consistem em, a partir de ‘verouvirsentirpensar’ um filme em conjunto, trocar impressões, experiências e sentimentos. As “cineconversas” nos fazem acessar as memórias pelos sentidos da visão, da audição, do olfato, do paladar, do tato, e a compreender situações da vida nos cotidianos. Elas criam conexões com experiências que revelam as vivências de cada participante, já que um filme não representa a realidade, mas cria realidades que nos permitem conversar e fabular. Nosso objetivo não é interpretar um filme ou tentar entender o que o roteirista e/ou o diretor quiseram dizer. Filmes são potentes artefatos culturais que nos conectam com experiências, memórias e projeções, ajudando-nos a pensar os cotidianos e as pesquisas neles inspiradas.

5 RAZÃO METONÍMICA E POLIFONIA: IMAGENS, VOZES E OUTROS SONS QUE NOS AFETAM

Conversas fazem emergir e multiplicar vozes diversas, gerando uma potente polifonia que nos provoca a questionar ‘saberesfazeres’ tidos como hegemônicos e que estão fortemente presentes nos currículos ‘praticadospensados’. As conversas e o contato com essas muitas vozes contribuem, assim, para a tessitura de outras fabulações curriculantes.

Da razão metonímica, em Santos (2002), à metonímia como zoom, apresentada por Certeau (1994), emerge o caráter polissêmico que o termo metonímia assume quando deslocado do seu lugar de figura de linguagem.

Segundo Santos (2002, p. 4), a razão metonímica é aquela que “se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade”. Toma, assim, a parte pela totalidade, ao desconsiderar outras múltiplas formas de compreensão da realidade que não aquela produzida no Ocidente, a partir do ideário iluminista. Volta o olhar para grandes eventos e nomes das Ciências e das Artes, não se detém em considerar outras culturas, as lógicas dos cidadãos comuns, as suas experiências, as culturas populares e suas muitas formas de ser e estar no mundo.

Para romper com essa razão metonímica, é preciso fazer emergir as fabulações silenciadas ao longo da história, aquelas culturas não hegemônicas, que ficam segregadas nos terreiros de candomblé, nas favelas, nas periferias, no interior das casas etc. Esse processo já vem ocorrendo nas disputas cotidianas.

Os autores apresentam duas formas instigantes de pensar a polifonia, a partir da alusão à metonímia: um reivindica a superação do reducionismo a que a lógica da totalidade submete o conhecimento desde a modernidade e o outro afirma que é possível pensar as partes fora da relação com a totalidade, uma ideia que vai se evidenciar na chamada pós-modernidade, malgrado a complexidade subjacente a esse conceito, que não será alvo de investigação neste texto, ou seja, ambas as proposições destacam a existência de múltiplas lógicas, expressas por diversas vozes que coexistem fora da ideia de consenso ou fusão.

Para Stam (1992, p. 96), “[...] em qualquer situação textual ou protextual em que há a coexistência de uma pluralidade de vozes que não se fundem em uma consciência única, mas ao contrário existem em registros diferentes, gerando um dinamismo dialógico entre elas próprias, há polifonia”.

Para o referido autor, a noção bakhtiniana de polifonia tem uma importante relevância no campo cultural e também no ideológico. Stam (1992, p. 96) afirma que “[...] o tropo ‘polifonia’, que Bakhtin derivou da música, em referência ao jogo de vozes ideológicas na obra de Dostoiévski, tem imensa aplicabilidade potencial na análise do cinema”.

No filme O pagador de promessas, exemplifica o autor, a narrativa retrata a saga de um homem, vítima da intolerância religiosa. Cria-se, nesse contexto, segundo Stam (1992), uma “polifonia cultural”, quando se apresenta uma disputa entre o berimbau e o sino da igreja, ou melhor, entre o candomblé e o catolicismo. Mais uma vez, a metonímia parece dialogar com a noção de polifonia. Metonimicamente, esses elementos provocam o espectador a recuperar não uma totalidade única, monológica, mas o real em sua dimensão multifacetada em que partes coexistem em permanente negociação, muitas vezes, vozes ‘dissonantes’. Pensamos que a perspectiva de dissonância, pelo campo semântico, mais do que a de embate ou conflito, ajuda-nos a refletir sobre as sonoridades múltiplas ou polifônicas.

É preciso considerar, de acordo com Bakhtin (1979), que são as diferentes vozes que dão vida a uma língua. É essa pluralidade de vozes que caracteriza a polifonia, ou melhor, o texto polifônico. Para Bakhtin (1992, p. 357), “o fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder a resposta, e assim ad infinitum. Ela entra em um diálogo em que o sentido não tem fim”.

Pensando em nossas ‘práticasteorias’ de escrita a partir das pesquisas com os cotidianos, afirmamos a impossibilidade do pesquisador, do roteirista, do escritor, do professor “traduzirem” as múltiplas vozes do outro com quem pesquisam/dialogam/’aprendemensinam’.

A questão do som (as vozes, os sons dos corpos e as músicas) e da nossa relação com a polifonia surge aí potente, a ser problematizada, como no duelo entre o sino e o berimbau no filme, como na escrita de um texto a partir de muitas vozes/escritas, como em currículos ‘praticadospensados’ que se pretendem dialogar com muitas vozes e vivências. Considerando que a palavra quer ser ouvida, será que temos ouvido as vozes que tentam nos provocar?

6 POLIFONIA CULTURAL E A QUESTÃO DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Se a fabulação está na origem dos chamados mistérios, das invenções, das lendas, dos mitos, está também nas narrativas das ciências e das religiões. Entre a Ciência e a Religião há uma série de possibilidades existenciais e filosóficas que precisam ser consideradas. No entanto, o que mais se vê são perseguições. Na maioria das vezes, isso se dá por disputas de narrativas que se querem hegemônicas.

Ao longo da história, diversas religiões perseguiram e foram perseguidas em todos os continentes. Em nosso país, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5.º, inciso VI, está escrito: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Portanto, um Estado que, constitucionalmente, se apresenta como laico, ao menos na letra da lei, prega a convivência entre todos os credos e religiões, sendo crime previsto no Código Penal, artigos 208 a 212, a violação desse direito.

O filme nos aponta como a intolerância religiosa causa sofrimentos. O protagonista Zé do Burro só queria pagar sua promessa para Santa Bárbara e, embora se trate de uma ficção, muitos casos de intolerância religiosa como esse ocorrem diariamente. Em 1995, a Conferência Geral da UNESCO criou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, que estabelece o dia 16 de novembro como o dia internacional de combate à intolerância e delibera sobre o assunto. Em seu Artigo 1.º, expõe o significado da tolerância:

A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica (UNESCO, 1995).

O Brasil, como um país diverso, ‘polifônico culturalmente’, é marcado por inúmeras histórias de perseguições de cunho religioso, muitas vezes atreladas às questões raciais, étnicas e de classe. No entanto, também reconhecemos que a garantia da liberdade religiosa marcada pela força da lei é uma conquista resultante de inúmeros esforços na história da sociedade brasileira, de lutas das gerações passadas. Entretanto, é fato que a convivência nas diferenças (e, portanto, na polifonia) pode contribuir, e muito, para erradicar os efeitos nocivos da intolerância religiosa, e é esse o diálogo que líderes de diversas religiões procuram estabelecer mundialmente.

O sentimento que deve ser instaurado para todas as religiões é o de respeito às divindades sagradas de cada uma, porque somos diversos, multiculturais e sabemos individualmente a melhor forma de nos conectarmos com o mundo espiritual. Além disso, aqueles que são agnósticos e ateus devem, igualmente, ter suas convicções e escolhas respeitadas.

7 AMPLIANDO O QUE DENOMINAMOS TOLERÂNCIA E PARTILHANDO EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS

Entendemos, em linhas gerais, que tolerar é reconhecer e respeitar crenças e práticas diversas. Portanto, o que deseja qualquer pessoa que professa sua fé, ou não, é ser respeitada.

A exigência de que seja respeitada sua escolha religiosa é urgente, embora encontremos educadores que defendem a noção de tolerância, associando-a a uma ideia de igualdade, como Freire (2012, p. 8):

Nós somos tão diferentes que tivemos que criar o valor da igualdade. E sem tolerância não se faz isso, quer dizer, tolerância enquanto essa capacidade que a gente tem e que inclusive cria. Ninguém é tolerante porque nasceu tolerante. A gente se torna tolerante ou a gente se torna intolerante. Daí a possibilidade pedagógica para trabalhar a tolerância.

O sentimento de inúmeros religiosos é mais amplo, abrangendo a noção de respeito. Compartilhamos desse pensamento de respeito e amor, como provoca Maturana (2002), quando diz que amar o Outro como legítimo outro é reconhecer a existência de sua integridade. Por séculos, vemos crenças serem desrespeitadas e marginalizadas pelas sociedades, mantendo-se a partir de movimentos de resistência e criações cotidianas.

A escola não está fora desse círculo de preconceitos, e membros da comunidade escolar sofrem e denunciam práticas de intolerância e, paradoxalmente, também praticam atos de desrespeito à diversidade, por ainda não reconhecerem que, nos ‘espaçostempos’ escolares, as religiões, assim como outras manifestações culturais, em suas diferentes formas, são intrínsecas aos processos de subjetivação dos indivíduos, sendo processos singulares.

Candau (2003) descreve como é difícil para crianças e jovens identificarem a discriminação. Para muitos, a discriminação sofrida na escola é percebida como ‘normal’, mas temos que refletir: até que ponto esses atos não foram percebidos? Até quando essas “brincadeiras de mau gosto” precisam ser discutidas a fim de serem entendidas e erradicadas? Candau (2003, p. 79) menciona o que entende por discriminação:

A partir das respostas dos/as jovens entrevistados [na pesquisa que desenvolvi] pode-se afirmar que não foi fácil para eles/elas definir o que é discriminação claramente. Na maioria dos casos, aproximam-se do conceito através da própria experiência de discriminação. Todos/as revelaram nas suas respostas que a discriminação se expressa com diferentes comportamentos, gestos, palavras etc.

Como exemplo de que a prática do respeito é possível, narramos uma experiência vivida em um evento no Instituto de Filosofia e de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), em que foi apresentado o trabalho da professora Viviane Martins, que envolveu a comunidade escolar em um projeto sobre a Lei 11.645/2008, que versa sobre o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas.

O caminho tomado por Viviane nos mostrou que trabalhar esse tema em sala de aula a levou por percursos curriculares nos quais se cruzavam respeito ao outro, história da África, história dos afro-descendentes no Brasil etc. Seu trabalho foi articulado a partir de três temas centrais: o negro, o escravo e as religiões de matrizes africanas.

Na apresentação realizada na Universidade, as crianças, entre diversas atividades, dançaram ritmos afro-brasileiros, vestidas de orixás. Na sequência, a professora narrou a experiência do projeto, inclusive os desafios enfrentados e resistências apresentadas por membros da comunidade escolar que identificavam o ensino das culturas afro-brasileira e africanas como uma tentativa de evidenciar práticas religiosas que não são aceitas por alguns grupos. Nessa aproximação potente entre escola e universidade, professores e futuros professores discutiram abordagens possíveis para trabalhar esses ‘conhecimentossignificações’, a importância da cultura popular nas escolas (e sua relação com as muitas religiosidades), diluindo, assim, as barreiras do preconceito e do racismo.

A maioria entre as propostas surgidas foi no sentido de se investigar a partir da história dos continentes africano e americano. Outro ponto fundamental tratado foi o de encantar as crianças com as histórias, promover o conhecimento da lei, valer-se da afetividade na forma de ensinar e buscar parcerias e alianças dentro da escola para fortalecer o projeto.

Precisamos reconhecer que estamos mergulhados em redes educativas de múltiplos e diversos ‘fazeressaberes’ e ‘conhecimentossignificações’ que se dão para além dos que são tecidos nas escolas, mas que mantêm inúmeros contatos com os diferentes ‘espaçostempos’ escolares, afetando-os.

Na sociedade como um todo são tecidas as redes de ‘fazeressaberes’ - inclusive as preconceituosas. Nem tudo o que está nas redes, afinal, é bom. Cabe-nos problematizar fortemente em todas essas redes - com as escolas nelas incluídas - ‘práticasteorias’ que envolvem o racismo, a invisibilização do outro, as formas de intolerância etc.

Sabemos, por outro lado, que existem outras práticas nas escolas que se aproximam daquela que a professora Viviane mostrou no IFCS e que os processos que nelas se dão precisam ser acompanhados e compreendidos nas possibilidades que abrem em face de muitas demandas da sociedade que se quer mais equânime.

Com experiências como a da professora Viviane Martins, as escolas tornam-se ‘espaçostempos’ de questionamento do preconceito, uma vez que os estudantes são estimulados a reconhecer a voz, o sentir, o pensar e o existir legítimos do outro.

É assim que outros ‘fazeressaberes’ “entram” nas escolas e atravessam os currículos oficiais. “Cineconversas” com o filme O pagador de promessas e outros, como O auto da compadecida (2000), direção de Guel Arraes, Besouro (2009), direção João Daniel Tikhomiroff, para citar alguns que abordam essa temática, podem nos ajudar a ‘verouvirsentirpensar’ essas questões.

8 CURRÍCULOS POLIFÔNICOS E FABULANTES NA CRIAÇÃO DE NOVAS REALIDADES NOS CURRÍCULOS ‘PRATICADOSPENSADOS’: CAMINHANDO PARA UMA “CONCLUSÃO”

Nossas crenças, sejam as religiosas, as científicas, as culturais etc., foram/são tecidas a partir da criação de verdades e realidades nas múltiplas redes educativas nas quais a humanidade foi se formando (e ajudando a formar) ao longo de milênios. A própria noção de “humanidade” e as divisões que foram sendo forjadas entre os “tipos de humanos” que deram origem a práticas diversas de racismo, homofobia, machismo, misoginia, intolerância religiosa etc. também são fabulações assumidas como verdades e ensinadas a nós (e por nós) no decorrer da história da “humanidade” na Terra.

E, uma vez que essas fabulações/falsificações foram ganhando status de “verdade única”, transformando nossos múltiplos cotidianos e determinando lugares sociais aceitáveis a cada um de nós, ‘praticantespensantes’ desses mesmos cotidianos foram ocupando também os ‘espaçostempos’ de educação formal, entendidos como os ‘fazeressaberes’ que deveriam povoar os currículos, tanto oficiais quanto os ‘praticadospensados’ em escolas e universidades.

No entanto, se compreendemos que tais ‘conhecimentossignificações’ são fabulações com status de ‘verdade’, percebemos também a possibilidade de criarmos outras tantas fabulações, narrações falsificadoras, que ajudam a atualizar novas virtualidades possíveis. Quem sabe, ao criar fabulações que se contraponham a essas narrativas excludentes, entendidas como verdades imutáveis, possamos tecer outras ‘práticasteorias’ nas quais outras humanidades possam produzir-se?

Isso já vem sendo realizado por diversos ‘praticantespensantes’ que disputam ‘espaçostempos’ variados e questionam os discursos produzidos pelos grupos de poder. Esses mesmos ‘praticantespensantes’ multiplicam as vozes até então ouvidas (pois muitas eram constantemente silenciadas), fazem barulho, tecem novos sons (e ritmos) e desafiam aquelas ficções até então legitimadas como verdades. Esses ‘praticantespensantes’, com seus ‘fazeressaberes’, fabulam sua própria existência, criando novas ‘maneiras de ser e estar’ no mundo.

Como professoras e formadoras de professores, entendemos as disputas em torno dos currículos ‘praticadospensados’ no ‘dentrofora’ das escolas como ‘maneiras de narrar’ novas histórias. E reafirmamos a urgência de ficcionarmos outras possibilidades e valorizarmos outros ‘conhecimentossignificações’, antes entendidos como inferiores ou falsos. Todo esse processo se faz presente na tessitura de currículos cada vez mais polifônicos, marcados por muitas vozes.

No entanto, a criação de currículos a partir de novas fabulações, tecidas por grupos antes excluídos, não elimina os ‘conhecimentossignificações’ já presentes nos cotidianos de escolas e universidades, mas questiona seu lugar de “verdade única”. ‘Conhecimentossignificações’ produzidos pelos ‘espaçostempos’ de poder precisam partilhar lugar com novas produções de verdades: o ‘fazersaber’ dos vencedores precisa dialogar com os ‘fazeressaberes’ dos vencidos.

Da mesma forma como Zé do Burro desafiou o poder da Igreja Católica ao se negar a trocar sua promessa por outra, abrindo mão de sua fabulação, de sua narração, de sua experiência, pela de outrem, fabulações assumidas como as únicas aceitáveis e ensináveis nos ‘espaçostempos’ de educação formal passam a ser desterritorializadas com a chegada de outras fabulações nesses mesmos ‘espaçostempos’. Esses ‘fazeressaberes’, tecidos apenas nos terreiros, nos grupos de amigos, nas casas, nas mídias alternativas etc., agora ganham as ruas, as mídias antes hegemônicas, as escolas e universidades, como na apresentação da turma da professora Viviane, transformando-os e transformando-se.

A Lei 11.645/2008, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas, e que afetou também a formação de professores, foi resultado de disputas pela tessitura de fabulações e verdades outras. A legislação não resolveu, por exemplo, a questão do racismo e da intolerância com as religiões de matriz africana, mas se configura como possibilidade de que novas fabulações ocupem os ‘espaçostempos’ formais de ensino e que múltiplas vozes adentrem esses mesmos ‘espaçostempos’ com as narrações de ‘fazeressaberes’ antes desvalorizados ou colocados na categoria de falsos ou de ficção, em oposição às verdades hegemônicas.

Acreditamos que ocupar os currículos e os cotidianos escolares com outras fabulações é tecer outras realidades. Como um desafio, urgente de ser encarado, tal tessitura de outros currículos nos provoca e traz questionamentos. Eles estão aqui não para concluir este texto, mas para iniciar novas conversas que se darão em outros ‘espaçostempos’. Portanto, compartilhamos algumas questões: Que narrativas ou fabulações queremos criar como realidades nos currículos, diante das dicotomias entre verdades e falsificações? Queremos continuar dicotomizando os currículos, segmentando-os em disciplinas, num momento em que estamos encarando as multimodalidades e as multilinguagens? Queremos ser artistas criadores de outras realidades que possam agregar, respeitar, amar o Outro como legítimo outro? Quais podem ser nossas contribuições para a criação de currículos cada vez mais fabulantes e polifônicos?

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Termo apresentado por Oliveira (2012), indo além da ideia de Certeau que os chama somente de ‘praticantes’, mas coerente com o pensamento desse autor, que nos diz que os “praticantes” são aqueles que criam, permanentemente, ‘conhecimentossignificações’, no desenvolvimento de suas ações cotidianas.

2 O modo de escrever alguns termos juntos, em itálico e com aspas simples é utilizado em pesquisas nos/dos/com os cotidianos e serve para nos indicar a indissociabilidade de determinadas noções.

3 Usamos homem ordinário na perspectiva de Certeau (1994) como um homem comum.

4 A ideia de “uso” é entendida neste trabalho além da de “consumo”, como compreende Certeau (1994). Segundo o autor, a partir dos usos que os praticantes fazem dos muitos artefatos existentes, dá-se a criação de algo novo.

Recebido: 14 de Agosto de 2020; Aceito: 04 de Dezembro de 2020

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