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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.4 São Paulo oct./dic 2020  Epub 20-Ene-2021

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i4p1712-1732 

Dossiê ABdC 2020: Fabulações curriculantes na escola e na universidade

PARA UMA PEDAGOGIA CULTURAL: O CURRÍCULO E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO RIBEIRINHA NA AMAZÔNIA

FOR A CULTURAL PEDAGOGY: THE CURRICULUM AND ITS RELATIONSHIP WITH RIBEIRINHA EDUCATION IN THE AMAZON

POR UNA PEDAGOGÍA CULTURAL: EL CURRÍCULO Y SU RELACIÓN CON LA EDUCACIÓN RIBEIRINHA EN LA AMAZONÍA

Leticia dos Santos FURTADOi 
http://orcid.org/0000-0002-0443-2498

Eraldo Souza do CARMOii 
http://orcid.org/0000-0003-4824-8016

i Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura da UFPA/Campus Cametá. E-mail: leticiafurtado46@gmail.com.

ii Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Pará. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura da UFPA/Campus Cametá. E-mail: eraldo@ufpa.br.


RESUMO

É abordada a relação entre currículo e cultura, dentro do contexto educacional, desenvolvida nas escolas ribeirinhas na Amazônia. Para tanto, foi realizada uma análise sobre as concepções do currículo e as relações de aspectos culturais das populações do campo e análise bibliográfica, para compreender como se constituem as noções de cultura nas práticas curriculares na educação do campo. Pretendeu-se identificar os problemas, as necessidades, as dimensões (em particular a cultural) e as perspectivas que se impõem sobre a materialidade do currículo das escolas do campo e que contemplam as especificidades dos saberes culturais das populações da Amazônia. Essa pesquisa visa contribuir com as discussões a respeito das práticas desenvolvidas pelos professores de turmas multisseriadas de escolas ribeirinhas, que dispõem de saberes socioculturais seculares da região amazônica e de conhecimentos escolares, de modo que o estudo colabore para a valorização da identidade e da diversidade sociocultural dessa região.

PALAVRAS-CHAVE: Escolas Ribeirinhas; Currículo; Cultura

ABSTRACT

The relationship between curriculum and culture is addressed, within the educational context developed in riverside schools in the Amazon. An analysis is then carried out on the concepts of the curriculum, and the relations of cultural aspects of the rural populations. Through bibliographic analysis, we sought to understand how the notions of culture are constituted in curricular practices in rural education. It was intended to identify the problems, needs, dimensions (in particular the cultural) and the perspectives that impose the materiality of the curriculum of rural schools that contemplates the specificities of the cultural knowledge of the populations of the Amazon. The analyzes aim to contribute to the discussions regarding the practices developed by the teachers of multiserial classes of riverside schools that have secular sociocultural knowledge in the Amazon region with the school knowledge, in order to collaborate for the valorization of the identity and the sociocultural diversity of that region.

KEYWORDS: Ribeirinhas Schools; Curriculum; Culture

RESUMEN

Se aborda la relación entre currículo y cultura, dentro del contexto educativo desarrollado en las escuelas ribereñas de la Amazonía. Luego se realiza un análisis sobre los conceptos del currículo y las relaciones de los aspectos culturales de las poblaciones rurales. A través del análisis bibliográfico, se buscó comprender cómo se constituyen las nociones de cultura en las prácticas curriculares de la educación rural. Se pretendió identificar los problemas, necesidades, dimensiones (en particular la cultural) y las perspectivas que imponen la materialidad del currículo de las escuelas rurales que contempla las especificidades del conocimiento cultural de las poblaciones de la Amazonía. Los análisis tienen como objetivo contribuir a las discusiones sobre las prácticas desarrolladas por los docentes de clases multiseriales de escuelas ribereñas que tienen conocimientos socioculturales seculares en la región amazónica con los conocimientos escolares, con el fin de colaborar para la valorización de la identidad y la diversidad sociocultural de esa región.

PALABRAS CLAVE: Escuelas ribeirinhas; Plan de estudios; Cultura

1 INTRODUÇÃO

Aprofundar reflexões teóricas sobre a cultura ribeirinha, no que tange às práticas curriculares de suas escolas, é fundamental para compreender a configuração do currículo nas escolas do campo da Amazônia. Com isso, objetiva-se analisar como o currículo tem influenciado no contexto cultural e social das populações ribeirinhas, além de problematizar se os conteúdos curriculares trabalhados nas escolas ribeirinhas têm valorizado as particularidades locais, a diversidade cultural e os saberes, para instigar os sujeitos na construção de suas identidades.

Para analisar as concepções do currículo, cultura e a educação ribeirinha, recorremos às discussões de autores, como Silva (2003), Gimeno Sacristán (2000), Lopes; Macedo (2011), Hage (2005, 2011, 2010); Pereira (2017); Hall (1997; 2003; 2006) e Oliveira (2012). As discussões sobre diversas abordagens acerca do currículo contribuem para reflexões sobre as especificidades sociais e as relações de poder e de cultura que constituem os sujeitos. Do mesmo modo, promovem conjecturas sobre a importância da compreensão do currículo e o reflexo no aprendizado das suas diferentes características para assim compreendê-lo.

Além disso, os estudos sobre a educação ribeirinha na Amazônia, a partir de Hage (2011, 2010) e Pereira (2017), com ênfase nas especificidades, nas relações socioculturais e educacionais das populações do campo, revelam a necessidade dessas reflexões sempre que as políticas educacionais curriculares apontam para a homogeneização do conhecimento.

Em relação às escolas ribeirinhas, Mota Neto (2008) afirma que possuem condições precárias, tanto físicas quanto pedagógicas. Apresentam dificuldades no acesso dos alunos e na continuidade dos estudos, principalmente pela distância e pelo trajeto nos lugares onde ocorrem as aulas. O autor ainda destaca como problemáticas as estruturas das escolas, a falta de professores, a rotatividade dos docentes e a baixa autoestima dos educandos.

Essas condições precárias citadas ainda persistem nas práticas pedagógicas das escolas localizadas nos espaços do campo. Pautadas pela lógica da construção de um saber que ignora os saberes tradicionais das populações ribeirinhas. Segundo Moreira e Silva (2013), os saberes do currículo “oficial” prevalecem como os conhecimentos que têm validade para a escola, provocando, dessa maneira, uma negação dos saberes construídos historicamente por essas populações.

Entretanto, as práticas curriculares aplicadas nas escolas ribeirinhas deveriam se caracterizar por meio das relações entre os saberes, as experiências e a cultura ribeirinha, fortemente interligada à construção do saber, a fim de revelarem práticas pedagógicas que influenciam na construção da identidade dos alunos ribeirinhos. Contudo, os estudos têm evidenciado a singularidade da cultura ribeirinha nos processos de ensino, de modo que seja possível gerar nas populações do campo o anseio de um currículo que integre a cultura, os saberes e as experiências diariamente desenvolvidas por esses sujeitos no território ribeirinho, onde vivem, trabalham e constroem as suas relações sociais.

2 CURRÍCULO E CULTURA

Na construção do currículo, a cultura advém de um processo seletivo no qual predominavam as relações de poder. Eram poucos os indivíduos que detinham acesso à área do conhecimento. Dessa forma, o currículo, ao longo da história, tem sido analisado como uma organização de listagens programáticas, no qual “se ordena a cultura essencial, mais elaborada e utilizada [...] centralizada nos conteúdos como resumo do saber culto e elaborado sob formação das diferentes ‘disciplinas’” (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p. 39). Trata-se de uma visão hegemônica de cultura, elaborada e organizada com a finalidade de moldar o indivíduo dentro de um padrão culto aplicado dentro das escolas.

Os estudos no campo do currículo durante a década de 1990 buscavam a compreensão do currículo como espaço de poder. Diante da ideia “de que o currículo só pode ser compreendido quando contextualizado política, econômica e socialmente era visivelmente hegemônica” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 15). Nesse sentido, a questão cultural é silenciada pelas questões sociais, embora tenha surgido com força, quebrando a ideia de um conhecimento único e universal.

Por isso, o uso das expressões como “cultura operária”, “cultura popular”, “cultura de massas”, “cultura superior” e “cultura escolar” nas discussões e produções acadêmicas da área indicavam que, no campo do currículo, começavam a surgir discursos sobre cultura que já emergia nos debates antropológicos no que diz respeito ao cultural. Dessa forma, a cultura é desenvolvida por meio da compreensão do mundo, com uma produção no sentido de legitimar as diversas formas e organizações, para assim se desenvolver no meio social.

[...] cultura é o território contestado, onde os representantes de cada grupo humano lutam para validar os significados construídos por seu grupo a partir das experiências vivenciadas. Assim, para esse campo teórico não há sentido em diferenciar a “cultura alta” e a “baixa cultura”, pois qualquer grupo produz sua cultura (HALL, 1997, p. 27).

Neste contexto, a cultura caracteriza-se como um território em constante contrariedade, de forma a gerar em cada grupo a ação de legitimar sua própria cultura diante de variados conflitos, a fim de torná-la igualitária. Para Macedo (2006. p, 105) o currículo não é um cenário em que as culturas lutam por uma legitimidade ou um território contestado, “mas como uma prática cultural que envolve, ela mesma, a negociação de posições ambivalentes de controle e resistência”. Portanto, a cultura não é um conflito entre culturas, mas práticas desenvolvem a superioridade entre ambas de forma a gerar as diferenças.

Ainda de acordo com Macedo (2006, p. 105):

O cultural não pode, na perspectiva que defendo, ser visto como fonte de conflito entre diversas culturas, mas como práticas discriminatórias em que a diferença é produzida. Isso significa tentar descrever o currículo como cultura, não uma cultura como repertório partilhado de significados, mas como lugar de enunciação. Ou seja, não é possível contemplar as culturas, seja numa perspectiva epistemológica seja do ponto de vista moral, assim como não é possível selecioná-las para que façam parte do currículo. O currículo é ele mesmo um híbrido, em que as culturas negociam com-a-diferença.

Observa-se que a relação construída entre o currículo e a cultura se direcionou para formas distintas, em que ocorreram vários conflitos e resistências na busca pela legitimidade cultural no decorrer da história. No que se refere ao currículo, houve também uma organização centralizada, a fim de moldar o indivíduo a partir do sistema educacional sobre a lógica da prescrição e o privilégio de uma concepção de poder. Durante esse processo, a escola adentra um espaço de coexistência conflitante no que diz respeito às diferentes realidades culturais que nela estão inseridas, encontrando-se até mesmo a perspectiva monocultural, que a escolarização tanto prega (MOREIRA; CANDAU, 2003).

O currículo agora detém concepções de organização prontas e acabadas, que têm como finalidade direcionar e organizar a sociedade por intermédio do discurso de disputas de classes (SILVA, 2006). Isto não deixa de ser uma relação social voltada para as relações de poder, no entanto, o currículo, tal como a cultura, não advém de uma única forma ou de um único modelo a ser seguido. Por isso, é necessário pensar a relação do currículo e da cultura como um processo de constante transformação, como explica Hall (2003) em seu processo de significação. Com as transformações educacionais, há necessidade de mudar a reflexão sobre as práticas curriculares, tendo em vista os estudos sobre a cultura, os movimentos sociais e as lutas que influenciam mudanças no contexto social.

Nesse contexto, a educação teria por finalidade desenvolver indivíduos instruídos e capazes de agir na busca por mudanças. Sendo assim, o conhecimento viria a ter sua centralidade voltada às experiências e vivências de cada indivíduo, a fim de gerar meios que suprissem suas necessidades e o seu bem-estar em sociedade. O currículo nessa vertente é uma produção cultural, pois se insere no conhecimento vivenciado e nas experiências culturais.

Dessa forma, o currículo e a cultura são conceitos interligados. Assim, as transformações culturais dos últimos anos têm influenciado de forma objetiva a identidade curricular, conforme aponta Silva (2005, p. 23).

O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados. O currículo corporifica relações sociais.

Portanto, falar em currículo é falar em ideologia, cultura e relações de poder. Mediante isso, o currículo deve ser trabalhado correspondente ao lócus, realidade cultural e social na qual está inserido. É necessário, então, “uma pedagogia que acolha a cultura popular a fim de não calar, mas de afirmar a voz dos estudantes, também apresentar suas dificuldades” (MOREIRA; SILVA, 2013; p. 107), para que seja realizado o processo educacional de forma significativa e participativa a partir de diversas manifestações culturais na sociedade.

Nesse aspecto, há necessidade de alcançar por meio do currículo escolar a significação da cultura popular de cada indivíduo. Considerar, ainda, as especificidades territoriais, culturais, geográficas e sociais de cada região. Por isso, são trazidas a discussão sobre em que contexto cultural o currículo vem sendo materializado e quais implicações têm sobre a cultura local. É notável que em nossas escolas o currículo se distancie das manifestações culturais populares do território de que fazem parte. A este respeito, Torres Santomé (1995, p. 165) afirma que

Os currículos planejados e desenvolvidos nas salas de aula vêm pecando por uma grande parcialidade no momento de definir a cultura legítima, os conteúdos culturais que valem a pena. Isso acarreta, entre outras coisas, que determinados recursos sejam empregados ou não, mereçam nossa atenção ou nossa displicência.

Nesse contexto, as instituições de ensino são importantes espaços de legitimação de conhecimento e de ideologias. Por isso, a facilidade em encontrar conteúdos e formas culturais voltadas às classes dominantes, os quais influenciam ou determinam quais culturas devem ser estudadas e trabalhadas nas escolas. Basta observar os conteúdos das disciplinas para perceber como a escola ajuda a reforçar o aprendizado daquilo que foi selecionado como válido e como está oculto o que é dito como inválido (TORRES SANTOMÉ, 1995).

Com isso, segundo Moreira e Silva (2013), é importante a ação do profissional pedagogo na Educação, tendo em vista as questões que envolvem os processos educacionais e culturais no decorrer dos anos. A pedagogia cultural é a construtora de políticas públicas críticas e relevantes que desenvolvem o processo de ensino e aprendizagem nas escolas, além de serem transmissoras das demais culturas e saberes em sociedade. No entanto, faz-se a seguinte pergunta: Uma pedagogia que abranja todas as demais culturas resolverá a complexidade das culturas excluídas da escola? Diante dessa indagação, tem-se a tarefa de realizar uma reconstrução da realidade cultural encontrada nas escolas com professores e alunos. Para tanto, é necessário analisar o que é a realidade cultural; como a definimos; e como a selecionamos de forma válida para assim transformá-la.

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 43).

A cultura é um conjunto de significados socialmente construídos, que, por meio das tradições, produz um processo de transformação em que novos conceitos, compreensões e caminhos, que permitem o surgimento de novos sujeitos. Esses processos de transformações permitem refletir sobre o caminho de tradições percorrido sendo codificado a partir das intervenções do cotidiano, pois o “fazer” pressupõe reconstruir-se a partir de debates advindos da contestação da tradição e a nova forma de pensar contemporaneamente a cultura.

O currículo é uma produção cultural por estar inserido nessa luta pelos diferentes significados que conferimos ao mundo. O currículo não é um fora da escola para significar o conhecimento legítimo, não é uma parte da cultura que é transposta para a escola, mas é a própria luta pela produção do significado (LOPES; MACEDO, 2011, p. 27).

O currículo é vivenciado pelos estudantes em todos os aspectos promovidos pela escola, de modo explícito ou implícito. No entanto, essas vivências dependem de escolhas conscientes ou inconscientes que se fundamentam em teorias curriculares, associadas a intenções de uma sociedade situada em um determinado contexto histórico, social, político e econômico. Logo, este se torna uma reprodução cultural que desenvolve a luta por sua significação em sociedade através do processo educacional.

Contudo, compreendemos que a relação entre currículo e cultura constitui-se em diferentes aspectos históricos, a fim de perceber o significado da cultura e como esta vem sendo incorporada pelo campo educacional, contribuindo de forma ímpar com a própria construção do termo currículo. Com isso, conclui-se que essas diferentes formas de significar a relação entre currículo e cultura se interligam e se encontram em constante disputa pela hegemonia desse campo.

3 O CURRÍCULO E AS ESCOLAS RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA

A heterogeneidade amazônica pode ser representada e caracterizada por meio da cultura e de suas variadas populações: indígenas, caboclos, quilombolas, pescadores, camponeses, ribeirinhos, sem-terra, pequenos agricultores, imigrantes, pequenos colonos e até mesmo os grandes proprietários de terras. A partir dessas complexidades e singularidades, seus referenciais principais são os rios, a floresta, os territórios, que configuram espaços de conflitos e de realização de cultura. Nessa diversidade, as políticas educacionais se materializam por meio das instituições escolares ou de ações pontuais dos movimentos sociais. Para Bento et al. (2013), a diversidade cultural amazônica é configurada pela população por meio das experiências e vivências construídas a partir da convivência com a terra, o rio, seu território e nas diversas formas de manifestações culturais.

Nesse contexto, a Educação do campo na Amazônia retrata a complexidade e singularidade no cenário educacional brasileiro (OLIVEIRA, 2003, 2008b, 2012; HAGE, 2005; OLIVEIRA; SANTOS, 2007; SANTOS, 2014). Por isso, a diversidade cultural é configurada pela sua população (BENTO et al., 2013), além de uma singularidade expressa nas experiências e saberes das populações ribeirinhas e construídas a partir da convivência com a terra, o rio e o seu território.

Para Oliveira (2012), a Educação do Campo na Amazônia é caracterizada pelas relações entre os sujeitos, os saberes e as práticas sociais e culturais. Entretanto, para que isso seja possível, é preciso ser construída e alicerçada nas práticas do diálogo, no compartilhamento de sonhos por uma sociedade democrática e na luta política pela garantia de direitos para toda a população do campo. Além disso, os processos educacionais devem reconhecer que a diversidade dos sujeitos se realiza em diferentes espaços educativos, como nas escolas, nos assentamentos, nas comunidades indígenas e ribeirinhas, etc.

Nesse contexto, a construção de um currículo capaz de desenvolver e englobar as manifestações culturais presentes na Amazônia se torna desafiadora para os educadores, em função da compreensão do Estado sobre as escolas do campo e suas populações. Afinal, as orientações curriculares desconsideram os saberes e os modos de vida e de trabalho dos homens e mulheres das áreas ribeirinhas (HAGE, 2005). Dessa forma, o currículo torna-se distante da realidade vivenciada por esses indivíduos em suas subjetividades, ao contrário do que preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/1996). O art. 28, § I, desta lei, assegura que:

Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural (BRASIL, 1996).

No entanto, há uma linha cruzada entre a realidade vista na Educação do Campo e os seus direitos prescritos em leis, por conta de uma estrutura inadequada das escolas, falta de formação profissional, investimentos mediante as especificidades desses territórios, além da falta de adequação do currículo à realidade local. Não se trata da defesa de uma proposta desvinculada dos saberes e códigos das sociedades de forma geral. Diante disso, ganha destaque a autonomia da escola e dos professores para definirem o currículo respeitando as vivências e a cultura dos indivíduos do campo, “a fim de valorizar os seus saberes e a sua cultura” (PIRES, 2017, p. 78), para então estabelecer relações com os conhecimentos gerais produzido pela sociedade.

Em decorrência disso, Hage (2005) retrata que as escolas multisseriadas têm constantemente assumido um currículo deslocado da cultura das populações do campo, evidenciando uma situação que precisa ser superada caso se pretenda enfrentar o fracasso escolar e afirmar as identidades culturais das populações do campo. Segundo o autor, as escolas multisseriadas apresentam o currículo deslocado e inadequado às necessidades e às questões do campo. Além da precariedade dos espaços escolares, distancia-se também da realidade vivida e dos interesses dos sujeitos, ou seja, não há um currículo capaz de atender às demandas dessa população.

Isso não significa a separação curricular entre a escola urbana e a rural. Como pontua Almeida (2010), não se constrói uma separação entre o urbano e o rural, mas sim, identificamos suas especificidades e singularidades e, por isso, defende-se a construção de um currículo que abranja as demais culturas, identidades e políticas sociais para que haja uma complementaridade entre os conhecimentos socializados, permitindo que seja possível aprender que o urbano está integrado ao rural mutuamente, mas jamais que um sistema de conhecimento seja imposto ao outro, pois nenhum é superior ou inferior, visto que ambos se complementam.

As escolas multisseriadas no Brasil apresentam problemas e desafios alarmantes desde a formação dos professores até a estrutura física das escolas (BRASIL, 2005; HAGE, 2005). São urgentes os programas de formação continuada para os docentes que trabalham em escolas ribeirinhas, considerando a falta de capacitação e de qualificação educacional voltada para atuarem nessas escolas. Soma-se a isso, a falta de estrutura física adequada para a realização das atividades pedagógicas e administrativas nessas escolas (HAGE, 2005).

Aliado a esses problemas, tem-se o problema da alimentação escolar, que não corresponde aos dias letivos, além do transporte escolar, um dos grandes desafios para os alunos de escolas ribeirinhas. Portanto, são razões estruturais que se refletem na organização pedagógica das escolas, acarretando sérios prejuízos nos processos de aprendizagem dos alunos.

Em 2014, o número de escolas de Ensino Fundamental em todo território nacional era de 115.209, dentre essas, 97.623 eram escolas multisseriadas. Segundo Carmo (2016), o percentual de escolas no campo em 1997 era de 72,8%, mas, em 2014, caiu para 52,6%, por conta do fechamento dessas escolas nas redes estaduais e municipais. Mediante isso, a maioria das classes multisseriadas estão localizadas no campo e, no caso da Amazônia, em áreas ribeirinhas, embora com o acentuado fechamento ocorrido dessas escolas entre os anos de 1997 e 2014. O autor também afirma que, no Estado do Pará, no ano de 2014, um total de 11.341 escolas do campo eram ou tinham turmas multisseriadas, ou seja, 13,2% do total (85.854) de escolas multisseriadas no Brasil estão situadas neste Estado. Desse modo, a lógica das turmas multisseriadas continua sendo um importante meio de atendimento escolar no Ensino Fundamental do país, abrangendo um acentuado número de escolas e alunos nos mais diversos espaços do campo.

Diante do acentuado número de escolas no campo, seu processo educativo precisa de um currículo que seja construído de forma coletiva com a comunidade em que está inserido, possibilitando ao camponês e ribeirinho a valorização do seu trabalho e de sua cultura e as aquisições de conhecimento para sua formação educacional em sociedade. Por outro lado, para que isso ocorra, é necessário ter uma participação conjunta de todos os integrantes desse território, de modo que participem mútua e ativamente das atividades produzidas pela escola, a partir de um currículo que seja “[...] todo construído coletivamente, onde os saberes sociais e historicamente construídos sejam partes integrantes e componentes iniciais e fortalecedores da identidade cultural de cada ribeirinho” (SOUZA, 2017).

Como um direito, a Educação é também produtora de cultura, fundamentada intrinsecamente por uma história de luta, isto é, não deveria se utilizar de uma lógica excludente. Entretanto, essa lógica é vivenciada nas escolas do campo, principalmente as situadas nos territórios ribeirinhos, onde se encontram os maiores índices de evasão, repetência e analfabetismo. Por isso, uma proposta curricular que não contempla as especificidades locais, necessárias para o desenvolvimento de estratégias e projetos voltados para a realidade dessas escolas, têm contribuído com o fracasso escolar.

Segundo Almeida (2010), é importante enfatizar que não se constrói uma separação entre o urbano e o rural, mas trata-se de identificar suas especificidades e singularidades. Por isso, defende-se a construção de um currículo que abrange todas as demais culturas e identidades, para que haja uma complementaridade entre os conhecimentos socializados neles, permitindo que seja possível aprender que o urbano está integrado ao rural, mas jamais que um sistema de conhecimento seja imposto a outro, pois nenhum é superior ou inferior.

A LDB 9394/96 (BRASIL, 1996) destaca as melhorias no ensino e as mudanças necessárias para cada região do país, respeitando as diversidades locais de cada território. Entretanto, percebe-se a falta de valorização das escolas do campo, se comparadas às escolas da cidade (HAGE, 2010; MOURA; SANTOS, 2012).

Nesse contexto, segundo Pereira (2017, p. 22),

[...] estando os procedimentos educacionais no Brasil ligados a uma política de exclusão, consequentemente os currículos escolares reproduzem uma lógica de uniformidade, em que os indivíduos culturais dos alunos são negados, por meio de uma seleção cultural restrita.

Dessa forma, a diversidade cultural ribeirinha não é inserida no currículo oficial e, com isso, não é compartilhada com os estudantes dessas escolas. Afirma-se, então, que tiveram os seus saberes e costumes negados e silenciados por conta de um currículo deslocado da sua realidade cultural e social (TORRES SANTOMÉ, 1995).

[...] é importante destacar que o homem se faz pela cultura e na cultura, pois o indivíduo enquanto sujeito social possui seu repertório com conhecimentos ligados do ao seu modo de vida, socializados de geração em geração pelo grupo qual faz parte. Nesse entendimento sobre cultura, é perceptível que os ribeirinhos produzem, organizam e socializam conhecimentos próprios diferentes dos institucionalizados pelo discurso científico (OLIVEIRA, 2015, p. 76).

Um dos exemplos dessa construção cultural, discutido por Oliveira (2015), deveria estar articulado ao processo educativo dos ribeirinhos, quando os saberes específicos de seu território, como as técnicas que envolvem a pesca, o cultivo e o manejo do açaí, entre outras atividades de trabalhos, os costumes e os saberes que envolvem seu espaço estivessem articulados à construção linguística. Isso tudo se agrega de forma oculta aos conteúdos, aos diálogos e a outras atividades que constituem o ambiente escolar ribeirinho (GONÇALVES; ABREU; OLIVEIRA, 2007), de modo que agreguem aos conhecimentos científicos para desenvolver o processo de aprendizado nas instituições de ensino ribeirinhas, sem deixar de utilizar os saberes e cultura local.

Isto demonstra que cada grupo se constitui de particularidades, saberes e culturas ligados estritamente ao seu território, além de desenvolverem suas tradições culturais, sua economia e trabalho nesses espaços. Nesse sentido, constroem seu pertencimento ao campo ribeirinho, no qual aflora a construção de suas relações culturais, fortalecendo os saberes produzidos na “beira do rio”, como crenças, leis, esportes, valores morais e éticos.

É fundamental que o sujeito ribeirinho se sinta pertencente ao seu território, tornando possíveis as relações culturais no ambiente escolar. A construção da cultura ribeirinha se dá a partir da beira do rio como tudo que o homem em sua racionalidade consegue desenvolver por meio de sua arte, ciência, saberes, leis, crenças, religiões, mitos e valores, além de toda a forma de sentir, pensar e agir. Dessa maneira, a coletividade de ações e saberes vai construindo uma “memória coletiva” projetada pela cultura Amazônica, que tem grande influência dos povos indígenas, os maiores conhecedores dessas terras (SOUZA et al., 2017, p. 170).

O processo educativo ribeirinho necessita de um currículo construído coletivamente e que possibilite ao trabalhador ribeirinho ser valorizado pela importância de seu trabalho; possibilite ter conhecimento sistematizado para continuar lendo e criticando suas e outras realidades sociais, econômicas, ambientais e culturais.

Nesse contexto, é necessária a construção curricular específica para as escolas do campo e do campo ribeirinho junto aos agentes pertencentes desses espaços, isto é, um currículo que permita ao trabalhador, o ribeirinho, o aluno e os pais como colabores das proposições, de modo a valorizar seus conhecimentos e saberes. Logo, para se obter uma escola amazônica e para a Amazônia, em que todos possam auxiliar e participar da (re)construção do currículo, deve-se primar pela coletividade. Tal objetivo tem em vista que todos os saberes sociais e culturais integrantes da história desse povo sejam contemplados para o fortalecimento da identidade cultural dos ribeirinhos.

Isso denota transformar os processos educativos das populações ribeirinhas, pois compreendemos que a história e as experiências dos alunos das escolas ribeirinhas, oriundas dos seus antepassados, são significativos para a incorporação em uma proposta de matriz curricular. Dessa forma, é possível aproximar o currículo escolar aos saberes tradicionais, de modo que haja uma ressignificação dos conteúdos aprendidos em seu modo de vida ribeirinho, para que se fortaleça sua cultura e identidade.

4 A CULTURA NAS PRÁTICAS CURRICULARES EM ESCOLAS RIBEIRINHAS

Os estudos que tratam sobre a educação do campo têm tido grande destaque no meio acadêmico, pois são crescentes as contribuições de pesquisas que utilizam as práticas docentes das escolas do campo em comunidades ribeirinhas como objeto de análise. Esse tema tem levantado investigações sistemáticas, e novos argumentos ganham relevância a partir das pesquisas de Oliveira (2003, 2008a, 2011), Gonçalves (2005), Hage (2005), Almeida (2010), Lopes (2013) e Cruz (2016). Todos esses autores retratam a importância das discussões sobre as práticas desenvolvidas pelos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental em turmas de escolas ribeirinhas, com a inclusão das discussões sobre a diversidade cultural e os saberes das populações ribeirinhas nos processos de ensino e aprendizagem.

Para Lopes (2013), os conteúdos programáticos que caracterizam o currículo podem ser explícitos ou implícitos em suas expressões nas práticas escolares. Do mesmo modo, o currículo oculto se expressa no processo social, trazendo um significado prático e real ao currículo explícito, isto é, as experiências de aprendizagem dos alunos e a bagagem sociocultural não se limitam ao que é explicitamente abrangido pelo currículo. Com isso, as atitudes reais e ações dos professores e alunos atribuem ao currículo real e manifesto variações que interagem e modificam as experiências que fazem parte do currículo oculto, construindo dessa forma um novo currículo.

Nesse contexto, segundo Moreira (1999), há quatro pressupostos que o currículo deve seguir para sua construção. Dentre elas, propõe-se: oferecer uma visão de cultura, em que a escola possa transmiti-la de forma oculta ou manifesta; ser compreendido como processo histórico de construção, e não apenas como algo a ser produzido, mas a ser modificado ou, até mesmo, reconstruído; e promover a real interação entre teoria e a prática, sendo assim um projeto cultural e flexível, no qual professores, alunos e comunidade sejam partes integrantes.

Para tanto, é necessário que o currículo atenda às especificidades de cada indivíduo, contemplando sua cultura local, como a territorialidade na dimensão política e social. Para Caldart (2002, p. 18), “o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive e a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais”. Para a autora, as populações do campo precisam ter seus direitos somados à valorização histórica, cultural e social de seu território, de modo que esses sujeitos participem da construção educacional de seu povo na busca de melhorias políticas e sociais, sem deixar de enfatizar suas vivências e experiências locais dentro de seus territórios.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica enfatizam que “a educação é um processo de socialização da cultura e da vida, em que se constroem, se mantêm e se transformam conhecimentos e valores” (BRASIL, 2013, p. 4). Sendo assim, o currículo deve estar focado na realidade de cada local, além de se pautar em questões objetivas e subjetivas, para abranger conteúdos e métodos que atendam às necessidades de apropriação dos saberes culturalmente válidos.

A respeito disso, Bachelard (2005, p. 309-310) assinala:

Uma cultura presa ao momento escolar é a negação da cultura científica. Só há ciência se a Escola for permanente. É a escola que a ciência deve fundar. Então, os interesses sociais estarão definitivamente invertidos: a Sociedade será feita para a Escola e não para a Escola para a sociedade.

Com isso, é possível inferir que o mundo contemporâneo encontra dificuldades para relacionar a educação com a cultura no contexto escolar, seja a didática seja a seleção de conteúdo. Em função disso, há uma preocupação com razões inerentes à situação real da própria cultura. São preocupações que se transpõem ao conceito da “globalização”, que anuncia uma educação incapaz de encontrar fundamento próprio de ordem cultural. Dessa forma, a cultura acaba perdendo o significado e se distancia do real (HALL, 2015). Isto é, a rapidez da modernidade acaba sendo justificativa ao desalinhar essa nova educação que têm como base os conhecimentos universais.

Tendo em vista a realidade local, destaca-se a especificidade da Amazônia, em que se constata um elevado número de escolas ribeirinhas nos mais diversos territórios da região (GEPERUAZ, 2010). São escolas que, com todas as suas contradições de funcionamento, garantem o direito à educação para milhares de sujeitos. Entretanto, são escolas que necessitam de serviços essenciais para funcionarem, como transporte escolar; proposta curricular que considere suas manifestações culturais e sociais; a valorização dos professores; entre outros benefícios. Necessita-se de uma escola ribeirinha do campo caracterizada pelas especificidades das territorialidades dos grupos sociais atendidos.

A LDB 9394/96, por meio do art. 26, assegura as condições de oferta do ensino, as adaptações necessárias para o currículo e a escolarização de cada região do país, considerando o respeito às diversidades locais de cada território (BRASIL, 1996). Entretanto, é notável a falta de uma proposta pedagógica que considere a valorização das escolas do campo e as escolas ribeirinhas. De acordo com Peixoto (2016, p. 79), “o currículo para educação do e no campo deve ser construído com base no respeito, na valorização do sujeito em sua realidade prática”, isto é, a partir de conteúdos escolares que agreguem os valores do meio rural e das práticas que formam os seus sujeitos, para uma significativa ação educacional no campo.

Diante do exposto, faz-se necessário uma mudança conceptual sobre a educação do campo, principalmente, sobre a visão estereotipada de uma educação inferior e que qualquer educação serve para essas populações. A esse respeito, Arroyo (2010, p. 11) reforça a

[...] necessidade de mudar a visão negativa do campo e de seus povos, a fim de mudar a visão das escolas. É também ver e captar que o campo está vivo, que é um território social, político, econômico e cultural de maior tensão, e que os povos do campo, tem sua rica diversidade, afirmam-se como sujeitos políticos em múltiplas ações coletivas.

Dessa forma, é indispensável a construção de uma proposta de educação para o campo e para o território ribeirinho que potencialize e desenvolva o conhecimento teórico e prático a partir de seus saberes. Para essas populações, devem ser asseguradas propostas curriculares e pedagógicas a partir dos seus valores e aspectos socioculturais, para reafirmar suas identidades. Portanto, ela será um exercício de formação e reafirmação de identidade do campo/ribeirinho dos indivíduos pertencentes a esses territórios (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2008).

Nesse sentido, as Diretrizes operacionais para educação básica nas escolas do campo pontuam a necessidade de se contemplar nessas escolas a diversidade social, política, econômica, étnica e de gênero, que integram a realidade local, e também atender a formação de professores para além do exercício da docência em sala de aula, mas pautadas em “estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo” (BRASIL, 2002, p. 3).

O ensino no campo deve ser vinculado à realidade sociocultural da comunidade como processo significativo na vida de cada sujeito que interage com o universo do conhecimento, como o professor, o estudante, os pais e a comunidade (CALDART, 2010), de modo que haja uma compreensão sobre a necessidade de interação entre os saberes científicos e os culturais nesse espaço social. Ainda para Caldart (2010, p. 24), “o que precisa ser aprofundado é a compreensão da teia de tensões envolvida na produção de diferentes saberes, nos paradigmas de produção do conhecimento”. É um aspecto importante, que perpassa pela valorização cultural e social dos sujeitos em seus territórios.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As práticas dos professores ribeirinhos, em turmas multisseriadas, quando bem trabalhadas, permitem um desenvolvimento integral escolar dos alunos. Contudo, é importante ressaltar que o estudo não objetivou avaliar a qualidade do ensino e da aprendizagem dessas turmas, mas analisar a relação entre o currículo e a cultura a partir das práticas desenvolvidas pelos professores com os saberes ribeirinhos nesses espaços, tornando significativos os conhecimentos escolares na vida dos estudantes.

Os docentes evidenciaram que existem aspectos, dificuldades e enfrentamentos inerentes em qualquer turma, seja ela seriada, seja multisseriadas, localizada no campo ou na cidade. Assim, o professor precisa estar preparado para lidar com essas dificuldades, superar as limitações enfrentadas nessas escolas e contemplar as demandas dessas turmas. E isso não parece ser fácil. Porém, a heterogeneidade e a diversidade em sala de aula, ao mesmo tempo que podem representar dificuldades, podem constituir elementos para uma prática docente alicerçada na diversidade dessas turmas.

Nas escolas ribeirinhas, a busca por uma educação que valorize os saberes culturais em sintonia com os conteúdos escolares dispostos nos currículos é um desafio constante. A educação deve ser repleta de aspectos socioculturais dos sujeitos educandos da Amazônia ribeirinha. Com isso, as escolas multisseriadas são notavelmente importantes nesse contexto. Por essa razão, torna-se impossível extinguir essas classes em virtude de atenderem a um público específico, uma vez que essas comunidades ribeirinhas contêm uma distensão territorial que exige esse tipo de ensino.

Desse modo, este trabalho contribui com as discussões a respeito das práticas desenvolvidas pelos professores de turmas multisseriadas de escola ribeirinha que integram saberes socioculturais seculares da região Amazônica com os conhecimentos escolares, de modo a colaborar para a valorização da identidade e da diversidade sociocultural dessa região. Isso nos permite reafirmar os princípios éticos da educação em prol de uma sociedade múltipla, plural e diversa, em que os saberes científicos e saberes da tradição se complementam por meio da emergência de uma pedagogia cultural da tradição.

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Recebido: 29 de Agosto de 2020; Aceito: 02 de Dezembro de 2020

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